Carlos Novaes, 05 de junho de 2020
A reunião da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a pandemia do novo coronavírus colocou a maioria da sociedade brasileira diante de um desafio gigantesco, pois as duas forças que aparentemente se opõem e hegemonizam o debate nacional em meio à turbulência da conjuntura são a “unidade” frentista pela restauração e as facções estatais que sustentam Bolsonaro. Há uma dependência recíproca entre essas duas forças: a “unidade” frentista precisa da suposta ameaça ditatorial de Bolsonaro para poder orientar o impulso democrático da maioria da sociedade para os seus interesses restauradores, de conservação do status quo; Bolsonaro e os seus precisam que seu adversário seja uma frente institucionalista restauradora para poderem continuar a farsa de que são anti-“sistema”. Quem observa a cena com atenção já enxergou que nem o besta é contra o SISTEMA, nem há perigo iminente de realização das pretensões ditatoriais da besta – os dois antagonistas giram no vazio e aliar-se a um dos dois lados é deixar escapar a oportunidade para o principal: a luta contra a desigualdade na perspectiva da construção de um Estado de Direito Democrático.
Celebrei as manifestações espontâneas das torcidas de futebol que saíram às ruas pela democracia porque enxerguei nelas prova de que há na maioria da sociedade brasileira um pendor democrático a ser reanimado para além do interesse restaurador que orienta as manobras frentistas por “unidade” contra o besta. Mas essa prova de vitalidade acabará por se transformar em seu contrário se a ida às ruas se der como resposta a provocações, como está a se desenhar para este próximo domingo. É necessário e urgente que as mesmas lideranças que convocaram as manifestações abram os olhos e voltem atrás, numa manobra tática para poder ir adiante com mais força logo mais. Vejamos porquê:
(i) como a recomendação da ciência para o combate ao novo coronavírus ainda é pelo isolamento social, e como a maioria da sociedade brasileira vê como acertada essa medida sanitária, insistir em manifestações de rua significa, de saída, abrir mão da participação de muitos, exibindo os democratas menos numerosos e aguerridos do que de fato são, apenas para dar resposta epidérmica a provocadores. Sair à rua é dar demonstração de força na hora oportuna; fazê-lo quando se sabe não poder mobilizar a todos, e na hora que interessa aos adversários, é investir na própria fraqueza;
(ii) sair às ruas em número sabidamente menor do que será possível mobilizar mais adiante é cometer um erro tático duplo: primeiro, dar-se-á peso desproporcional entre nós aos vanguardistas e violentos de todo gênero, para quem quanto pior, melhor (sim, leitor, eles existem e vão nos atrapalhar muito ainda), o que facilitará o trabalho da repressão e deixará contrariada a maioria de nós, que queremos um Estado de Direito Democrático; segundo, legitimará o discurso dos oponentes, eles sim os provocadores;
(iii) realizar manifestações de rua sob impulso do fora Bolsonaro! é também cair em provocação. O objetivo da luta democrática no Brasil não é tirar o besta da presidência da República, por mais danoso que ele seja (e é!). Tirar Bolsonaro é colocar o Mourão, que dará maior coesão às forças reacionárias, realinhando sob seu mando facções estatais que hoje se opõem a Bolsonaro e o impedem de reinar. Bolsonaro na presidência pelo voto da maioria já está no preço (amargo e alto, mas já está); Mourão, não. Afunilar a luta democrática no fora Bolsonaro! vai desviar a força da maioria da sociedade para legitimar mais um rearranjo “situação-oposição” em torno de Mourão entre facções estatais que sempre viram umas às outras como “anjos” e “demônios” (PSDBxPTxDEMxMDBxCentrão etc). Ora, o objetivo da luta democrática é construir um sólido começo de luta por um Estado de Direito Democrático, que nos permita deixar para trás essas facções voltadas à conservação do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita;
(iv) romper o isolamento social em plena ascensão da pandemia, além de causar dano à vida, reforça a posição do besta em sua cruzada contra a orientação da ciência para o combate à pandemia;
(v) sair à rua sob a liderança da autointitulada esquerda que está aliada à facção lulopetista na defesa deste Estado de Direito Autoritário é chancelar o oportunismo irresponsável.
Finalmente, um recuo tático com a envergadura aqui proposta encorajará a maioria dos democratas que está em casa, que se sentirá representada nessa atitude e valorizada nessa confiança no seu engajamento futuro. Um recuo assim nos permitirá ganhar as ruas como avalanche quando a hora chegar, pois nos manteremos ativos nas redes sociais, mostrando a cada troca de mensagem e conteúdo que estamos nos preparando para a primeira manifestação pública de uma nova fase de luta contra a desigualdade.