Carlos Novaes, 31 de maio de 2018 – 17:38h
[com acréscimos em 01 de junho, em 02 de junho — e em 03 de junho]
Ao final do artigo de ontem acrescentei uma interpretação rápida dos números da pesquisa telefônica do DataFolha sobre a paralisação dos transportadores rodoviários de cargas – infelizmente, não disponho do banco de dados da pesquisa e, assim, estou impedido de explorar os números em sua efetiva riqueza. Não obstante, nas linhas a seguir, vou tentar desenvolver aquelas observações sumárias, ajustando-as com mais precisão (suponho) ao que venho escrevendo sobre a situação brasileira. Sigamos a passo.
Faz tempo, muito tempo, que venho apontando o curso por assim dizer paralelo entre a progressão da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais desse mesmo Estado, facciosismo este que, como já expliquei aqui e em muitos outros artigos, se estende dos presídios até o palácio do Planalto, engolfando todas as instituições de Estado do país, inclusive o STF – de Marcola a Temer, de Beira-Mar a Gilmar, passando pelos bem intencionados, mas não menos facciosos, Janot, Facchin, Barroso & Cia. A conflagração é geral porque já não há solo institucional comum e o Estado democrático de direito não existe nem jamais existiu, foi uma ilusão cujo véu se rompeu quando a crueza do facciosismo, apoiada nos dispositivos paisanos e militares herdados da ditadura paisano-militar, se espraiou das favelas para os palácios e seus jardins.
Uma crise assim prolongada e escancarada pode, como estamos a ver, deixar de ser enfrentada, mas não pode deixar de ser sentida. É o que mostra a pesquisa DataFolha: 87% dos entrevistados disseram apoiar a paralisação e nada menos do que 56% entenderam que o movimento devia continuar, mesmo diante da cobertura contrária da mídia (que foi mudando de sentido segundo crescia a virulência do movimento – nunca se sabe…). Não obstante essa expressiva “adesão” de opinião, não houve engajamento, ou seja, a inércia permaneceu. Num primeiro momento, ontem, me deixei levar pela inércia das minhas próprias reflexões e tomei essa inércia da maioria da sociedade como mais um sinal da sua inconsequência: vê, mas não quer enxergar; ou, quando enxerga, não quer se dar ao trabalho de lutar. Talvez não seja bem assim, ou melhor, talvez não seja só isso.
Uma “adesão” de opinião tão maciça não decorre de uma mera solidariedade com as dificuldades dos transportadores, afinal, eles não vivem nenhuma tragédia, seus sofrimentos nada têm de inauditos, que justificassem uma solidariedade propriamente de massas, como houve. Antes pelo contrário, a adesão resultou justamente do caráter comum, generalizável, dos sofrimentos vividos por mais esse segmento da atividade laboral no país. Ou seja, ao adotarem opinião favorável ao movimento as pessoas estavam falando de si, estavam expressando o modo como sentem em suas vidas a erosão do pacto do Real, que pretendeu levar adiante um país de 200 milhões de habitantes mantendo uma desigualdade de harém sob um Estado de Direito Autoritário ao qual aderiram as duas forças traidoras saídas da luta contra essa mesma desigualdade, PT e PSDB. Como a equação não fecha, 87% apoiaram o movimento.
Temer, esse golpista mafioso, do p-MDB, claro, está na presidência, mas não governa, pois já não há governo faz tempo (e, atenção, isso não é força de expressão): a crise de legitimação do Estado chegou a um ponto em que a conflagração das facções já não permite gestão (Executivo), nem representação (Legislativo), sendo que a judicação (Judiciário) que persiste é facciosismo escancarado, como dão exemplo, entre outros, a desfaçatez deletéria de Gilmar e o voluntarismo benéfico de Barroso. Pois bem, numa situação assim, qualquer reação (esse é o termo) estatal a reivindicações da sociedade será sempre recebida como insuficiente, pois a suficiência só seria atingida com a capitulação definitiva da ordem malsã, isto é, com a superação da crise de legitimação do Estado que já não tem como acertar. É por isso que a resposta às enormes concessões de Temer aos transportadores foi de recusa – nada que ele fizesse seria bem recebido, porque não se trata da resposta, mas do que ela simboliza (a permanência da (des)ordem).
Nada mais errado, portanto, do que interpretar os 77% e os 96% de desaprovação à reação do golpista como reflexo do desprestígio do seu governo, como dizem equivocadamente hoje os próprios analistas do DataFolha. Não. A crise já está um passo adiante: já não é o governo Temer que está em questão, mas o Estado de Direito Autoritário, ainda que as pessoas não tenham clareza disso, é óbvio. Afinal, de que outra forma interpretar os 96% que entenderam que Temer demorou a responder, se a maioria absoluta (56%) acha que o movimento deve continuar, e se 87% o apoiam?! Não se pode querer maciçamente resposta rápida para dissipar movimento benéfico que se quer ver continuar! Ou seja, os números não são contraditórios se entendermos que é como se a maioria das pessoas dissesse “apoio e quero que continue porque o que interessa no movimento não é exatamente o que pedem os transportadores, mas a contestação enquanto tal”.
Primeira conclusão: 87% apoiaram o movimento porque sentem a encruzilhada do fim do pacto do Real e 56%, 77% e 96% queriam, respectivamente, a continuidade do movimento e criticaram a resposta de Temer porque estão a se dar conta, com maior ou menor clareza, de que estão imersos numa crise de Estado, numa crise de legitimação, para a qual intuem, mas não encaram, que só há saída se a sociedade se puser em movimento.
Ao não encarar a exigência de agir, ao aferrar-se à inércia, a maioria se limitou a “apoiar” o movimento, mas recusando pagar-lhe a conta (outros 87%). Coerentemente, a maioria absoluta não deixou de registrar que os mais prejudicados são “os brasileiros em geral” (56%). Considerando que a ninguém pode escapar a evidência de que resolver um movimento desse porte não pode deixar de ter custos, a recusa em “pagar a conta” não é mera irracionalidade: as pessoas estão, por via indireta, indicando que solução para o transporte de cargas no país não virá de subsídios ao diesel ou de ajustes tributários precários, ou seja, elas intuem que será necessário um rearranjo mais geral, algo que não está ao alcance deste Estado, fundado nesse pacto falido, aferrado à manutenção da desigualdade. Mais uma vez, a crise de legitimação está no limiar de vir a furo e a recusa em “pagar a conta” pode não ser só inércia.
A virulência danosa do movimento emparedou as facções estatais e a facção palaciana não obteve das facções policiais e, sobretudo, militares, a obediência que teria recebido se o Estado de Direito Autoritário estivesse em condições de fazer um uso legítimo da força. Em outras palavras, o fato de a PRF e o Exército terem pipocado, a ponto de terem assistido, ao vivo e em cores, a pura e simples manutenção de bloqueios e até a destruição de caminhões, não fala propriamente da fraqueza do governo Temer, mas da crise de legitimação do Estado: cada facção está fazendo seus próprios cálculos, pois não sabe o dia de amanhã. E é aqui que entramos no que de mais difícil apreensão houve nesse episódio.
Mesmo depois de dias de turbulência — com a imprensa (vide o Jornal Nacional) tendo deixado de flertar com o movimento pelo que viu nele de anti-Temer, e passado a combatê-lo pelo que havia nele de além-Temer – e de o governo ter feito generosas concessões, os entrevistados não hesitaram em dar preferência à negociação se o movimento continuasse: 88% disseram preferir a negociação e apenas 9% declaram preferir o uso das FFAA e da polícia.
Uma recusa tão abrangente ao uso da força não deixa de intrigar quando pensamos na deriva autoritária de parte do movimento, que foi crescentemente expondo a demanda por “intervenção militar já”. Ora, se o apoio não-ativo da maioria fosse apenas inércia, seria natural que houvesse uma adesão mais expressiva à ideia de uma ação militar, ou seja, seria de esperar que mais gente inerte aderisse aos apelos para que “alguém”, no caso, as FFAA, fizesse alguma coisa. Mas não foi assim. Como já explorado no artigo de ontem, as expectativas de sentido democrático com a eleição de outubro jogaram aqui o seu papel, mas talvez não tenha sido só isso. Talvez a maioria das pessoas não tenha apoiado mais ativamente o movimento precisamente por ter sentido seu viés autoritário – nessa leitura, o distanciamento das pessoas se deu exatamente porque elas sentiram que reforçar o movimento seria incrementar a demanda por “intervenção militar já”.
Segunda quase-conclusão: o apoio da maioria da sociedade aos transportadores de carga teria parado ali onde o movimento deles indicou a abertura de uma via autoritária para a superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário; situação que, a contrapelo, indica que a crise brasileira está desfalcada de liderança democrática resoluta e transformadora, que possa dirigir auspiciosamente a opinião pública, o que dá ocasião a todo tipo de oportunismo “democrático”.
Dessa perspectiva, as declarações de Bolsonaro, cujo sentido busquei agarrar já no artigo de ontem, merecem tratamento mais detido.
Ao fazer profissão de fé pela democracia, mas indicando a meta de trazer os militares de volta pelo voto, o ex-capitão explicitou um movimento estratégico que está em curso pelo menos desde que os arroubos golpistas do general Mourão foram suavemente contidos (hoje ele é candidato a deputado – vão vendo…): tal como apontado aqui e aqui, os militares descobriram, na prática, que podem voltar à situação pré-redemocratização eleitoral sem precisarem reinstaurar uma ditadura (ainda que facções minoritárias entre eles venham atuando por um golpe puro e simples).
Na verdade, eles estão sonhando com uma situação em que além de ampliarem no Congresso (representação) os contingentes paisanos com que já contam (bancada BBB, bala+boi+bíblia), poderão também alcançar a presidência da República (gestão orçamentária) através de uma marionete, o que lhes proporcionaria cada vez mais desenvoltura para atuar na cena cotidiana. Daí terem pipocado na repressão ao movimento dos transportadores e não terem embarcado na insânia da “intervenção militar já”, não obstante aproveitem o alarido boçal como banho-maria para o “prestígio dos militares” medido pelas pesquisas, “prestígio” esse que se deve antes ao conservadorismo de quem responde às pesquisas de avaliação institucional sentindo que não tem para onde correr do que a uma presumida confiança neles.
Num cenário desses, o lulopetismo não tem como escapar de ficar brincando de autoafirmação, pois não pode ver como oportunidade emancipatória a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que ele próprio ajudou a conservar segundo a mais baixa das formas de adesão ao establishment: a corrupção. De braços dados com isso, numa prova de indigência intelectual e covardia política, o restante da autointitulada esquerda fica a paparicar o líder decaído dessa traição histórica e a se pavonear como defensora de uma Constituição que já foi rasgada, revestindo essa capitulação de toda uma parafernália conceitual que já de nada serve, enquanto se descredencia como agente transformador, ficando à margem do afloramento raro de contradições que gerações de militantes jamais viveram, embora ele tenha povoado os seus melhores sonhos.
É quase desesperador, pois enquanto não há no horizonte movimento capaz de indicar uma saída não-autoritária para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, as forças reacionárias e conservadoras contam com vários candidatos para levar a cabo um simulacro de legitimação nas eleições de outubro.
[01/06] Fica o Registro:
- Os soldados de baixa patente que tentaram impedir o acesso de três mulheres à confeitaria Colombo que fica na área do forte de Copacabana dão um pequeno exemplo do que será a rotina do cidadão comum em caso de vitória de Bolsonaro, Alckmin ou assemelhados na eleição de outubro — qualquer um que envergue uma farda vai ser arvorar em intérprete e executor de normas estúpidas.
- Artigo de Vladimir Safatle publicado na Folha de hoje pode parecer convergente com o que venho dizendo, e, de certa forma, é, mas há uma diferença fundamental: para Safatle, há que fomentar o sentido anti-institucional da inércia (como se fosse possível fomentar uma revolução); para mim esse seria o caminho certo da derrota e, assim, entendo que o fundamental é explorar na inércia seu sentido de criar novas instituições. Em outras palavras: Safatle raciocina de um modo que embrulha no mesmo pacote de inservíveis tanto o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação quanto as franquias democráticas de que a sociedade brasileira ainda faz uso; para mim, separar essas duas instâncias é fundamental: quero explorar o sentido democrático da inércia no âmbito das franquias igualmente democráticas ainda existentes para superar a crise de legitimação do Estado numa perspectiva emancipatória. Dizendo o mesmo de ainda outro modo: Safatle supõe ser possível zerar a memória do que há e está disposto a correr os riscos autoritários de mais uma tentativa desse tipo; eu entendo que não há como ir adiante sem alguma memória do que há, e prefiro correr o risco de mudar menos do que gostaria, mas evitando dar o flanco ao inimigo.
- [02/06] – O artigo de André Singer na Folha de hoje é uma pérola do besteirol covarde a que foram condenados os “teóricos” da autointitulada esquerda lulopetista depois que abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao Estado de Direito Autoritário: tal como Haddad, Singer não vê senão ameaças a um quimérico “Estado democrático de direito” em toda e qualquer movimentação social que não esteja sob o domínio das burocracias oligárquicas com as quais conviveu acriticamente no curso dos últimos 30 anos. Como se recusa a encarar que o lulopetismo é parte do entulho a ser deixado para trás, é para ele impossível enxergar alguma virtualidade emancipatória em movimentações contraditórias, cujo sentido poderia estar mais claramente em disputa (mas está) se a autointitulada esquerda brasileira não tivesse se deixado arrastar no roldão de desmoralização que atingiu o lulopetismo. Como um verdadeiro conservador, Singer viu nas incertezas do movimento “o mais perigoso vazio”, a tudo viu como conspiração e, junto com Temer, deu “graças a Deus” que tenha terminado como terminou.
- Na mesma edição da Folha, Demétrio Magnoli, fazendo par conservador com Singer, mais uma vez mobiliza contra manifestações públicas a bobajada de sempre sobre a agressão delas ao “direito de ir e vir”. Como sabe qualquer liberal ilustrado, se esse direito estivesse em questão em obstruções circunstanciais do tráfego os engarrafamentos de nossas grandes cidades teriam de, há muito, ter se tornado matéria de nossa Corte constitucional. Enfrentando um aspecto que espertamente Singer evitou, Magnoli não vê no apoio da maioria da sociedade ao movimento senão uma forma de pensamento mágico em que uma suposta “dissociação absoluta entre causa e efeito faz parte do raciocínio”. Triste figura faz quem subestima aquele cujo desígnios não alcança, pois se é o caso de não desprezar as forças fascistas que atuaram no movimento (e é!), também não se deve classificar como irracionais as complexas escolhas que nosso povo está obrigado a fazer sozinho — por isso mesmo, quando tudo tiver dado errado, não terá sido por termos deixado de defender um presumido Estado democrático de direito, quimera que só tem servido para esconder o cotidiano exercício faccioso dos poderes institucionais contra esse mesmo povo.
- [03/06] Francisco Bosco, em artigo publicado na Ilustríssima de hoje, dá uma prolixa volta para nos advertir de que a greve dos transportadores rodoviários de carga pode ter sentido oposto às manifestações de 2013. Chega a dar preguiça. Depois de ter feito o esforço de compadrio para comprar como boas todas as análises “amigas” da situação brasileira contemporânea (esforço no qual mistura o equivocado “pemedebismo” de Marcos Nobre e o risível “lulismo” de André Singer), Bosco vai concluir que ainda é muito cedo para avaliar junho de 2013, como se conhecer o sentido de junho de 2013 fosse um resultado intelectual definitivo, não uma tarefa prática aberta que nunca termina, pois a memória refaz o passado. Ora, o sentido de junho de 2013 sairá da capacidade que tivermos, ou não, de dar sentido emancipatório para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que vem em curso, da qual junho de 2013 foi sintoma tanto quanto a manifestação dos transportadores acaba de sê-lo. Nessa disputa pelo sentido da crise, tem pouca valia se contrapor diretamente ao afeto antipetista, pois não só o lulopetismo deu motivo de sobra (a traição, a corrupção e seus conexos) para essa insânia como ela é uma resposta proporcional ao desfazimento da fantasia coletiva da decolagem nacional que o mesmo lulopetismo tinha encenado (também daí o ódio). Não dá para ser emancipatório e, ao mesmo tempo, se empenhar em salvar Lula e o PT — eles se tornaram definitivamente parte do problema, não da solução. Olhada com atenção, essa floreada abordagem de Bosco, assim como outras que ficam se refugiando na interpretação de junho de 2013, reflete o cagaço diante da radicalização da crise que naquela altura estava a dar apenas os seus primeiros sinais de rua — vamos perder essa parada porque nossa vanguarda bem pensante ficou defendendo o ilusório Estado democrático de direito a que se acomodou ao invés de contribuir para a generalização da compreensão de que estamos diante de uma benfazeja clássica crise de legitimação do Estado que, na outra ponta, gente como Sheherazade, Kataguri e Villas Boas quer manter em sua forma de Estado de Direito Autoritário (daí compartilharem o cagaço).