NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 5 — Entrevista de FHC à Folha de S.Paulo

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2015

Folha – A cúpula do PMDB se distancia da presidente e os deputados negociam posições no ministério. O que significa?

Fernando Henrique – Em épocas de incerteza, é natural que os partidos fiquem oscilantes. O PMDB indica duas direções. Uns acham que vale a pena manter o governo. E há os que desconfiam que não dá mais. Isso vai continuar por muito tempo, até que se sinta que há mais clareza sobre o passo seguinte, seja do governo, seja dos que querem mudar o governo.

Novaes –Sendo o p-MDB um partido de correntes internas que se fazem e desfazem ao sabor de poder e dinheiro (poder para fazer dinheiro), estar no governo (em qualquer governo) é fundamental. Se compor em um governo de “outro” é sempre preferível, pois evita a definição de um mandante entre eles – como dizia Tancredo: “em política não se deve levar a conversa até o fim”. Como o partido está atolado em malfeitos, a Lava Jato gerou incertezas sobre quem vai ou não ser apanhado, levando a uma “crise” em que alguns (como Cunha) viram uma oportunidade. Tirar Dilma é definir a luta interna em favor de Temer, o que pode empurrar o p-MDB para um racha. É essa incerteza adicional que Dilma vem alimentando com esse ofertar-negacear ministérios, um espetáculo que mostra o divórcio total entre a política profissional e a sociedade brasileira, que, não obstante, a tudo assiste como se não fosse o futuro dela que estivesse em jogo.

O que falta para as principais forças políticas se definirem?

FHC — A presidente Dilma está num dilema grande. Ao nomear o [ministro da Fazenda, Joaquim] Levy, deu um sinal de que entendeu que o caminho que havia pego estava errado. Mas esse sinal não é convincente, e isso se reflete em tudo. Nosso sistema é presidencialista, mas muito dependente da capacidade do governo de formar maioria no Congresso. Ela não mostrou ainda que tem essa maioria.

Novaes – Não há dilema de Dilma que importe e as principais forças políticas já se definiram faz tempo: surpreendidas pela indomesticável Lava Jato, essas forças chamadas de principais (p-MDB, PT, PSDB e seus satélites) viram na “crise” uma maneira de  buscar fazer dos ovos quebrados um suculento omelete e, agora, brigam pelo tamanho da fatia que caberá a cada uma. Quando essa repartição estiver concluída, todos estarão prontos para serem convencidos do que lhes for conveniente, não tendo a crise econômica nada que ver com isso. Na hora em que o butim estiver repactuado, as soluções para a crise econômica encontrarão um rumo.

A oposição tem os votos necessários para abrir um processo de impeachment hoje?

FHC — O impeachment depende de você ter uma argumentação convincente, não só para o Congresso, mas para o povo. Os que desejam o impeachment não construíram até hoje uma narrativa convincente. Pega as pedaladas. Você pode argumentar, como juristas têm feito, que não há como caracterizar um crime.

Novaes – O impeachment depende de que haja plausibilidade na tese de que a presidente cometeu crime. Depois de tudo que já foi revirado, não se encontrou nada. Não há, até aqui, ponto de apoio para essa alavanca golpista.

A lei diz que precisaria ser um atentado à Constituição.

FHC  — Tudo depende de interpretação. No caso das pedaladas, para que se torne convincente, tem que fazer uma ligação direta com o uso de recursos para fins eleitorais. Aí o povo entende. Enquanto não houver uma narrativa que permita justificar politicamente o impeachment, é difícil.

Novaes – Narrativas tem havido muitas. O que não há é crime.

Mesmo se Dilma continuar com popularidade tão baixa?

FHC — Qual é a mágoa que a população tem da presidente? Ela ter dito uma coisa [na campanha] e fazer outra [no governo]. O que a salva em certos setores da opinião, o ajuste econômico, é o que a condena diante de outros.

No sistema parlamentarista, a perda da maioria no Congresso levaria à queda do governo. No presidencialista, não tem como fazer isso, a não ser por um processo mais violento, que é o impeachment.

O problema é a angústia do tempo. É tanto desacerto que surgiu uma grande inquietação. Se fosse por um ano, haveria a expectativa de uma mudança que estaria ao alcance. Como você não tem essa expectativa, a inquietação gera essas ideias para arranjar um modo de nos desvencilharmos da presidente.

Novaes – O que explica o “desacerto” político é a Lava Jato, não a crise econômica, que Dilma vem tentando enfrentar com medidas que seus adversários apoiariam se não vissem no “desacerto” uma oportunidade de levar vantagem: o PSDB quer melar a eleição de 2014, o p-MDB quer se safar da Lava Jato e conquistar mais poder para fazer dinheiro. Não fossem as incertezas e temores gerados pela Lava Jato, estariam todos em seus respectivos poleiros e Dilma estaria a comandar, com Levy ou assemelhado, mais uma tentativa de remendo para o desmanche do Real.

Essa dificuldade de “nos desvencilharmos do presidente” foi vivida por muitos brasileiros na virada de 1998-1999, quando o presidente recém eleito, esse mesmo FHC, teve de abrir seu saco de maldades para enfrentar o que viera escondendo na campanha da sua reeleição. Naquela altura, houve quem gritasse “fora FHC!”, mas, felizmente, prevaleceu a ordem contra os que queriam desvencilhar-se dele.

Deixo ao leitor ajuizar o que seria um sistema parlamentarista com esse Congresso que aí está (sim, porque não seria possível inventar outro).

O afastamento de Dilma seria suficiente para resolver isso?

FHC — A questão não é só a presidente. Temos um sistema partidário e eleitoral que tornou inviável construir maiorias sólidas no Congresso. Você tem 30 e poucos partidos, e a maioria está aí para disputar pedaços do poder, do orçamento. Qualquer um terá esse problema para governar.

NovaesA questão não é a presidente. Ponto. Todo o problema são os políticos profissionais, que estão “aí para disputar pedaços do poder, do orçamento”. Não há como governar senão na base do toma lá da cá.

O sr. defendeu outro dia a formação de um novo “bloco de poder” como solução para a crise política. O que falta?

FHC — Se estivesse no lugar da presidente Dilma… Eu perdi popularidade em mais de um momento, recuperei, perdi de novo, mas nunca perdi a maioria no Congresso, o respeito. É difícil imaginar, mas fui presidente, sei como é.

Ela teria uma saída histórica. Apresentar-se como coordenadora de um verdadeiro pacto. Em que não estivesse pensando em vantagens para seu grupo político, só no futuro do país, e propondo que o conjunto das forças políticas se unisse para fazer algumas coisas. Modificar o sistema eleitoral. Conter a expansão do gasto público. Reformar a Previdência. E ofereceria o seguinte: aprovado esse pacto, em um ano ela renunciaria. É utópico isso, eu sei.

Novaes – FHC, agora, pretende que um presidente só possa governar tendo maioria no Congresso. Ele parece ter esquecido os ensinamentos de Madison (no livro O Federalista), que viu de longe o perigo da “maioria facciosa” (é exatamente essa maioria nociva que se pretende forjar para o impeachment). Um presidente precisa viver e trabalhar na busca incessante de maiorias, que se formam e dissolvem ao sabor das matérias a decidir. Um presidente não pode pretender contar com UMA maioria pétrea (pétreas só as cláusulas da Constituição!).

Fernando Henrique, atropelando a lógica e a democracia com seus desejos, propõe que Dilma lidere uma saída para o país e, em seguida, tendo obtido êxito, renuncie! E ainda se faz o autoelogio de que ideia tão esdrúxula é utópica

Uma renúncia negociada?

FHC — Negociada em nome de objetivos políticos que não são do interesse do meu partido, de nenhum partido. Aí você segura a ânsia [das outras forças] de chegar ao governo.

O tempo dela está se esgotando. Ela tem que olhar para a história. Não convém ficar marcada como a presidente que não conseguiu governar. Ou que vendeu a alma ao diabo para governar. Agora, ofereceu cinco ministérios ao PMDB. Vai governar como? Não vai. Vai ser governada.

Novaes – Dilma sarneysou o governo porque não tem força para governar a fisiologia. Agora, a fisiologia governa. Foi levada a isso pelas contradições impostas pelo fim do pacto do Real, combinadas com os resultados da Lava Jato. Além de seus próprios erros, Dilma não dispunha da força política e do talento necessários para enfrentar uma combinação tão formidável de adversidades – é de perguntar se alguém teria.

Em caso de renúncia, o vice Michel Temer assume o governo.

FHC — A posse do vice não resolveria. Precisa realmente ter uma nova configuração. Mas não adianta uma nova configuração com regras antigas.

Dilma pode continuar a governar. Vai fazer pacto com o demônio o tempo todo. Vai ter que ceder cada vez mais. E o governo ficará mais contraditório. Na Fazenda, o que se requer é um ajuste. E isso é contraditório com os interesses dos grupos políticos que vão para o poder, porque eles querem estar lá para fazer coisas. E não vão poder fazer.

Então, vai ser um governo complicado, confuso. Pode? Se tivesse um ano só… Mas são três anos. É uma longa caminhada, de incertezas.

Novaes – Agora nosso “teórico” já não fala em um novo “bloco de poder”, mas em uma “nova configuração”. Ficou menos ruim, pois “configuração” significa uma disposição diferente das mesmas peças – é bem isso, mas não há nada de novo aí!

Como para o PSDB 2018 está muito longe, três anos parecem muito para FHC. Mas o fato é que este governo tem de ir até o fim, seja com Dilma, seja com Temer. Por melhor que ainda possa se revelar, não será um governo de realizações – será um governo de fisiologia em tempos de crise e desorientação, enquanto a sociedade não gera uma força transformadora que refaça a rosca no parafuso. Um desfecho verdadeiro, bom ou mal, será em 2018, não antes.

E a saída pelo impeachment?

FHC — Se houver alguma coisa que seja clara para a população, pode ser. Suponha que nos processos na Justiça Eleitoral se demonstre de forma inequívoca que houve dinheiro do petrolão na campanha. O que o juiz vai fazer? Aí não tem jeito, tem a lei.

Novaes – Aqui o tucano mostra toda a extensão do seu bico! Nesse caso, de vício original, já na campanha, Temer iria junto e, assim, teríamos uma nova eleição, dando aos tucanos a oportunidade de não terem de esperar até 2018.

Nesse caso, Dilma e Temer seriam cassados juntos.

FHC — A chapa inteira. Seria uma solução? Uma confusão enorme também. Porque os problemas estão aí. Não resolvemos nada, nem na política, nem na parte de gerência do Estado. Se não tiver uma perspectiva de reorganização das contas públicas, e do sistema político, não tem solução.

Novaes – FHC foge da questão, afinal, teríamos de ter uma eleição. Uma eleição abriria o debate sobre como “reorganizar as contas públicas”: a questão é definir quem paga a conta, o que abre a discussão sobre a desigualdade. Quanto a “reorganizar o sistema político”, só vejo uma solução: acabar com a reeleição para o legislativo. Mas uma nova eleição presidencial, solteira, agora, não daria oportunidade real para nenhuma das duas tarefas, pois a sociedade está inerme diante da crise. Haveria, no máximo, a tão sonhada “reconfiguração dos mesmos”, com o surgimento de um “novo” Collor, tão solteiro quanto o anterior.

Como têm sido as conversas do PSDB com Michel Temer?

FHC  — Quem pode dar as cartas hoje no jogo é o PMDB. Dilma pode ficar no feijão com arroz, ou fazer um gesto de grandeza. O mais provável é que continuará no feijão com arroz. O PMDB pode construir uma saída constitucional.

O PSDB se confrontará com outra questão. Vai ajudar, ou não? Se houver razão concreta, narrativa convincente, votará pelo impeachment. Mas e depois? Os problemas não vão mudar porque mudou o presidente. Precisa ter um sentido, um rumo. Aí o PSDB vai ter que cobrar esse rumo.

Novaes – O p-MDB já vem distribuindo as cartas desse baralho marcado. Eles agora estão empenhados em identificar as marcas das cartas uns dos outros e, então, decidir se vão ou não melar a rodada, tirando Dilma. O risco de melar é Temer decidir que, agora, o baralho é mais dele do que dos outros.

O PSDB já está totalmente desmoralizado: apostou no golpe, fez um recuo para inglês ver, tem um governador forte a quem só interessa o calendário normal de 2018 e, assim, está entre dois cenários complexos: se Dilma cair e Temer ficar, terá de decidir se em 2018 convém ser oposição ou situação; se Dilma ficar, terá de torcer para o ajuste dela não dar certo, pois, do contrário, Lula poderá renascer.

Se não for pego em malfeitos criminais, a posição mais cômoda para 2018 é, por incrível que pareça, a do Lula!

2 pensou em “NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 5 — Entrevista de FHC à Folha de S.Paulo

  1. Rodrigo

    O mercado, pelo que li, desconfia do ajuste levado a cabo pela Dilma Rousseff. Assim, ela cai e dá espaço para Temer.

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  2. Rodrigo

    Mas se Temer assumir a presidência, seu ministro da Fazenda não será o José Serra, apontado como o mais social-democrata de seu partido, o mais à esquerda etc? Se Serra se torna ministro e trabalha razoavelmente bem, não pode ser ele o candidato a presidente, até mesmo pelo PMDB?

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