Carlos Novaes, 11 de março de 2021
Seja no governo mais reacionário, seja no extremo oposto dele, num governo saído de uma revolução, a política é, sempre, escolher o que e quanto do velho vai permanecer. A política é um jogo que faz regras para o próprio jogo precisamente porque nela se negocia, diuturnamente, o intervalo entre a conservação e a mudança partindo do velho, do que já existe. Quando, no romance O Gatopardo, de Lampedusa, o jovem Tancredi levou seu tio, o velho príncipe de Salinas, a enxergar que a revolução garibaldina conduziria a Itália a uma mudança necessária para que tudo ficasse como estava, ele fazia, cinicamente, o vaticínio da tragédia embutida no que havia de farsa naquela situação política. Quando, ao narrar suas memórias da revolução de 1848, o liberal Alexis de Tocqueville, para dar realce à desordem que vira nas ruas da Paris revoltada, registrou que a mera presença dos prédios já dava um conforto de ordem, ele, sem o saber, disse uma verdade a que o marxista Lênin iria sucumbir setenta anos depois, quando organizou a polícia secreta da Rússia soviética com base nas instalações, nos métodos e nos agentes do recém derrubado regime tzarista.
O Brasil está sob um governo extremamente reacionário, cuja origem é um rearranjo mal enjambrado de forças sombrias que voltaram ao poder porque aqueles a quem foi dada a tarefa de construir o novo regime definiram segundo seus interesses mais rebaixados o que e quanto do velho deveria permanecer. Nem o PSDB, nem o PT, fizeram caso de que os passos de quem recua diante da tarefa mais longínqua esmagam as condições para realizar a tarefa mais próxima. Ambos recuaram da trabalheira de combater a desigualdade, condição básica para a construção de um Estado de Direito Democrático, nutriram forças que deveriam ter derrotado e, apoiados nelas, construíram esse Estado de Direito Autoritário e o conduziram até que ele entrou nessa crise de legitimação, pela qual Bolsonaro deixou a condição de espectro tenaz e se tornou aberração real. Saído do laboratório em que PT e PSDB se revezaram na chefia, este governo se mostra autoritário no limiar de suprimir todo o direito, situação que torna muito mais difícil a realização das políticas compensatórias mais básicas, que dirá combater a desigualdade.
A crise de legitimação em que se encontra esse Estado de Direito Autoritário requer, para ser superada na direção de um Estado de Direito Democrático, que o Brasil se livre de Bolsonaro deixando para trás PT e PSDB. O país jamais se abrirá às possibilidades de consolidação de uma democracia se insistir em escolher sua liderança política entre essas três forças: a do militarismo e as dos dois partidos que nutriram o entulho da ditadura até serem engolidos por ele. Cada um a seu modo, eles já nos deram fartura de provas de que estão comprometidos com a manutenção do que impede o combate à desigualdade e à corrupção na direção de um Estado de Direito Democrático.
Ontem o país assistiu a mais um discurso em que Lula reiterou aos ricos que ele não significa uma ameaça às estruturas que lhes permitem ganhar e estocar riqueza de um um modo que faz do Brasil o país mais desigual do mundo. Falando lá de dentro do velho acerto entre capital e trabalho, retomando desde sua matriz sindical mais rebaixada ideário tosco de mais de 50 anos, Lula falou em fortalecer o capitalismo pela ampliação do consumo de todo mundo para que todo mundo ganhe (mais uma vez, diga-se passagem, como se os recursos do planeta fossem infinitos); celebrou o Petróleo como fonte de energia (mais uma vez negligenciando o ocaso desse mineral) e, claro, convidou o Brasil a voltar a 2010, ano do apogeu do velho normal — esse mesmo velho normal ao qual Bolsonaro se ajustou nessa versão pós-catástrofe, ou seja, depois que o baixo-clero congressual assumiu as rédeas, permitindo que o chefe de turno do Centrão se tornasse o cocheiro do mula sem cabeça que ocupa a presidência da República.
Hoje as mídias convencional e alternativa estão inundadas de análises sobre o discurso “de estadista”, pelo qual Lula mostraria toda a sua maturidade e capacidade de promover o entendimento nacional. Ora, com Bolsonaro na presidência até Odorico Paraguaçu pode ser visto como estadista. Mas se o leitor não se deixar levar pela bobagem de que Bolsonaro é uma ameaça ditatorial real (a despeito de ele próprio, delirantemente, almejar a condição de ditador), fica fácil enxergar o cerne da embromação que há nessa polarização Lula x Bolsonaro: eles são expressão do velho normal, eles são formas de apresentação do governo possível no âmbito do Estado de Direito Autoritário, eles são versões políticas da interdição básica, que impede o enfrentamento da desigualdade: os ricos não podem perder.
Tendo aderido a esse arranjo saído da ditadura paisano-militar, Lula e seu PT manejaram a política brasileira de um modo que não poderia senão gerar, de um lado, a fragilidade de quem queria ir adiante e, de outro, o fortalecimento dos recalcados que sonhavam em voltar aos dias de mando pleno. Bolsonaro, que é a volta macabra desse recalque, só foi possível porque o lulopetismo, em sua mistura de incompetência com corrupção, se pôs na condição de alvo-frágil para um anticomunismo boçal, como se Lula ou o PT tivessem alguma coisa que ver com o comunismo, como se Lula ainda pudesse ser visto como um radical de esquerda. E quem maneja esse espantalho é o próprio lulopetismo, que o emprega para fazer a embromação máxima: soldar sua base de esquerda com uma política de obediência ao Mercado.
Quem tiver paciência, acompanhe a encenação de ontem para esse número: um Lula conciliador, sem mágoas, pronto para mais um acerto, nada disse contra a corrupção (nossa urgência por ordem), nem falou do enfrentamento da desigualdade (nossa urgência social), salvo para diluir a desigualdade como um problema do planeta, como se aqui ela não fosse radical e definitivamente diferente. Enfim, Lula, literalmente, a cada minuto do seu discurso, ofereceu como perspectiva de futuro uma volta ao passado. Lula insiste em ver a si mesmo como o máximo a que o Brasil pode aspirar em política, o que faz dele a encarnação da ideia furada de restauração do velho normal. Se o Brasil embarcar na farsa da polarização Lula x Bolsonaro, ajustando-se a uma ou outra versão do velho normal, colherá os resultados na forma de mais tragédia, com ou sem coronavírus.
Fica o Registro:
Está particularmente engraçado assistir ao Jornal Nacional. Posta entre dois fogos de uma polarização fajuta que ela própria ajudou a armar com suas vilanias, a Globo se dá conta do risco real de passar à irrelevância no que se refere à política brasileira, com todas as consequências comerciais disso.
Lula é gênio da política que nada entende sobre projeto de nação. Uma controvertida figura mítica dessas que só ganham vulto em países de elevado analfabetismo político, pobreza intelectual e material. O candidato ideal das massas que gritam “roubou, mas fez”. E o que mesmo ele fez, de estruturante, senão deixar as práticas tributárias e políticas tais quais como eram antes dele? Não fosse o boom das commodities suscitado pelo espantoso crescimento chinês dos anos 2000, Lula pouco ou nada teria a evocar dos tempos em que teve a caneta e o Diário Oficial nas mãos. Sua gestão pode ser resumida (dada a grande entrada de divisas no país) em expansão de crédito e apelo ao consumo, medidas que, sem as necessárias e, por ele, omitidas reformas estruturantes, jogou milhões no Serasa e SPC e devolveram para às classes D e E aqueles que haviam se alçado à B e C. Pergunto-me o que este homem teria a oferecer ao país agora, num quadro muito menos promissor que o da época. Lula
Carlos Novaes, suas análises são fantásticas!
Admiro muito o seu trabalho!
Teremos alguma novidade neste ano? Lançamento de algum livro, criação do canal no YouTube…
Um grande abraço!
Grato, Rodrigo. Vamos seguindo.