Carlos Novaes, 07 de junho de 2020 — 04:00 h
Na atual crise brasileira estamos a descobrir que enxergar fatos complexos como resultado linear do planejamento racional de um agente não é privilégio dos adeptos da “teoria da conspiração”. Ultimamente, tem crescido vertiginosamente o número daqueles que atribuem o que está acontecendo à realização de propósitos racionais de Bolsonaro.
Para esse pessoal, a situação brasileira resulta de escolhas coerentes e racionais saídas do objetivo de Bolsonaro de implantar uma ditadura no Brasil.
Dentre as que conheço, a versão mais elaborada dessa ideia é a de Marcos Nobre, professor de filosofia na UNICAMP e presidente do CEBRAP. Em entrevista, Nobre resumiu os termos em que pendurou o problema num livro recente:
— BBC News Brasil – Quando começou a pandemia o presidente tinha o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que vinha sendo elogiado na condução da crise. Dava a impressão de que se o presidente apenas seguisse o fluxo do Mandetta ele seria um governo bem avaliado na pandemia, até se cacifando mais para 2022, aumentado a popularidade. Por que ele [Bolsonaro] resistiria a isso, se isso não contrariaria a base dele?
— Nobre – “O livro inteiro é para responder essa sua pergunta. E a resposta é tão complicada que demorou o livro inteiro. Por uma razão simples: porque o Bolsonaro não quer fazer um governo normal. Para ele, fazer isso que você falou, cola no Mandetta e vai, significaria, para ele, se render ao sistema. Significaria se render, no fundo, à democracia… […] … Ele é fiel às convicções autoritárias dele… […] Para ele o sistema é a democracia, e a democracia é de esquerda […] Ele não queria se render ao sistema. Para não se render ao sistema ele tem que fazer um governo de guerra”.
Como Bolsonaro está entregando cargos ao Centrão em troca de apoio no Congresso, para que a teoria de Nobre funcione é necessário, de cara, que seja verdadeira pelo menos uma de duas hipóteses, ambas implausíveis, mas, vá lá, logicamente possíveis:
(i) Bolsonaro não acha que ceder às pressões do Centrão para obter apoio congressual seja uma diminuição de seu poder político ou de sua liberdade de ação e, muito menos, que essa concessão seja um complicador para o seu projeto ditatorial;
(ii) como o Centrão não tem compromisso com a democracia, ele não é uma força do sistema para Bolsonaro que, por isso, pode ver esse ajuntamento faccioso como aliado para o seu projeto ditatorial.
Mas, verificado qualquer dos dois casos (ou os dois), a pergunta é: por que a argúcia política do racional Bolsonaro não o levou a fazer muito antes esse movimento em direção ao Centrão? Apenas pelo prazer de enfrentar complicações ao fazer um “governo de guerra”?
Ora, mesmo que Bolsonaro, em sua argúcia, pudesse prever (e não pode) o comportamento dos outros agentes (sejam os aliados, como as facções das FFAA que o apoiam, sejam os adversários, como as facções do STF que a ele se opõem), que racionalidade teria havido em adiar uma providência que só aumentou os custos para obter o mesmo resultado, isto é, o apoio congressual do Centrão?!
A resposta é óbvia: Bolsonaro não fechou com o Centrão desde o início do governo porque enxerga essa facção como parte do sistema ao qual ele diz se opor e que é rejeitada por boa parte da base dele. Ou, visto de outro modo, Bolsonaro só correu para o Centrão quando passou a enfrentar problemas para aprovar medidas governamentais no Congresso.
Bolsonaro aceitou fazer concessões ao Centrão, mas não aceitou fazer concessões menores, menos onerosas e mais rentáveis ao Mandetta pela simples razão de que calculou errado as conseqüências das suas escolhas, limitação de cálculo cujos motivos detalhei aqui. Em suma, em sua limitação cognitiva, Bolsonaro raciocinou com os próprios desejos e realmente acreditou que a pandemia seria algo menor do que se mostrou. Fez apostas com base em convicções apoiadas nessa crença, se deu mal e vem tentando administrar (muito mal) os prejuízos, enquanto despenca.
Não é muito mais simples de entender o conjunto da obra se considerarmos que a explicação para as escolhas de Bolsonaro está na sua reduzida plasticidade cognitiva ao escolher a melhor via para avançar em seu projeto ditatorial? Por que é tão difícil aceitar algo tão simples? Por que é necessário fazer desse danoso imbecil um gênio do mal?
Parte da resposta está em que para Nobre e muitos outros está impossível enxergar que essas escolhas de Bolsonaro foram desastrosas para o projeto ditatorial dele. Esse pessoal está convencido de que as coisas estão dando certo para Bolsonaro. E eles pensam assim porque:
(i) acomodados, estão apegados a esse frágil Estado de Direito Autoritário que os contempla e que a presidência Bolsonaro tenciona na direção inescapável da manutenção da desigualdade: mais Autoritarismo com ainda menos Direito;
(ii) Não entendem que essa fragilidade resulta de uma crise de legitimação, pela qual a maioria da sociedade está a recusar esse Estado de Direito Autoritário.
Tanto é assim que Nobre empenha todas as suas esperanças num esforço democrático pela construção de uma ampla frente que reúna forças para aprovar neste Congresso o impeachment de Bolsonaro, com o seguinte, digamos, “programa mínimo”:
- Os militares terão um papel maior do que o que lhes restou na transição de 1985-1988;
- Não pode ser um governo que tenha um projeto autoritário;
- Não pode ser um governo ultraliberal;
- Tem de ser um governo que tenha na agenda o combate à desigualdade…
Ou seja, o projeto de Nobre é voltar a 1985, mas para para fazer um milagre que nem o general Golbery teria imaginado com sua fórmula lenta gradual e segura: à união das mesmas forças daquela época (que hoje em dia estão agrupadas em facções estatais corruptas que não se empenharam contra a desigualdade), atrelar o apoio da maioria da sociedade para conservar o Estado de Direito Autoritário, dessa vez atribuindo um papel ainda maior aos militares e, ademais, obtendo avanços na luta contra a desigualdade… Francamente!
Toda essa embrulhada sem sentido se explica porque não querem reconhecer o óbvio: o Estado de Direito Autoritário chegou ao seu limite justamente com Bolsonaro, e a maioria da sociedade quer uma alternativa democrática a ambos.
Mesmo com erros táticos como as manifestações de hoje, e ainda que vá demorar e custar caro, uma saída democrática orientada pelo combate à desigualdade acabará por se impor.
Profº Carlos Novaes,
Parabéns pelo artigo!
Eu já comentei em algumas outras postagens que sou um grande admirador e seguidor seu!
Tudo isso começou em 2011 quando voltei para o Brasil, vindo da terra do Sol Nascente, estava muito desatualizado e fora de contexto do nosso país. Na época fazia cursinho e assistia muito o Jornal da Cultura, no qual era o único meio televisivo de notícia que gostava de acompanhar. E adorava muito as suas críticas e a forma como você se posicionava na bancada do jornal!
É incrível como todas aquelas suas críticas de anos atrás, batem exatamente com o que vivemos hoje!
Carlos, quais serão os números da Mega Sena do final de semana agora? hahahahahahaha
Acho que uma das poucas opiniões suas que não vingaram, foi quando você disse que o Facebook iria durar pouco… hahahahahaha
Acho que não só eu como outras pessoas que o acompanham sentimos sua falta!
Você está afastado do meio público, acho que gostaríamos de vê-lo mais vezes! Seus artigos são excelentes, mas queremos mais!!
Todo mundo aqui entende que você está muito ocupado com outros projetos, mas sem querer ser chato, gostaria de listar algumas reivindicações:
1) Fazer uma publicação como está a sua vida no momento com uma selfie
2) Criar um canal no YouTube expondo as suas analises e comentando as notícias atuais. Muitas pessoas da sociedade precisam ouvi-lo, suas analises poderão contribuir para que elas reflitam mais sobre as políticas públicas do país
3) “Se possível” Uma entrevista com o Profº Marco Antonio Villa no canal dele do Youtube, acho que seria bacana uma discussão entre um historiador e um cientista político sobre a atual conjuntura do país
4) Escrever um livro com um compilado dos artigos que você já escreveu no Blog
Abraços!!!
Grato, Rodrigo. De fato, a aceitação do Facebook me intriga até hoje – a autointitulada esquerda brasileira (muitos amigos meus) está lá, sem que eu entenda para quê. Sobre suas simpáticas sugestões, vou pensar. Abraço.
Prezado Novaes, que alegria voltar a ler os seus textos! Um grande abraço!
Grato Anderson.
Professor,
Essa matéria que saiu na UOL me deixou um pouco preocupado, todavia, ela meio que compartilha com o senhor no ponto em que as forças faccionas que estão no governo e na política brasileira, não precisavam de um golpe ou ruptura pq eles já possuem o aparelhamento do estado. Seria isso mesmo?
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/07/bolsonaro-veio-para-causar-explosao-e-permitir-acao-reparadora-de-militares-diz-antropologo.htm
João, ninguém hoje possui o “aparelhamento de Estado”,precisamente porque esse Estado de Direito Autoritário está em crise de legitimação. Tudo está em movimento. Abraço.
“Por que é tão difícil aceitar algo tão simples? Por que é necessário fazer desse danoso imbecil um gênio do mal?” Pude ter um vislumbre das veias do professor Novaes saltando ao ler este excerto (rs).
Com efeito, a considerar pelo modo como alguns analistas pintam esse Messias às avessas, com sua “estudada maneira” de produzir crises institucionais para desviar a atenção do que realmente importa, a saber, os péssimos números do setor da economia e da saúde, faz até pensar que o homem, ou melhor, a besta seja uma sumidade em estratégias diversionistas, à moda dos grandes ilusionistas que conduzem nossos olhos para longe de onde o truque está realmente acontecendo.
Que ele aja deliberadamente na produção de ofensas aos outros poderes nisso eu creio, pois suas deploráveis atitudes já nos tempos de congressista davam testemunho disso. Daí a sustentar que seus impropérios, antes de refletir sua voluntariosidade, espelha um cálculo inquestionavelmente sagaz que visa à levar a bom porto seu “projeto de poder”, é tomar alhos por bugalhos.
Concordo. Nada a acrescentar. Abraço
Novaes, não pare de escrever.
Estou tentando… Abraço.