Carlos Novaes, 10 de outubro de 2020
com acréscimo em Fica o Registro, em 12/10
Desde que mostrei não haver apocalipse institucional em marcha, e analisei o ajuste do besta ao velho normal (com sua rendição ao Centrão, somada ao fortalecimento da facção militar no governo), a conjuntura política nada mais fez do que cumprir o que era esperado: uma acomodação crescente das facções estatais à absorção do novo sócio (tal como fizeram, lá atrás, com Lula e seu PT). Bolsonaro também respondeu como esperado: ao invés de cumprir racional e coerentemente seu projeto ditatorial, deixou seus seguidores mais fiéis no meio da rua ou, pior, em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, e correu para o abraço com as facções estatais.
No curso de pouco mais de três meses, o STF afrouxou a pressão que vinha fazendo quando usava os desmandos da família contra os arroubos “antissistema” do besta e, com isso, instalou-se um clima de confraternização entre juízes e o presidente; Maia veio se acertando com Bolsonaro e, em seguida, com Guedes, através das verbas parlamentares, de cargos e das tais reformas; e, o mais importante, todos se uniram para acabar com a não menos facciosa Lava Jato, contra a qual facções do STF haviam passado a atuar ainda mais fortemente desde que os tucanos de SP começaram a cair na rede sem que o PT se manifestasse, afinal, quem partilha telhado de vidro…
No lance mais recente da entrada de Bolsonaro no jogo das facções estatais está a indicação feita por ele para a vaga que se abrirá no STF, especialmente simbólica porque contrariou frontalmente as expectativas de dois pilares fundamentais da base eleitoral original do besta: os lulofóbicos e os terrivelmente evangélicos. Enfim, quase tudo veio sendo muito óbvio de acompanhar para quem segue este blog e, por isso mesmo, deixei ao leitor colecionar no noticiário desses últimos quase quatro meses a miríade de notícias que permitiu entender o estágio atual do jogo de facções do Estado de Direito Autoritário.
Há, porém, um outro lance recente, iniciado dias atrás e completado hoje, cujo alcance talvez tenha escapado ao leitor e, para analisá-lo, volto a escrever neste blog. Em entrevista ao jornal espanhol El País no último dia 07, Lula declarou:
“Bolsonaro é um cara que fez uma coisa para o Brasil: dar cidadania à extrema direita brasileira, que tinha vergonha de ser extrema direita. Você não encontrava um malufista no bar fazendo provocação para um petista, para um tucano. Eles não tinham coragem de dizer que eram da extrema direita. Bolsonaro recuperou essa gente do ralo da política e deu cidadania. Deu a eles: xinguem, mintam, provoquem, utilizem a Internet e xinguem a mãe de todo mundo. Xingam o pai. Ele fez as pessoas saírem do silêncio mortal para gritar. Ele pegou de 25% a 30% da sociedade ou que não votava ou que se absteve de votar e deu cidadania. Falou: ‘agora tem um cara para defender vocês. Defenda o regime militar, seja contra o aborto, defenda a tortura, o estupro, que eu estou aqui para defender vocês’. E essa gente se autoproclamou cidadão de primeira classe. […] [Bolsonaro] deu cidadania a uma parte importante [da sociedade]. Os milicianos, por exemplo, a gente quase não ouvia mais essa palavra. Ele juntou tudo que é miliciano. Qual o grande empresário que você vê a não ser o cara da Havan [Luciano Hang]? Você tinha uma sociedade que vivia com vergonha de ser extrema direita e fascista. E ela agora tem orgulho. Ele deu cidadania como demos para a esquerda nos anos 1980”.
Deixo aos leitores esmiuçar os sentidos dessa horripilante pensata de Lula, salvo por três indicações: primeiro, notem que Lula normalizou PT e PSDB juntos, contra Bolsonaro; segundo, observem como ele teve o cuidado de elencar os aspectos de que discorda, como a convidar para que o combate se dê dentro do velho normal; terceiro, e mais importante, registrem que ao dizer que Bolsonaro “deu cidadania” tal como o PT dera nos anos 80, Lula está legitimando no âmbito da “opinião” todo o rol de infâmias do bolsonarismo, com o que, embora involuntariamente, também não deixa de reconhecer a pertinência da crítica que aponta ele próprio e seu PT como fatores fundamentais para a emergência vitoriosa de Bolsonaro.
Enfim, uma declaração como essa é um gesto pensado. Através dela, Lula mostra sintonia com outras facções adversárias e dá boas-vindas à adesão de Bolsonaro ao velho normal, soldando a entrada restauradora de mais um anel na corrente que venho apontando há anos: Bolsonaro (que se elegeu para enfrentar o “sistema”), para poder governar dentro do velho normal aliou-se às mesmas forças às quais Lula (que se elegera para transformar o Brasil) também se aliou para lograr a comodidade de governar dentro do mesmo velho normal.
Hoje, em Santos-SP, de público, mostrando-se perfeitamente ajustado ao que seria de esperar, Bolsonaro — ao refutar apoiadores que insistem em questionar sua indicação para o STF apontando o fato de que o candidato já manteve relações com o PT — devolveu o gesto de Lula sentenciando que:
“muita gente boa passou pelo governo do PT”.
Qualquer leitor que tenha acompanhado este blog de maio para cá não deixará de sorrir com o contraste entre esse diálogo realizado à distância pelos dois “líderes” da polarização fajuta que nos emburra como país, e o ridículo e tão festejado frentismo antiapocalíptico que, há tempos e a quente, me vi no dever de combater.
Tempos ainda mais difíceis se anunciam para quem almeja transformar o Brasil combatendo a desigualdade.
Fica o Registro:
– Sábado, 10, no Pará, a inauguração de mais uma loja da Havan atraiu multidão que, eufórica e sem máscara, se recusou a deixar de comparecer a mais essa efeméride, causando toda sorte de tumulto e contaminação. Não sei não, mas começo a achar que o comportamento irresponsável do nosso povo diante da Covid-19 é parte da atitude antissistema, da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Dessa perspectiva, o descaso com o vírus se somaria a tudo o mais que a conjuntura tem mostrado de disposição antissistema, fazendo do conjunto uma indicação de que estamos diante da desagregação que costuma anteceder uma revolta em desordem generalizada. Sem o saber, e sem que suas autointituladas vanguardas se deem conta, a percepção da sociedade brasileira sobre a situação em que vive pode estar no limiar de passar de intolerável para insuportável, com a fome que se espraia jogando papel importante nessa desagregação. E o diálogo Lula-Bolsonaro, uma alienada solda facciosa em prol do Estado de Direito Autoritário, pode ser, a contrapelo, evidência dessa desagregação.
Abriu mão do seu projeto ditatorial e correu para o abraço com as facções estatais: mas o que mais se podia esperar do “Mito”? O pior talvez seja o fato do nosso lamentavel presidente não estar preparado para nenhuma das deploráveis possibilidades.