Carlos Novaes, 19 de outubro de 2018
[com acréscimo entre […] em 20/10]
Nessa reta final da campanha, o desafio é virar cerca de 10% do eleitorado: tirá-los de Bolsonaro em favor de Haddad. É muito difícil, mas não é impossível.
Considerando que Bolsonaro já é beeem conhecido do eleitorado, não há razão para supor que o voto seja dado a ele por desconhecimento. Então, não adianta ficar esbravejando contra ele, repetindo o que todos já sabem. É necessário identificar algo mais sensível, que leve o eleitor a, realmente, pensar.
A principal razão de voto nessa eleição é a revolta contra o sistema.
O sistema é o Estado de direito que nos foi legado pelo Estado ditatorial. Esse Estado de Direito Autoritário vem há trinta anos resistindo contra a democracia vivida em sociedade e, nesta eleição, os eleitores estão fazendo uso das franquias democráticas para, saibam eles ou não disso, expressar sua revolta contra o entulho autoritário responsável pela bandidagem estatal, contra a corrupção, os abusos e os privilégios que beneficiam políticos profissionais e hierarcas do serviço público, agentes do exercício faccioso dos poderes institucionais.
O único candidato que se colocou frontalmente contra o sistema foi Bolsonaro. Entretanto, ele está contra o sistema por razões muito diferentes daquelas que orientam a maioria do eleitorado. Na verdade, enquanto o eleitorado quer um outro Estado de direito, compatível com a democracia; Bolsonaro favorece a volta de um Estado ditatorial, que acaba com a democracia. Mas esse “detalhe” não ficou claro porque todos os outros principais candidatos se apresentaram como defensores deste Estado de Direito Autoritário contra o qual a maioria do eleitorado se revoltou, o que abriu uma avenida para Bolsonaro.
[Em outras palavras: a maioria dos eleitores de Bolsonaro é democrata, mas como ela está entusiasmada para votar contra esse Estado de direito (o sistema); como identificou que o PT é parte do sistema; como o cânone dos bem-pensantes, desconsiderando que pode existir um Estado de Direito Autoritário, insiste em fundir, erradamente, Estado de direito e democracia; como nosso cérebro detesta ver a si mesmo em contradição; essa maioria democrata, ajudada por alguns pensadores e analistas, providenciou para si mesma a narrativa auto-justificadora de que Bolsonaro não ameaça a democracia, fazendo pouco caso das evidências desses trinta anos, como se o ex-capitão tivesse se transformado em outra pessoa e/ou como se nossa democracia tivesse sido consolidada em instituições democráticas sólidas, como se já não houvesse arbítrio bastante abrigado nesse Estado de Direito Autoritário.]
Dito isso, entendo que números das pesquisas mais recentes do DataFolha podem nos ajudar a encontrar os 10% que seriam suscetíveis a uma argumentação pela troca de candidato nessa reta final:
- 69% do eleitorado do país preferem a democracia. Ou seja, a imensa maioria está em revolta contra o sistema (armado no Estado de direito), mas quer a democracia (vivida na sociedade).
- 61% entendem que não se pode proibir partidos políticos. Ao contrário do que pretende Bolsonaro, que defende banir partidos de esquerda;
- 80% desaprovam o uso da tortura. Ao contrário de Bolsonaro, notório defensor da tortura.
- 51% acham que o legado deixado pela ditadura anterior é mais negativo do que positivo, e 32% acham esse legado mais positivo do que negativo. Mais uma vez, a maioria é contra a opinião de Bolsonaro, que vive a louvar o período da ditadura.
- 50% sentem que há no ar a ameaça de uma nova ditadura no país. 42% descartam essa possibilidade e 8% não quiseram ou não souberam responder. Ou seja, os rumos da campanha eleitoral colocaram em “alerta democrático” metade do eleitorado.
- 65% dos eleitores de Bolsonaro descartam a ameaça de uma nova ditadura no Brasil (o grosso dos auto-justificadores está aqui). Quer dizer: há um percentual de 35% dos eleitores de Bolsonaro que ou divisam uma ditadura ou não souberam responder. Se assumirmos os mesmos 8% para quem não quis ou não soube responder, restam 27% dos eleitores de Bolsonaro sentindo cheiro de ditadura no ar.
Mesmo não dispondo-se de mais dados, não deve estar muito longe da verdade quem considerar que há uns 10% do eleitorado total que votam Bolsonaro por serem anti-sistema, mas preferem a democracia, são contra a tortura, acham negativo o legado da ditadura e entendem como ruim a possibilidade de uma nova ditadura, que pressentem.
Nosso papel é ajudar esses 10% a juntarem lé com cré, ou seja, entenderem que uma vitória de Bolsonaro significa uma ameaça à democracia porque favorece a substituição do Estado de Direito Autoritário não por um Estado de Direito Democrático, mas por um Estado ditatorial, ou, no mínimo, ainda mais autoritário do que o atual.
Nesses 10%, mesmo os que acreditem que Bolsonaro abandonou as posições antidemocráticas que sustentou por três décadas podem ser levados a entender que uma vitória dele será uma ameaça à democracia pelo que sua candidatura já atiçou de forças antidemocráticas; forças que ele não poderia controlar mesmo que quisesse, seja no Estado, seja na sociedade.
No Estado, Bolsonaro trouxe de volta à cena política o que há de pior no dispositivo militar (FFAA e PMs) herdado da ditadura, assim como está a se apoiar no rebotalho do dispositivo paisano que ela nos legou: as bancadas ultraconservadoras do Congresso. Nenhum dos dois dispositivos tem compromisso com a luta anti-sistema que anima o eleitor; pelo contrário: eles são os segmentos mais apegados ao que há de vantajoso para si no sistema autoritário, e não hesitariam em sacrificar as franquias democráticas para conservarem suas vantagens.
Na sociedade, Bolsonaro deu vida a segmentos conservadores que já começam a se assanhar em grupos paramilitares, dispostos a agir, na cidade e no campo, contra o exercício das franquias democráticas de que ainda desfrutamos — essas franquias estão sendo usadas para gerar nas ruas o clima violento que favorece a desenvoltura antidemocrática dessas facções. Essa perversão está sendo possível precisamente porque o sistema (Estado de direito) faz corpo mole diante dessas ilegalidades contra a democracia contra a qual ele próprio sempre atuou — nessas ilegalidades se somam condutas facciosas vindas tanto da sociedade quanto do Estado (não é à toa que as milícias paisanas são compostas também por ex-policiais).