Carlos Novaes, 17 de julho de 2016
Quem já leu outros posts deste blog, como os da série iniciada aqui, sabe que há anos venho explorando as conexões entre nossa desigualdade e nossa crise de representação política, problemas que, a meu ver, estão na base de nossas crises econômicas e políticas. A política brasileira é vítima de um longo cativeiro, sequestrada que foi pelas rotinas impostas por aqueles que fizeram da representação uma ferramenta para alcançar seus próprios interesses, que alimentam a manutenção da desigualdade e se opõem aos interesses da maioria da população, que sofre as consequências dela. Para sair disso precisamos de uma outra representação política, pois só ela nos permitiria adotar procedimentos de combate eficaz à desigualdade, o que destravaria o desenvolvimento pleno do país – o problema principal, portanto, é a política, e qualquer mudança real só ocorrerá contra a política profissional, cujas mazelas centrais a Lava Jato e seus desdobramentos puseram a nu nesses quase vinte meses de crise e “crise”, período no qual a sociedade brasileira teve oportunidade de iniciar um processo de transformação.
Infelizmente, porém, deu-se o mais provável, e a eleição de Rodrigo Maia (DEM, ex-PFL, saído da ARENA) para a presidência da Câmara dos Deputados indica que os políticos profissionais se reorganizaram em campo e, assim, fechou-se a janela de oportunidades à transformação política que havia sido aberta pela Lava Jato, cujo braço republicano ainda irá espernear por algum tempo, mas sem provocar qualquer novo estrago significativo no bloco de poder que se refundiu. Em outras palavras, a maioria facciosa que elegeu Maia, hegemonizada pelas facções que tem projeto de poder (para fazer dinheiro), derrotou o ajuntamento não menos faccioso de pequenos partidos que tem apenas projeto eleitoral (para fazer dinheiro), que se havia fortalecido de maneira extravagante no curso da desorientação provocada pela Lava Jato. Acompanhando o curso da liderança funesta de Eduardo Cunha, o chamado Centrão viveu a ascensão e a queda de sua agenda de miudezas, que foi devolvida aos bastidores da dinâmica parlamentar tão logo se completou o rearranjo no bloco de poder, que dentro em breve deterá coordenação suficiente para — apoiado nesse “parlamentarismo de ocasião” do “é dando que se recebe” — voltar a distribuir vantagens que contentarão esses agrupamentos minoritários momentaneamente rebelados e permitirão alcançar a governabilidade deles.
Essa refundição do bloco de poder foi possível porque ao impedirem que Lula assumisse a Casa Civil sob Dilma seus adversários eleitorais mantiveram o propósito de remover a ele e seu PT do protagonismo, mas sem perder de vista que não podiam abrir mão de seus préstimos para a reconstrução, em outros termos, e sob novo protagonismo, do que a Lava Jato havia destruído da ordem política que beneficia a eles todos. O curso das negociações políticas que se deram no teatro de operações da Lava Jato levou Lula e seu PT a acabarem por aceitar o impeachment de Dilma e, assim, puderam voltar por inteiro à condição de força subalterna, vale dizer, de oposição, no bloco de poder em que desde a eleição de 2002 figuravam como protagonistas. Dessa perspectiva, o apoio de Lula à candidatura de Maia, que foi decisivo para a vitória contra Cunha, não foi nem um erro de cálculo da “esquerda”, nem mais um episódio na derrocada do ex-presidente. Não foi um erro de cálculo porque Lula e os seus compreenderam que o que estava em questão já não era o ex-mandato de Dilma, mas a reconfiguração do bloco de poder que permite a todos que o jogo da política profissional seja jogado. Não foi mais um episódio da derrocada de Lula porque essa vitória conjunta demarca o início da sua recuperação, pelo menos no âmbito das relações internas do bloco de poder dominante desafiado pela Lava Jato a se reinventar.
Depois da investidura de Temer, a eleição de Maia é mais um passo no refreamento da Lava Jato, processo que se concluirá em breve com a cassação do mandato de Eduardo Cunha, pois a morte política do ogre do Rio (cuja obstinação obtusa acabou por se revelar conveniente) dará pegada à narrativa de que o jogo se concluiu com êxito, o que por certo contentará a grande maioria da nossa sociedade inconsequente, que não vai realizar tudo isso como mais uma derrota sua. Em outras palavras, a investidura de Temer foi uma derrota de Lula, pois o afastou do protagonismo nessa fase do jogo, mas os passos seguintes seguem a mesma lógica política que Lula teria dado ao sistema se tivesse chegado a assumir a Casa Civil – como apontei aqui, a diferença está em que na variante concluída prevaleceu o cálculo dos que jogaram para unilateralizar a Lava Jato contra o lulopetismo e em favor de seu próprio projeto de poder (p-MDB, PSDB e satélites).
Finalmente, corresponde a uma lógica profunda, nada tendo de casual, que a neutralização do potencial emancipatório da Lava Jato seja sacramentada através da eleição de um novo presidente para a Câmara dos Deputados, e que este presidente seja do antigo PFL. Afinal, se o presidente deposto da Câmara foi justamente aquele que buscou tirar da balbúrdia instalada pela Lava Jato todo o seu potencial desestabilizador contra o mandato de Dilma, que era hostil aos seus interesses miúdos; ao novo presidente dela cabe precisamente o contrário, dar estabilidade parlamentar ao arranjo político alcançado com a entronização golpista de Temer na presidência, um aliado seu. Que Rodrigo Maia seja do antigo PFL não é casual porque estamos em plena onda de interinidades pela falência dos dois protagonistas do pacto do Real, o PT e o PSDB, circunstância que traz para o proscênio justamente as forças auxiliares da ditadura (p-MDB e PFL) que ambos mantiveram vivas para poderem se engalfinhar improdutivamente um contra o outro, engalfinhamento que os levou à condição periférica em que estão, e condenou o país ao malogro das esperanças falsas que eles haviam suscitado na consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático. A sociedade brasileira está de volta à situação política de luta contra a desigualdade do final da ditadura paisano-militar, tendo que se contentar com essa nova partição de poder entre p-MDB e ARENA, só que agora sem contar com uma força emancipatória como a que o PT significou naquela altura. O país regrediu e a luta será duríssima para quem perseverar em combate contra a desigualdade.
Caro Professor Novaes:
Por que se referir ao PMDB como p-MDB, só por curiosidade?
Grato.
Leia a série de quatro artigos DESIGUALDADE, MUDANCISMO E VOTO e você entenderá.