O BRASIL EM SEU LABIRINTO

Carlos Novaes, 25 de abril de 2020

Uma tentativa (longa…) de entender o que se passa.

Definições preliminares:

– SISTEMA = modo faccioso de atender aos interesses dos altos hierarcas do Estado combinado à defesa dos interesses dos muito ricos. Ele gera e garante a desigualdade, uma desigualdade tão acentuada que esmaga os pobres e bloqueia o avanço das classes médias.

– Faccioso = diz-se do modo de operar através de facções, que se formam e reformam segundo as circunstâncias. O Centrão é o exemplo perfeito de uma facção do Estado de Direito Autoritário.

– Altos hierarcas do Estado = altos hierarcas eleitos pelo voto (políticos profissionais) + altos hierarcas de carreira (funcionários públicos de alto escalão nos três poderes e nos três níveis da federação).

– Muito ricos = 5% mais ricos em renda e riqueza.

– Sistema político = onde se dá o jogo faccioso entre os altos hierarcas do Estado.

– Braço político-profissional = segmento eleito do sistema político

– Jogo faccioso = o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Em suma, o SISTEMA é formado por quem certamente vai perder se houver avanço na luta contra a desigualdade.

O BRASIL EM SEU LABIRINTO

A forma antiga foi reciclada e nos atirou num labirinto

Para que o Brasil deixasse o Estado Ditatorial paisano-militar para trás, o primeiro passo foi alcançar que a ilegitimidade dele se tornasse um sentimento da maioria da sociedade brasileira. Para isso foram necessárias práticas democráticas da sociedade interessada na democracia contra o Estado que negava a democracia: primeiro, conversas privadas; depois, intervenções públicas esporádicas; mais adiante, publicação de estudos e análises, seguidas de pequenas idas às ruas, que foram ficando mais e mais cheias, coroando as primeiras caminhadas contra a carestia (1974) com as grandes manifestações pelas diretas-já (1984).

Ao longo de todo esse percurso de atividade democrática proibida, mas exercida na marra, a meta da sociedade brasileira em movimento foi fazer a democracia transitar da sociedade para o Estado, para torná-lo democrático como ela já vinha sendo – daí o nome: transição democrática, pois quem devia transitar era a democracia, da sociedade para o Estado. Enquanto isso, a maioria dos políticos profissionais, então concentrados nos dois partidos da ditadura, o MDB e a ARENA (hoje, DEM), manobravam para que essa transição da democracia da sociedade para o Estado não ameaçasse os interesses dos muito ricos, financiadores das práticas políticas que permitiam (e permitem!) a esses políticos profissionais reunir poder para fazer dinheiro. Essa cautela temerosa levou ao que se chamou de abertura lenta, gradual e segura. A manutenção dos mecanismos de concentração de renda e riqueza (desigualdade) determinou que a democracia praticada pela sociedade transitasse de maneira truncada e incompleta da sociedade para o Estado. O sistema político se empenhou para que o novo se adequasse ao máximo à forma antiga, como detalhei aqui.

Essa assimetria entre o que aspirava a maioria da sociedade e o que interessava à maioria dos políticos fez o Brasil entrar no labirinto em que se encontra: a cada tentativa de abrir a porta de saída, os políticos profissionais manobravam, e o resultado sempre foi um arremedo do que se almejava – ou seja, a porta que se imaginara aberta nunca estava lá. Exemplos: a carestia (inflação) não era enfrentada para não contrariar quem ganhava com ela; a anistia incluiu torturadores para não punir os responsáveis pelo que houve de mais abjeto na ditadura; as diretas-já foram derrotadas para que o movimento das ruas não fosse coroado por uma eleição que o sistema não controlaria, pois embora a sociedade estivesse pronta para o exercício democrático do voto presidencial, o sistema ainda não havia encontrado uma fórmula de submeter a novidade de um presidente eleito aos seus interesses.

Depois da derrota das diretas-já veio o Colégio Eleitoral, com a morte de Tancredo, Sarney virou presidente, fizemos a Constituinte e Sarney ainda obteve mais 1 ano de mandato… Só então fizeram uma eleição solteira para presidente. Collor, Lula, Brizola e Covas foram os mais votados no primeiro turno, e Collor ganhou o segundo turno.

Desses quatro nomes, nenhum deles podia ser associado pela massa de eleitores aos entraves à transição democrática que a sociedade vinha tentando impor ao Estado, contra a forma herdada da ditadura paisano-militar. Ou seja, os candidatos presidenciais das forças que travaram a transição (MDB e ARENA-PDS-PFL) não receberam apoio eleitoral expressivo da sociedade – mais uma vez, a maioria da sociedade perseverava em sua busca por fazer transitar a democracia da sociedade para o Estado e demonstrou que identificara seus inimigos. Assimilando suas derrotas (frequentemente celebradas como vitórias pelos meios de comunicação de massas), a sociedade não desistia e ia construindo alternativas. Desses esforços é que saíram a vitória de Collor (gostemos ou não), a boa votação de Brizola (que representava um projeto antigo, outrora interrompido pela ditadura paisano-militar) e a emergência eleitoral dos dois partidos políticos novos que se tornaram expressivos porque identificados como aliados da transição democrática almejada pela maioria da sociedade: o PSDB (Covas) e o PT (Lula).

Uma vez na presidência, Collor acreditou que podia manter o Estado da desigualdade e, ao mesmo tempo, afrontar os interesses mais imediatos do sistema político estatal, cuja forma, como vimos, era definida pelas forças que a transição truncada preservara: MDB e ARENA (PDS-PFL). O resultado foi o impeachment, processo que selou o modo de operar do Estado de Direito Autoritário que estava a se consolidar com o máximo da forma antiga: se o presidente da República não se afina com os interesses do SISTEMA, o impeachment é o modo de desviar a insatisfação popular contra ele, fazendo-o culpado das mazelas saídas da desigualdade mantida pelo próprio SISTEMA. Se o presidente não mexe com a desigualdade e não afronta interesses de rotina do sistema político, a vida segue até a próxima eleição, na qual os trouxas (nós, a maioria da sociedade brasileira) somos chamados a definir o tamanho dos hierarcas cuja força depende do voto popular, os políticos profissionais.

Finda a eleição, eles nos dão as costas e definem uma nova rodada com base na força que o seu, o meu, o nosso voto lhes deu… Quando digo que eles “nos dão as costas”, refiro-me não apenas ao fato sabido de que a maioria dos políticos profissionais pouco se interessa pelos sofrimentos e/ou demandas da maioria da sociedade; quero também apontar que eles dão as costas para aquela que deveria ser a ação permanente deles: o empenho na construção de um Estado de Direito Democrático. Ao invés disso, a negligência deles (quando não a ação direta) contribui para que continuem como rotina as práticas que definem como autoritário o nosso Estado de direito. Voltemos.

Veja bem, leitor, como esse modo de operar, o impeachment, cuja estréia foi contra o nefasto Collor, é a cara da transição truncada. A ditadura manteve o Congresso funcionando segundo eleições. Foi nessa forma de ação congressual sem eleição presidencial que os políticos do MDB e da ARENA foram treinados. Foi nesse mesmo Congresso que eles construíram a abertura lenta gradual e segura. Foi para este Congresso que eles desviaram a escolha do presidente depois das diretas-já: ao divulgarem a vitória de Tancredo (uma vitória deles!), como uma vitória da sociedade, eles fizeram o primeiro contrabando de legitimidade para a forma antiga que queriam preservar.

Com todo esse treino e bem estruturados em seus mesmos velhos postos de poder, eles logo perceberam a fragilidade que havia na novidade da presidência da República por via direta. Desde então, cada vez que as contradições da ordem da desigualdade impõem mais uma rodada de crise aguda, eles acionam o botão do impeachment – é que o impeachment permite desviar para um alvo único a ira popular contra os sofrimentos que são, sempre, infligidos contra a maioria de nós pela desigualdade (saibamos disso, ou não), desigualdade que o próprio Congresso cinicamente garante…

Mesmo que o ardil do impeachment não tenha ficado claro para a maioria, logo depois dessa manobra dos políticos que manejam o Estado de Direito Autoritário, a maioria da sociedade perseverou e novamente reagiu na direção da meta de um Estado de Direito Democrático: na eleição presidencial de 1994, a maioria voltou a negar seu apoio eleitoral presidencial a candidatos saídos da ditadura paisano-militar, e obrigou todo mundo a se abrigar sob as duas novas forças que a luta democrática construíra: PSDB e PT. Para quem quisesse enxergar aparecera um caminho para a saída do labirinto: bastava que o novo se unisse contra o velho. Infelizmente, porém, PSDB e PT, eles próprios já voltados para seus próprios interesses, iniciaram ali uma polarização fajuta, insensatez que abriu a porta para o mais negro corredor do labirinto em que já estávamos.

A polarização foi tão fajuta e tão nociva que para se sustentar teve que contar com a volta da polarização não menos fajuta da ARENA e do MDB, agora coadjuvantes. Esse arranjo foi o coroamento da transição truncada, pois os dois partidos saídos da luta democrática da sociedade, ao se dividirem para disputar o poder do Estado, criaram as condições para que os velhos partidos do Estado ditatorial continuassem suas práticas políticas nefastas através da forma antiga. Ou seja, PSDB e PT se tornaram freios à democratização do Estado, determinando o fim da transição da democracia da sociedade para o Estado e consolidando o Estado de Direito Autoritário que nos infelicita. Essa traição foi (e é) alardeada como a suposta conquista de um Estado democrático de direito.

A forma antiga ganha orçamento, se empanturra e entra em crise

As práticas de PSDB e PT consolidaram o Estado de Direito Autoritário com a marca fantasia de Estado democrático de direito, o que desviou a energia da maioria da sociedade para longe da luta por um Estado de Direito Democrático – mantida a forma, diante de mais uma derrota se impôs uma nova ilusão de conquista.

Para sustentar suas rotinas de poder baseadas na forma antiga, PSDB e PT, ao chegarem à presidência da República, se conformaram ao seguinte esquema geral:

Não mexer com a desigualdade que sustenta o SISTEMA. Assim, as simplistas políticas sociais compensatórias desses partidos, embora benéficas aos mais sofridos, não alteraram a distância entre os muito ricos e os muito pobres. Além disso, essas políticas não foram acompanhadas de nenhuma medida para dotar o setor público (infra-estrutura, saúde e educação) de melhorias que atraíssem as classes médias para a luta contra a desigualdade, que também as atinge, pois o que fica estocado em cima deixa de irrigar toda a atividade social, o que torna desnecessariamente difícil a vida de quem a duras penas conseguiu fazer a vida um pouco organizada.

Não privar os hierarcas do setor público dos seus privilégios. No caso dos políticos, PT e PSDB não tiraram deles os mecanismos de reunir poder para fazer dinheiro. No caso da elite do funcionalismo público, não mexeram nem com suas vantagens previdenciárias, nem com suas vultosas remunerações indevidas. Nos dois casos, temos práticas subalternas de manter a desigualdade em sua versão miúda, de varejo. Enfim, ao contrário do que seria de esperar de partidos orientados “à esquerda”, os hierarcas do setor público fizeram da presidência da República uma ponte para o acesso a fatias ainda maiores do orçamento, quando não veículo para a corrupção.

Tudo como dantes, só que pior, pois fraudando esperanças e dissipando energias de mudança.

Uma traição desse tamanho, exatamente por ser enorme, leva tempo para aparecer. Afinal, o país avançou alguma coisa naqueles anos (nem tudo poderia ser perda, claro), eles distribuiram migalhas e a tudo embrulharam em mil celofanes retóricos, cobertos por camadas e camadas de lantejoulas de esperança. Para fazer essa operação traíra, tanto o PSDB quanto o PT tiveram de mudar, perdendo gente decente e competente, que foi sendo lenta e continuamente substituída por paus-mandados que pareciam saídos do programa “topa tudo por dinheiro”. Mesmo enfeitada, a forma antiga começou a ruir quando houve a reunião circunstancial de três fatores, ligados, cada um ao seu modo, ao problema central da desigualdade:

A prepotência de Lula ao indicar a incompetente e neófita Dilma para sucessora;

– A fragilidade de Dilma atiçou a avidez sem limites do baixo-clero congressual, que se rebelou contra a acomodação das suas próprias lideranças.

– A operação Lava-Jato, que embora tenha se revelado uma ação política e nefastamente orientada ideologicamente, ainda fez mais bem do que mal, pois escancarou a corrupção.

Sob a ordem da desigualdade (sempre ela), a junção desses três fatores revelou-se explosiva e levou à farsa da reencenação do ritual do impeachment, dessa vez contra a petista – sem o saber, as classes médias foram para a rua porque são vítimas da desigualdade; enganadas, despejaram suas raivas, frustrações e rancores contra Dilma. Mais uma vez, a ira sem rumo da sociedade, uma ira que resulta da desigualdade, que massacra os pobres e bloqueia a vida das classes médias, foi desviada contra a presidência da República com motivação anti-pobre, quando deveria ser dirigida contra o Congresso e a alta hierarquia do Estado de Direito Autoritário, como analisei em muitos posts deste blog.

Obviamente, tirar Dilma nada resolveu e os corredores do labirinto se estreitaram. Como não poderia deixar de ser, pela razão mesma de que a desigualdade não foi enfrentada, era só uma questão de tempo para o problema reaparecer, e a solução mágica voltaria a ser invocada, fosse quem fosse o presidente da República (antecipe-se de passagem: como já estamos vendo…). Entrementes, como a emergência da Lava-Jato arrastara todo o sistema político para uma luta entre facções própria do salve-se quem puder que se instalou, ficou escancarado que a forma antiga enfeitada estava alicerçada na corrupção generalizada que cimenta com massa podre o Estado de Direito Autoritário, ainda que os protagonistas da Lava-Jato não tenham almejado esse desfecho.

O desencanto foi total e deu início a uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. No que se refere à manobra do impeachment, essa crise de legitimação trouxe uma situação nova já no governo Temer: o recurso ao impeachment se esgotara, pois um Congresso tão desmoralizado, onde se aboletam os barões da corrupção que barram a luta contra a desigualdade, já não tem legitimidade para propor o impeachment de um presidente da República, como analisei detalhadamente aqui faz quase quatro anos – foi aí que o Temer se sustentou.

Tornada uma arma na luta entre as facções estatais conflagradas, divorciada de qualquer compromisso real com um futuro democrático para a sociedade brasileira, a Lava-Jato arrastou a opinião pública para um desvio perigoso: ao invés de reconhecer no SISTEMA nutrido pela desigualdade a origem da crise de legitimação, a sociedade foi arrastada a limitar sua ira ao sistema político, especialmente contra o braço político-profissional dele. Mais uma vez, a desigualdade não foi encarada como problema estrutural e foi deixada de lado, como “problema de pobre”. A classe média resolveu cobrar a conta no guichê errado. Não tinha como dar certo, mas alguém poderia dizer: pelo menos, meio caminho foi andando.

Mas não foi.

Crise de legitimação encruada: emergência e vitória eleitoral de Bolsonaro

Com a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, a maioria da sociedade voltou as costas para as forças que a haviam traído. No PSDB, quem podia ser identificado de pronto com a velha política foi varrido e o PT teve de se refugiar, de um lado, no afeto daqueles a quem distribuíra benefícios diretos (embora sem alterar-lhes as perspectivas de uma vida sob desigualdade) e, de outro lado, nas ilusões interessadas da nossa autointitulada esquerda de boteco, conjunto que ainda confere à facção lulopetista um forte poder de arrasto sobre oportunistas e incautos de todo gênero. Esses dois partidos chegaram sob revés às eleições de 2018, sendo que, no caso do PT, houve uma óbvia chicana jurídica, típica da luta de facções que se instalara, para tirar Lula da eleição – ainda que a repulsa política dirigida contra o ex-metalúrgico fosse (e seja) merecida, o processo contra ele foi conduzido por um grupamento faccioso que reuniu Moro & Cia.

Como a maioria da sociedade tinha se voltado contra as duas forças mais importantes que haviam saído da luta pela transição democrática, a ausência de alternativa e liderança era tão natural e óbvia quanto terrível, pois abria espaço para desfecho perverso: estávamos (como ainda estamos) em uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário sem liderança e sem alternativa que nos apontasse algum caminho para um Estado de Direito Democrático. Pelo contrário, desorientado no labirinto que construiu, o sistema político inteiro, com todas as suas facções sob crítica, infenso a qualquer inventividade institucional, passou a defender o status quo, fechando-se no conservadorismo e na mentira de que devemos defender um inexistente Estado democrático de direito. Com isso, abriu-se uma avenida para quem se posicionasse contra o “sistema”, ou seja, contra o sistema político e, ainda mais restritamente, contra o seu braço político-profissional. A raiva insciente saída da desigualdade foi, mais uma vez, sendo tangida para longe do coração e do cérebro do SISTEMA.

Mas não foi apenas a desmoralização devida à corrupção que facilitou as coisas para esse desvio. A pregação contra a desigualdade também tem o seu papel, pois a desigualdade foi transformada pelo PSDB e pelo PT num mero problema moral, amputando-se dela o fundamental: o papel estruturante que ela tem no entrave ao desenvolvimento do país. Como problema moral, as vítimas dela parecem ser apenas os muito pobres; como problema estrutural, as vítimas são todos aqueles que não estão entre os muito ricos. Pegou-se uma das formas de medir a desigualdade, a distância entre os muito ricos e os muito pobres, para criar argumentos em favor de políticas sociais compensatórias. Tudo se passa como se combater a desigualdade fosse tirar dinheiro dos muito ricos para distribuir aos muito pobres. Uma política dessas levará o Brasil a lugar nenhum, pois irá no máximo incrementar o consumo em períodos de bonança, com inevitáveis retrações e perdas quando as coisas apertam, como agora.

O erro de apequenar assim a luta contra a desigualdade levou a que a maioria das classes médias se sentisse abandonada no enfrentamento do que embarga a sua prosperidade – e com razão! Ela foi levada a ver o apoio necessário aos muito pobres como uma política social contra si, pois os paladinos da luta contra a desigualdade preferiram – ao invés de enfrentar a pedreira de explicar a todos que, por exemplo, famílias com casa própria, automóvel e casa na praia não são ricas quando comparadas aos que estão no alto da pirâmide da desigualdade – preferiram o caminho mais cômodo, e eleitoralmente mais rentável, de adular os mais pobres repetindo críticas superficiais aos “ricos”, covardia que cindiu a maioria da sociedade no ponto errado: de um lado ficaram os pobres; de outro, os demais, a quem os pobres enxergam como ricos, erro que mantém as classes médias desinteressadas da luta contra a desigualdade e faz delas uma sólida parede de proteção para o SISTEMA.

Uma vez em campanha eleitoral, os candidatos presidenciais dos chamados centro-direita, centro, centro-esquerda e da auto-intitulada esquerda ficaram a repetir sua velha política de procurar apoios intramuros, negociando entre si ora numa direção do espectro, ora na outra, como verdadeiras facções à busca de oportunidades onde quer que estejam, num reiterado show de alienação ante a revolta da maioria da sociedade contra eles e essas suas práticas.

Veja bem, leitor:

– A crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário estava em curso;

– As forças responsáveis por este Estado eram os paisanos saídos da ditadura (hoje distribuídos por MDB, DEM, Centrão e satélites) e os políticos dos partidos da luta pela transição democrática truncada (PSDB e PT);

– Não havia (como ainda não há) NENHUMA força política propondo algo que não fosse a defesa do status quo acertadamente repudiado pela maioria, ainda que desorientada.

– Bolsonaro se impôs como a alternativa criada como contra-exemplo saído do sumariado nos três itens anteriores.

– Ou seja: Bolsonaro, a encarnação do chorume autoritário, emergiu porque PSDB e PT mantiveram vivo o entulho autoritário na sobrevida que deram ao MDB e à ARENA-PFL-DEM.

Assim, Bolsonaro só precisou perseverar em sua tática de recusa encenada a qualquer acerto com o sistema político, jogando todas as suas fichas na ira da maioria da sociedade. A facada inaceitável deu a ele o que a prisão inaceitável já dera a Lula: uma blindagem contra a controvérsia, e a condição de vítima.

O que restou para o debate público foram seus posicionamentos autoritários, orientados pela quimera de que haveria um Brasil ao qual deveríamos voltar, um suposto eldorado do período ditatorial. Ora, se há um aprendizado na história brasileira é o de que nós não temos um passado para o qual dirigir esperanças nostálgicas. A memória da escravidão longeva, recente, cruenta, demograficamente expressiva, terminada sem a superação de suas mazelas, vacina, diariamente, cada um de nós contra orgulhos retroativos – é nesse sentido que estamos condenados a ser o país do futuro, isto é, que só podemos esperar mudança indo adiante, sempre motivados a deixar o passado para trás.

Daí que apenas uma minoria dos apoiadores de Bolsonaro levava a sério (e almejava) a volta à ditadura que ele insinuava defender. A maioria votou nele porque ele representava o repúdio ao “sistema”, motivação que incorporou inercialmente esta ou aquela narrativa da moda, que foi convocada como reforço contingencial: anti-cientificismo, anti-comunismo, defesa do Estado mínimo e do puro livre mercado, celebração tacanha da família, religiosidade sectária e outras besteiras. Mas, atenção: esses “reforços contingenciais” não definem essas pessoas, afinal, boa parte delas votara, com as melhores motivações, em FHC e em Lula no passado recente. Na verdade, esses “reforços contingenciais” são uma manobra saída da necessidade do nosso cérebro de robustecer decisões tomadas, especialmente quando há incerteza sobre elas…

Bolsonaro venceu a eleição, nomeou seu ministério de hospício e passou a tentar pôr em prática seu programa, sem qualquer preocupação com a desigualdade e sem acerto mais detido com o sistema político, mas contemplando ampla e profundamente os muito ricos, no interesse dos quais veio propondo e realizando todas as suas chamadas reformas, com apoio inconsequente da maioria das classes médias recém-conquistadas.

Aí, do nada, disseminou-se o novo coronavírus.

A erosão de Bolsonaro e uma saída contraproducente

Conduzindo-se de maneira desastrada e dirigindo o país de maneira desastrosa, Bolsonaro já vinha com dificuldades crescentes para sustentar-se politicamente. Embora isso não possa ser revertido em mérito para ele, como já veremos, é importante destacar que parte dessas dificuldades se devem ao que há no sistema político de mais deletério quando se pensa na construção de um Estado de Direito Democrático: a experiência das facções em chantagear a presidência da República.

Bolsonaro não pode receber crédito por isso por duas razões: uma estrutural, outra circunstancial.

A razão estrutural é dupla. Bolsonaro se posicionou contra o “sistema” muito parcialmente. Primeiro, porque, além de jamais sequer ter se ocupado da desigualdade, ele veio propondo e fazendo reformas que irão acentuá-la, tudo em benefício do SISTEMA. Segundo, porque Bolsonaro se posicionou contra o “sistema” propondo um aprofundamento do autoritarismo, não o fortalecimento da ordem legal democrática.

A razão circunstancial é que sua posição contra o “sistema” sempre foi para inglês ver, pois ele nunca deixou de negociar no estilo da velha política – até porque ele é oriundo dali, tendo aprendido ali as manobras da sobrevivência e do enriquecimento (que zelosamente transferiu aos filhos!).

Ante esse posicionamento fajuto de Bolsonaro contra o “sistema”, o SISTEMA respondeu de maneira não menos fajuta: PT, PSDB e seus satélites (PSOL e REDE são respectivamente exemplares), em conexão com uma tão repugnante quanto repentinamente celebrada majestade congressual dos hierarcas do DEM e do MDB (esses campeões da “liturgia do cargo”!), com apoio da opinião majoritária expressa na imprensa e nas redes sociais, inventaram contra Bolsonaro uma “união nacional” em defesa do quimérico Estado democrático de direito. Resultado: mais uma polarização fajuta, e a pior delas, pois ela projeta na parede do labirinto imagens especulares da mesma desorientação: no fundo, ambos sugerem a existência de um suposto “interesse nacional”, comum a todos os brasileiros. Tratar-se-ia apenas de uma disputa para saber qual dos dois pólos representa o verdadeiro “interesse nacional”, o que rebaixa o debate político aos parâmetros impostos lá atrás pela ditadura paisano-militar…

O primogênito dessa promíscua “união nacional” é um aleijão: uma nova versão da desigualdade, feita sob medida para “indignar” gente como Luciano Huck, que agora faz palestras sobre o tema! Fique certo leitor: se acreditarmos que todos os brasileiros estamos contra a desigualdade, ela jamais será enfrentada, muito menos na direção de um Estado de Direito Democrático.

Com o coronavírus, a polarização fajuta pendeu favoravelmente para um dos lados: para Bolsonaro, o flagelo criou problemas que se mostraram insuperáveis; em contrapartida, deu combustível ao discurso de “união nacional”, o que reanima o SISTEMA, como se o vírus atingisse a todos, como se enfrentá-lo nada tivesse a ver com a desigualdade.

Marionete das massas, sem agilidade cognitiva, ao ver todas as suas toscas crenças contrariadas pela pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro reagiu como sempre reage contra seus adversários: tentou desqualificar o oponente e disse-o uma “gripezinha”. Não deu certo e ele cometeu o erro de se deixar empurrar para uma posição ainda mais precária: a negação dos métodos de combate social prescritos pela ciência. Com o avanço da doença, sem inteligência para recuar do que já fizera, passou a agir como um apostador de cassino e arriscou tudo defendendo medicação sem comprovação avalizada pela medicina. A tal medicação não funcionou e ele se vê cada vez mais acuado – até os loucos vão abandonando o hospício.

Nos termos em que se deu, a saída estrepitosa de Moro tornou a queda de Bolsonaro uma certeza. É uma questão de tempo, apenas. Os sinais mais claros são: (i) a inquietação dos dispositivos militares; e (ii) a rendição de Bolsonaro ao Centrão. Veja bem, leitor: (i) as FFAA não têm nenhuma razão para embarcar numa aventura sangrenta para defender a volúpia de poder de um maluco, especialmente se o vice é um general da reserva que até bem pouco tempo pregava o uso da força militar para resolver a crise de legitimação; (ii) é parte da rotina política brasileira que o presidente da República negocie com o Centrão, mas ninguém se mantém presidente da República se tiver ficado claro que tudo o que tem é o Centrão – o Centrão é o último balcão, o dos restos a pagar.

Desgraçadamente, como é próprio dessa situação labiríntica, os crimes de Bolsonaro são tais e tão evidentes que, se ele não renunciar, seremos arrastados a mais um impeachment farsesco, com aquelas pantomimas simiescas no Congresso, como se ele fosse legítimo, como se ali estivesse representada a maioria da sociedade brasileira. Mais uma vez, iremos emprestar ao Congresso a legitimidade que a ira popular confere e as esperanças que ela embute, quando é contra o Congresso que deveríamos dirigir toda a nossa energia de inconformados.

Embora mantendo suas desavenças, as facções do sistema político continuarão unidas em seu projeto conservador: conservar o Estado de Direito Autoritário, repetindo que ele é uma conquista da sociedade. Ainda que nem todos os políticos profissionais, autoridades e analistas estejam cientes do que estão a fazer, o fato é que estão a sufocar o ânimo pela transformação que há na maioria da sociedade. Com isso, negam a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, tão sensivelmente detectada pela maioria da sociedade brasileira, ainda que essa maioria não possa se gabar de ter sido sábia ao conduzir sua justa revolta.

Nossa autointitulada esquerda, por sua vez, tampouco pode se gabar de sua lucidez e disposição de luta: incapaz de se orientar no labirinto, perplexa com o desastre a que nos levou o descaminho da opção por Bolsonaro, ela se dirige à maioria que votou nesse maluco como se pudesse impor a ela uma rendição, não para dialogar com suas motivações de fundo em busca do que poderia levar a mudanças recíprocas de opinião – esse é um erro que vai nos custar ainda mais caro do que a conta que Bolsonaro vai deixar.

Se há algo de positivo que deveríamos tirar do coronavírus, seria aproveitar a oportunidade para iniciarmos uma conversa decente sobre o papel do Estado em nossas vidas: ordem, segurança, saúde, educação. Devemos propor às classes médias uma conversa sobre a convergência que há entre o que ela está a sentir nesses dias e o que os mais pobres vivem desde sempre como destino diário. Afinal, as pessoas de classe média estão triplamente desafiadas: cada uma se sente tão frágil quanto qualquer outro ser humano; cada uma é levada a perceber que os planos de saúde privados são de pouca valia; cada uma se vê a torcer para que o SUS dê conta do recado. Eis um caminho para começarmos a falar da desigualdade em outros termos.

10 pensou em “O BRASIL EM SEU LABIRINTO

  1. Luciano

    Brilhante análise, como sempre! Permita-me fazer uma minúscula correção: ‘chorume’, como se vê, encontra-se, nos melhores dicionários , grafado com ‘ch’, não com ‘x’, como aparece no texto acima.

    Responder
    1. Carlos Novaes

      Grato pela correção. Gozado, sempre pensei o chorume como um tipo de xarope saído do lixo…

      Responder
  2. João Rocha

    Professor,

    Obrigado por voltar a escrever, suas análises são necessárias, há um vácuo e incertezas sem tais estudos.

    Continue, por favor!

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  3. Flavio Pezzi

    Concordo plenamente. De certa forma alguns pensadores de Esquerda vem ensaiando algo nessa perspectiva de que o fim da Ditadura civico-militar desembocou num Estado de Direito Autoritário. Vladimir Safatlle vem afirmando que nunca tivemos de fato um Estado Democrático de Direito e por isso seria impossível “voltar” à um passado que nunca existiu.

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  4. Rodrigo Imai

    Professor Carlos Novaes,

    Parabéns pelo excelente artigo!
    O senhor faz um bem incrível, é uma pequena que a sociedade não consegue ter uma noção disso. O ódio as impendem de refletir e enteder como funciona o nosso sistema político.
    Estarei digulgando a sua postagem com amigos e familiares.

    Um grande Abraço!

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  5. Luciana Mayrhofer

    Entendi. Há alguma chance de você entrar em alguma rede social? Eu sei, eu também não gosto. São muito tóxicas. No YouTube só há vídeos antigos seus. Bem que podia gravar alguns com seus comentários.
    Fico na esperança.
    Abs

    Responder
  6. Luciana Mayrhofer

    Quanta lucidez! Obrigada por voltar a escrever!
    Ninguém consegue uma análise tão precisa quanto à sua.

    Responder
    1. Carlos Novaes

      Grato, Luciana. O varejo do Bolsonaro não me interessava, tudo muito batido, manjado. Agora é que se iniciam os desafios reais. Vamos ver. Um abraço.

      Responder
      1. Adriano de Melo Ferreira

        Para mim, os melhores dias para assistir o Jornal da Cultura eram os dias de sua presença na bancada, prof. Carlos! Depois da sua saída, perdemos muito. Que bom que achei seu blog! Abração!!

        Responder

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