Carlos Novaes, 22 de julho de 2017
Diante da marcha da crise, a sensação é a de que todas as análises já foram feitas; todos os insultos já foram lançados; todas as conclusões já foram tiradas; todas as indignações já foram expressas; tudo o que era inaceitável já foi absorvido e, assim, exaustos, os brasileiros esperam – pelo quê?! Enquanto esperamos, os políticos profissionais e seus facciosos aliados em outros poderes recebem nossa inércia como franquia para a ação deles e continuam em marcha batida para levar tudo ao nada, como alguém que leva o carro ao lava-jato e, sem fazer caso, o tira de lá tão emporcalhado quanto entrou:
– Depois de abandonar a trincheira do Paraná, e de apresentar rotina alternativa à da PGR sobre delações (no fito de torná-las menos abrangentes e mais difíceis de obter), a Polícia Federal acaba de declarar que Jucá, aquele que mobilizava gente e recursos para “parar a sangria”, não cometeu “obstrução de justiça” (segundo esse entendimento faccioso da PF, para caracterizar obstrução ele teria de ter conseguido obstruir…);
– No Supremo Tribunal Federal-STF (judicação), fala-se em rever a validade legal de gravações realizadas por participantes da conversa gravada – mais uma tentativa de obstruir a apuração e invalidar provas já obtidas de casos de corrupção, a começar pelo de Temer. O “argumento” é o de que o STF tem, agora, composição diferente da de 2009, quando seus juízes decidiram validar essas gravações. Ora, um entendimento desses é mais pernicioso do que “ouvir a voz rouca das ruas”, e faz o STF passar de Corte Suprema a Corte Arbitrária dos indivíduos que a compõem; afinal, a se tornar aceitável que a cada composição se reveja a jurisprudência, a memória constitucional do país ficará precisamente ao sabor do humor das facções a que seus membros pertencem, cuja lógica daninha venho analisando neste blog!
– No Congresso (representação) não há voz significativa na denúncia dessas manobras, nem no apoio efetivo à facção republicana da Lava Jato. Pelo contrário, ali falam em anistia aos condenados por corrupção; engendram subterfúgios para livrar políticos da cadeia; tentam desviar a ira popular inventando abuso de autoridade por parte do MP; e, além de sustentarem Temer em troca de favores escandalosamente públicos, não param de legislar contra o povo e em favor dos muito ricos, como dão provas as reformas recém-aprovadas; a obstrução ao fim das isenções fiscais às empresas; a liberação de áreas antes protegidas para mineração, extração de madeira e agronegócios; a liberação de agrotóxicos danosos à saúde e muito mais.
– Esse mesmo Congresso discute a adoção do parlamentarismo, como se o povo não tivesse recusado esse modelo em dois plebiscitos. Se não der para aprovar a manobra, farão outra: tramam conduzir à presidência da República o presidente da Câmara, essa mesma Câmara que está a tomar as medidas sabidas, que está a exaurir recursos para manter o mesmo Temer que eles planejam deixar o STF tirar, depois de ele os ter atendido, claro. Além disso, com apoio do Mercado que defende a tal Reforma Política, pretendem obter dinheiro do tesouro para campanhas eleitorais e a adoção do voto em lista, autênticas reformas contra a mudança.
– A Polícia Militar (dispositivo que nos foi legado pela ditadura) está a cada dia mais submetida ao exercício faccioso dos poderes institucionais que lhe foram conferidos: há grande assimetria de conduta, com batalhões apresentando casos de abusos muito maiores do que unidades similares e, até, inversão de hierarquias. Tudo se passa como se não houvesse a exigência de obedecer a uma uniformidade de conduta, numa balbúrdia de facções que é a própria subversão da ideia de disciplina que, não obstante, eles inapropriadamente pretendem obter da sociedade.
– No Executivo (gestão), insiste-se em condenar o acordo da PGR com os irmãos Batista, como se os benefícios dados à dupla tivessem sido em vão, como se eles não tivessem oferecido o mapa da corrupção dos políticos profissionais no país, como se o próprio chefe do poder Executivo, e vários ministros seus, não tivessem sido flagrados em atividade explícita de corrupção através das confissões deles. Enquanto isso, aumentam impostos sobre nada menos que o consumo de combustíveis, e, de quebra, dão força a esse pato enganador, que só grasna em favor dos ricos.
– Diante de tudo isso, prospera no Congresso o projeto de lei para declarar ilegal o chamado Funk-proibidão, estilo musical pavoroso, mas muito revelador: exaustos de tanto exercício faccioso dos poderes institucionais, setores da juventude se voltam contra a desordem estabelecida propondo uma desordem aberta, que expõe ao ridículo todo esse pomposo apelo à ordem oficial que infesta a mídia convencional com defesas do Estado democrático de direito, que não há. O Funk-proibidão é a proclamação popular da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário – por isso mesmo, ele, em sua irracionalidade, faz evidente o que há de irracional em pretender que este Estado seja reconhecido pela sociedade como seu. É a isso que nos levaram o PT e o PSDB ao avacalharem a si mesmos, ao fraudarem as esperanças dos que neles confiaram, ao darem as costas ao país e se fecharem na defesa de seus criminosos e, assim, legitimarem aquilo que o passante desavisado sempre dissera: político é tudo igual. Sim, na prática, os políticos profissionais são todos iguais, pois as exceções de nada servem.
– Nas redes sociais, nas tripas de comentários a artigos e colunas, que se repetem em indignação e análise, o que não falta é boçalidade como resposta a tudo isso. Essa baixeza escancarada é outra maneira de se apresentar a crise de legitimação: muito se fala, mas não há vozes reconhecíveis, não há parâmetro respeitável, não há solo comum de conversa – o que há é uma pradaria aberta ao insulto, que sempre teve mão única e é uma forma do não dizer. As reações estapafúrdias aos artigos não resultam propriamente de um não saber ler, nosso velho conhecido analfabetismo funcional. Não. É que já não se lê. O que o outro escreve não tem legitimidade, não merece con-si-de-ra-ção.
A situação política do Brasil está além da Dinamarca de Hamlet: nossa podridão está a se fazer indizível – em outras palavras, como a ação social não se dá, estamos a passar da anomia à afasia, o que é meio caminho para o nada, que não é senão o indizível do dilema ser ou não ser. Como isso vai acabar é um mistério, mas já não há sinal algum na direção do que seria bom.