A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO

(tentativa de resposta à pergunta de um amigo sobre o valor da troca pela troca, quando o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas disponíveis)

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2014

 

Permitam-me começar com uma pequena história que, não por coincidência, dá colorido cotidiano à pergunta mencionada acima. Há poucos dias, ouvi do sempre combativo e comunicativo jornaleiro da banca que frequento (todos nós conhecemos um, o que em si já daria uma crônica…), a observação enfática de que “moço, a única coisa que a gente pode fazer é trocar; trocar um pelo outro, tirá um, e buta o outro; é só!”. Note, leitor, que nosso inconformado personagem está dizendo mais do que pretende a teoria democrática refinada, segundo a qual a democracia vale não porque ela nos possibilite fazer a escolha do que nos parece melhor, mas antes porque ela nos permite remover o que nos parece ruim — não, dizia eu, o nosso semelhante da esquina vai além: com seu musical sotaque baiano ele nos diz que, como os políticos, um pelo outro, são todos igualmente ruins, só o que nos resta é trocar, jogando assim alguma areia na rotina deles, para, num misto de aspiração e vingança, quem sabe, obter casualmente alguma conquista do fato de as engrenagens deles terem lá as suas encrencas.

Depois de assistir a essa acabrunhante campanha eleitoral, imagino que só os muito implicados no processo, seja por interesse, seja por ideologia, ainda possam reunir forças para contestar o nosso amigo. Mas, se não há convicção para corrigi-lo, há por certo motivação para discutir a questão, a ver se chegamos a um patamar menos macegoso, de onde, talvez, possamos divisar alternativa. Seguindo a pista dada por nosso teórico (e não há ironia aqui), comecemos por observar que a base da democracia é mesmo a ideia de troca: assim como o mercado valoriza o fluxo da troca das mercadorias, das quais o jornal diário é uma das formas manufaturadas mais fugazes, o regime político que corresponde ao mercado se funda, e afunda, no fluxo que troca gestores e representantes, ainda que, em tese, o gestor seja menos volátil do que o representante. Digo menos volátil porque, entendendo a ação política institucional como uma tensão entre memória e fluxo (uma tensão entre o que se conserva e o que se muda), sou levado a ver que quem está no exercício de um mandato executivo está mais comprometido com a memória do que um representante legislativo, uma vez que este, mais que aquele, deve responder mais prontamente ao fluxo da dinâmica social, às mudanças de preferências, humores, valores e interesses que toda sociedade aberta exibe. Em outras palavras, enquanto, em tese, repito, o executivo lida com as rotinas do fazer, e sempre herde algo que estava a ser feito, o legislador se dedica a um ouvir e a um dizer, estando sempre mais colado à possibilidade da mudança. Sendo didático ao nível da deselegância, o que quero dizer é que uma ponte em construção carrega uma memória que não pode ser ignorada pelo gestor sucessor no executivo, enquanto que a aspiração pela criminalização da homofobia deriva de um fluxo de mudança que tem de poder encontrar representante no plano legislativo.

Nessa ordem de idéias, há algo de muito errado num sistema político que empurre à mudança no plano executivo e crie dificuldades à mudança no plano legislativo. Não obstante, é exatamente dessa forma perversa que funcionam esses poderes, aqui no Brasil e na maior parte do chamado mundo democrático ocidental. E eles funcionam assim porque, embora danosa ao bem estar das sociedades, essa ordem é ideal para a rentável vida em estufa que a chamada classe política criou para si mesma: a possibilidade de reeleição infinita nos legislativos (fonte da profissionalização danosa, que degrada todo o sistema político), mantendo as cobiçadas cadeiras do executivo (cobiçadas por serem ordenadoras de despesas, além de bem menos numerosas) sempre submetidas à ciranda entre eles (fonte do fôlego curto do planejamento, da ausência de visão de longo prazo). Aliás, é à preservação dessa ordem malsã, nessa ou naquela versão, que se prestam as propostas de voto em lista, coincidência de calendário eleitoral com mandatos de cinco anos(!), sistema distrital, financiamento público de campanhas eleitorais, fim da reeleição para o executivo, adoção do parlamentarismo, cláusulas de barreira, sendo comum a todas o silêncio sobre a aberração que é o sujeito poder se perpetuar mandato após mandato nos legislativos.

Retomemos a tensão memória-fluxo. Ao permitir a reeleição dos representantes legislativos, a legislação eleitoral dá ênfase na memória ali onde o eleitor deveria ser estimulado a escolher diante do fluxo e, em contrapartida, ao empurrar o executivo à mudança ela impõe o fluxo ali onde o eleitor poderia valorizar a memória. No primeiro arranjo, o eleitor é desobrigado de pensar em mudança justamente ao escolher o seu representante, que, em tese, está se propondo a ficar no lugar dele, e mais, exatamente ali onde é mais difícil fiscalizar a ação do político. Ou seja, protegido pela pouca visibilidade dos cargos legislativos e favorecido pela inércia que caracteriza a espécie humana, o mal representante que tenha aprendido as manhas da condição de político profissional pode se perpetuar no poder sem jamais representar coisa alguma senão os próprios interesses. É nesse apego aos próprios interesses que repousa a memória indevida, ali onde deveria predominar o fluxo: o político profissional cria rotinas (ou seja, memórias hostis à mudança) para, a um só tempo, se perpetuar no poder e beneficiar aqueles que o financiam. Multiplicada em larga escala, essa prática política arrasta as instâncias de representação (Congresso, Assembléias estaduais e Câmaras municipais) ao conservadorismo, a se constituírem em verdadeiras casamatas contra a mudança, quando elas deveriam ser o estuário do que de mudança há na sociedade — ao contrário do que dizem os incautos, nossos legislativos não são “um retrato” da nossa sociedade precisamente porque eles são mais conservadores do que ela, empenhados que estão em conservar memórias que ela já ultrapassou em seu fluxo permanente, ainda que, às vezes, o fluxo se dê na forma de marés, quando a sociedade entende que precisa recuperar memória indevidamente deixada para trás, movimento no qual o recuperado não deixa de trazer elementos do que foi vivido depois — quem volta para buscar refaz o caminho e altera o buscado, pois a memória é plástica.

Por outro lado, no segundo arranjo, quando proíbe qualquer reeleição no executivo, a legislação impede o eleitor de poder escolher entre a memória e o fluxo exatamente ali onde poderia fazer sentido conservar (em razão da própria dinâmica do fazer), e logo numa atividade em que ele tem mais elementos para avaliar o desempenho do gestor, cuja ação está, por definição, referida a todos e não a uma parte dos eleitores, como é o caso de um representante. Bem mais visível do que a ação de representar, o fazer do gestor se presta ao escrutínio do eleitor em geral e, assim, trata-se de contradição flagrante que, na escolha para a recondução ou não de um gestor (executivo), se sonegue ao eleitor a confiança que se deposita nele para a escolha do representante (legislativo), função esta para a qual é muito menos provável que ele tenha informação para (e queira) exercer uma judicação detida. Em outras palavras, para acabar com a reeleição para o executivo se diz que nela o eleitor é manipulado; mas não se diz de manipulação do mesmíssimo eleitor quando se trata da reeleição infinita para o legislativo, cargo para o qual é muito mais fácil iludir o eleitor, escondendo malfeitos.

Na realidade, e como não poderia deixar de ser, é bem o contrário do que se diz: as realizações ou erros de um prefeito, por exemplo, deixam uma memória (acabada ou em andamento), que oferece elementos ao eleitor para decidir entre a conservação e a mudança, sendo de coibir apenas a reeleição salteada que, aliás, tem permitido fazer do governo de São Paulo um poleiro de tucanos, precisamente porque essa reeleição infinita disfarçada permite a cristalização de rotinas (memórias) profissionais para a obtenção de blocos seguidos de mandatos de gestão. Em contrapartida, ao acabar com a reeleição para o legislativo, estaríamos levando o eleitor a escolher desatado das rotinas e da inércia, tornando as instituições de representação muito mais ligadas no fluxo, muito mais abertas a representar a mudança havida na sociedade, livrando-as da memória nefasta cristalizada no jogo de interesses e vantagens que, pela sua própria natureza corrupta, não se dá sob os olhos do eleitor, por mais vigilante que ele seja. Se é certo que sociedades mudam devagar, e é, mais uma razão para que nem se possa desperdiçar de recolher, nas instâncias de representação, toda mudança havida nelas; nem negligenciar o fato de que elas parecem mudar ainda mais devagar do que realmente mudam porque suas instâncias de representação se apresentam indevidamente agarradas ao que ficou para trás.

Naturalmente, é certo que mesmo assim haverá negociatas, mas não creio que se possa dizer que um modelo sem reeleição legislativa é mais propício à bandalheira do que o atual. Quanto aos “bons” representantes que serão perdidos, duas palavras: primeiro, a ideia de que eles são bons em si mesmos já é, em si, conservadora, pois bom é o representante atado ao fluxo, isto é, a virtude não está nele, mas na própria “coisa” representada; segundo, e por isso mesmo, se aquilo que ele, o bom, representa, conserva sua força na sociedade, ela se encarregará de encontrar um sucessor capaz de dizer de novo, e com eficácia, o que precisa ser dito nas instâncias que foram libertas da memória dos interesses aquadrilhados. Nesse último caso, isto é, quando a sociedade por assim dizer reconduz a “coisa” representada, o que haverá de se dar na maior parte do tempo, mas com outro representante, tem-se a memória virtuosa, que garante a continuidade do que é bom segundo o que é visto como propício ao fluxo social: vozes novas dizem a “mesma coisa” de modo diferente, o que, em si, significa alcançar o ideal de ter o fluxo dentro da memória, e vice-versa — até porque, memória sem fluxo seria imobilismo e fluxo sem memória seria delírio, situações nas quais a política é impossível.

Essa valorização invertida da memória e do fluxo na ação política institucional encontra desenho próprio em cada país, sendo mais nociva ali onde a desigualdade é grande, simplesmente porque quanto maior a desigualdade, mais embrutecida se encontra a maioria, uma vez que está prisioneira da luta brava pela sobrevivência, situação duplamente propícia à autonomia da ação política que a dinâmica das reeleições legislativas já favorece (autonomia entendida como desligamento da realidade material em que labuta o povo): de um lado, a penúria material não deixa tempo para o auto-aperfeiçoamento, consumindo na luta frequentemente inglória por uma vida melhor toda a energia disponível, nada restando para a ilustração, que é o vestíbulo da contestação; segundo, escapar individualmente das consequências da desigualdade torna-se um aprendizado de primeira hora a todo aquele que, apesar de tudo, levanta a cabeça, situação que desvirtua todo esforço de ação coletiva bem sucedida dos de baixo, pois eles logo descobrem as vantagens que podem auferir para si mesmos do fato de terem se juntado para lutarem pelo bem comum — eis o terreno propício à cooptação, que é um mecanismo muito eficaz para mudar fluxo (movimento) virtuoso em memória (burocracia) viciosa (foi aí que o PT naufragou) .

Se o resultado da soma das reeleições infinitas com a desigualdade configura um quadro especialmente propício a arranjos de estufa, dentro da qual os profissionais da política abandonam diferenças programáticas a que, de resto, jamais foram apegados, em favor dos negócios que a proximidade parlamentar proporciona (partilham o butim da memória, em lugar de responderem às demandas do fluxo), se é assim, dizia eu, então não há dificuldade para entender porque num país continental e populoso como o Brasil se encontra, a um só tempo, uma das ordens políticas mais corruptas e uma das sociedades mais desiguais do mundo. Ao invés de ser um retrato da nossa sociedade, nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa desigualdade, mais exatamente daquela face dela que é capaz de se fazer traduzir em força política, vale dizer, a nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa elite, não do nosso povo, que infelizmente ainda não encontrou um caminho para tirar forças da desigualdade a que está submetido sem ter de assistir logo adiante a degradação de seus próprios líderes. Naturalmente, não chega a ser um caminho incluir os mártires populares da luta contra a desigualdade entre os membros da elite contra a qual essa mesma luta tem sido feita, como fez Marina no Jornal Nacional, onde invocou a memória do incontrastável Chico Mendes (cujo compromisso com os de baixo lhe custou a própria vida) para defender alguém cuja disposição de ajudar os pobres acaba ali onde se constata que os pobres só serão menos pobres se os muito ricos forem desapetrechados dos instrumentos que lhes permitem amealhar tanta riqueza.

Feito esse apanhado geral, vejamos a troca pela troca no Brasil das eleições de 2014, para o legislativo e para o executivo. Como já defendi em outro lugar, e em razão mesmo da argumentação exposta acima, entendo que o melhor seria o povo brasileiro promover uma troca geral nos legislativos, votando apenas em quem jamais desfrutou (esse é o termo) de qualquer mandato parlamentar. Não vejo como uma aposta no fluxo virtuoso, que escangalharia mecanismos de reprodução de poder há muito estabelecidos e, por si mesma, geraria aprendizados novos a serem aplicados em uma próxima eleição, aprendizados esses que acabariam por levar a trocas cada vez mais informadas no futuro, não vejo como essa opção poderia trazer mais dano à nossa vida em comum do que o apego aos portadores de uma memória cujas rotinas só podem nos trazer mais do que sempre tivemos.

No caso dos executivos, se o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas existentes, a troca pela troca deve ser encarada como uma opção de ordem prática de caráter circunstancial, e não geral. Ou seja, há que se examinar caso e caso, escrutinar as memórias em questão e, então, definir com base no princípio de que se deve escolher o menos pior. Um critério para definir o menos pior pode ser antecipar a magnitude da pressão que a sociedade teria de fazer para lograr que o gestor atuasse na direção que parece mais adequada ao observador. Se ainda assim a dúvida persistir, e se houver certeza de que uma troca não vai nos colocar ainda mais longe do que almejamos, talvez o melhor seja fazer como recomendou nosso amigo jornaleiro, ainda que sem nenhum sentimento de vingança: trocar só para obrigá-los a se mexerem e, quem sabe, colher algum resultado positivo inesperado — nas palavras do amigo que me fez a pergunta “quebrar alguns vícios [memória] e criar a necessidade de reinventar [fluxo] os equilíbrios e acordos políticos”.

Evidentemente, as coisas se complicam se o observador incluir no cálculo a expectativa de provocar uma revolta, quando então talvez fizesse sentido escolher o pior. Como sou de opinião que revoluções são o colapso da política, eventos de fluxo desataviado que devem ser apoiados justamente porque são um sofrimento adicional ali onde o sofrimento se tornou insuportável e, por isso mesmo, entenda que uma revolução é uma desorganização da memória de tal envergadura e profundidade que não pode ser provocada (do contrário não seria revolução, mas mera troca de uma memória falida por uma outra, pré-fabricada — quem o tentou gerou monstros), esta opção de escolher o pior para arriscar alcançar o melhor está descartada para mim, até porque ninguém pode garantir que a pior memória vá desabrochar num fluxo alvissareiro.

2 pensou em “A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO

  1. Tiago

    Bom, posto aqui apenas para me apresentar como um associado aos seus apelos de mudança, e um humilde estudioso de suas sempre lúcidas e percucientes análises, nas quais identifico verdadeiro patrimônio de conhecimento que precisa ser disseminado e estudado como disciplina curricular obrigatória do ensino básico deste país. Seria um excelente primeiro passo para construção de uma nova consciência para as futuras gerações de eleitores e políticos. Isto porque, os eleitores e representantes que já estão aí, crescidos e criados, infelizmente, creio não pudemos esperar muito deles não, uma vez que apenas arremedam a velha memória cristalizada no jogo de interesses e vantagens, por ambos as partes (eleitores e políticos).

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  2. itanilson lima dos santos

    Novaes, sem ser pretencioso, te afirmo. A eleição presidencial precisa ser descolada da eleição do legislativo, assim as “mazelas” sociais ficariam no foco estadual, de onde é possível acompanhar e apontar as maças podres, que por hora, no frenezi da eleição presidencial, usada como cortina de fumaça, relegando a segundo plano a eleição para o legislativo, principalmente para deputados federais e estaduais. Tanto é, que as pessoas nem sabem em quem votaram nas eleições passadas. Por incrível que pareça, as redes sociais, usando de grupos, tenderão a fiscalizar os ” seus representantes”. Nesse aspecto, a mídia nativa tem a credibilidade dos políticos que elas representam. A cada eleição a “renovação”, principalmente, no nordeste, é a substituição do pai pelo filho. Enquanto isso, o Brasil contiua na marcha lenta do terceiro mundo.

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