A BESTA SE AJUSTA AO VELHO NORMAL

Carlos Novaes, 26 de junho de 2020

Com acréscimo em 28/06, em Fica o Registro

Não há oposição entre adotar o modelo padrão proposto pela ciência para o combate a pandemias e ter um projeto ditatorial. Pelo contrário: a adoção do modelo padrão teria permitido a Bolsonaro fazer uso das FFAA em ações de GLO de modo justificado, legal e em consonância com os temores e, até, expectativas da maioria da sociedade. Não há como sustentar a ideia de que Bolsonaro foi capaz de antever o estrago da pandemia e, ao mesmo tempo, encarou esse estrago como vantajoso para si justamente se confinasse o governo e as FFAA numa atitude negacionista, como quer o prof. Marcos Nobre, para quem Bolsonaro optou deliberadamente pelo caos apenas para evitar uma saída governamental “normal”.

Ora, o que haveria de “normal” (no sentido anti-ditatorial de Nobre) numa mobilização geral de tropas para fazer valer o isolamento social com liberdade orçamentária ao abrigo da lei? Teria sido, no mínimo, uma extravagância com um aprendizado valioso para qualquer aspirante a ditador – ainda mais se, como Nobre imagina, Bolsonaro tivesse um elaborado plano incrementalista para ser implementado no curso de dois mandatos: no primeiro criaria as condições e no segundo implementaria seu projeto ditatorial. Para nossa sorte, lá no início Bolsonaro não viu a pandemia como uma oportunidade para avançar com seu projeto ditatorial (qualquer que ele fosse). Constatar essa limitação cognitiva em nada despolitiza as escolhas de Bolsonaro, antes pelo contrário, estou a explorar as conseqüências políticas da estupidez, ou seja, politizando-a, até porque esse erro de cálculo também deve algo à mera vontade política de não parecer um maria-vai-com-as-outras, por contraste com os políticos rivais, que adotaram o modelo padrão de combate à pandemia.

Desde esse erro cavalar cometido no início, Bolsonaro, marionete que é, veio dançando ao ritmo da crise, não liderando sequer a sua base. Ao avaliar errado a pandemia, Bolsonaro perdeu qualquer chance de oferecer seu projeto ditatorial como saída para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Pelo contrário, mergulhou nessa crise e, agora, caminha para um de dois resultados, ambos amarrados à lógica da luta de facções estatais: ou sofrerá impeachment, legitimando a luta de facções para um nova rodada de põe-e-tira presidente; ou, como vai ficando mais provável, realizará um governo normal, servindo às facções, especialmente às expectativas delas por alternância pelo privilégio de ocupar o pólo dinâmico do exercício faccioso dos poderes institucionais.

Apresentarei a seguir a análise da conjuntura recente dividindo-a em três fases, distinguindo, em cada uma delas, a dinâmica da sociedade da dinâmica das facções estatais, dinâmicas que, por sua vez, também conhecem segmentações.

FASE 1 – Desprovido da instrução e do equilíbrio emocional necessários nessas horas, diante da pandemia Bolsonaro não soube fazer a escolha pelo menor risco e, sem o saber, preferiu ir para o tudo ou nada. No início da crise, ninguém sabia como seria. A escolha estava entre seguir o modelo padrão proposto pela ciência para o combate a pandemias assim ou tentar outro caminho. Escravo do rol ideológico que o sustenta, Bolsonaro se limitou ao seguinte raciocínio, segundo declarou publicamente já nos primeiros dias: “o isolamento social acaba com a economia, e se acabar a economia, acaba o meu governo”. Logo, Bolsonaro não escolheu deliberadamente o caos apenas para fazer uma escolha na mão contrária à da maioria das facções estatais (o “sistema”, na linguagem bolsonarista). Não. Apoiado em seus desejos e crenças, apostou no que julgou ser a saída que melhor o credenciaria como líder. E errou. Mas não nos adiantemos tanto.

1.1. No âmbito da sociedade, nessa fase inicial da pandemia houve perplexidade e, depois, crescente adesão emocional ao modelo padrão de combate, embora sem a devida obediência prática respectiva. O correto engajamento da mídia criou uma opinião majoritária em torno do modelo padrão, mas hábitos são difíceis de mudar. Além disso, a maioria da sociedade identificou o conflito entre o “sistema” e Bolsonaro, e parte dela resistia a dar razão ao “sistema”, embora não tenha como seu o projeto ditatorial de Bolsonaro (como já vimos, a maioria que levou Bolsonaro à presidência é “antissistema”, mas não quer como alternativa uma ditadura). Na mão contrária à maioria, e tirando vantagem do hábito, a minoria bolsonarista adepta da saída ditatorial tentou avançar com seu projeto opondo-se ruidosamente ao modelo padrão de combate à pandemia, tirando vantagem tática do fato de que sua escolha lhe permitia ir às ruas com exclusividade.

1.2. No âmbito das facções estatais houve três comportamentos básicos nessa primeira fase:

A. As facções estatais hostis a Bolsonaro têm experiência administrativa e discernimento técnico antigos e, por isso, logo entenderam que a linha do menor risco era seguir o modelo padrão no combate à pandemia. Foi o que fizeram ali onde estão assentadas na burocracia ou são governo eleito e, onde não estão, intensificaram a luta de oposição.

B. As facções estatais dispostas a se venderem para Bolsonaro viram na pandemia uma oportunidade. No âmbito federal, nem apoiaram, nem criticaram a escolha de Bolsonaro, ficaram à espera. Ali onde são governo comportaram-se desigualmente, ora mais, ora menos obedientes ao modelo padrão de combate à COVID-19, com predominância da frouxidão, especialmente em governos municipais, como vimos pelo Brasil afora.

C. As facções estatais dentro do governo Bolsonaro conduziram-se obedientes a ele, tendo havido uma e outra divergência, o que resultou, nessa fase, em avanço na ocupação militar dos postos de mando e em baixa ministerial paisana.

Nessa primeira fase, quando o vírus ainda dava espaço para que Bolsonaro avaliasse a pandemia segundo seus desejos de que fosse uma mera “gripezinha”, quem ditou o ritmo da sua conduta no cargo foi a associação entre suas obtusas preferências íntimas e as da sua base dura, que acredita que o “sistema”, ao qual se opõem, é um Estado democrático de direito e, por isso, acham que o “sistema” e a democracia coincidem – logo, querem uma ditadura para sanar a crise. Como o outro lado, o dos que aderiram ao modelo padrão, majoritariamente também supõe viver num Estado democrático de direito, abriu-se a oportunidade para que a polarização em torno da melhor maneira de combater a pandemia fosse fantasiada de “democratas” versus “antissistema”. Em outras palavras, a minoria ditatorial permitiu que a pandemia se tornasse o clareador das águas contra si mesma: perfilar com a escolha de Bolsonaro diante do novo coronavírus foi, desde o início, ficar contra a democracia.

FASE 2 – Mais adiante, quando a pandemia cresceu em virulência, reforçando os temores da maioria da sociedade e dando coesão às facções estatais de oposição em sua adesão ao modelo padrão de combate à pandemia (isolamento social e reforço das unidades de atendimento), a marionete Bolsonaro, sentindo a fragilidade da sua escolha e embora ainda orientado pela sua base, passou a estender cordões para facções estatais cujo apoio sempre está à venda, haja o que houver, com ou sem pandemia. A dança ficou confusa, pois ao ritmo antissistema saído da base passou a se associar uma forte batida saída do coração do sistema – logo, o besta se viu empurrado a alardear o contrário da própria prática: de um lado, radicalizou o discurso antissistema (já então na forma de blefes em declarações ou em idas a manifestações anti-institucionais) e, de outro lado, na mão contrária, acelerou a compra do Centrão, tomando o rumo de assumir o que sempre foi: expressão de mais um arranjo faccioso no âmbito do Estado de Direito Autoritário.

2.1. No âmbito da sociedade, a minoria ruidosa que apóia o projeto ditatorial de Bolsonaro, indo na mão contrária da prática recente dele, fazia crescente alarido contra o sistema e pela ditadura, associando essa escolha à rejeição do modelo padrão de combate à pandemia. Enquanto isso, a maioria da sociedade havia aderido ao modelo padrão e apresentava dois comportamentos básicos: (i) de um lado, os que haviam sido eleitores de Bolsonaro ficaram contrariados com as escolhas dele diante do novo coronavírus, mas mantiveram apoio ao que identificavam como o compromisso do besta contra o “sistema” – com mais ou menos ênfase, o apoio ao besta começou a cair. É que essa maioria de eleitores de Bolsonaro jamais teve a luta contra o “sistema” como uma luta contra a democracia e, por isso, se auto-iludira com a ideia de que os arroubos ditatoriais do besta eram “coisa do passado” ou mera “forma de falar” – para esse pessoal, o fundamental era a atitude antissistema e essa motivação resistia, mas a ideia de que Bolsonaro a representa passou a claudicar. (ii) De outro lado, aquela parte da maioria da sociedade que além de aderir ao modelo padrão já era oposição a Bolsonaro recebeu com perplexidade e temor a renitência das escolhas absurdas do besta e a aparente maré montante da sua ruidosa base. Perplexidade porque nunca imaginara que a estupidez pudesse chegar a esse ponto; temor porque as escolhas do imbecil pareciam atreladas ao alarido crescente pela ditadura, com invocações às FFAA e às armas. Foram essa perplexidade e esse temor que tornaram plausível para essa parte da sociedade a ideia esdrúxula de que o problema do Brasil é a ameaça de forças ditatoriais a um imaginário Estado democrático de direito.

 2.2. No âmbito das facções estatais, essa nova fase intensificou as hostilidades e, novamente, foram três os tipos de reação básica:

A. As facções de oposição passaram a avaliar a polarização em torno do modelo padrão de combate ao coronavírus como uma oportunidade de submeter a besta e, até, de derrotá-la. Atuando segundo uma estratégia sem estrategista, passaram a concatenar ações propriamente institucionais (STF e Congresso) com intervenções na mídia em apoio a esses procedimentos, mesmo quando claramente facciosos, ou seja, quando contrários ao Estado democrático de direito que alegam defender, tal como já haviam feito no viciado processo contra Dilma. Em paralelo, contando com a ajuda do alarido vazio, mas assustador, da minoria ditatorial, com o sentimento oposicionista de boa parte da sociedade, e enxergando a perda de apoio ou, no mínimo, a vacilação da maioria daqueles que haviam votado no besta, as facções estatais de oposição passaram a disseminar, com apoio uníssono da mídia convencional e de vistosos setores organizados da opinião pública, a ideia de enfrentar a suposta ameaça ditatorial com uma frente democrática. No embalo da COVID-19 e dos blefes da besta, o frentismo pela volta ao status quo anterior a Bolsonaro, ao velho normal, começou a ganhar corpo (muito embora a autointitulada esquerda combine esse conservadorismo com a ideia da moda de que depois da pandemia nada será como antes…).

B. As facções propriamente governamentais cerraram fileiras em torno da besta, tendo sido feitas as defenestrações adicionais necessárias. A essa altura, a insânia da recusa ao modelo padrão de combate à pandemia já estava clara intra-muros, mas além de todas as pontes para um recuo na escolha feita haverem sido queimadas, o alarido da base só crescia, o que obrigava Bolsonaro a figurar de barata tonta, o que muitos, mais uma vez, entenderam equivocadamente como uma sofisticada manifestação de um fantasioso “método do caos” (uma maneira de se pavonear como inteligente é atribuir a um imbecil uma genialidade que só você vê…). A perda de paisanos levou a um crescimento da facção dos milicos no governo, o que deu sinal contraproducente ao público externo, imerso em diferentes estágios de desorientação: a minoria pró-ditadura viu nisso um avanço do seu projeto inviável e intensificou o alarido; a maioria da sociedade passou a temer pelo pior. Prato-feito sob medida para o frentismo, o que levou à proliferação de manifestos de salvação nacional surfando no alarmismo.

C. As facções estatais à venda, experientes em processos de inviabilização de presidentes, logo enxergaram as vantagens para si na radicalização da dinâmica desencadeada. O preço subiu, e Bolsonaro, o “autoritário coerente”, não apenas teve de deslocar ocupantes de cargos, mas recebeu a imposição de criar novos ministérios, com inúmeros novos cargos, contrariando frontalmente as promessas de campanha.

Veja, leitor, que todo aquele recente alarido em torno da falácia de um golpe se deu nessa transição dos cordões da marionete: saíram da base ruidosa para o controle do Centrão. Por incrível que pareça, enquanto a mídia estava repleta de artigos sobre o apocalipse iminente, a realidade ia na direção contrária. Acuado pelo coronavírus, que precipitou uma aliança de forças hostis contra suas escolhas, convergência que só se daria no contexto da campanha eleitoral de 2022 e, mesmo assim, sem a “unidade” que a conjuntura não-eleitoral quase permite, e empurrado pela própria base na direção da inviabilidade (a falta de apoio popular e de dispositivo militar tornam qualquer projeto ditatorial inviável), Bolsonaro ficou aturdido e passou a uma contradição flagrante: berrar aquilo de que o coração estava cheio, mas, atolado, fazer o que as hemorroidas mandavam, isto é, na rua, gritava contra o “sistema”; no palácio, sentava no colo acolhedor do Centrão.

FASE 3 – Nas duas últimas semanas, o recuo de Bolsonaro tornou-se notório e ficou claro a toda gente o abatimento da besta, embora ela ainda vá provocar muitos danos. A imersão na luta de facções é tal que Bolsonaro chegou a ameaçar não mais jogar a lavagem diária aos apoiadores que frequentam o chiqueirinho, que passaram a cobrá-lo. Paralela à ruptura com a base extremista, passou a haver insistente agitação de bandeiras de paz “institucional” e houve até a demissão a contragosto de ministro popular entre a minoria ditatorial.

3.1. No âmbito da sociedade, a minoria ruidosa que pede ditadura não apenas vem deixando as ruas, como vai se calando nas redes sociais. Em paralelo, o apoio incerto dos que relevavam os erros de Bolsonaro no combate à pandemia e/ou seus arroubos ditatoriais em nome de um suposto compromisso antissistema tende a ficar em banho-maria: de um lado, torcem o nariz para a adesão à normalidade, mas vão engolindo-a enquanto houver esperança de que seja apenas uma manobra tática e de que o combate à corrupção vá “prosseguir”; de outro, aprovam o recuo no projeto ditatorial que essa ida para o normal representa. No caso da base fanática, seu entusiasmo tende a murchar, pois um deslocamento de insatisfeitos como o que está havendo, além de abater o moral, sempre exerce algum poder de arrasto, fora a oportuna repressão desencadeada por facções estatais hostis contra os alvos ditatoriais e corruptos mais evidentes. No caso da maioria que já não aprovava o governo, as últimas semanas registraram uma mobilização de rua inicialmente espontânea, contraproducente em razão da pandemia, mas valiosa como registro de disposição de luta. Como quer que seja, a maioria que ficou em casa experimentou um alívio das suas apreensões e, até, se dando conta do que havia de infundado nelas, coisa que, infelizmente, pode favorecer a estabilização do velho normal, uma vez que o jogo político das facções se concentra na defesa do Estado de Direito Autoritário.

 3.2. No âmbito das facções estatais tem havido alterações significativas:

A. As facções governamentais estão a sofrer rearranjos, uma vez que as defenestrações havidas e as adesões alcançadas não significaram mudanças de superfície, antes indicam um forte revés no projeto ditatorial em direção a uma governança dentro do velho normal (nos padrões do Estado de Direito Autoritário): são mudanças que até não impedem uma intensificação aqui e ali do autoritário, mas não permitem abolir o direito (como já tem sido o caso em SP e no RJ, com a eleição de Dória e Witsel, por exemplo). No caso de Bolsonaro, são rearranjos cuja “normalidade” impôs uma reconfiguração da presença militar, levando os milicos a entregarem postos de mando recém conquistados. Essas conquistas haviam sido obtidas no embalo de um projeto ditatorial sem lastro e, portanto, eram uma exceção que erodiu à medida que Bolsonaro veio sendo empurrado de volta ao velho normal. Todo esse recuo militar veio em marcha contínua: militares da ativa mostraram convicções democráticas contra os objetivos do besta; militares do palácio tiveram de depor à PF; Bolsonaro teve de recuar de pretensões de remanejar postos na tropa; milicos de pijama entenderam ter de se explicarem publicamente sobre blefes golpistas; ministro militar teve de prestar esclarecimentos no Congresso e, finalmente, a marcha à ré culmina com a ida para a reserva de general palaciano da ativa que até outro dia blefava dizendo que “o outro lado não pode esticar a corda”.

B. As facções de negócio vêm batendo metas de venda. O sucesso dos corretores do Centrão gera uma realimentação da dinâmica facciosa para o exercício dos poderes institucionais, incrementando o velho normal: de um lado, empurra Bolsonaro mais e mais para um governo dentro da normalidade do Estado de Direito Autoritário; de outro, atiça a cobiça e atrai para o jogo faccioso propriamente governamental facções que estavam refratárias ao governo, como é o caso de siglas menores e, até do DEM, para quem a saída de Weintraub pode significar a senha para negociar uma adesão, ainda que parcial.

C. Enquanto isso, facções estatais rivais ao governo desencadearam um tão desejável quanto faccioso cerco à delinquência familiar do presidente. Desejável porque se trata de um conjunto robusto de evidências de associação para o crime, indo de fake news, passando por rachadinhas destinadas a enriquecimento ilícito e, até, ao reforço à milícia; faccioso porque no que se refere à rachadinha não há inocentes entre as facções estatais, que são estatais precisamente porque se especializaram em lograr financiamento através de práticas corruptas proporcionadas pelo exercício faccioso dos poderes institucionais do Estado de Direito Autoritário, que defendem com tanto empenho. Essa situação dá cor atual a fenômeno que há anos descrevi aqui: a conflagração das facções pelo controle do Estado de Direito Autoritário, seja no plano dos hierarcas de carreira, seja na disputa entre os hierarcas políticos, fenômeno desagregador a cuja face positiva chamei de “exceção bem-vinda”.

Com o malogro do seu projeto ditatorial, Bolsonaro vê ruir um sonho de trinta anos, desde que foi eleito para o primeiro dos seus sete mandatos de deputado, em 1990. Ao longo desse tempo, enquanto a maioria da sociedade lutava por democracia, as facções estatais refreavam esse ímpeto democrático segundo os seus interesses, processo de traição que permitiu o afloramento do que sempre vivera à espreita de uma ocasião para tentar trazer a ditadura de volta. Como dito aqui faz cerca de dois anos:

à vivacidade de luta democrática da maioria da sociedade contra os sofrimentos impostos pela desigualdade correspondeu o apego crescente das facções estatais às regalias oferecidas pela mesma desigualdade – embaixo se lutava por direitos democráticos (todo o rol conhecido: educação, saúde, moradia, reconhecimento, emprego, terra, expressão de si etc.); de cima, com a força, se negavam à maioria os seus direitos, e, com a caneta, se defendiam privilégios e roubo (salários acima do teto, auxílios, bonificações, corrupção, previdência própria etc.). […] Fica claro, portanto, que houve nesses 30 anos dois movimentos contrapostos saídos da luta contra a ditadura paisano-militar: um dinâmico, rico e maravilhoso empuxe por direitos vindo da sociedade (que vai da parada gay aos sem-terra, sem-teto, sem-nada, passando por toda sorte de demandas econômicas, comportamentais, sociais, ambientais, étnicas e culturais); e uma reação resiliente, engenhosa, corrupta e brutal vinda do Estado (que vai do atrelamento da economia ao Mercado à matança dos pobres nas favelas, passando por toda sorte de arbitrariedades saídas do exercício faccioso dos poderes institucionais, exercício este que também serviu para cooptar e degenerar as duas forças políticas em que a sociedade havia confiado justamente para se contrapor a esse estado de coisas: PSDB e PT).

O fim do sonho macabro de Bolsonaro dissolve no ar o seu antagonista especular não menos fantasmático, o frentismo recém proposto, que já vai assumindo ares do que sempre foi: um arranjo eleitoreiro destinado a mais uma vez colocar a energia democrática da maioria da sociedade a serviço dos interesses das facções estatais.

Na contramão do que supus quando se deu a estrepitosa saída de Moro do governo (as revelações do ex-juiz não se fizeram graves como a teatralidade do gesto dele sugeriu), toda a reordenação do cenário político aponta para uma acomodação facciosa, pelo menos até que (e se) as investigações em curso cheguem a trazer revelações e provas que tornem incontornável uma ofensiva para remover Bolsonaro do cargo. No ritmo atual, o besta pode vir a se segurar no cargo, com o risco de que colha em 2022 dividendos eleitorais das melhorias que a economia não poderá deixar de apresentar depois do sufoco havido em 2021.

28/6 – Fica o Registro:

Resultados de pesquisa DataFolha sobre o apoio à democracia entre os brasileiros, publicados ontem (27/06), no UOL:

– 75% preferem a democracia a qualquer outra forma de governo.

– 86% são contra a tortura, mesmo para extrair informações de um criminoso.

– 64% são pelo respeito aos direitos humanos para todos, inclusive para criminosos.

– 81% consideram uma ameaça à democracia a publicação de notícias falsas.

– 84% entendem que movimentos sociais devem respeitar a lei e a ordem quando reivindicam.

– 83% entendem que decisões importantes devem ser tomadas ouvindo mais aos cidadãos do que aos técnicos e especialistas.

– 69% são contra prender pessoas sem ordem de um juiz.

– 78% entendem que a ditadura paisano-militar foi… surpresaaa: uma ditadura!

Esses números ilustram a explicação para o fato de Bolsonaro ter ficado falando sozinho na atribulada e barulhenta “tentativa” recente de marchar na direção do seu projeto ditatorial inviável, como exploramos acima. O compromisso da maioria com a democracia deixa sem lastro o ânimo ditatorial das facções autoritárias que o Estado de Direito Autoritário herdou dos dispositivos militares do Estado Ditatorial com a anistia que livrou de punição a assassinos e torturadores.

Diante dessa ordem de idéias e desses números, as perguntas são: para que frente? A quem serve o frentismo?

Contando com um apoio desses, a democracia não precisa de frente para defendê-la e o frentismo, queira ou não,  está a serviço de, mais uma vez, transferir para as facções estatais a energia democrática da maioria da sociedade. Cada um dos frentistas quer pavonear-se em defensor do que a sociedade já defende; nenhum deles quer correr os riscos de dizer qual democracia defende e insiste covarde e comodamente que vivemos num Estado democrático de direito. A hora exige dar as costas a esse “oportunismo democrático” e dizer qual democracia queremos, sendo supérfluo defender as franquias democráticas que já vigem, e vigem porque a maioria da sociedade as quer e garante.

7 pensou em “A BESTA SE AJUSTA AO VELHO NORMAL

  1. Ricardo

    A pesquisa do Datafolha demonstra, nas entrelinhas, que o apoio aos ideais bolsonaristas não se deu atrelado ao voto popular. Votamos nele, mas não abraçamos seus princípios, ou sua falta de princípios. Espero que, daqui a mais um ou dois meses, diante de uma nova pesquisa e a despeito do uso eleitoreiro que Bolsonaro faz do aumento no número das parcelas do auxílio, nenhuma fração sequer desdes três terços, que já enxergam o fracasso na liderança do Executivo, retroceda.

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  2. Ricardo

    Uma mostra descarada das facções em ação nos foi dada nesta quarta-feira (24/06/2020), quando o STF declarou inconstitucional a redução salarial e de jornada dos servidores públicos, conforme pretendia o governo em cumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal. Arvorando-se os defensores da Constituição, os prezados ministros, tão importantes para fazer valer a democracia, havemos de admitir, parecem, por vezes, cegados pelos antolhos da tecnocracia.
    Quer dizer que os trabalhadores do setor privado podem arcar com o ônus da pandemia (ajuste salarial à redução de jornada, o que também proíbe a Constituição), mas o servidor público deve permanecer escudado contra os reveses do atual momento, como se membros de uma casta intocável fossem? E o momento de exceção em que vivemos, não conta? A menor queda do PIB da nossa história está às portas, e o endividamento público abeira os 90% do Produto Interno Bruto, com a arrecadação em queda livre e a necessária extensão dos auxílios emergenciais dando a tônica da conjuntura, e mesmo assim o Supremo se decide pela interpretação fria da letra da lei. Lembremos que este é o mesmo Supremo que evoca a MORALIDADE para detrair o Executivo, quando este flerta com o fascismo.
    Moral da história: História sem moral.
    Não há mocinhos nesse jogo de conveniências. Apenas facções, ora agindo de modo mais articulado, ora de modo quase totalmente desarticulado, num cada um por si. Este é o verdadeiro sistema, que se retroalimenta do conjunto de leis de nosso país, das brechas que ele permite e das possíveis interpretações que, em última instância, é prerrogativa da toga.
    Parece até que voltamos ao tempo das leis imorais.

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    1. Carlos Novaes

      Ricardo, eles não estão cegos pelos antolhos da burocracia, eles estão a defender os próprios interesses, pois não querem relaxar, abrindo precedente. É que a luta contra a desigualdade, se levada a cabo no rumo de um Estado de Direito Democrático, necessariamente terá de rever as remunerações pagas aos funcionários públicos em geral, diminuindo diferenças. Para isso, será necessário deixar de tratar como sacrossanta a atual remuneração dos hierarcas da burocracia. No mais, você viu bem porque são facções estatais, isto é, contra nós, na sociedade — no fundo, eles estão todos juntos e nos tratam como fichas na mesa do jogo deles; fichas cuja distribuição é decidida a cada eleição — daí eles defenderem que as franquias democráticas existentes já criaram um Estado democrático de direito que é pura fantasia.

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    2. João Rocha

      Achei sua questão plausível mas fora de foco. O servidor público está há anos sem ajustes salariais necessarios cuja inflação só corrói a cada dia seu poder de compra e lógico, não estou falando do alto escalão do funcionalismo. Todas as vezes que leio esses tons de indignação com o funcionalismo ou penso: será que essa indignação é a mesma para os privilégios governamentais? Será que há o mesmo empenho em atacar regalias do judiciário? Será que o cartão corporativo mexe com o autor dessa crítico e todo o arranjo de privilégios lhe é indiferente pelo fato de que ele acreditou em uma narrativa de que gente que ganha 2mil reais sem reajustes reais há anos são o problema do país? E não o próprio estado que criou essas distorções salariais e a própria desigualdades entre essas classes. É uma reflexão que sempre faço.

      Responder
      1. Carlos Novaes

        João, especulações sobre as motivações de outrem levam a nada, mesmo – quando muito, geram animosidades tolas. Há uma distorção entre setor público e setor privado que precisa ser revista e, infelizmente, o país não produz riqueza suficiente para elevar a todos no padrão do setor público. Logo, para enfrentar a desigualdade, entre muitas outras coisas, será necessário arbitrar perdas no setor público. Essas perdas terão de se dar sobretudo nos privilégios dos hierarcas. Mas há ganhos absurdos na base da pirâmide pública, como, por exemplo, motoristas e garçons ganhando mais de seis salários mínimos — em alguns casos, muito mais. Alguém dirá que é pouco, irrisório, no computo geral. Bem sei disso, mas não há reforma do Estado séria se casos assim não forem revistos em nome do projeto geral visando o bem comum. Não teremos professores (por exemplo) ganhando melhor se não fizermos um ajuste em todos os aspectos.

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  3. Marcos Gaeta

    Mestre Novais,

    É com enorme alegria e satisfação saber que você voltou a escrever novos
    artigos.
    Precisamos,urgentemente, que você
    Volte a expressar suas análises para o
    Maior número de pessoas possível.
    Muita saudade dos comentários que
    Fazia no Jornal da cultura.
    Deixou uma legião de fãs e órfãos que
    Sentem a sua falta até hoje.
    Que tal um canal no You Tube, pode
    Ser um programa mensal, quinzenal ,
    Semanal para começar.

    Um grande abraço

    Responder
    1. Carlos Novaes

      Grato pela simpatia, Marcos. Ainda não estou convencido de que deva me meter a produzir material audiovisual próprio. Abraço.

      Responder

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