Carlos Novaes, 07 de agosto de 2018
[com acréscimo em 17/08, em Fica o Registro]
No Brasil, poder e TV andam de mãos dadas porque ambos são formas requintadas de mistificação, como já explorei detalhadamente em série de artigos iniciada aqui e, tempos depois, continuada aqui. Pois bem, para obter êxito em sua estratégia eleitoral, Lula, apoiado em verossimilhanças que todo narrador deve saber explorar, está a depender que a maioria do eleitorado se abandone à fantasia — só assim ele alcançará uma solda final entre sua ficção e a realidade terrível que ela tenta encobrir.
Uma condenação sem provas impediu Lula de continuar a apresentar o programa de auditório em que ele – como já dito aqui — se sentiria à vontade e no qual, como todo apresentador despótico, sempre distribuiu prêmios e microfone a quem se comportava segundo a sua vontade, a começar pela obediência à regra de que a atração principal é sempre o apresentador, regime do qual Fernando Haddad se fez o recruta mais caxias.
Dotado de talento e determinação incomuns, mesmo posto arbitrariamente atrás das grades o ex-metalúrgico não desanimou e voltou ao seu torno: e eis que, lá do fundo do calabouço, arrancado da vista de seus seguidores, tirado do palco em que mesmo os distraídos não lhe negavam alguma atenção, banido da liça direta pelos inimigos que o temem, Lula trocou o lugar de animador de auditório pela oficina de dramaturgia e se fez alvo da atenção de todo o público ao leva-lo a divisar em seu infortúnio um drama inédito, pois não há como deixar de fundir na figura encarcerada de Lula o autor, o personagem central e o principal ator dessa autêntica novela que faz a saga dele ganhar audiência à medida que se aproxima do desfecho.
Essa mimetização do gênero televisivo de maior sucesso no país chega ao requinte de imitar a “arte” no seu aspecto fundamental: tal como a telenovela, a obra de Lula é uma obra aberta, na qual o autor aceita que não pode determinar o percurso sozinho, pois o sucesso também depende da prudência de dividir a autoria com a audiência. Como a audiência brasileira é treinada e exigente, há que oferecer elementos que conduzam às duas amarrações básicas para o sucesso: o engajamento emocional, que leva à torcida para que o mal seja derrotado pelo bem, e o engajamento cognitivo, que leva à fidelização oriunda de uma história bem encadeada.
O êxito requer que o enredo entremeie a moral e o cálculo, com a primeira precedendo o segundo, pois o engajamento emocional é o vestíbulo do engajamento cognitivo. Ajudado pelas circunstâncias, Lula, como todo bom dramaturgo, partiu da vida real para a ficção, fazendo do arbítrio contra si, que é real, o chamariz moral para um enredo novelesco ao qual não falta nenhum dos ingredientes que fazem uma história bem contada: depois da injustiça contra o herói, se sucedem encontros e desencontros, reviravoltas implausíveis, traições, cartas secretas, revelações bombásticas, conflito de paternidade e, claro, um tão manjado quanto magistralmente bem construído triângulo amoroso, a ser resolvido só no final.
Todo bom enredo para “drama de superação” deve ter o cuidado de apresentar o injustiçado personagem principal como vítima transparente, deixando aos seus inimigos a pecha de conspiradores, pois a conspiração sempre é a artimanha do mal para interromper o livre curso do bem. Impedido de falar e de se movimentar com a desenvoltura que lhe é própria, vigiado em sua cela, submetido a um regime que controla com rigor suas visitas, desprovido de meios de comunicação remota, Lula aparece sob o registro da transparência: todos estão seguros de saber onde ele está, o que ele faz e com quem ele conversa. Seus adversários diretos estão na mão contrária, pois a frenética atividade conspiratória deles tem desenho novelesco, no qual o público pode divisar até a conspiração entre os facciosos de tribunal, como recentemente tratei aqui.
Como a telenovela é um gênero de dramaturgia que vem há tempos formatando a percepção da realidade pela maioria da sociedade brasileira, a carpintaria dramática necessária ao êxito da novela de Lula não é, portanto, o resultado de um desenho de prancheta – ela é decorrência de um processo fragmentado, que se beneficia do próprio interesse que vai despertando, no qual os capítulos vão construindo uma verossimilhança que não pode deixar de embutir contradições, contradições que até mesmo parte do público, indo no embalo, ajuda a encobrir, pois não pode abrir mão do sonho, por mais implausível que ele se revele.
É nessas contradições, que parte do público se recusa a ver, que Lula e os seus podem esconder o principal: que Lula traiu a confiança nele depositada ao fazer governos aderidos ao Estado de Direito Autoritário, acomodados à desigualdade (na qual, frise-se, ele não mexeu), e cuja governabilidade para o pouco que fez em compensações acomodatícias foi alcançada graças a uma corrupção tão abrangente que, aliada a outros erros, solapou até as condições políticas, jurídico-constitucionais e econômicas em que essa acomodação vinha se dando.
Como o desfecho de uma história, ao fim e ao cabo, só é bom se agrada ao público, e como o agrado do público não vem apenas do final em si, mas, sobretudo, da sensação criada nele de que tudo foi escolha sua, pois não há sensação mais sólida de que se fez justiça do que quando o desfecho tido como justo contempla os desejos do observador, por tudo isso, o desafio para o autor é esconder as contradições e plantar antes o que quer colher depois.
Ao escolher Haddad para comandar a elaboração do seu programa de governo, Lula já antecipava o, dava a dica do, desfecho pretendido. Por isso mesmo, no programa de governo coordenado por Haddad há de tudo, menos uma autocrítica por terem, como teorizou o mesmo Haddad, se acomodado às cadeiras em que, desde sempre no Brasil, “o poder político e o poder econômico sentam-se a uma mesa redonda. Não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios.”
Por que deveria o eleitor esclarecido comprar essa história ou confiar nesse programa de governo? Só cego!
Pensando bem, nem cego. Mesmo o pior cego tem que ter é estômago de avestruz para engolir todo esse embuste.
[17/08 — Fica o Registro:
- Atendendo a pedidos, esclareço o que me parece evidente: nas linhas acima não estou a atribuir a Lula a construção consciente de uma situação na forma de telenovela (assim como o Chacrinha, suas chacretes e seu júri não estavam deliberadamente empenhados em mimetizar, pela ordem, o general Médici, suas tropas e seu parlamento); antes pelo contrário, estou a identificar uma forma que se impõe independentemente do que se passa na cabeça do protagonista, à qual, por óbvio, não se pode ter acesso.]
Estou curioso para saber qual o seu posicionamento em relação ao processo eleitoral. Algum candidato ou abstenção? Espero não ser muito enxerido. Obrigado.