LUTA DE FACÇÕES ENGOLE O EXÉRCITO

O recado do comandante: não aceitamos nada diferente da prisão de Lula

Carlos Novaes, 04 de abril de 2018

Tomado por uma crise de legitimação deixada a si mesma por uma sociedade inerte, o Estado de Direito Autoritário brasileiro, que vem há tempos em marcha regressiva batida na direção do seu ponto de origem, é agora devolvido (pela manifestação inaceitável, hostil à democracia, do comandante do Exército) à situação institucional imediatamente anterior à instalação da ditadura à qual sucedeu – estamos a um passo de reviver os acontecimentos de exatos 54 anos atrás, com o agravante de que dessa vez o presidente da República, ao contrário de João Goulart, é, ele próprio, um golpista, de modo que a sociedade está condenada a agir por si mesma se quiser preservar as franquias democráticas ainda subsistentes.

Dizendo o mesmo com aspectos adicionais: depois de tentarem fugir da crise trazendo de volta um arranjo governamental protagonizado pelos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) que alegavam ter deixado para trás através de um Estado democrático de direito (!), as facções que se adonaram do Estado de direito no Brasil nada mais têm feito na sua conflagração interna (interna ao Estado) do que aprofundarem a crise de legitimação do mesmo Estado cujo controle disputam. E quem disputa são facções transversais aos três poderes e às três esferas da União, incluindo as polícias a eles subordinadas (e, sobretudo, insubordinadas).

Não há que buscar intensões na manifestação do general insubordinado. Tal como já disse aqui, não se trata de ficar a tentar adivinhar o que eles conspiram, mas tirar consequências da relação entre o que eles fazem, são chamados a fazer pelos superiores e, então, passam a querer fazer. Há poucos dias, sentindo o cerco da lei se fechar à volta de si, Temer começou — como todo mandatário acossado pela infausta convergência da ilegitimidade da própria investidura com a condição de criminoso contra a coisa pública — a buscar apoio distribuindo acenos para todas as facções em luta: acenou mais uma vez para Lula, aludindo ao embargo à sua candidatura, e acenou aos militares golpistas rememorando um suposto apoio popular ao golpe de 1964, com o qual, sem dúvida, tem afinidades.

Posto na corda-bamba, Temer tem de engolir a insubordinação de seu comandante militar, a qual gerou um efeito em cascata, pois outros generais da ativa viram nela uma chancela prévia para as suas próprias insubordinações, sendo de registar os termos lamentáveis, cafajestes até, em que se deram algumas dessas insubordinações – houve um que bradou: “Aço!!”  Eis uma reação saída não de uma conspiração, ou de uma intensão, mas do encorajamento progressivo que a própria prática facciosa suscita.

O silêncio da maioria dos pré-candidatos à presidência da República diz muito sobre as “lideranças” com que a sociedade brasileira pode contar nesse momento agudo da sua história. Atenção, senhores aspirantes à presidência, o que o general quis dizer foi: não aceitamos nada diferente da prisão de Lula. E tratou de ligar à democracia essa afronta sua à própria democracia, quando não é a democracia que está em jogo no caso de Lula, mas o Estado de direito.

Fica o Registro:

  • No momento em que escrevo (15:10), Gilmar Mendes está a proferir seu voto na sessão que julga a situação de Lula. Acabo de ouvir os apartes de Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Lewandowski, nos quais fica claro que o Supremo está reunido sem ter definido se o julgamento trata em separado do HC do Lula ou embola a decisão sobre a controvérsia geral acerca da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Gilmar lidera o entendimento de que a decisão é uma só, e vale para os dois aspectos da questão. Vamos ver como isso termina.
  • Gilmar está a reclamar da imprensa “opressiva e chantagista”, o que não passa de um ataque faccioso ao que resta de franquia democrática na vida política brasileira. Imerso numa luta de facções estatais, acossado por uma crise de legitimação, Gilmar pretende fazer que a opinião pública veja na liberdade de imprensa ainda subsistente um problema!!
  • Acréscimo:
  • Agora ouço o voto do ministro Barroso (18:05) e estou em inteiro acordo com ele no mérito da matéria de fundo. Brilhante. Infelizmente, o pendor republicano dele e a forma jurídica em que a matéria está a ser discutida o levam a desconsiderar, no caso de Lula, precisamente o que importa aqui: no caso do triplex, Lula foi condenado sem provas. Barroso chegou a aludir a isso quando ressalvou que não está a discutir o mérito da decisão original da primeira instância, reiterada na segunda.
  • Novo acréscimo (18:30):
  • No mérito da matéria de fundo, ao apoiar a possibilidade de prisão com base em condenação de segunda instância se está a favorecer a democracia que queremos, pois esta é uma medida que aponta para a Justiça do Estado de Direito Democrático, sanando a brecha existente hoje para os privilegiados. Por outro lado, na discussão do HC de Lula, permitir sua prisão é uma decisão própria do Estado de Direito Autoritário, que o condenou facciosamente em primeira e segunda instâncias.
  • Novo acréscimo (19:34):
  • A ministra Rosa Weber deixou de lado a matéria de fundo, considerando-a vencida. Ou seja, ela afastou do seu voto qualquer contestação à controvertida jurisprudência atual, embora tenha voltado a declarar que discorda dela. Na prática, ela reiterou seu formalismo e declarou obediência à atual jurisprudência. Ao estender para o caso do HC de Lula essa sua obediência à “colegialidade”, a ministra votou contra o HC do ex-presidente, sem considerar o caráter faccioso da condenação dele.
  • Novo acréscimo (22:23):
  • Tendo ficado sem acesso à transmissão do UOL por excesso de demanda, não pude acompanhar os votos de Fux, Toffoli e Lawandowski. Como quer que tenham argumentado os dois últimos, seus votos em favor de Lula retratam a preferência deles na matéria de fundo: querem derrubar a jurisprudência sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Esses votos, assim como o de Gilmar e aqueles que, por certo, serão proferidos por Marco Aurélio e Celso de Mello, iluminam com alguma ironia a conexão entre a crise de legitimação do Estado e o destino de Lula: sobrou a ele apoiar-se em membros de facções voltadas à manutenção do status quo, e isso não porque reconhecem o facciosismo da condenação dele no processo do triplex, mas porque enxergam que essa prisão torna mais difícil a vida dos que já estão presos e dos que ainda poderão se-lo. Em contrapartida, a facção republicana se manteve firme no apoio à nova jurisprudência, mas em razão de circunstâncias várias acabou, ao contrário do que eu supunha, por negar ao Lula qualquer voto favorável a um HC que o protegeria da prisão por uma condenação sem provas. Agora só resta esperar por Cármen Lúcia, a quem caberá desempatar a votação. A julgar pela coesão apontada pelos outros, é improvável que ela vote em favor de Lula, como cheguei a supor, pois agora esse voto a deixaria sozinha. Dentro de pouco, saberemos.
  • Novo acréscimo (00:28):
  • Como esperado, a ministra Cármen Lúcia, defensora da jurisprudência que permite a prisão com base em decisão em segunda instância, acaba de votar contra o HC de Lula, voto que consagra a vitória dos favoráveis à prisão do ex-presidente com base na condenação sem provas, facciosa, no caso do triplex. Desse modo, a afirmação benéfica de um princípio legal fundamental para a consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático — ou seja, o princípio que estabelece como possível o início do cumprimento da pena antes de esgotados todos os recursos às instâncias superiores — , se dá numa circunstância em que esta decisão acaba por revestir da constitucionalidade precária de um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação uma decisão facciosa arranjada contra destacado líder de uma facção ora vencida, cujas responsabilidades na construção das circunstâncias que agora o atingem de forma tão dura são diretas.

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