Carlos Novaes, 06 de outubro de 2018
Não obstante a vida política no Brasil transcorra sob a vigência de franquias próprias da democracia, tais como o direito de voto livre e universal e as liberdades de imprensa, opinião, religião, reunião, manifestação, organização e associação, nosso Estado de direito — embora obedeça aquelas franquias, e chegue a atuar em conexão com elas em muitos aspectos –, está orientado, no direito e/ou na prática, para conferir prerrogativas, favorecer privilégios e permitir abusos de autoridade que estão em desacordo frontal com a máxima de que “todos são iguais perante a lei”. Essa máxima resume a contrapartida propriamente estatal ao exercício da vontade popular livre para escolher como opinar, como se associar, como se manifestar e como ser governada.
Se a contrapartida estatal à vontade popular não faz uma tradução cabal do sentido das franquias democráticas para a ordem institucional, não há democracia consolidada e o Estado de direito resultante não é um Estado democrático de direito. Entendo que há no Brasil um Estado de Direito Autoritário–EDA, marcado por uma assimetria que leva, no curso do tempo, a um contraste crescente entre, de um lado, a inclinação dos hierarcas do Estado para defenderem e estenderem seus privilégios e prerrogativas, bem como perseverar nos (e, até, intensificar os) abusos de autoridade; e, de outro lado, a tendência não menos crescente da maioria da sociedade para identificar como danoso contra si o exercício desses privilégios, prerrogativas e abusos, conjunto de práticas que reuni sob o nome de exercício faccioso dos poderes institucionais. Esse “faccioso” tem aqui dois sentidos:
- faccioso porque separa o que não deveria ser separado: os interesses de quem ocupa os postos de Estado e os interesses da maioria da sociedade;
- faccioso porque se dá, no corpo do Estado, segundo uma dinâmica ela mesma feita de arranjos entre facções estatais, ou seja, grupos de interesse que, uns contra os outros, se fazem e desfazem ao sabor das disputas em torno do que lhes parece vantajoso.
Esse divórcio atual entre o Estado e a maioria da sociedade decorre fundamentalmente da desigualdade por duas razões principais:
- primeiro, porque o Estado tem sido desde sempre no Brasil um instrumento dos ricos para carrear para si o máximo da riqueza produzida, deixando ao restante da sociedade só o necessário para que o país perdure (é esse o resultado de um Estado cuja origem primordial foi organizar a escravidão como negócio para outros negócios);
- segundo, porque uma máquina estatal assim voltada à manutenção (quando não ao fomento) da desigualdade forma ou recruta os seus funcionários em troca de remuneração e distinção ofertadas sempre acima da média alcançada pelo cidadão na vida privada, o que só pode levar ao descolamento reiterado entre os interesses desses dois segmentos – no Brasil, entrar para o serviço público é, e sempre foi, uma maneira de contornar ou compensar o que há de mais agudo na desigualdade (é disso que vivem os cursinhos preparatórios para os concursos aos cobiçados empregos públicos).
Em outras palavras, na contraposição entre o Estado e a sociedade no Brasil, o Estado é instrumento tanto dos interesses dos ricos quanto do interesse dos seus funcionários estáveis ou de confiança, segundo uma escala de rendimentos, privilégios, prerrogativas e poderes que crescem segundo o lugar ocupado seja na pirâmide da riqueza, seja na hierarquia estatal. Os muito ricos no chamado Mercado se articulam com os muito poderosos no Estado seja para se assegurarem da permanência da dominação, seja para garantirem grandes negócios.
Como os muito poderosos do Estado são, em sua maior parte, escolhidos pelo voto popular, as facções estatais voltadas aos cargos cujo provimento se dá pelo voto popular têm nas eleições seu teatro de disputas; como eleições custam dinheiro, elas buscam o apoio dos ricos e, assim, a roda gira sem sair do lugar – foi por isso que Lula se gabou, com toda justiça, de que em seus governos os ricos ganharam dinheiro como nunca antes.
Num arranjo desses, os partidos são fachadas para facções de interesse e podem se aliar das maneiras mais variadas a cada eleição e, especialmente, no intervalo entre elas, pois o que importa é reunir poder para fazer dinheiro. Essas facções partidárias não se limitam aos partidos em si, mas têm conexões em toda a burocracia estatal, reunindo em seu jogo incessante gente pertencente a todos os três poderes do Estado de Direito Autoritário-EDA.
Sendo uma disputa por poder para fazer dinheiro, as desavenças são reais e podem se tornar acerbas, levando a impasses de gerenciamento. Em seu limite máximo, esses impasses têm sido “resolvidos” via impeachment, trauma institucional motivado não pelos interesses da maioria da sociedade, mas pelos interesses das facções estatais. As polarizações políticas que levaram aos dois impeachments recentes, embora reais no jogo entre facções, são totalmente fajutas no que diz respeito aos interesses da maioria da sociedade que, não obstante, tem se deixado levar e aderido a alinhamentos totalmente contraproducentes, como veio sendo o caso da disputa entre PSDB e PT.
A falência do pacto do Real, que estruturava o joguinho entre PSDB e PT, levou à ruína todo o arranjo porque já não há rota de fuga que permita combinar uma desigualdade tão grande com as franquias democráticas, pois os descontentes com o arranjo já não são apenas os muito pobres, contra os quais sempre se mobilizou o abuso de autoridade – isso ficou claro com a reação da opinião pública quando Alckmin jogou sua polícia contra os manifestantes de junho de 2013. A partir de 2013 veio ficando mais e mais claro o divórcio entre o Estado de Direito Autoritário-EDA (que define tarifas e emprega a força policial) e o uso das franquias democráticas pela sociedade.
A crise brasileira atual é a exibição plena do esgarçamento máximo da relação entre o EDA e a maioria da sociedade: o EDA foi desnudado em toda a sua podridão, se conflagrou numa guerra de facções estatais que se segmentou em todos os três poderes, e entrou numa crise de legitimação que se tornou visível ao observador atento porque a sociedade passou a expressar, via exercício das franquias democráticas, toda a sua revolta, que aparece na forma de duas urgências, uma urgência social e uma urgência por ordem.
Inteiramente integrados a esse EDA, seja porque o forjaram, seja porque nasceram dele, os partidos políticos não estão em condições de apresentar uma alternativa transformadora que integre as duas urgências que motivam a revolta da maioria da sociedade contra esse mesmo EDA. Vivendo a desorientação correspondente ao fato de ainda preferir alguma dessas forças políticas obsoletas (que, por isso mesmo, não sobreviverão à eleição), a maioria da sociedade não tem enxergado essas urgências como articuladas entre si e, muito menos, como decorrências da desigualdade. Os mais extremados entre os que têm preferência pela ordem propagam o preconceito de que a ordem deve ser posta contra o social, visto como demanda de vagabundo; em contrapartida, os mais extremados dentre os que demandam políticas sociais difundem o estigma de que quem pede ordem é fascista.
Dessa polarização fajuta se beneficiam Haddad e Bolsonaro, precisamente porque se nenhum dos dois pode integrar as duas urgências, cada um deles pode se apresentar como o campeão fajuto de uma das pernas do problema nacional: Haddad está cercado de ladrões e corporativistas, mas exibe políticas sociais compensatórias; Bolsonaro está cercado de reacionários neo-liberais, mas exibe o fervor pela ordem oferecida pelos cemitérios.
Como nada é tão ruim que não possa piorar, os autointitulados defensores da temperança, os centristas, trouxeram para o meio da disputa a ideia de que a crise estaria a colocar em perigo um suposto Estado democrático de direito. Com isso, têm ajudado a separar as duas urgências, pois ora pretendem convencer os que já se revoltaram contra o sistema de que esse EDA presta, ora censuram como radicais os distributivistas que, não obstante os bons sentimentos, insistem em empurrar uma vanguarda que há muito arriou suas bandeiras.
Sem saída transformadora e a menos de 24 horas de conhecermos o resultado de uma eleição presidencial sem esperança, só nos resta tentar evitar o pior, nos termos do artigo imediatamente anterior.