Carlos Novaes, 09 de setembro de 2021 — 21:25h
Bolsonaro enviou ao povo brasileiro uma mensagem que não faz jus sequer ao baixo nível dos blefes que marcaram a conduta dele na presidência. Nenhum presidente jamais se dirigiu ao país de maneira tão vergonhosa, tão pusilânime. Bolsonaro tem uma vida pública tão indigna que sairá da presidência sem ter reunido condições de ser lembrado pela história.
Não poderia haver contraste maior entre o teor do documento e a hora vivida pelo país. Não é de surpreender que a carta indigente tenha saído de um esboço feito por Temer, um mestre da embromação facciosa que ocupa lugar central na trajetória do p-MDB, dispositivo paisano da ditadura paisano-militar que deu lugar ao Estado de Direito Autoritário que nos infelicita.
Esse desmoronamento de Bolsonaro solapa os projetos de longo prazo do neofascismo no Brasil, mas pode servir de estrume para que as facções contornem a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, a começar pelo oba-oba em torno da “vitória da democracia”, como se ao nos livrarmos de Bolsonaro não devêssemos, ao mesmo tempo, nos dar conta de que quem sai fortalecido é o jogo das facções estatais a serviço dos interesses dos muito ricos. Lula vai surfar nisso para, mais uma vez, consolidar uma aliança com as facções mais conservadoras, cujas práticas, que não lhe são estranhas, normaliza a cada rodada de conversas — tudo pelo bem do povo, claro.
Hoje mais cedo ainda havia “análises” conclamando urgência na defesa da nossa democracia, que estaria ameaçada pela besta. Nunca esteve. Bolsonaro esmaga os pobres, os vulneráveis, radicalizando o que o velho normal sempre fez ao manejar um suposto Estado democrático de direito. Houve até quem nos informasse a “novidade” de que Bolsonaro só não deu o golpe porque não contou com apoio das FFAA – não diga!!! Essa é a chave da cegueira: jamais entenderam a distância entre delírio e possibilidade real. Jamais entenderam que as FFAA não operam no vazio, que elas estão imersas em uma sociedade cuja maioria rechaça mais uma ditadura, por menos lúcida que essa maioria possa estar em relação ao que é necessário para alcançar um Estado de Direito Democrático.
Na verdade, boa parte dessa cegueira intelectual deriva da fragilidade que eles próprios sentem no Estado de Direito Autoritário a que estão aderidos; afinal, a crise de legitimação é real e pode ser sentida na aversão que a maioria da sociedade brasileira devota à política dos profissionais, ao “sistema”. Eles denominam “defesa da democracia” a mistura conservadora de medo, incerteza e cobiça a que estão entregues.
A contra face da cegueira dos “analistas” é a surpresa dos bolsonaristas, não menos cegos sobre o que se passava. Mesmo depois de Bolsonaro ter assumido de véspera que faria mais um blefe, eles precisaram ser esbofeteados pela rendição total do “líder” para acordar. A desorientação é geral, e não vejo como o Brasil possa fazer de tudo isso um aprendizado profícuo.
Fica o Registro:
Evidentemente, é estapafúrdia qualquer comparação entre as declarações de recuo de Bolsonaro e aquelas em que o Talibã promete moderação, mesmo como mera metáfora. Bolsonaro está batido em seus próprios termos, não tem meios para reagir em direção diferente e já está aplainando terreno para uma saída negociada para depois que deixar a presidência (pensa em si e nos filhos – a conversa com Moraes já é parte disso). O Talibã venceu em seus próprios termos, e dispõe de todos os meios. Esse tipo de associação é próprio de quem insiste em considerar Bolsonaro uma ameaça ao velho normal — afinal, entender o contrário vai exigir rever muita coisa… Quem tem de se constituir em vetor contra o velho normal é a maioria da sociedade brasileira.