A AUTOINTITULADA ESQUERDA ABRE CAMINHO PARA MORO

Carlos Novaes, 28 de novembro de 2021

Desde que Moro explicitou suas pretensões eleitorais, 11 de cada 10 analistas da mídia convencional, assim como políticos que se apresentam como adversários do ex-juiz, passaram a difundir a ideia de que ele, finalmente, teria assumido o que sempre foi, um político, e, assim, agora estaria no lugar certo. Ora, com essa recepção à candidatura de Moro esse pessoal está a dizer que os procedimentos facciosos dele como juiz serão perfeitamente aceitáveis quando se derem na arena política. Eles estão, sem perceber, reconhecendo que a política, para eles, é o lugar para a ação facciosa, que não tem de obedecer princípios e, pior, nem mesmo respeitar a norma legal (o alastramento da corrupção que o diga!).

Numa frase: tudo se passa como se o facciosismo de Moro, que atropelou a Justiça, fosse condenável apenas no papel de juiz, sendo perfeitamente aceitável na prática política — (sem esquecer que o cinismo do lulopetismo, e dos demais facciosos, classifica o notório facciosismo deste ou daquele magistrado do STF segundo as próprias conveniências, o que explica as oscilações da opinião deles sobre o que decide, por exemplo, um Gilmar Mendes…)

As raízes dessa recepção “legitimadora” do facciosismo por meio da sua banalização podem ser vistas à flor da terra por quem acompanha este blog, e todas elas levam ao mesmo tronco: o apego ao Estado de Direito Autoritário, cuja funcionamento básico se dá pela luta entre facções, como venho discutindo há tempos.

Combater a corrupção é central

O fato de Moro ter feito do combate à corrupção um meio faccioso de golpear adversários políticos não nos obriga a deixar de lutar contra a corrupção, nem, muito menos, normaliza a corrupção, como, na real, tem pretendido a nossa autointitulada esquerda, que se tornou facciosa quando, lá atrás, aderiu à política convencional sem nenhuma perspectiva de transformação. Já vimos como até uma figura como Haddad (com Boulos e Freixo a tiracolo) simplesmente abandonou a luta contra essa mazela, que é o combustível da reprodução diuturna do modus operandi do Estado de Direito Autoritário, cujas ocasionais maiorias governativas facciosas são conquistadas pelo dinheiro, como Bolsonaro, o mandante faccioso de turno, está, mais uma vez, a demonstrar.

Com base nos procedimentos execráveis de Moro no Paraná, virou moda vilipendiar a LavaJato em geral, como se os resultados obtidos no Rio contra a quadrilha chefiada por Sérgio Cabral pudessem ser tratados do mesmo modo como se condena o que foi feito arbitrariamente contra Lula. Não que alguém ouse defender Cabral. Não chegam a tanto, pelo menos publicamente. O que quero salientar é o silêncio sobre o acerto havido na ação do Judiciário contra um esquema de corrupção que está longe de ser uma exclusividade do Rio de Janeiro. Em suma, nenhum político faccioso fala em combater a corrupção porque todos eles estão, em alguma medida, envolvidos nela, o que, de saída, sempre os impediria (se o quisessem) de lutar contra a desigualdade na perspectiva de construir um Estado de Direito Democrático.

Como já vimos, o problema da corrupção está na raiz da nossa urgência por ordem, e — quando entendemos que ela, a corrupção, é uma prática voltada à reprodução do Estado que sustem o mal maior (a desigualdade) — não podemos deixar de ver os vínculos entre a corrupção e a nossa urgência social. Já exploramos aqui as relações entre essas duas urgências, apontando que o Brasil só iniciará a construção de um Estado de Direito Democrático quando se formar uma força política que articule a ambas, improdutivamente postas uma contra a outra, como ficou claro na polarização fajuta entre Bolsonaro e Haddad na eleição de 2018 (que fique claro: se a polarização entre os dois era fajuta, a diferença entre eles era notória, o que levou muitos de nós, apesar de tudo, a votar em Haddad).

Bolsonaro agrava nossas duas urgências enquanto blefa contra a democracia

Já vimos que Bolsonaro não é danoso pelo que diz contra a democracia, mas pelo que faz contra a maioria da sociedade, afinal, ao manejar o Estado de Direito Autoritário, ele não apenas não enfrentou nossas duas urgências, como as fez mais graves — alguns exemplos bastam: no âmbito da ordem, além de se render à corrupção do Centrão e torpedear o combate institucional ao coronavírus e conexos, Bolsonaro ainda tem dado força aos desmandos policiais e incentivado a desordem ambiental e social que provém do desmatamento e do garimpo. Na chamada questão social, além de uma política econômica socialmente ruinosa para os mais pobres e para as classes médias, além de reformas socialmente danosas e voltadas a proteger privilégios, Bolsonaro ainda desmontou o Bolsa Família, programa que embora não combatesse a desigualdade, contribuía para minorar os sofrimentos que ela traz para os segmentos mais pobres da população.

Não obstante, nossa autointitulada esquerda não se comove e insiste que o principal problema não é o que Bolsonaro faz, mas o que ele diz, daí a insistência dela em convocar (em vão) a sociedade para defender uma democracia que essa maioria sabe não estar ameaçada pela besta. Quer dizer, como não pode enfrentar a urgência por ordem (sendo ela mesma cúmplice da corrupção, não pode politizá-la), e como tampouco pode enfrentar a urgência social (sendo ela mesma beneficiária da ocupação ocasional de postos de mando no Estado que mantém a desigualdade, não pode atacá-lo), nossa autointitulada esquerda deu-se ares de historicamente sábia e se agarrou preguiçosamente ao frentismo, fazendo dos blefes do besta um espantalho cômodo: para esse pessoal, antes de tudo deve estar a bandeira conservadora da defesa da “nossa democracia”, do nosso (suposto) Estado democrático de direito. O que nos leva de volta a Moro.

Moro vai politizar a corrupção e explorar o sentimento antissistema

Diante de adversários que insistem em fazer a campanha eleitoral sem levar em conta a realidade — e, por isso mesmo, empunhando a fraca bandeira da defesa da democracia, que tem como pretexto unicamente os desmoralizados blefes de Bolsonaro, aos quais a maioria nunca levou a sério –, Moro poderá explorar o sentimento antissistema tanto contra Bolsonaro como contra os outros adversários. Contra Bolsonaro porque ao se render ao Centrão o besta explicitou que não tem vínculos críveis com o pendor antissistema da maioria; contra os demais porque todos eles (pelo menos até aqui) são defensores da volta ao estado de coisas anterior a Bolsonaro.

Quer dizer, Moro vai abrir caminho pela mesma avenida em que Bolsonaro desfilou em 2018, não por outra via. Por isso mesmo, não faz sentido explorar as chances de êxito de Moro à luz da polarização fajuta entre Lula e Bolsonaro, afinal, a depender do andar da carruagem, a maioria da sociedade pode vir a entender que não há polarização alguma entre dois candidatos obedientes ao facciosismo do sistema. Nessa mesma ordem de ideias, não há que fazer comparações entre Moro e Ciro, afinal Ciro é figura conhecida do jogo entre facções e não tem como se fazer alternativa a Lula; ao passo que Moro pode explorar a ilusão de que não faz parte do sistema e tem tudo para se tornar alternativa a Bolsonaro. Dessa perspectiva, sou levado a me afastar da ideia de que Moro seria o bolsonarismo sem Bolsonaro: o ex-juiz poderá ser uma alternativa conservadora mais consistente precisamente porque exibiria contraste com uma das características que opõem o bolsonarismo raiz à maioria da sociedade brasileira: a defesa explícita de bandeiras antidemocráticas.

Um Moro “antissistema” e “democrata” pode vir a representar, aos olhos dos incautos, uma “renovação”, inclusive geracional, difícil de combater, ainda mais se insistirem no cantochão de que o ex-juiz é uma “ameaça à nossa democracia”… Eis onde nos poderá levar o conservadorismo e o oportunismo estatista da nossa autointitulada esquerda, que amesquinhou seus horizontes políticos, programáticos e teóricos aferrando-se à defesa do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Logo saberemos.

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