Arquivo da categoria: PT e PSDB são a mesma coisa

PAÍS EMPATADO, NÃO DIVIDIDO

Carlos Novaes, 16 de outubro de 2014

 

Os debates realizados pela BAND e pelo UOL-SBT entre Dilma e Aécio mostraram os dois empenhados em questionar a credibilidade um do outro, não em contrastar propostas ou, muito menos, projetos para o país. É “mentiroso e mentirosa” prá cá; “desinformada e desinformado” prá lá, e tudo se passa como se houvesse um rol indiscutível tanto de problemas como de idéias para resolvê-los, cabendo ao eleitor não a tarefa de ajudar a pensar um outro país, mas apenas decidir pelo nome mais adequado para conduzir um estado de coisas que estaria dado e é encarado por ambos da mesma maneira.

Note leitor que não estou dizendo que eles não fizeram propostas. Sim, eles as fizeram, e são as mesmas faz vinte anos! Eles divergem apenas em dois aspectos, divergências que nascem do fato de que fingem acreditar no que querem que você acredite, isto é, que as forças que representam são alternativa real uma à outra. Primeiro, não conseguem se entender sobre o que um deve ao outro no legado comum, quando está óbvio que desde 1994 o país assiste a implantação de um mesmo projeto: o pacto incrementalista conservador iniciado com o Real, que já discuti aqui, no qual estão incluídas todas as políticas sociais compensatórias de que ambos falam, bem como todo o silêncio comum sobre os imensos ganhos que se continua a garantir aos muito ricos  — pólos de uma mistificação que deixa de fora a terrível situação urbana, delegada a prefeitos e governadores a quem o modelo mistificador sonega os recursos que permitiriam (se eles o quisessem…) enfrentar os problemas que as camadas médias partilham com os mais pobres, embora sem enxergar neles o único aliado com que elas poderiam contar.

Segundo, Aécio e Dilma brigam mesmo é na opinião que tem sobre qual dos dois é o mais indicado para continuar a tocar esse projeto comum. Por isso, o Bolsa Família de uma não passa de desdobramento das políticas do outro (“nasceu comigo”, diz um; “mas eu fiz um montão”, diz a outra); o combate à inflação do primeiro foi mais vistoso do que o da outra (“a minha era de 960%”; “ah, mas a minha vem sem desemprego grandão”);  o BNDES de um haverá de ser mais transparente do que o da outra (o que difere é a concepção da vitrine, não a política); o currículo e a carga horária das escolas técnicas de um são melhores do que os da outra, que, aliás, teria apenas copiado programas estaduais do primeiro [discutir a escolha de adaptar (mal) nossa juventude às exigências do capital, nem pensar]. Agora, o mais emblemático da mesmice é que o governo Lula de um é igualzinho ao governo Lula da outra, sendo que Aécio se apresenta, então, como um continuador mais confiável do que Dilma para o legado Lula! Enfim, a coisa toda é tão parelha que cada um joga sobre o outro a lama que ambos merecem: para a Petrobras de uma, há o Metrô do outro; para a Abreu Lima de uma, há o Sivan do outro;  para o porto em Cuba de uma há os ônibus para Cuba do outro; cabendo a ambos a glória mútua do respectivo Mensalão. Eles empatam e o Brasil segue empatado.

Nessa ordem de idéias, não faz nenhum sentido encarar os 51% de Aécio e os 49% de Dilma como evidência de que o país está dividido. Mais tolo ainda é dizer que o vencedor governará um país dividido. Dividido ele estaria se esses números refletissem a adesão a dois projetos, a duas visões de Brasil, a duas maneiras diferentes de mobilizar a memória em prol de um desenho alternativo de futuro. Não há nada em jogo senão o síndico e, por isso, depois da eleição cada um de nós voltará à rotina da qual não chegou a sair porque não foi chamado a nenhuma tarefa nova. Os números das pesquisas retratam não uma polarização, mas a ausência dela. Como não há nada grande e firme obrigando a uma escolha que realmente mobilize corações e mentes — limitação que frustra a ânsia por mudança partilhada pela imensa maioria (75%!!) –, as pessoas que não foram diretamente beneficiadas em sua miséria justificam sua escolha dando vazão a motivações epidérmicas, simpatias ou raivas pessoais, preconceitos geográficos ou de condição social (onde há quem pretenda ver luta de classes!), empregando, quando muito, raciocínios parciais truncados, voltados não a ajuizar a realidade de modo escrupuloso, mas a justificar para si mesmos uma opção que, no fundo, reconhecem não cobrir sua própria vontade de dizer e fazer diferente. Dilma e Aécio dividem igualmente a frustração de 95% dos brasileiros. Os outros 5% vão muito bem, obrigado, pois seus interesses foram defendidos pelas três principais candidaturas.

Oportuno observar que as pesquisas mais recentes trazem exatamente os mesmos números (51 X 49) dos levantamentos realizados na entrada do segundo turno. Ou seja, as campanhas de TV, os apoios recebidos e o debate não alteraram em nada o cenário, uma vez que a ausência de uma verdadeira alternativa no primeiro turno ensejou a que o segundo, desde logo, fosse apenas e tão somente o resultado inercial do que se passou no primeiro, vale dizer, ao eleitor não foi necessário fazer nenhum esforço para escolha nova. Não é por outra razão que os eleitores que foram de Marina no primeiro turno fizeram a sua escolha sem precisar conhecer os termos com que a candidata enfeitaria o apoio a Aécio que de antemão anunciara, no melhor estilo “velha política” (não obstante o enorme escrúpulo de dizer ao seu partido, a Rede, que o faria em termos pessoais – Ah, então tá!), uma operação cujo desenho anedótico não poderá ficar de fora da próxima edição do febeapá1. Para que o empate fique ainda mais claro, o DataFolha mostra que para cada eleitor que acolhe a indicação feita por Marina (não obstante não tenha precisado dela para se decidir), há um outro que repudia candidato apoiado por ela, isto é, tudo somado, no final da operação o apoio de Marina é irrelevante, irrelevância que é o resultado do que a candidata (des)construiu nessa campanha, como já pude discutir ampla e fundamentadamente aqui (ou aqui, aqui, aqui), e uma outra maneira de apresentar a frustração ante a ausência de um projeto de transformação, cuja oportunidade eleitoral foi um cavalo que ao passar encilhado nos deixou num empate2 que Chico Mendes repudiaria.

1 – acrônimo de Festival de Besteiras que Assola este País — publicação dos anos 1960, na qual Sergio Porto fazia jornalismo ferino inócuo contra a política convencional.

2 –  prática de luta dos seringueiros na defesa de suas terras contra ruralistas poderosos. Vale notar a sabedoria triste do nome “empate”: em razão da enorme assimetria entre as forças envolvidas, o máximo que se poderia alcançar ao risco da própria morte era um empate. Nossa tarefa é reunir forças para sair disso.

 

QUANDO A MEMÓRIA MAIS ENTRAVA DO QUE INFORMA O FLUXO

Carlos Novaes, 06 de outubro de 2014

 

Neste segundo turno teremos de vencer mais um trecho da mesma trilha que vimos abrindo e, por isso, não se trata de uma nova eleição. Tanto à maioria de nós, para quem tratar-se-á de repetir a opção já registrada na urna, como aos que não se sentiram contemplados no resultado do primeiro turno, e se virem impelidos a uma outra escolha, num como noutro caso, a memória do primeiro trecho trará não apenas candidatos já conhecidos, mas a mesma mobília temática de que nos ocupamos por todo o caminho. Se a memória eleitoral se impõe de uma eleição para outra mesmo nos pleitos para os legislativos, como já argumentei aqui, mais imediatamente nítida ela se põe para o voto de quem escolhe uma alternativa para a presidência da República entre dois turnos. Infelizmente, porém, neste segundo turno, em que não chega a haver uma disputa de projetos, nossa memória não será desafiada a novos arranjos e, assim, já não há qualquer possibilidade de um fluxo novo, na forma de uma transformação.

Atendendo a pedidos, este texto é uma tentativa de explicar melhor o entendimento acima. Embora vá aqui a despretensiosa contribuição de um blogueiro, não posso deixar de registrar meu reconhecimento ao que pude ler do prof. Fábio Wanderley Reis, autor da interpretação mais fecunda que conheço sobre a relação entre percepção popular e preferência eleitoral no Brasil. Prudente e oportuno acrescentar, porém, que nem vejo as linhas que se seguem como uma aplicação da visada teórica de Reis – não são; nem me acho entre aqueles que estão de acordo com as mais recentes opiniões do professor, como, por exemplo, as expressadas em artigo publicado na véspera desse primeiro turno na página três da Folha de S. Paulo, onde Reis, em derivação só aparentemente necessária da sua teoria, ao passo de negar a necessidade de os candidatos apresentarem programas de governo, parece se render à existência implausível de um suposto lulismo como fenômeno duradouro com força explicativa para alguma coisa relevante no comportamento eleitoral do brasileiro. Mesmo que programas de governo sejam, em geral, peças de vitrine com pouca ou mesmo nenhuma correspondência com o estoque, eles são sinalizadores úteis, ainda que não se deva deixar de reconhecer a importância do ajuizamento não letrado: por exemplo, a mim pouco importou se Marina, uma vez eleita, iria ou não levar adiante sua estapafúrdia reforma política de coincidência eleitoral com mandatos de cinco anos; o que importou foi descobrir que ela não sabia do que estava falando, e num tema que era central para uma candidatura que alardeava uma “nova política”. Naturalmente, essa foi uma verificação que só foi possível para quem sabe ler, mas, afinal, programas não são escritos para quem não o sabe, não sendo de desprezar, porém, nem os avanços havidos na escolarização do brasileiro médio nos últimos 40 anos, nem a interação entre os que sabem e os que não sabem ler. Quanto ao lulismo, espero que as linhas que se seguem deixem mais claro o que eu já disse aqui. Entremos na matéria.

A memória é uma teia da qual o EU é a aranha, e cuja plasticidade nem ao passado deixa em paz. É dela mesma, de seus próprios rearranjos, que saem não só os grandes intervalos de continuidade, mas também os momentos de alteração profunda no comportamento eleitoral, sempre possíveis, mas raros, como a experiência está sempre a nos mostrar. A oportunidade para grandes mudanças nasce do sofrimento. Se ele é vivido como insuportável, temos a revolução, pois diante do insuportável não há escolhas entre caminhos, pois a via unilateral da ação direta contra o mal se impõe em fluxo puro. Se intolerável, o sofrimento dá lugar a alguma escolha, no âmbito da qual poderá haver ou não uma transformação, que dependerá fundamentalmente da existência de vetores organizados propondo a ação transformadora. A grande diferença entre o insuportável e o intolerável, portanto, é que enquanto no primeiro a ação revolucionária se impõe sem precisar de proponentes, já que dispensa memória; no segundo, a transformação requer a ação da memória na forma de uma ou mais propostas que convidem a um caminho em fluxo novo, mas partindo do trecho já vencido na estrada que se quer deixar para trás. Até onde posso enxergar, nós estamos vivendo um período propício a um raro momento desse tipo, em que a efervescência eleitoral pode levar a um sólido realinhamento em favor da mudança, mas ainda não se organizou proponente à altura e a possibilidade de transformação vai sendo desperdiçada, ora porque se está aquém dela, reagindo à mudança; ora porque se está além dela, pregando uma revolução.

Nos últimos 40 anos tivemos apenas dois outros momentos como este, em que houve um realinhamento eleitoral com potencial transformador: em 1974 e em 1989-1994. No primeiro, sofrendo o intolerável ajuste do primeiro choque do petróleo, ocorrido em 1973, nosso povo deu tudo que pôde dentro dos limites estreitos do que lhe foi oferecido pelos políticos e o que lhe vedava a ditadura, e surpreendeu ao conferir uma vitória eleitoral esmagadora à oposição da época, dando ao MDB nada menos do que 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, explicitando que o regime paisano-militar estava ferido de morte. Embora não pudesse alcançar uma transformação, esse realinhamento eleitoral espontâneo levou, entre outros desdobramentos, às vívidas eleições de 1978, onde FHC concorreu pela primeira vez ao Senado, e com o apoio de Lula, então um jovem e promissor sindicalista do ABC; e à conquista da Anistia, em agosto de 1979. Ainda no evoluir desse fecundo veio do movimento eleitoral de 1974, desencadearam-se forças novas, que vieram à tona medindo-se entre si e com as forças do atraso, embalo no qual se deu a criação de sindicatos, centrais sindicais e toda sorte de organizações da sociedade civil, com destaque para os novos partidos, dentre eles o PSDB e, principalmente, o PT, amalgama de carisma com estrutura burocrática nacional que já explorei aqui há mais de vinte anos, cabendo ao leitor avaliar a acuidade com que então apontei o esclerosamento precoce dessa formidável invenção política.

Na mesma ordem de desdobramentos, houve a campanha pelas diretas-já, em 1984, cuja derrota comprimiu a energia que vinha ganhando voltagem desde 1974, empurrando todo o conjunto para o estuário dessa ebulição, que foi o processo constituinte, saído da eleição de 1986, na qual o PMDB, sucessor do MDB, beneficiado pelo plano cruzado, que reavivou a memória de reconhecimento do partido como a ferramenta dos “interesses do povo”, obteve uma segunda vitória esmagadora, ainda no bojo do realinhamento eleitoral havido em 1974. Promulgada a Constituição de 1988, filha temporã desse legado de 74, no ano seguinte houve a campanha presidencial de 1989. Em razão da ruinosa ambição tacanha de Sarney, que obtivera um quinto ano de mandato, a eleição presidencial de 1989 correu solteira, sem conexão alguma com eleições para qualquer outro cargo. Essa circunstância levou o pleito a um certo desengate do legado de 74, uma vez que os candidatos a presidente não foram amarrados às, ou não puderam contar com, estruturas de campanha que a disputa pelos cargos intermediários põe em campo, o que contribuiu muito para que os dois finalistas fossem Collor e Lula: o primeiro porque, tendo recebido apoio prévio de poderosos grupos de comunicação, já era bastante conhecido do eleitorado e largou em vantagem, podendo se dar ao luxo de chegar por cima; o segundo porque era o único a dispor de uma estrutura nacional, naquela altura ainda não dependente do interesseiro jogo eleitoral miúdo para ser mobilizada a trabalhar, e de graça — um quadro que tive oportunidade de explorar aqui. Para o que nos interessa neste texto, um dos resultados mais importantes dessas circunstâncias foi que Lula, tendo passado ao segundo turno com apenas pouco mais de 16% dos votos, teve franqueado a si um eleitorado de setenta milhões de eleitores, responsabilidade que ele acabou por não suportar mas que, além de ter deixado uma memória valiosa, indicou, e isso talvez seja o mais importante, que o legado de 1974 havia se esgotado e um novo realinhamento estava a se impor, havendo que disputar se de direção conservadora ou transformadora, ou seja, se preso à memória contra o fluxo ou se voltado à reconfiguração da memória em favor do fluxo.

Como se sabe, naquele segundo turno, os donos do poder, manejando o controle dos grotões e apoiados no medo de camadas médias conservadoras, se saíram vencedores com Collor, um improviso tão ruim que nem a eles serviu de modo duradouro, mas que, no vácuo que a todos desafiava, se prestou a impingir uma derrota aos transformadores, naquela eleição representados por Lula, Brizola e, de um modo bem diferente, mas não menos ruptural, Covas. Voluntarioso no trato e voluntarista na ação política, Collor logo perdeu apoio popular com o malogro de mais um desastrado pacote anti-inflação, seguido da perda de sustentação parlamentar, pois ao desgaste com setores do capital descontentes com suas políticas vieram se somar evidências de corrupção que já não encontravam muita gente disposta a esconder. Sobreveio o impeachment e inaugurou-se outro período de incertezas em que a inflação sem freio há quase duas décadas, que havia devorado meia dúzia de pacotes econômicos de estabilização, articulava em alto grau o sofrimento intolerável da vez, já nessa altura ameaçando a própria ordem em que se davam os negócios dos de cima. Ou seja, a inflação havia adquirido um caráter simbólico e já representava muito mais do que uma corrida de preços — é com esse tamanho que ela deve ser lida quando mencionada neste texto.

Como camarão que dorme a água leva, e nossa classe dominante nunca foi de dormir no ponto, foi em torno do combate à inflação que se iniciou, em 1993, a preparação de uma resposta conservadora ao vetor transformador que tomava impulso na cada dia mais competitiva candidatura presidencial de Lula, que como desdobramento da votação obtida no segundo turno de 1989, chegou a ter mais de 40% nas pesquisas eleitorais no início de 1994. Essa dianteira era vivida como um desenlace quase inercial do período, pois o sofrimento popular era intolerável e o PT canalizava toda a negação da ordem malsã instalada, uma vez que, além de simbolizar a oportunidade perdida em 89, havia se recusado a participar das variantes de acomodação oferecidas antes e depois daquele pleito — a inflação empurrava a um realinhamento e Lula aparecia como o protagonista natural desse processo, que convidava à transformação precisamente porque permitia articular em alto grau a tensão entre memória e fluxo.

Alarmados com cenário tão desfavorável, os senhores do dinheiro foram buscar nas fronteiras do outro lado pistas para o caminho da salvação — chegara a hora de Fernando Henrique Cardoso, investidura cuja análise fiz a quente, em 1994, num artigo enviado à Folha de São Paulo, que não o publicou, mas que agora pode ser lido aqui.

Naquela altura, vinte anos depois que o povo instilara na dinâmica política a seiva para a qual a ditadura paisano-militar não tinha antídoto, o êxito econômico e político do Real viria a arrastar o eleitorado a mais uma mudança radical de preferências que, ao desfavorecer Lula, tomou a direção oposta à transformação e ainda orientado pela mudança deu a FHC uma vitória em primeiro turno contra os transformadores, que não tínhamos sabido avaliar a extensão e a profundidade do impacto benéfico do controvertido plano de estabilização, especialmente sobre os estratos mais sofridos da população. Ao contrário de nós, que julgávamos ter a fórmula da saída, nossos adversários tiveram a humildade de aprender com seus próprios erros, e ao invés de recorrer a mais um pacote para contornar a ira popular, elaboraram um plano que embrulhou nosso povo num engajamento limitado, é certo, mas muito superior à adesão ao papel de “fiscal do Sarney” (iniciativa ridícula, mas que permitiu enxergar o quanto havia na população de disposição represada ao engajamento no trato da coisa pública em momentos de crise); e muito superior, eu dizia, pelo engajamento cognitivo que requereu de cada um para que fizesse a correspondência entre os preços dos produtos e as tabelas de referência-URV, que emanavam diariamente do governo, numa rica significação da interação simbólica entre o estado e o povo, interação essa que se dava, sem que fosse preciso hostilizar ninguém, de maneira direta e sem o automatismo da vida cotidiana fundada no hábito, pois vinha articulada à contagem detida de nada menos que o dinheiro, a sempre escassa mercadoria universal. Àquela altura, estava acima das nossas forças desmanchar o arranjo.

Ao conseguir inverter a direção do realinhamento em curso, os tucanos derrotaram Lula já no primeiro turno, êxito que se repetiu também em 1998, mesmo sob condições bem mais adversas, pois havia um cenário eleitoral menos amigável, para dizer o mínimo. Enfim, o eleitorado fizera um novo realinhamento de largo curso e dirigido sua preferência para a força política que o aliviara de uma carga intolerável. Ciente do que estava em jogo, ainda que não com toda a clareza que o tempo sempre proporciona, o sociólogo na presidência instaurou um período de pactuação em que, sem deixar de favorecer aos de cima, instou o Estado sob seu comando a olhar pelos mais pobres, colocando uma ou outra estaca adicional ao plano Real, na forma de programas sociais compensatórios, ainda que sem enfrentar a desigualdade. Enfim, passados 20 anos havíamos mais uma vez dado início a um realinhamento eleitoral, cujos protagonistas não por acaso eram a ala menos conservadora do partido que se beneficiara do realinhamento anterior: o PSDB, como se sabe, saiu do (P)MDB, partido que só mais adiante iria se ajustar ao curso do novo realinhamento ocorrido pela ação dos seus dissidentes. A essa altura da narrativa é indispensável registrar que se o plano cruzado tivesse dado certo e logrado debelar a inflação, a acachapante vitória do PMDB nas eleições de 1986 teria re-alavancado o realinhamento eleitoral de 1974 e muito provavelmente Sarney teria tentado já então incluir na Constituição o dispositivo da reeleição para presidente. O fato de o candidato do PMDB à presidência em 1989, o notável e emblemático Ulisses Guimarães, ter obtido menos de 5% dos votos foi mais uma indicação de que o malogro do cruzado selara o fim do realinhamento de 1974.

Depois de marchas e contramarchas, a força transformadora burocratizada e oligarquizada digeriu as derrotas sofridas na forma de um aprendizado que, infelizmente, incluiu elementos de capitulação, sobrevindo recuos diante de compromissos centrais à transformação. O lulopetismo entendeu corretamente que estava além das suas forças mover a seu favor a chave dos trilhos do realinhamento eleitoral operado pelo Real. Porém, ao invés de buscar entender o fenômeno para melhor se dirigir aos de baixo e com eles articular um vetor de ação política, o que implicaria adiar sine die um desfecho eleitoral favorável, mas, em troca, manteria em perspectiva a opção da transformação, ao invés de perseverar, eu dizia, o lulopetismo decidiu por realinhar a si mesmo na direção de concessões aos de cima, ajustando-se de maneira quase clássica ao adverso realinhamento eleitoral havido. O resultado publicitário foi a Carta aos brasileiros e a escolha de José Alencar para vice de Lula, num arranjo conservador que abriu alas à vitória de Lula em 2002.

Recapitulando, sem poder escapar da agenda governista que havia sido imposta pelo Real oito anos antes, nas eleições de 2002 o lulopetismo se rendeu ao pacto conservador incrementalista em curso desde 1994, apenas se apresentando como quem poderia fazê-lo melhor. Romper o continuísmo governista foi possível porque uma crise internacional, combinada a dificuldades fiscais engendradas pela própria dinâmica do Real, havia complicado o equilíbrio frágil do arranjo de FHC, o pai do Real, programa que promovera um realinhamento eleitoral nas camadas médias de tal ordem que o Lula que em 1989 já havia conquistado pouco menos de 50% dos votos para presidente contra Collor, e no início do ano eleitoral de 1994 chegara a ter 43% das preferências, depois de se contrapor ao Real viu seu eleitorado, realinhado na direção contrária, abandoná-lo. Em suma, em 2002 o realinhamento eleitoral de 1994 trocou de governo, mas sem mudar de sentido e tampouco de direção, impondo uma lógica que balizou todo o período Lula, seja nas medidas ortodoxas de contenção de gastos do primeiro mandato, na manutenção de políticas sociais compensatórias sem desafiar a desigualdade, na manutenção do regime de metas de inflação; ou ainda no continuísmo de que são exemplo a troca de dívida externa por dívida interna, a flexibilização do monopólio da Petrobrás sobre o petróleo, a capitalização do BNDES em favor de grandes grupos econômicos, o lugar central que o PMDB adquire aos poucos na sustentação do governo, a manutenção de uma partição federativa das receitas tributárias que nada tem de federativa, etc; enumeração de escolhas que não quer dizer que o autor considere todas erradas.

Uma vez na presidência, o lulopetismo se mostrou um confiável e competente gestor do pacto conservador, cujo protagonismo arrebatara aos tucanos e, beneficiado por uma situação econômica internacional favorável, pôde obedecer ao realinhamento do Real aprofundando o pacto nas duas direções de seu vetor principal: prá cima, os ricos nunca ganharam tanto dinheiro; prá baixo, aos pobres nunca haviam sido destinados tantos benefícios, não sendo necessário dizer qual dos dois pólos se dava melhor. Espremida entre os dois, a classe média assistiu à degradação da vida urbana em que penosamente sobrevive na forma de mais violência, transporte caótico, falta de saneamento, etc, pois, afinal, alguém tinha de pagar a conta de um combate à pobreza que não só não mexe no dinheiro já acumulado pelos de cima, como, pior, tampouco altera a ordem econômica no sentido de liberar as energias retidas nos mecanismos que engendram e protegem um modelo de acumulação perversa. Assim, em razão do ajuste do lulopetismo aos trilhos do realinhamento proposto e obtido pelo Real, na reeleição de 2006 Lula trocou de eleitorado ou, por outra, o eleitorado trocou de candidato, mas não de preferência, isto é, o ex-metalúrgico ganhou os mais pobres e perdeu parte das camadas médias, inversão que alguns analistas tomaram por um novo realinhamento eleitoral, quando quem se ajustou foi o lulopetismo, não o eleitor.

Nos parágrafos numerados a seguir julgo esclarecer que os dois governos de Lula se deram sob obediência ao realinhamento eleitoral havido em 1994 e que, portanto, não houve nenhum realinhamento eleitoral sob Lula, o que torna implausível, ademais, o surgimento do presumido lulismo que corresponderia a esse novo realinhamento que não existiu:

1. – o eleitorado mais pobre continua onde sempre esteve, ou seja, apóia o governo que lhe favorece. Antes preferira FHC e Serra (pois em 2002, apesar de perder a eleição, Serra venceu Lula entre os mais pobres, que estavam alinhados com o Real e o governo FHC). Depois, em 2006, os mais pobres continuaram governistas e, por isso, migraram para Lula e o reconduziram, pois ele vinha sendo o presidente que os beneficiava nos exatos termos do pacto estabelecido em 1994. Ademais,

2. – os setores médios tampouco apresentaram qualquer realinhamento significativo na era Lula: a parcela deles à esquerda, minoritária, que antes da capitulação pragmática apoiava o lulopetismo, não concordou com a adesão ao pacto conservador e ficou onde sempre estivera, afastando-se de Lula ou emprestando-lhe apoio contrariado (daí a força inicial de Marina, que ela própria não entendeu); outra parcela, mais pragmática, que Lula havia arrebatado aos tucanos em 2002 com o ajuste conservador dele próprio, foi perdida em 2006 porque Lula, assim como FHC, não havia contemplado as suas expectativas materiais, ou seja, mais uma vez, esse pessoal ficou com a agenda que sempre tivera: havia deixado os tucanos porque eles não corresponderam, e adotado o Lula em 2002 — em 2006, mais uma vez decepcionados, deixaram Lula, mas conservaram sua própria agenda; uma terceira parcela dos setores médios, que já se alinhava com os tucanos, mas não apoiava as políticas de FHC em favor dos pobres (apenas as engolia), não viu razão para apoiar Lula, cuja agenda contra a pobreza era mais visível, e também ficou onde sempre estivera, até por achar que o que vai para os pobres deixa de vir para melhorar a situação urbana, que egoisticamente lhe interessa. Como não poderia deixar de ser, estes setores estão cegos para a necessidade de ir buscar os recursos mais encima, na bolsa dos rentistas, ação redistributiva que o tal pacto conservador veda e, por isso, dá à classe média em geral, progressista ou não, a impressão, de certo modo real, de que o socorro aos pobres se faz às suas custas, sem prejuízo de que há aspectos ideológicos repelentes orientando o que há aqui de raiva aos pobres.

Em suma, tanto quanto os pobres, os setores médios não apresentaram realinhamento eleitoral algum depois de 1994, ainda que quase todos tenham, em algum momento, trocado de candidato. Foi o lulopetismo que se realinhou e, em torno disso, todo o sistema girou. Logo, a longevidade do sucesso eleitoral dessa obediência neo-conservadora do lulopetismo aos termos da lógica incrementalista imposta em 1994 estará ameaçada se:

1. mais uma vez um cenário econômico internacional desfavorável trouxer problemas ao pacto conservador. Os sinais de deterioração são claros e decorrem também dai as dificuldades de Dilma de reter apoios — Marina cresceu por essa via, mas seu inconsistente projeto reacionário logo afastou os mais informados;

2. os setores populares pretenderem ir adiante do que o pacto conservador permite. Daí a acomodação burocrática do PT, que não mobiliza os pobres a quem ajuda — as pesquisas mostraram que até mesmo no Nordeste houve um ensaio de redirecionamento de apoio eleitoral nesta eleição de 2014, como se viu no desempenho inicial de Marina lá. Ou seja, mesmo ali não há lulismo, há governismo não inteiramente satisfeito;

3. parte dos setores médios não reacionários passe a reivindicar com mais força o fim da corrupção e a imposição de alguma perda aos muito ricos, em benefício da melhoria da vida urbana degradada. Evidentemente, por variadas que tenham sido suas motivações, foi justamente isso que se deu nas manifestações de junho de 2013: um claro sinal do esgotamento do pacto incrementalista e do realinhamento eleitoral que o acompanha, exatamente ali onde está seu tendão de Aquiles, as contradições do Brasil urbanizado refletidas desde a desigualdade. Foi aqui que Marina encontrou o combustível de arranque de sua subida vertiginosa inicial, que deu chabu pelo reacionarismo de suas propostas principais, em tudo contrárias a qualquer que tenha sido o espírito das ruas em 2013;

4. surgir uma alternativa transformadora viável, entendendo por viável uma proposta que, orientada pela sustentabilidade, privilegie os pobres, se centre em demandas urbanas, se contraponha à bandalheira política de forma crível e, muito importante, não busque enfrentar a todos os setores do capital (essa a limitação básica do PSOL e de toda a autointitulada esquerda) – um bom adversário seriam os rentistas, e/ou os ruralistas (Marina poderia ter sido essa alternativa, mas tomou o bonde errado e foi cair justamente no colo dos banqueiros e ruralistas, os Bornhausens da vida. Já Eduardo Jorge preferiu o lugar da consciência crítica que a todo tempo anuncia sua própria inviabilidade).

Como os muito pobres estão, e estarão, onde sempre estiveram (apoiam o governo que entendam que lhes favorece, e o abandonam se passam a entender que ele os prejudica, movimento este sempre mais difícil de fazerem porque o pouco que recebem sempre lhes parece uma dádiva), como os mais pobres são assim conservadores, o lulopetismo os mantém sob rédea curta e se apresenta como o máximo a que eles poderiam aspirar, explorando a coleira da gratidão. São esses pobres cheios de gratidão que podem ser ditos lulistas no sentido convencional, mas, para serem banalmente lulistas (ou seja, gostarem de Lula), eles não precisaram se realinhar eleitoralmente, Lula é que se realinhou para, como governante do pacto conservador gradualista, chegar até eles desde cima, na figura do benfeitor. Que tudo isso ganhou potência em razão da origem popular do ex-metalúrgico talentoso não resta dúvida, até porque os temores anteriores estavam, também, ligados a uma insuficiência de auto-estima dos mais pobres, quadro que já estava em mudança, do qual Lula se beneficiou, mas também ajudou a aprofundar com seu notável desempenho — reconfigurações que, aliás, mostram algo da limitação das análises baseadas na noção de “reconhecimento”, pois o que há é um crescente reforço da experiência do espelhamento entre iguais, não do reconhecimento vertical entre diferentes.

Mas nenhum desses aspectos de ordem simbólica justifica a confusão conceitual reinante. Afinal, se um realinhamento eleitoral digno desse nome, como os que tivemos em 1974 e em 1989-1994, se dá em torno de uma agenda, é de supor que os eleitores “realinhados” abandonem um governante que não corresponda a ela e se fixem numa oposição em que identifiquem a defesa dessa mesma agenda a que se apegaram. Se é assim, mesmo que tivesse havido um realinhamento eleitoral em 2006, não faria sentido chamá-lo de lulismo, pois mais adiante poderíamos ter a circunstância bizarra de ver o lulismo abandonando Lula (se ele viesse, por qualquer motivo, a “trair” a tal agenda fundante) e passando a apoiar um PSDB, um PSOL ou qualquer outro em que viesse a identificar um defensor da referida agenda. Aliás, seria nesses termos equivocados que, talvez, tivéssemos de descrever este segundo turno, pois parte do lulismo/governismo descontente pode passar a apoiar Aécio, troca de preferência por candidato que em nada contrariaria o realinhamento de 1994, como suponho já ter deixado claro. A confusão decorre, naturalmente, de que não se quer reconhecer as semelhanças siamesas entre o lulopetismo e os tucanos, e, por isso mesmo, da fixação de alguns na ideia de que Lula é um marco, em reverência ao qual teríamos uma tão anacrônica quanto implausível inclinação cesarista dos pobres (em paralelo com o Napoleão III do sacrossanto 18 Brumário, esquecendo-se, entre outros detalhes, de que estamos no Brasil urbano do século XXI, integrado pela TV e onde não houve revolução), inconsistência teórica que vem combinada com a certeza íntima de que o compromisso do ex-metalúrgico com os muito pobres seria alguma coisa como “inabalável”, já agora esquecendo-se o caráter propício da conjuntura internacional que todo mundo que tem juízo reconhece ter sido central para o “fenômeno”, e com o qual nem sempre se poderá contar.

Assim, faz 20 anos que os tucanos promoveram sem o saber um realinhamento eleitoral cujo protagonismo eles perderam por incompetência, mas não só, deixando que o recém-convertido lulopetismo passasse a hegemonizar o processo, agora em vias de esgotamento. O Real foi o marco do realinhamento eleitoral em vigor que orienta o pacto conservador gradualista ao qual um lulopetismo apressado de chegar ao poder escolheu se submeter, e cuja memória, inexplicavelmente abandonada pelos tucanos, Aécio vem buscando recuperar, ao que parece com não poucas chances de êxito (vamos ver como se comportam neste segundo turno os PMDBsss que saem das urnas do primeiro turno, os quais, vitoriosos ou não, já não dependem de ninguém).

Se Dilma ganhar em 2014, como vai ficando pouco provável, será menos por seus méritos e mais porque, ou Aécio não conseguiu enfeitar o programa comum com algum apelo democratista do tipo “vamos fazer juntos, tal como fizemos o Real”, ou terá sido pela razão que já conhecemos: o fato de que não apareceu nenhuma alternativa eleitoral com um projeto crível para superar os impasses do pacto conservador vigente, projeto novo que não poderá sugerir qualquer ameaça às conquistas alcançadas. Naturalmente, uma alternativa com essa ambição não pode se apresentar nem como confiável ao setor financeiro (esse personagem Lula já encarnou), nem segundo um modelo revolucionarista, sob pena de ficar relegada ao papel de propagandista de um programa que não pode deixar de ser encarado como inviável. Essa alternativa haverá de surgir do coração das lutas urbanas ecologicamente orientadas contra a desigualdade e para a liberdade. Por enquanto, vamos permanecer nessa inglória porfia de convés, numa caravela que só não ganha alto mar porque tem o oceano por lastro.

PT PAGA O PREÇO PELA SUA ACOMODAÇÃO CONSERVADORA

Carlos Novaes, 30 de agosto de 2014

Em texto de 2008, e em várias manifestações nos últimos anos, inclusive na TV, tive oportunidade de apontar que ao se acomodar aos ganhos eleitorais por ter realizado políticas sociais que aliviaram os sofrimentos da vida dos brasileiros mais pobres, o PT deixava escapar o potencial desse segmento para integrar como sujeito uma transformação política no Brasil. Naquela altura, quando a opção de Lula por Dilma ainda suscitava controvérsia, eu perguntava e dizia o seguinte:

“Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.

Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.”

Pois bem, esse cidadão insatisfeito num novo patamar pode ser encontrado hoje entre os mais pobres e, sobretudo, na chamada nova classe C. Eles foram beneficiados pelos governos petistas, mas nem por isso estão impedidos de sonhar e de pensar, como a acomodação do PT poderia fazer acreditar. Como irão se conduzir esses segmentos nesta eleição de 2014?

Para responder a essa pergunta, voltemos um pouquinho no tempo. Análises orientadas pelas preferências de seus defensores viram na adesão dos mais pobres a Lula o surgimento de um lulismo, o que teria caracterizado um inédito realinhamento desse eleitorado. Um exame minimamente mais cuidadoso dos dados disponíveis mostra, porém, que as vitórias de Lula em 2002 e em 2006, assim como a de Dilma em 2010, não registraram realinhamento nenhum, sendo risível a insistência no “acerto” dessa abordagem ainda hoje: em 2002, embora tenha vencido a eleição, Lula perdeu para Serra entre os mais pobres beneficiados pelas políticas sociais de FHC; em 2006, já presidente, Lula venceu Alckmin nesse mesmo segmento e em 2010 Dilma, candidata do presidente, superou Serra aí. Ou seja, não houve realinhamento nenhum, pois os mais pobres continuaram, como sempre haviam feito, a votar no candidato do governo, num misto de gratidão e segurança: uma conduta conservadora – especialmente no Nordeste, onde a presença de dispositivos autônomos de construção da opinião pública tem presença residual.

A pesquisa DataFolha publicada hoje ajuda a enxergar que o tal lulismo nunca se configurou, sendo impertinente falar de “parte cativa da base lulista”, pois se os eleitores de até 2 salários mínimos de renda são cativos de alguma força, o são da força tentacular do governo que os beneficia, no caso, o governo Dilma, como antes o foram de FHC. A parte dos pobres que agora se desloca desse comportamento, indicada pelo DataFolha como a de renda entre 2 a 5 salários mínimos, está se conduzindo como seria de esperar daqueles que se libertam dos sofrimentos mais básicos e começam a levantar a cabeça, como indiquei naquele trecho do artigo de 2008 citado acima. Como o PT se acomodou à certeza insensata de que tinha aí um curral, batizado de lulismo, amarga agora a constatação de que suas últimas esperanças residem nas áreas mais atrasadas e pobres do Brasil, tal como o fizeram os coronéis de antanho. Não é por outra razão que na mesma pesquisa DataFolha o Nordeste aparece como refúgio de Dilma, única região populosa onde ela ainda aparece à frente de Marina, que por sua vez já a alcança e supera nas regiões Sul e Sudeste, onde é forte a presença de população escolarizada.

Em suma, Marina já decolou faz dias precisamente porque foi identificada como a alternativa transformadora por parte desses segmentos que sacodem a canga da necessidade, e será um erro se os dois candidatos conservadores passarem a atacá-la, especialmente se no ataque insistirem na sua presumida experiência contra uma suposta inexperiência dela. Só um erro da própria Marina pode arrefecer seu ímpeto para superar a etapa do primeiro turno. Havendo, como ainda é de supor que haja, um segundo turno, é que um combate mais cerrado com ela poderá funcionar, o qual não poderá deixar de ser visto pelo eleitor informado como um esforço contra a mudança.

LUGAR E OPORTUNIDADE DA OPÇÃO MARINA SILVA PARA PRESIDENTE

Carlos Novaes, setembro de 2009

I. APRESENTAÇÃO – (de 2013)

Entre julho e agosto de 2009, no lufa-lufa dos esforços para colocar de pé uma candidatura presidencial de Marina Silva em 2010, a então senadora solicitou ao autor um texto em que amarrasse as intervenções verbais que ele vinha apresentando sobre o processo transcorrido até então. Reuni, então, reflexões antigas sobre o esgotamento de certos projetos políticos para o Brasil com idéias sobre como iniciar uma nova era para o país. Há anos aquelas reflexões vinham me conduzindo a entender que a chamada questão ambiental passaria a ter lugar decisivo nas busca de novas alternativas de desenvolvimento. A partir de 2006 ficou claro o papel de protagonista eleitoral que Marina Silva poderia ocupar no cenário nacional e, por isso, passei a tratar do tema em meus círculos próximos e, mais adiante, foi natural que me engajasse na articulação de uma possível candidatura de Marina à presidência.

Embora hoje, em 2013, a situação política apresente mudanças significativas, parece oportuno manter sob juízo dos leitores aquela maneira de abordar as questões envolvidas. Cada um dirá quão atuais podem ser aquelas linhas, que se seguem tal como foram apresentadas em 2009.

II. UM PROJETO ESGOTADO

Por mais ruidosa que se faça a refrega PT-PSDB, ela se dá fundamentalmente em razão da troca de turma na gestão do estado brasileiro. A chegada de Lula à presidência interrompeu uma prática acomodatícia na ocupação dos chamados cargos de confiança: pela primeira vez houve uma substituição em massa de seus ocupantes, o que rendeu o alarido em torno de um suposto aparelhamento do estado pelo PT, como se não fosse de esperar que os postos de mando fossem ocupados pelos representantes de uma vitoriosa burocracia organizada e treinada precisamente para exercer o mando. Essa troca de turma causou ruído menos pelo impacto que teve sobre o resultado da ação governativa e mais pelo fato de ter escangalhado um arranjo de compadrio que vinha desde o fim do regime militar – em alguns casos, até de antes.

Ainda que seja difícil a uns e outros admitirem, para além da troca da guarda, os períodos de governo de FHC e de Lula foram modos de realização de um mesmo projeto para o país, projeto este que vem desde Vargas e fôra interrompido com o golpe militar e a ditadura que a ele se seguiu. Quando deu ao seu principal programa de ação governamental o nome de Aceleração do Crescimento, a equipe de Lula deixou claro que se tratava não de inventar um novo modelo, mas de acelerar o veículo do crescimento que já estava em marcha, endossando o crescimentismo herdado do passado, embora melhorando o estado dos assentos destinados à acomodação dos segmentos populares nesse móbile movido a petróleo em via pavimentada pela desigualdade. O PAC desautorizou qualquer verossimilhança para o caráter tático que alguém ainda pudesse atribuir à promessa de continuísmo expressa na Carta aos Brasileiros. A Carta foi pra valer e vem sendo cumprida, para alegria dos donos do dinheiro.

Vivendo de forma insciente a conclusão popularíssima de um projeto que soube representar e para o qual ainda não há alternativa clara, o presidente Lula foi levado a acreditar que poderá ditar em termos precisos a própria sucessão (a tal ponto que se autoatribuiu a potência para redesenhar o perfil da próxima composição do Senado), encarada superficialmente por ele como uma escolha entre o que seu governo realizou e o que o anterior fez de errado ou deixou de fazer. Não ocorre ao presidente e aos seus que as balizas dessa disjuntiva possam ser vicárias (afinal, FHC e Lula se tornaram protagonistas do mesmo projeto) e, muito menos, que o país está desafiado a formular e estabelecer os termos para uma nova era de desenvolvimento. Para destravar o debate e poder iniciar esta nova era, o país precisa se livrar da improdutiva pseudo-oposição entre o PT e o PSDB, verdadeiro teatro do absurdo, que requer o cinismo por figurino e a corrupção por ambiente cenográfico.

Gêmeos bivitelinos herdeiros do projeto de soerguimento nacional do período Vargas-JK (PTB-PSD), PT e PSDB cresceram separados como os irmãos corsos: embora a inserção social e cultural de cada um tenha feito diferença, não degeneraram e, na maturidade, se reencontram com mais semelhanças do que estão dispostos a admitir. Em seus primórdios, o PSDB se apresentou como uma variante da social democracia europeia, só que aclimatada nos trópicos: desprovida de braço sindical e centrada na opinião pública universitária. Quanto ao PT, iniciou sua trajetória sob diáfana inspiração socialista, já aguada pela inflexão nacional e vertida na forma de um trabalhadorismo sem fundamento que, por isso mesmo, virou lulismo. Assim, embora embalados em berços distantes e educados em escolas diferentes, a canção de ninar e o hinário edificante foram os mesmos: o cantochão do Brasil crescimentista. Os caprichos da prática política em um país muito desigual – onde as ambições, recobertas de divergências ideológicas na maior parte das vezes infundadas, cavam fossos onde seria mais rentável elevar pontes – levaram estes dois partidos a se posicionarem de um modo que o eleitor está impedido de reuni-los: em campanha, apresentam-se sempre como alternativas inconciliáveis; no exercício do mando, desorientam pela semelhança que não chega a ser de todo encoberta pela poeira da porfia que cava divergências vãs. Dá-se o paradoxo: metade do que de melhor o país logrou produzir para o exercício do poder político tem sempre de se juntar ao que há de pior para derrotar a sua metade mais semelhante. Não por acaso, as forças do atraso nas quais os gêmeos se apóiam são precisamente aquelas que deram materialidade parlamentar à vida política sob a ditadura. Cada um arregimenta e passa a cevar um pedaço do nefasto passado recente no fito de conduzir como protagonista imperfeito a tardia realização de um projeto inatual, que poderia ter sido levado a cabo com maior proveito se ambos tivessem reunido o que têm de melhor, ao invés de robustecer, com as más companhias, o que têm de pior em suas próprias fileiras .

Esta situação conforma provavelmente o exemplo mais cabal da autonomia da política entre nós. E ela se autonomizou a este grau porque nossa institucionalidade estatal e corporativa, nas três esferas (federal, estadual e municipal), desde sempre faculta a quem “chega lá” acesso a recursos que podem ser alocados sem uma vigilância efetiva por parte da sociedade. Com base neles, nossos quadros politicamente mais ativos são selecionados e cooptados por uma lógica espiralada que lhes permite contornar as dificuldades mais salientes antepostas pela desigualdade (sempre ela), levando-os ao sucesso pessoal que alimenta, com seu engajamento remunerado, uma máquina política oligarquizada já descolada do país real, cujos arranjos asseguram aos mandatários, a cada volta, que o velho não tenha termo e o novo não possa se desatar. A situação que os aninha é tão hostil à mudança que as novidades institucionais que lhes ocorrem como solução para os problemas têm sempre duas preliminares defeituosas: dependem do comportamento virtuoso dos protagonistas cuja condução se questiona e/ou reforçam o poder de quem já o tem (financiamento público de campanhas; voto em listas fechadas; cerceamento da liberdade de opinião, etc).

Além de exemplo de autonomia política indesejável, esse estado de coisas, ante os olhos mais e mais incrédulos e desesperançados da população, tornou-se produtor de pantomimas de legitimação, próprias de quando não se quer reconhecer filiação comum evidente: de um lado, impedido de se opor a si mesmo, o PSDB acusa o PT ora de plágio de suas bandeiras, ora de ser mero continuador de suas políticas; de outro, Lula não pode reconhecer os benefícios da herança recebida, nem a bonança internacional que favoreceu grande parte do seu período de protagonista do projeto comum, uma vez que presume indispensável apresentar como obra sua resultados saídos de uma concatenação de circunstâncias inabarcável aqui, da qual ele e seu PT tomaram parte, mas não são autores. Mesmo a assimilação acomodada dos grandes prejuízos locais procedentes da crise internacional em curso (a tal marolinha), mesmo ela deveria ser reconhecida como tributária do que ambos vêm fazendo há 15 anos: segurança patrimonial, estabilidade monetária, saúde financeira, assistência social, domesticação popular e retomada dos investimentos.

Se alguém conhecer, que apresente ao país figuração mais acabada dessa confusão cínica do que o espetáculo em que a auto-intitulada oposição recebe como vantajosas as confissões de irresponsabilidade do ex-oposicionista Lula, sem se dar conta de que o presidente, ao vilipendiar a sua própria trajetória de opositor, está macunaimicamente a desqualificar a condição de oposicionista enquanto tal, numa pirueta obnubiladora que torna aceitável a transgressão da regra e inócua toda crítica que aceite como parâmetro a régua que os gêmeos compartilham: se o projeto é o mesmo, se se trata apenas de disputar o reles mando político de sua realização, não há mal em desqualificar o mandatário de turno para, na curva seguinte, à sorrelfa, espertamente dar ao eleitor o mesmo que o outro já vinha oferecendo (para bem e para mal), e ainda fazer piada de tudo, reforçando a idéia de que os políticos são todos iguais — nivelamento que não seria de todo impróprio se ficasse restrito aos políticos profissionais.

Chegamos a um limite perigoso, que arma situações perigosas, pois atingimos a última fronteira não ditatorial no prolongar artificialmente uma era que já terminou, um projeto que já se esgotou. Não é ditatorial, mas é sufocante. E a única forma de sair do sufocamento é fazer o que a vida reclama: construir uma alternativa fora da estufa que prepara o plebiscito fajuto entre dois prepostos do mesmo. Um país desigual que reúne portentosos recursos naturais num território continental, que deu à luz uma população miscigenada de 180 milhões de pessoas, e que está desafiado pela descoberta dolorosa de que o planeta é finito, já não pode se abandonar à crença em valores e cálculos remanescentes de um projeto de crescimento nacional orientado pelo mero desejo arrivista de substituir importações pela internalização da produção, mormente quando esta é vista como destinada a fomentar um mercado interno de massas orientadas para o consumo de bens a serem produzidos em abundância e indefinidamente, e com base na extração pura e simples de riquezas naturais tidas por inesgotáveis.

Essa época se foi. E o que ela deu de melhor foi a idéia generosa, mas equívoca, de inclusão (a tradução petista da belíndia formulada pelos tucanos), como se houvesse um país que funciona, ao qual se devesse incluir um contingente que está em outro lugar, como que fora, apartado do que funciona e não fosse, ele próprio, variável intrínseca e fiadora do funcionamento inaceitável vigente. Não poderia haver maior contraste entre o que é necessário e o que fazem e pregam nessa área o governo e sua auto-intitulada oposição: enquanto o PT não tira de seus programas sociais nenhuma resultante política inovadora, a oposição se alterna entre atribuir a si mesma o início dessas compensações à pobreza e a denúncia do uso eleitoreiro do seu sucesso.

É provável que a era Lula (nela incluída a oposição) não venha a oferecer emblema mais acabado de seu ocaso inventivo, do que o estardalhaço patrioteiro em torno do Pré-sal, verdadeira apoteose da campanha varguista de há 50 anos, O Petróleo é Nosso, num tempo em que os esforços da ciência internacional estão voltados não para a extração de combustível de origem fóssil (por mais complicada e rentável que se apresente a monótona tarefa), mas para a produção de energias de origem renovável que ajudem a conter a mudança climática oriunda fundamentalmente da emissão de carbono. Se O Petróleo é Nosso, Nosso CO2 é de Todos. Embora o petróleo venha a ter lugar central num projeto que busque um novo modelo de desenvolvimento — pois temos de tirar proveito do nosso atraso relativo –, não será o caso nem de celebrá-lo cegamente em suas aplicações como combustível, nem de deixar de incluir nos custos e benefícios da sua extração garantias e projetos de orientação socioambiental que permitam, no longo prazo, a transição eficaz do modelo do ouro negro para a economia verde.

Para completar o quadro acabrunhador, e como não poderia deixar de ser, a auto-intitulada oposição não se peja de gastar suas energias a bramir sua revolta contra o uso eleitoral do Pré-sal. Faz sentido: se o projeto é o mesmo, tudo que se pode fazer é espernear contra os benefícios eleitorais que advém para o realizador de turno de mais uma conquista do projeto comum, da qual, por um “azar do destino”, se está momentaneamente apartado e, portanto, impedido de comemorar.

Essa escolha do PSDB é muito ilustrativa de suas limitações de formulação acerca do que realmente interessa, pois despreza o fato de que a Petrobrás é o exemplo mais acabado dessa longa jornada do crescimentismo, agora hegemonizado pelo trabalhadorismo: uma empresa petrolífera de economia mista sob controle estatal em que pela primeira vez na história desse país o poder empresarial e o poder sindical se sobrepõem, situação cujos resultados mais pestilentos ainda estão por vir à tona.

Em suma (1) – Se o projeto se concluiu, a alternativa é mostrar ao Brasil a necessidade de um novo projeto, que se apóie nos resultados do anterior para subverte-lo, impedindo que sua vigência anacrônica nos empurre para trás. A plausibilidade desse entendimento está dada, de um lado, pelo aspecto desinteressante que marcava a armação da disputa eleitoral vindoura na forma de um plebiscito; de outro lado, ela se apóia na falência de nossas instituições políticas, marcadas pelas conseqüências de uma autonomização oligárquica.

III. PRIMEIROS PASSOS DE UMA ALTERNATIVA

Ao observarem o caráter infecundo dessa pseudopolarização entre o PT e o PSDB e inconformados com o contraste entre a sua quase irrelevância na cena política brasileira [nota de 2012: irrelevância para onde voltaram depois que Marina deixou o PV] e o papel de destaque que as credenciais do Brasil podem levá-lo a desempenhar num mundo que veem, cada vez mais, compartilhar com eles a preocupação com a mudança climática e a esperança nas amplas possibilidades que ensejam o uso sustentável do esforço humano, da terra, do sol, da água e dos ventos, dirigentes do Partido Verde decidiram renovar seu projeto e reestruturar o partido no rumo da construção democrática de uma economia verde.

Ao darem notícia da primeira reunião que tiveram com Marina, esses mesmos dirigentes do PV abriram para a imprensa o fato político do ano até aqui e, talvez, de todo ele. Desde aquele 29 de julho de 2009 os desdobramentos políticos se sucederam com rapidez e intensidade nada surpreendentes, mas dignos de registro porque servem tanto de confirmação encorajadora para a percepção dos que entendem que a situação está madura, quanto de elemento de persuasão para os que ainda duvidam. Essa notável aceitação preliminar do nome de Marina no PV deve-se, de um lado, às inegáveis qualidades da senadora e, de outro, ao fato de que essas qualidades vão ao encontro de anseios que repelem as resultantes infecundas da situação dramática mais acima descrita. Uma das evidências mais salientes dessa naturalidade entre situação e personagem se apresenta no fato de que há por todo o país quem atribua a si mesmo a idéia de juntar Marina e PV numa campanha presidencial. Todos têm razão, pois tal como na boa carpintaria romanesca, em política os resultados sólidos estão presentes, in nuc, desde o início da caminhada – e por toda parte.

O processo se apresentou em etapas que se desdobraram com a sucessão própria do que é natural, sendo assim compreendidas pela mídia (e, portanto, pela opinião pública interessada), logrando-se êxitos, a saber:

1. deu-se um período de especulações iniciais via mídia, preparadoras do que viria;
2. a protagonista deixou claro seu “intervalo de reflexão” e, como seria de esperar, não foi desmentida nem pela ação de outros agentes políticos, nem por qualquer descrença da mídia;
3. ao abrir interlocução com o PT, iniciou-a pelo Acre, cepa original de tudo, cenário em que confluem a vida familiar-privada e a vida societal-pública, gesto que reuniu, muito a propósito, afeto e razão política, moral-ética e estratégia;

4. logo a seguir, as conversas da protagonista com as “autoridades petistas” se deram entre exclamações de pesar e perda, atmosfera em tudo favorável a um desfecho auspicioso, que culminou com as declarações de que o mandato da senadora era intocável;
5. a conclusão da primeira fase ocorreu com a desfiliação do PT, desfecho que se deu sem atritos com a base do partido e que não agradou as autoridades petistas por razões que não recomendariam a permanência da protagonista naquele partido;

6. iniciou-se uma segunda fase, em que a protagonista se viu à vontade para explicitar tanto as motivações para a mudança, quanto as condições necessárias para que a mudança se desse na direção do PV, sempre dialogando com o legado petista, que não repudiou;

7. tal como no “intervalo de reflexão”, os agentes políticos e a mídia se comportaram como seria de esperar: se colocaram na posição de quem espera uma decisão, sem dar como certa esta ou aquela opção, configurando-se uma expectativa pública tão autêntica quanto benéfica;
8. beneficiada pela credibilidade que justificadamente suscita, a protagonista pôde construir sua adesão ao PV [bem como a daqueles que a acompanhavam] com base em duas condições tornadas públicas: reorientação programática e reestruturação democrática da agremiação partidária [nota de 2012: meses depois, em desgastes crescentes, essas pré-condições à candidatura foram abandonadas, provocando fratura no grupo antes reunido];
9. encontrando-se o PV já em movimentação interna própria aparentemente afinada com as motivações da protagonista, não se encontrou obstáculos de monta para que fossem estabelecidos os termos do acordo que, se entendia, favorecia a vigência daquelas condições;
10. a segunda fase se concluiu no dia 30 de agosto de 2009 com a filiação da Senadora Marina Silva ao Partido Verde.

Em suma (2) – Como não poderia deixar de ser, a variada e auspiciosa recepção ao nome de Marina como candidata à presidência da República não eleva ninguém à condição de grande estrategista ou visionário, pois de realidades maduras, engendradas pela própria dinâmica do beco quase sem saída em que estamos, não se pode esperar senão a apresentação de caminho que de pronto é reconhecido como natural.

IV. IMPACTO NA, E OPORTUNIDADES DA, CENA POLÍTICA

A única força política que pode livrar o país dos erros dessa armadilha improdutiva em que se comprazem a situação e sua auto-intitulada oposição é aquela que propuser um projeto alternativo inovador e aposte no discernimento do eleitor, que vive como impasse simbólico aporias que nascem das agruras da vida material e não está disposto a se deixar embalar no sono proposto pelos realistas com a canção de ninar dos pragmáticos, mesmo que a monotonia da ausência de sonhos seja supostamente compensada pela quase ausência dos pesadelos outrora recorrentes: a inflação e a miséria desvalida. A juventude brasileira quer um projeto pelo qual lutar, quer metas pelas quais sonhar, ocupando-se de dar origem às suas próprias alternativas, assim como a inescapáveis novas deformações.

A entrada de Marina Silva-PV nesse tabuleiro pré-sucessão presidencial promoveu uma troca de jogo: vinha-se jogando damas e passou-se a jogar xadrez. Houve uma diferenciação no movimento das peças e o jogo ganhou complexidade. Como se sabia, cogitar Marina-PV na sucessão leva ao fim, por revelar a sua irrelevância, o plebiscito Lula-FHC e favorece a multiplicação das opções, pelas seguintes razões:

– aparece um terceiro cuja viabilidade, por si só, deve ser considerada;
– o terceiro é egresso do projeto superado e dinamiza a problematização das escolhas feitas por este, mormente nas áreas em que o governo foi mais atrasado;

– a presença de terceiro torna inócuo o sacrifício de outros pretendentes, que se haviam retirado da disputa sob pressão, para configurar o plebiscito;

– já não é o caso de considerar apenas a escolha de “mais do mesmo”, abrindo-se o leque de alternativas à preferência do eleitor.

A viabilidade de Marina-PV nasce da convergência entre os novos desafios mundiais acerca da viabilidade do planeta como plataforma para o conforto humano, por um lado, e o impasse da vida política nacional antes descrito, por outro. Gigante pela própria natureza, o Brasil é visto de fora, e olha a si mesmo, como um viveiro de alternativas socioambientais e de energias limpas com que se pode enfrentar as dificuldades do nosso tempo. Marina é a liderança brasileira mais sintonizada com esse novo lugar do Brasil na cena mundial. Ao mesmo tempo, esse país para o qual todos olham como uma esperança de futuro é o mesmo do desarranjo antigo mais acima descrito, que só se resolverá pela reunião, em torno de um novo projeto liderado pela mesma Marina, do que de melhor há no PT e no PSDB, conjunto que poderá atrair para uma nova dinâmica política os melhores quadros de outros partidos, com destaque para PSB e PDT. Como já disse em outro lugar, não por acaso Marina é aquela cuja atuação demarcou os limites da era Lula, cuja trajetória simboliza o que deve haver de continuidade com o caráter popular dessa mesma era e cuja visão de mundo está em consonância anímica com a perspectiva transformadora que nos remete para além dessa era.

Ao ter o governo Lula como “ponto de partida” para o que propõe, Ciro Gomes (a quem só o gesto de Marina recolocou no campo de jogo – ou seja, ele não era, e não é, alternativa autêntica, que pudesse se apresentar de moto próprio, sem pedir licença, como Marina) faz de si mesmo uma opção a mais para a continuação do esgotado projeto lulista. Como sua menoridade política o impede de criticar o governo Lula enquanto tal, Ciro se refugia no questionamento do arranjo político em torno de Dilma, como a dizer que se trata de continuar, mas com outro tipo de coalizão. A formulação é imaginosa, pois se apóia num temor real do eleitor: Lula não estará lá para conter os apetites. Aliás, o cerne do que há de aventureiro na alternativa Dilma está nisso: ela não tem recursos próprios (até os votos receberá por empréstimo, com carência de quatro anos) para conter a avidez das máquinas do PT e do PMDB.

Preocupado em não criticar o que parece estar dando certo, Ciro não compreendeu que Lula é ponto de chegada, não de partida. Com Lula se encerra um projeto, que terá de receber críticas; com Marina é que se abre um projeto novo. Lula do ABC, que deixou a sua terra e se tornou importante, Lula das montadoras, Lula que se orgulha de ter sido o primeiro dos irmãos a comprar geladeira e carro, Lula, filho e homem de sua época, Lula, o metalúrgico resistente aos desafios socioambientais, encerra tardiamente um projeto antigo (e não por culpa sua, afinal, fez o que pôde e foi além do que seria de exigir), cuja herança teremos de trabalhar. Para sucedê-lo, Marina, que saiu da floresta para se engajar lucidamente na luta brava da cidade, Marina, a que fez importante para o mundo a luta da sua terra, Marina, a filha de seringueiro que se orgulha de ter estudado, Marina, a professora que compreendeu e ensina que não há desenvolvimento sem respeito às fontes da vida.

A humanidade experimenta uma convergência inédita: os interesses da ciência de ponta com os desejos da juventude. Em geral avessos às limitações do aprendizado de rotinas, base de todo conhecimento, contrapondo a elas a vigorosa experimentação dos corpos, os jovens enquanto massa estão pressionados pelos limites socioambientais à expansão dos modos de vida ultrapassados em que se acham semiperdidos, a alternar sentimentos de repulsa, engajamento e abandono, e se vêem desafiados a ampliar seus conhecimentos sobre, afinal, o que se passa com o planeta . Mas esse interesse não é mera reposição juvenil da tensão velha de milênios entre Homem e Natureza, uma vez que aquilo que está sob investigação é a própria ação do homem, que reconfigurou aquela dicotomia primeira na forma atual de Natureza-Homem-Natureza’ (N-H-N’). Esse processo reflexionante cria novas possibilidades para a legitimação racional do revigoramento de energias utópicas, que se esvaeceram ao longo do penoso percurso em que o trabalho perdeu a centralidade que permitira prefigurar-se, na segunda metade do século XIX, um datado sujeito histórico da transformação.

A terceira fase da entrada de Marina em cena termina em 30 de setembro de 2009, quando se encerra o prazo para as filiações propriamente eleitorais. Em outubro inicia-se a pré-campanha, cuja primeira fase se encerrará em fevereiro de 2010. De março a junho teremos a segunda fase da pré-campanha. De julho a outubro dar-se-á a campanha propriamente dita.

Em suma (3) – Quando o fim do apelo motivacional do socialismo internacional e a rotinização oligárquica da política nacional pareciam ter nos conduzido a um inescapável marasmo político, as urgências socioambientais do crescimentismo incauto e o descalabro político emergem como desafio emblemático de velhos problemas em busca de liderança unificadora para alternativas novas. Marina é a pessoa certa, no lugar certo e no tempo certo.

V. DESAFIOS PRELIMINARES

Há que ultrapassar o ambientalismo. Marina é candidata a presidenta do Brasil, não a símbolo internacional com prestígio local. Não se deve desconsiderar que a aceitação preliminar do nome de Marina deriva também da junção perigosa de suas credenciais de liderança com a comodidade de recebê-la como alerta, não como alternativa. Dá-se com o Meio Ambiente algo semelhante ao que sucede com a Reforma Agrária: ninguém é contra porque parece não haver custo em ser a favor – o tranco vai se dar alhures e em terras alheias. É nessa recepção naife da sustentabilidade que vêm surfando as candidaturas concorrentes, que ao incluírem a sustentabilidade em seus projetos, matam três coelhos com uma só cajadada: mostram-se atualizados, reafirmam o caráter de apêndice complementar da questão ambiental e reforçam o confinamento de Marina na posição respeitável, mas atenuada, de portadora de um alerta.

Mas o Desenvolvimento Sustentável contém um alerta ambiental e uma proposição desenvolvimentista. O alerta já foi dado, falta consolidar a proposição desenvolvimentista, fazer as propostas para que o país conheça um novo ciclo de desenvolvimento, que gere riqueza de um modo diferente, e que essa diferença, orientada pelo respeito ao caráter finito e ao equilíbrio delicado da natureza, seja agregadora de valor e mais eficaz para gerar soluções para os problemas vividos pela população. O mais alto requisito moral desse novo padrão de eficácia é o respeito ao direito à vida das gerações futuras; a viabilidade de sua aceitação depende de ele não ser recebido como um obstáculo à fruição da vida pelos que labutam no presente.

Nessa mesma ordem de idéias, a difusão repetida da notícia de que os prazos para que apareçam os resultados das medidas de contenção da emissão de gazes provocadores do efeito estufa são contados em períodos que ultrapassam mais de uma geração gera um tipo novo de cálculo social, pelo qual aquele que se ocupa da tarefa entende de antemão que não se beneficiará do resultado. Esse entendimento é fundamental para que o eleitor se abra às formulações acerca da sustentabilidade. Na contramão, outro desafio da campanha de Marina será não cair na armadilha de pretender relacionar explicitamente toda e qualquer política a ser proposta com a questão socioambiental. Além de sugerir unilateralismo, a onipresença do socioambientalismo conferiria a tudo um ar de invencionice. Em muitos temas, a associação, se ocorrer, deverá ser deixada a cargo do eleitor, sendo de preferir que a aceitação se dê pelas vantagens materiais que ele antecipe no projeto, do que pelo valor moral contido nele.

No Brasil, em razão de nossa longeva, cruenta, populosa e recente escravidão, os apelos a valores elevados são sempre recebidos com desconfiança nos agrupamentos populares: afinal, a hipocrisia moral atingiu por aqui níveis desumanos. A audiência que prestamos individualmente à prédica edificante, quando prestamos, não fala ao que somos (e, muito menos, ao que fomos), mas ao que supomos que deve ser tido como bom. Esse vínculo frágil com o elevado não resiste ao látego das urgências materiais, mormente quando os indivíduos edificados têm de confabular uns com os outros. No curso da interlocução, as boas intenções são escrutinadas e trituradas sob a mó dos interesses, ocultos ou não.

Pesquisas realizadas pelo autor mostram que o voto entre nós, brasileiros, conhece duas motivações. A motivação moral/afetiva, chamada de fraca, e a motivação racional/instrumental, chamada de forte. Embora coexistam no eleitor, em geral essas motivações afloram à predominância em momentos diferentes da campanha. A primeira motivação é chamada de fraca porque se dá a conhecer na fase da campanha em que os eleitores ainda não estão voltados para a eleição. É um período em que o eleitor experimenta como extemporânea a solicitação de opinião acerca do tema, ocupado que está com as lides cotidianas. Provocado, ele até fala do assunto, mas o faz a partir de repertório muito pessoal, imediato, mobilizado à força, que ainda não recebeu os influxos das trocas interpares. Por isso mesmo, externa suas preferências com base em valores que são pronta, fácil e epidermicamente mobilizáveis, mormente quando há escassa memória acerca das “realizações” do candidato.

A segunda motivação, a racional/intrumental, é chamada de forte porque resulta da formação coletiva da preferência. Ela entra em cena depois que a campanha seguiu seu curso e já se presta ao escrutínio coletivo. Desvinculada da vida cotidiana pela via da especialização profissional, a política só ocupa o eleitor médio quando ele sente que está muito próximo do dia em que terá de fazer a sua escolha. É quando a campanha vira assunto público e as pessoas se vêem exigidas a terem opinião. Dão-se as conversas no trabalho, nos ônibus, em casa, na escola e tem-se a formação compartilhada da preferência. Nessa fase, vêm à tona as carências e necessidades materiais, faz-se o cálculo do que está em jogo e, então, a motivação para o voto muda e, no embalo dela, muitas vezes muda também a preferência, que passa de um para outro candidato, segundo ele tenha propostas claras e persuasivas.

Em suma (4) – Diante da conclusão de um projeto bem sucedido, não obstante criticável em suas limitações, é necessário contrapor um modelo novo em que os elementos de descontinuidade possam aparecer como plausíveis e rentáveis. O melhor é que eles surjam nas áreas mais críticas: saúde, violência/segurança, educação, produção e energia poluente (termoelétricas).

VI. O SOBREVALORIZADO PARÂMETRO OBAMA

As eleições presidenciais americanas de 2008 se deram no contexto originado do 11 de setembro de 2001, dia a partir do qual os EUA vieram dando cabeçadas. A pretexto de dar resposta à ferida inesperada, foram arrastados a uma guerra cruenta e prolongada, cuja aprovação foi obtida com base numa mentira presidencial internacionalmente divulgada e desmascarada: as armas de destruição em massa do Iraque. Seguiu-se um período em que o antiamericanismo conheceu um alastramento e intensidade nunca imaginados (que dirá vividos), sentimento hostil que se somou à crise econômico-financeira, carga penosa que jogou no chão a auto-imagem do americano médio que, até então, se sentira poderoso e inexpugnável. O presidente George W. Bush passou a simbolizar esse fracasso e não foi necessário muito trabalho para transformá-lo no espantalho a ser batido: mentiroso, belicista e incompetente.

Obama pôde dialogar com o conservadorismo norte americano porque soube mobilizar um passado mítico em prol de um renascimento, não de uma transformação. Obama falou do futuro promissor tendo o cuidado de avisar que ele se distanciaria do presente ruim, mas para se assemelhar a um reconfortante passado idealizado. A invocação de valores morais e a mobilização dos afetos vieram assentados na dimensão material e palpável da crise, permitindo a Obama apresentar-se como líder de um projeto de mudança que foi habilmente encenado como um resgate de valores recorrentemente sobrevalorizados: o eldorado perdido que pode ser recuperado. Uma conservadora volta ao passado como credencial para um seguir adiante liberal. Essa equação formidável só foi possível porque os norte-americanos há muito se habituaram a se sentirem superiores, vivenciaram um longo experimento histórico que lhes “confirmou” essa superioridade e estavam em uma crise de auto-imagem sem precedentes em razão de reveses internos e externos. A essas circunstâncias se somaram as qualidades pessoais de um homem cuja experiência de vida pôde ser posta em harmonia com a propaganda  de que os EUA são a terra das oportunidades para os diferentes: Obama apareceu como a própria confirmação da possibilidade de vigência do passado venturoso que momentâneos dias maus encobriram.

Para os propósitos destas linhas, não chegam a fazer falta os conhecimentos de que o autor não dispõe acerca da realidade norte-americana. O quadro abaixo esquematiza a situação que se pretende sintetizar, no singelo objetivo de relativizar a importância da campanha eleitoral do fenômeno político Obama para o planejamento da empreitada eleitoral de Marina.

[ENTRA AQUI A FIGURA 1]

O quadro acima deixa claro que a situação dos EUA era propícia a uma proposta de mudança centrada na propaganda de valores e afetos. Obama pôde falar tanto em valores porque havia base material para o cálculo das perdas de uma classe média empobrecida. Em outras palavras, se as chamadas materialidades e institucionalidades fossem positivas, não haveria nem lugar para um apelo ao passado redentor, nem toda aquela disposição para ouvir a pregação de valores.

Ora, no Brasil em que transcorre o período eleitoral, o quadro é bem outro. Não só Lula não é visto como Bush, mas não o é não por força de algum sortilégio do marketing, senão porque, de fato, está associado a um efetivo, embora contraditório, renascimento do país.
Tendo em mente o que se acaba de discutir, completemos o quadro acima incluindo uma coluna para a realidade do Brasil, fazendo a comparação.

[ENTRA AQUI A FIGURA 2]

Assim classificadas e arrumadas, as realidades dos dois países não deixam muita margem a dúvidas sobre a impertinência de uma campanha centrada em valores quando se está, como nós, diante de uma sociedade cujos pobres alegremente imaginam mover-se na direção da classe média. Observe-se que as três células verdes da coluna dos EUA se harmonizam perfeitamente contra as mazelas das suas células vermelhas. No caso brasileiro, as qualidades da candidata terão de encontrar tradução direta no combate aos problemas do plano material tendo que rediscutir o que se reivindica como êxito e, ainda por cima, sem poder invocar um passado sagrado que houvesse sido profanado. Muito pelo contrário, o nosso passado é mais do que nunca repudiado, mormente ali onde se identifica que ele perdura, agarrado às instituições políticas (o que não deixa de ser um gancho).

Em suma (5) – A inspiradora campanha de Obama não deve ser para nós mais do que um exemplo de técnicas de arregimentação e persuasão. Seria um desastre se tentássemos realizar uma campanha centrada em valores de ordem moral e/ou afetiva. Nosso desafio é fazer da chancela moral de que desfruta a candidata uma janela aberta nas consciências para a aceitação das nossas propostas, que devem estar voltadas à solução dos problemas materiais da população.