Carlos Novaes, 29 de maio de 2020
[Com acréscimos em Fica o Registro, às 9:00 h e às 14:30 h de 30/05 e + acréscimos às 10:10 h de 31/05]
Em parelha com o alarido em torno do apocalipse e da “união nacional” para evitá-lo, onze de cada dez artigos de “análise” da situação política brasileira publicados na imprensa se ocupam de desqualificar o besta e/ou de esbravejar contra os protagonistas da facção paisano-militar que apoiam a besta em troca de poder para fazer dinheiro. Nessa ladainha estridente há pouca compreensão e, por isso mesmo, tudo se resume a insultos empolados e à espera do que vai resultar da luta entre as facções estatais, como se nada mais restasse à maioria da sociedade do que torcer por um dos “dois lados”.
Olhada com cuidado, a conjuntura atual combina aspectos de duas situações já vividas pela sociedade brasileira: (i) o período final da ditadura paisano-militar e (ii) a fase terminal do governo Dilma. Do final do período ditatorial temos a aliança precária entre facções militares e paisanas querendo conservar poder para fazer dinheiro (na ditadura, militares e ARENA, com segmentos do MDB; agora, militares e Centrão, incluindo segmentos do DEM e do MDB); da fase terminal de Dilma temos a conflagração das facções estatais (disputa interna aberta, o que não havia nem no fim da ditadura nem nos governos Itamar, FHC e Lula), que ao se desenharem e redesenharem de modo transversal aos poderes da República, criaram e criam um alarido de caos, erroneamente chamado de crise institucional, de crise entre poderes, ou ainda de crise da democracia. Enfim, e como não poderia deixar de ser, o pensamento dominante, mesmo o que se presume herdeiro da herança crítica, chama essa auspiciosa convergência de impasses históricos de todos os nomes, menos pelo nome dela: crise de legitimação.
As facções agora em luta são um redesenho piorado das facções de antes, não uma cópia delas. Exemplos: (i) as facções estatais propriamente governamentais são, agora, em torno de Bolsonaro, muito mais daninhas do que o foram sob tucanos ou lulopetistas; (ii) a facção militar hoje no governo é muito mais perniciosa do que no passado, pois está chegando ao poder, não saindo dele depois de um longo desgaste; (iii) as facções estatais que hoje se opõem às facções propriamente governamentais não são as mesmas do período Dilma, nem em seus braços na primeira instância do Judiciário, nem no caso do STF e da PGR, até porque os alinhamentos de hoje levam a que os membros do STF tenham muito menos diálogo com a PGR; (iv) a conduta que pouco se alterou foi a das facções estatais dominantes no Legislativo, uma estabilidade que se deve, em parte, aos fios de continuidade que elas conservam com a experiência de poder obtido por via eleitoral que trazem desde a ditadura paisano-militar – é também por isso que os presidentes das duas casas, Maia e Alcolumbre, ambos do DEM, posam de pacificadores enquanto calculam para onde aderir (e a autointitulada esquerda os festeja como aliados republicanos!!).
Como quer que se dê a dança das facções estatais, o que elas disputam é sempre a primazia para o exercício faccioso dos poderes institucionais do Estado, primazia que se tornou fundamental num país desigual como o Brasil. Uma derivação disso estendeu raízes para a sociedade, valendo citar duas maneiras pelas quais se busca, nela, contornar a desigualdade: (i) a volúpia individual pelo concurso público e, (ii) o fato de que em toda ação coletiva surgem subgrupos de espertalhões ávidos por algum acerto vantajoso para si na relação com o Estado, sempre traindo os objetivos do coletivo. Enfim, no Brasil, sair da sociedade para o Estado corresponde ao que seria para o crédulo a troca do inferno pelo céu: a sociedade, o inferno, é para os outros e o Estado, como abrigo, é para escolhidos, e o Estado como prestador de serviços é para os pobres.
Numa gaiola dessas, como esperar que minorias escapulidas da desigualdade façam do Estado que as cumula de privilégios e penduricalhos um instrumento contra a desigualdade?!
Pelo contrário, a marcha deletéria da desigualdade leva a disputas cada vez mais aguerridas entre as facções estatais; como estas que temos visto, especialmente quando há uma troca massiva nos cargos que alojam os membros das facções: recentemente foram PSDB e PT que protagonizaram ruidosas e ruinosas “trocas da guarda”; agora, ao Centrão se somam os militares, que aparelham o Estado com dois agravantes (i) eles conservam o salário militar enquanto ganham o salário civil em comissão, e (ii) contra a norma legal e sem respeito pelo saber acumulado, eles impõem sua hierarquia obtusa em áreas sensíveis, onde o despreparo deles se faz especialmente nocivo, como estamos vendo no Ministério da Saúde e na área ambiental.
À medida que o sofrimento provocado por esse estado de coisas veio crescendo, a sociedade veio fazendo o aprendizado possível. Primeiro, sem atinar com as facções, ela se dividiu em apoios a este ou àquele protagonista de facções, o que pode ser resumido na polarização fajuta entre PSDB versus PT, cada um com seus satélites. Diante da exaustão desse modelo, a maioria da sociedade se deixou arrastar para mais uma falsa solução, o impeachment de Dilma que, como muitos vimos, só iria piorar as coisas.
Uma vez pioradas as coisas, a maioria da sociedade identificou – nos seus limitados termos, mas com acerto – que o problema são as facções estatais (ainda que, por óbvio, não tenha a clareza do conceito), e apostou suas fichas numa saída que imaginou contrária ao que imprecisamente chama de “sistema”. O sentido do movimento foi correto, mas a direção foi errada. O sentido foi contra o Estado de Direito Autoritário, mas a direção escolhida não aprofunda o que há de direito nesse Estado, aspecto que ele herdou das lutas da maioria da sociedade pela transição democrática; pelo contrário, a direção escolhida reforça o que há de autoritário nesse Estado, vício que ele conservou da ditadura paisano-militar depois da transição lenta, gradual e segura.
Como nossos progressistas e nossa autointitulada esquerda reivindicam, com acerto!, como obra sua esse Estado, eles não têm como liderar a maioria social que quer deixá-lo para trás. Esse pessoal vem há décadas em descompasso profundo com o pendor transformador da maioria da sociedade brasileira. Essa limitação estrutural explica a situação em que estamos:
- Foi essa limitação que, desde lá de trás, impediu a aliança (“geringonça”) PSDB e PT e levou-os a nutrir os dispositivos paisano e militar da ditadura, oportunismo que os engoliu nessa volta dos mesmos dispositivos ao protagonismo. A Besta é o Frankenstein gerado na polarização fajuta entre PSDB e PT.
- Foi essa limitação que, em 2018, impediu essa vanguarda ruinosa de apresentar uma alternativa transformadora à candidatura do besta. Vieram com os nomes de sempre e com a conversa de sempre – e ainda querem insultar de ignorante e fascista um eleitorado que até pouco antes se dividia em apoios à polarização fajuta entre eles mesmos!
- É essa limitação que, agora, aos olhos da maioria da sociedade, reduz essa vanguarda acomodada a um bando de chorões pelo leite derramado da teta perdida, pois por suas escolhas e omissões acabaram por se reduzir a alvo frágil de um anticomunismo boçal misturado a um antiestatismo infantil.
- É essa limitação que leva essa vanguarda acoelhada a pregar “unidade” pela restauração do status quo anterior à vitória do besta, ao invés de identificar a crise como crise de legitimação e tirar disso as conseqüências para a luta contra a desigualdade.
- Finalmente, observe leitor que essa limitação leva nossa vanguarda exibicionista a, diante do coronavírus, posar de lúcida, apregoando que “nada será como antes” e, ao mesmo tempo, defender na política a volta ao que era antes!!! Confusão que, além de tudo, desperdiça com a proposta de uma Frente o que há de emancipatório na desgraça da pandemia.
Enfim, ao contrário do que o frenesi faz parecer, o discurso autoritário não é o discurso hegemônico. Desde antes da eleição de 2018, quando ficou claro que o besta poderia vencer, o discurso hegemônico no Brasil é o discurso pela restauração. E é de restauração conservadora que se fala na mídia, onde os gatos estão a aparecer como sempre foram: pardos.
O “cretinismo parlamentar” é o cimento da “unidade” entre as facções institucionalistas, e não se sabe onde começa o cinismo e onde termina a hipocrisia: Tófoli, facciosamente, instaura investigações “de ofício”; o PGR, facciosamente, se faz defensor da besta acuada; a PF, ela própria dividida em facções, é jogada daqui prá lá, ao sabor da disputa; os mesmos grupos de mídia que sempre apoiaram o SISTEMA, agora fazem alarido de democratas apenas para restaurar o status quo anterior contra esse “desvio inconveniente”; os mesmos que aplaudiram Moro por divulgar gravação de conversa da presidente da República, agora insultam Celso de Melo por divulgar gravação de reunião na presidência da República – e vice-versa. (Um parênteses: do meu ponto de vista, nos dois casos a divulgação foi acertada, com uma diferença: condenei Moro por divulgar conversas de Dona Marisa, canalhice insensível a desnecessário sofrimento privado; e aplaudo Melo por resguardar os trechos referentes às relações internacionais do Brasil, ponderação sensível a contraproducentes dissabores públicos).
Como pretender que essa pantomima mobilize a exausta maioria da sociedade brasileira?!
Sem saber como, ela vive a certeza íntima de que o Brasil precisa de uma transformação, o que a leva a repelir o discurso pela restauração. Daí um certo alheamento, como se o que se passa não fosse com ela. Ainda que não haja fartura de discernimento nessa recepção, temos de reconhecer aí não a fraqueza, mas a força do povo brasileiro. A tarefa de ampliar esse discernimento é nossa, daqueles a quem esse povo proporcionou o privilégio da dedicação ao estudo e à pesquisa nesse país!
Fica o Registro:
[30/05]
9:00 h
— Dados de pesquisa DataFolha, publicados hoje:
(i) 67% recusam o toma-lá-dá-cá entre Bolsonaro e o Centrão – Entre os que votaram em Bolsonaro são 42%;
(ii) 50% são contra abertura de impeachment contra Bolsonaro pelo Congresso;
(iii) 50% são contra a renúncia de Bolsonaro.
Olhadas em seu conjunto, essas preferências podem indicar precisamente o pendor anti-“sistema” da maioria do eleitorado. Parece que todos têm claro que:
(iv) o Centrão, uma facção do Congresso, representa o coração do “sistema”;
(v) a saída de Bolsonaro da presidência significará uma vitória do “sistema”.
Mais uma vez: a maioria da sociedade tem como valor central sua aversão ao “sistema”. Deixada sem alternativa, ela agarrou o que tinha à mão e, agora, vive a angústia afetiva e cognitiva de ter de enxergar que a besta tampouco é uma boa opção — daí o lento crescimento de “ruim e péssimo” (43%), a estabilidade do “bom e ótimo” (33%) e os 22% que ainda se refugiam no “regular” quando avaliam o governo.
Enquanto isso, a autointitulada esquerda e os progressistas, agarrados a este Estado, insistem em interpretar o posicionamento majoritário contra o “sistema” como uma recusa à política e uma agressão às instituições democráticas. Não é. É uma recusa aos políticos profissionais e uma rejeição à ocupação facciosa das instituições. A maioria quer mais democracia, não menos. O que falta é um projeto claro no qual se engajar, ou pelo qual torcer.
14:30 h
— Acabo de ler notícia sobre o manifesto de uma Frente, assinado por gente que vai de Luciano Huck a deputado do PSOL, passando pelo sério Dráuzio Varela. Nem que eu tivesse encomendado receberia algo tão pateticamente representativo da restauração conservadora que venho tentando explicar e combater. Veja-se um trecho:
“Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. Esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia… ”
Está tudo aí:
- Tratam as divergências políticas como algo necessariamente velho e indesejável — como se o significado de “bem comum”, “família” ou “responsabilidade na economia” não fosse objeto de necessária, saudável e incontornável disputa;
- Põem no mesmo saco o que chamam de “esquerda, centro e direita”, quando a hora é de recusar essas segmentações não para negar as diferenças, mas para substituí-las por outras;
- Falam da luta contra a desigualdade como se fosse “consenso”, quando sabemos que este “consenso” vai ruir tão logo a Reforma Tributária chegue à renda e ao patrimônio de muitos dos signatários.
[31/05] – 10:10 h
— Mais dados de pesquisa DataFolha, divulgados hoje:
– 72% dos entrevistados se posicionam contrários à frase em que, na reunião ministerial, a besta defende a ideia de armar a população para impedir a tirania.
De novo: a maioria da sociedade, que lutou pela democracia, está contra o “sistema” e, por isso, quer mais democracia e rechaça saídas ainda mais autoritárias do que o autoritarismo sob o qual já vive sob o sistema faccioso que gere o Estado de Direito Autoritário.
Acompanho faz mais de uma década os comentários do ilustre pensador Carlos Novaes e, desde a redemocratização, nunca ficou mais evidente aquilo que ele denuncia de longa data: vivemos em um Estado de direito autoritário e plenamente faccioso. Vide o decreto do início de 2019, no qual o presidente facilita a posse e o porte de armas, não para armar a plebe miúda que mal tem condição de sustentar uma poupança, mas, antes, para empoderar seus sequazes. Vale lembrar que decretos do executivo não podem redefinir leis (no caso em tela, o Estatuto do Desarmamento), restringindo-se a regulamentá-las ou complementá-las. Soma-se a isso o decreto deste ano, revogando portarias de rastreamento e identificação de armas. Também importa lembrar a vantajosa reforma da previdência atribuída às forças armadas e, igualmente, aos policiais militares. Coincidência ou estratégia? Seria também coincidência a enxurrada de trocas feitas nas diretorias da PF, recentemente divulgadas no Diário Oficial da União? Como quem não tem justificativas a dar a sociedade, “o Besta” vocifera, e seus lacaios fazem coro: “se é atribuição constitucional da presidência, qual é o problema de o presidente fazer?”
O mesmo Besta que cita a Bíblia (“conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”), parece desconhecê-la, do contrário lembraria que “Tudo me é permitido, mas nem tudo convém”. O mesmo Besta que evoca a Constituição, para defender suas prerrogativas, a desqualifica ao atirar contra os outros poderes quando estes não se lhe dobram a cerviz.
Em suma, eis o exemplo mais acabado de Estado de direito autoritário e faccioso.
Muito agradecido pela luz das suas reflexões, professor Novaes.
Ricardo,
grato por se dar ao trabalho de escrever. Fico muito contente de ver a estrutura da minha análise tão bem empregada numa análise da situação real. Você está fora das fantasias que infestam nossa mídia e nossa intelectualidade assentada. Um abraço.
Professor,
Fico me perguntando se há algum tipo de frente, uma minoria é claro, ou algum tipo de liderança, movimento de parlamentares, ciências sociais, algo, em algum lugar que podem, se forem bem articulados e crescerem, ser uma saída para uma verdade restauração e não essa mera manutenção de uma ordem desigual.
João,
estou persuadido de que é possível. Por mais equivocado, o movimento das torcidas organizadas está sendo muuuiiito positivo. Nossa autointitulada esquerda e nossos progressistas, aí incluída nossa intelectualidade entronizada, com assento cativo na mídia, não tem condição de liderar nada de significativo. Eles estão como mariscos neste Estado de Direito Autoritário. Muitos deles constituindo facções de interesse bem sabidos. A força viva de algo como uma torcida de futebol é muito interessante. Essa sim, o futebol, é uma diferença a ser deixada de lado numa hora dessas. A lucidez deles, contra todo o discurso hegemônico, é animadora, mesmo que venha atravessada de problemas. Mas, onde não há problemas na hora de agir? O importante é tomar o sentido (anti-“sistema”) e a direção (pró-democracia contra a desigualdade) CERTOS.
Os 28% que defendem armar a população e os 33% que apoiam a aproximação com o Centrão são um indício que temos parte relevante da população (em torno de 1/3) que é fascista, não?
Murilo, acho essa conclusão apressada.
Boa parte desses 30% pode ser ganho para o outro lado, à medida que a luta progredir. Não dá para ter certeza de nada. Uma coisa é certa: há sempre gente que muda de lado no curso da onda.