Carlos Novaes, 26 de agosto de 2018
A Folha de S.Paulo publica hoje uma entrevista com Bryan McCann, professor da Universidade Georgetown. Quando não erra, o historiador faz o tipo de análise convencional que agrada àquele segmento da intelectualidade brasileira que acredita “nas conquistas dos últimos trinta anos” porque enxerga nessas “conquistas” uma não menos ilusória obra sua: uma democracia consolidada num Estado democrático de direito.
Folha – A eleição presidencial está sendo chamada de a mais imprevisível da história recente no país. Concorda ou acha que as coisas estão começando a se desenhar de forma mais clara?
MacCann — Sim, concordo. Não só imprevisível, como acho angustiante. E devemos fazer uma reflexão sobre os últimos 30 anos. Sim, é verdade que ao longo dos últimos três anos o Brasil está em crise, mas ao longo de três décadas o Brasil alcançou avanços enormes por causa da consolidação e da construção de uma democracia plural. A eleição é um momento angustiante para a democracia brasileira.
Novaes — Os termos em que esta eleição se dá não são uma decorrência dos últimos três anos. Tanto a eleição como os últimos três anos são uma decorrência das últimas três décadas. As incertezas da eleição são o modo de apresentação de uma incerteza que foi construída nos últimos 30 anos, enquanto brincávamos de democracia por cima e deixávamos a desigualdade fazer seus estragos por baixo. A conta chegou e não há o que comemorar.
Em que sentido?
MacCann — Uma democracia plural tem que ter representação de várias tendências no governo, mas o momento atual é angustiante porque surgiu um setor da população brasileira que não respeita essa democracia plural, que não valoriza as conquistas dos últimos 30 anos e pensa apenas na crise mais recente. A candidatura de Jair Bolsonaro é fruto desse pensamento.
Novaes — Os últimos 30 anos foram a tentativa de consolidar uma equação que não fecha: combinar a manutenção pétrea da desigualdade com democracia eleitoral. Os políticos profissionais fizeram das eleições democráticas rituais vazios, uma encenação para distraídos no intervalo de mandatos consagrados à manutenção de privilégios via corrupção (prática que igualou a todos, salvo exceções que de nada adiantam) e uso da força contra os pobres.
Isso é ruim para a democracia?
MacCann — Ele é um risco para a democracia brasileira. Como não sou cidadão brasileiro, não tenho um candidato para apoiar na eleição, mas eu votaria em qualquer um contra Bolsonaro. Ele não respeita essa democracia e fala abertamente que respeita mais o tipo de regime que o Brasil tinha durante a ditadura.
Novaes — O que ameaça a democracia eleitoral não é esse “setor que não respeita essa democracia”, de cujos anseios Bolsonaro é a marionete. A ameaça está em não enxergar que a crise é uma crise de legitimação do próprio Estado de Direito Autoritário. Nessa crise, as alternativas são mais autoritarismo ou mais democracia. Bolsonaro e Alckmin são os representantes mais vistosos dos que querem mais autoritarismo; Lula e seu PT abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao exercício faccioso dos poderes institucionais, com destaque para a corrupção, e querem nos convencer de que ainda podem empunhar as bandeiras que traíram; Ciro e Marina não sabem o que estão fazendo. A sociedade, aturdida, espera um milagre. Não vai dar em boa coisa.
A revista The Economist diz que Bolsonaro é um perigo para a democracia. Qual a percepção internacional a respeito da candidatura dele?
MacCann — Mais recentemente ele tem recebido uma maior atenção, sendo comparado a Donald Trump e ao [presidente das Filipinas] Rodrigo Duterte, alguém que tem possibilidade de fazer muito estrago. A cobertura jornalística nos EUA tem sido muito crítica a Bolsonaro, mostrando ele como alguém que concorre em uma eleição democrática, mas com saudade da ditadura.
Novaes — A força de Bolsonaro decorre da naturalização de um tipo de “exercício faccioso dos poderes institucionais”, a violência policial, que é antidemocrática na raiz e não cessou sob governos tucanos ou petistas. Os dispositivos militares legados pela ditadura paisano-militar estiveram ativos nesse 30 anos de Estado de Direito Autoritário. Há poucos dias, em mais uma de suas inócuas operações, agora apoiados pelo Exército, policiais militares do Rio mais uma vez seguiram a sua rotina invadindo casas sem mandato judicial, fazendo prisões arbitrárias de gente claramente inocente, provocando tiroteios sem preocupação com danos “colaterais”. Essas práticas sempre foram antagônicas a qualquer democracia — a novidade é que a crise de legitimação do Estado que tem essas práticas pôs a nu esse antagonismo e, agora, temos de escolher entre mais autoritarismo e mais democracia.
Considerando o quadro atual de coligações entre partidos, em que Bolsonaro vai receber pouca verba e vai ter pouco tempo de TV, acha que ele tem chances reais de vencer a eleição?
MacCann — Acho que sim. Depois da vitória do ‘brexit’ e da eleição de Trump, o que temos visto nos últimos anos é um mundo político em que um movimento populista que simplesmente quer acabar com a situação atual e quebrar a casa pode vencer, sim.
Novaes — Acho que não. É que a desigualdade extrema põe para o Brasil duas urgências: a urgência social (fundamentalmente, emprego, saúde, educação, moradia e fome), e a urgência da ordem (fundamentalmente corrupção, banditismo convencional e arbítrio estatal). Bolsonaro aparece como alguém que só tem “resposta” para a urgência da ordem, e, mesmo aí, tem como principal bandeira transferir o problema para o próprio cidadão, a quem quer ver reagindo a tiros contra a bandidagem de rua…
O ex-presidente Lula está preso e foi anunciado oficialmente como candidato a presidente. Como isso se encaixa na história política dele no Brasil?
MacCann — Lula tem uma importância histórica imensa para o Brasil. A questão principal agora é tentar entender como essa importância dele vai ter influência na eleição. Acho que a candidatura dele vai ser barrada, mas acredito que ele tenha grande poder de transferência de votos. E mesmo se o candidato dele não conseguir passar ao segundo turno, Lula ainda terá capacidade de transferir votos no segundo turno, para o candidato que tiver mais proximidade.
Novaes — Ao contrário de Bolsonaro, Lula é o candidato que se apresenta como tendo “resposta” para a urgência social, mas, por razões óbvias, não pode oferecer resposta para a urgência por ordem. O fato de os dois liderarem as pesquisas mostra o impasse brasileiro, pois não há candidato capaz de, primeiro, articular as duas urgências e, depois, apresentar uma alternativa clara de enfrentamento delas. O caso de Lula é grave porque seu alardeado compromisso social é para brasilianista ver, pois, como sabemos, ele e seu PT se acomodaram à desigualdade e jamais sequer cogitaram uma política de Estado para mudar a PM, por exemplo.
O momento atual tem paralelo na história do país?
MacCann — Para os historiadores, lembra a eleição de 1945, quando Getúlio Vargas teve poder de transferência de votos que acabou com o resultado da eleição do Dutra. Foi Getúlio que levou à eleição de Dutra. Lula vai ter este tipo de poder em 2018, e falta saber para quem vão acabar indo esses votos.
Novaes — O professor MacCann está muito atrasado. Lula já teve seu Dutra, e deu no que deu, como expliquei aqui e aqui. As condições para a transferência de votos são agora muito menos propícias, a começar pelo fato de que o apoio a Lula tem crescido quanto mais claro fica que ele não será candidato, contraste intrigante, a ser desenvolvido em outro post.
Há quem compare o momento atual à eleição de 1989. O que acha?
MacCann — Há semelhanças com 1989, sim. Na época, [Leonel] Brizola e Lula acabaram dividindo o voto da esquerda. Hoje em dia é até mais difícil, pois não tem um candidato claro da esquerda.
Novaes — Comparar 2018 a 1989 é besteira da grossa, como já expliquei aqui, a começar pelo fato de que naquela altura saíamos de um regime autoritário e, agora, estamos em vias de entrar em um…
A manobra do PT que isolou Ciro Gomes [PDT] pode ser vista como uma lição para evitar a divisão de 89?
MacCann — A esquerda brasileira aparentemente não aprendeu a lição. Não vemos agora uma união de forças contra o Bolsonaro, por exemplo. Vemos Ciro e Lula disputarem, e mesmo dentro do PT tem tendências disputando espaço.
Novaes — O que une a autointitulada esquerda brasileira é o empenho em continuar agarrada ao Estado de Direito Autoritário como um marisco. Por isso, ela se divide e se une como qualquer outra facção desse Estado.
Como tem sido vista fora do Brasil a candidatura de Lula, que está preso?
MacCann — Isso gera um pouco de dúvidas e incertezas. Não existe uma percepção geral de que Lula foi injustiçado, entretanto. Mesmo entre as pessoas bem informadas sobre política global. O que há é uma incerteza sobre o que está acontecendo, como ele pode ser candidato, e uma ideia de que no fim ele não vai poder concorrer, então o partido dele vai ter que apoiar outro nome.
Novaes — Lula está na prisão por uma condenação sem provas, vítima da guerra de facções em que ele próprio se empenha na tentativa de voltar a ter poder, o que faz dele um político inconfiável quando se almeja um Estado de Direito Democrático, cujo rumo requer um combate sem trégua à desigualdade.