UM PLEBISCITO FUNESTO
Carlos Novaes, 02 de outubro de 2018
Ao contrário das eleições presidenciais anteriores, o emocionalismo que marca o início de toda eleição não só não está cedendo lugar à razão, como parece ganhar terreno contra ela. Por que?
Um motivo seria a conexão que tenho explorado em posts recentes, especialmente nesta série de que este é o terceiro: a revolta contra o sistema, sem a compreensão de que ela deveria se juntar com a revolta contra a desigualdade, leva a uma polarização entre as duas e, com isso, se instala um nós contra eles típico de programas de auditório, onde vale tudo que o animador/ditador deixar. Como a disputa é justamente para escolher o animador/ditador, a emoção não cede.
Mas penduremos os dados de outro modo no varal do juízo: e se parte desse emocionalismo estiver orientado pela razão, e se parte dessa emoção for apenas a forma entusiasmada da razão?
Tenho insistido em apontar que estamos cara-a-cara com uma crise de legitimação do Estado de direito no Brasil. E o Estado de direito que está em crise é o Estado de Direito Autoritário saído das lutas contra o Estado ditatorial instalado com o golpe paisano-militar de 1964. Essa circunstância levou a imensa maioria dos autointitulados democratas, bem como a da autointitulada esquerda, a cerrarem fileiras na defesa desse Estado, pois ele é a tradução de tudo o que eles fizeram nesses 30 anos — o Estado de direito em crise de legitimação é obra deles e eles são muito afeiçoados ao resultado das suas escolhas.
Mas se esse Estado de direito está em crise de legitimação, defende-lo é um caminho para a derrota, pois não há como sustentar uma ilegitimidade se ela já tiver sido identificada por aqueles que a sofrem. E é aqui que eu começo a rever aspecto central da minha análise: há uma parte da sociedade que já identificou a ilegitimidade do Estado e, por isso, mais e mais se volta para a única candidatura presidencial que propõe a derrubada desse Estado de direito ilegítimo: Bolsonaro — a catástrofe é que ele propõe um Estado ditatorial.
Dessa perspectiva, todas as outras candidaturas estão do lado errado, pois todas elas defendem o Estado de direito em crise de legitimação:
- Haddad não faz autocrítica; não trata do sistema político corrupto, insistindo em persuadir os revoltados contra esse Estado de direito que a solução é uma volta ao passado (“feliz”!!) que construiu a ilegitimidade!
- Alckmin é a face siamesa de Haddad, entre outras coisas porque atualiza a polarização fajuta entre PSDB e PT, uma polarização fajuta que está no cerne da crise de legitimação do Estado de direito, como já expliquei em vários posts anteriores.
- Ciro faz uma campanha em que através de palavões e ofensas se apresenta como o candidato da pacificação sob esse Estado de direito em crise de legitimação. Ciro é o bipolar da polarização propondo a pacificação! (como diria o macaco Simão, a atuação dele é psicodélica).
- Marina, depois de uma campanha reacionária em 2014, de apoiar tudo que deu errado nos anos seguintes (Aécio e o golpe do impeachment), e de ficar em silêncio ante situações de gravidade variada (de desastre ambiental a falas de general), se agarrou, claro, à defesa desse Estado de direito em crise de legitimação, endossando toda decisão emanada da Lava-Jato e das “instituições democráticas”, por mais arbitrárias que fossem — sem perceber, Marina passou da irrelevância para a condição de detalhe em meio àquilo que precisa ser vencido.
Como nenhum deles ofereceu uma alternativa transformadora, ou seja, uma alternativa que recusando esse Estado de Direito Autoritário propusesse um Estado de Direito Democrático; como todos eles entendem que o racional é defender um Estado de direito que aos olhos de muitos é indefensável, Bolsonaro está a avançar sozinho na avenida que se abriu em meio à maioria enraivecida: é o único candidato que se orienta pela crise de legitimação do Estado de direito, propondo outro Estado, totalmente diferente do atual. Dessa perspectiva, seus eleitores fizeram da emoção o papel de embrulho de um pacote racional: livrar o país de um Estado de direito que não presta.
Mas como o Estado de direito do Brasil não está em crise em razão das franquias democráticas que embutiu, a saída Bolsonaro não presta — se não se quiser olhar para a trajetória democrática da sociedade nesses 30 anos, que ao menos olhe-se para a apoteose democrática dessa campanha eleitoral, onde contingentes imensos vêm ganhando as ruas ainda sem nenhum incidente grave ( a possibilidade de ocorrerem agressões está inscrita não na democracia, mas no fato de que parte dos manifestantes ganha as ruas para exigir um Estado em que ninguém mais possa sair a elas…).
O Estado de direito do Brasil está em crise em razão das injustiças, dos vícios e das arbitrariedades que trouxe da ditadura, mas isso nenhum dos candidatos que defendem a “união nacional” pode reconhecer, pois foram eles que construíram essa engenhoca.
A desgraça dos alinhamentos eleitorais que essa situação produziu é essa polarização fajuta na forma de um plebiscito. Mas não um plebiscito entre Lula e o anti-Lula (Bolsonaro), como quer o marqueteiro dos marqueteiros, mas algo muito pior: um plebiscito entre o status quo (as facções estatais em guerra pela hegemonia no Estado de Direito Autoritário) e a regressão autoritária antissistema, na forma de um Estado ditatorial ou, no mínimo, ainda mais arbitrário. Dessa perspectiva, as manifestações do EleNão podem ter reforçado Bolsonaro, pois colocaram todos os que a ele se opõem num saco só, como defensores desse Estado ilegítimo — e na defensiva, o que é péssimo para o moral em situações conflagradas.