O “FORMALISMO” DE LULA

Carlos Novaes, 23 de novembro de 2021

Mutatis mutandis, Daniel Ortega venceu a eleição presidencial na Nicarágua como Putin venceu as suas na Rússia e como Bolsonaro venceu aqui em 2018: os respectivos candidatos de oposição foram impedidos de concorrer depois de levados arbitrariamente à prisão. Por isso, muitos observadores da cena política estranharam a declaração dada ontem por Lula ao jornal espanhol El País:

“Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Por que o Felipe González aqui pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”

Ora, ninguém disse que Ortega não pode ficar no poder por 16 ou 14 anos. A objeção é que ele, ao contrário de Merkel e González, consiga ficar no poder porque encarcerou os adversários, impedindo-os de disputar a eleição.

Mas não há o que estranhar. Mais uma vez, Lula se agarrou a um formalismo para defender o indefensável. Ele age como se pudesse se proteger alegando desconhecer fatos amplamente divulgados sobre a ilegitimidade do processo eleitoral da Nicarágua, e deixa de lado justamente aquilo que torna inaceitável para um democrata a “vitória” de Ortega.

Esse tipo de cinismo não é novo no lulopetismo (e tampouco é exclusividade dele). Quem acompanhou as ações da LavaJato contra o próprio Lula e contra os tucanos de São Paulo e Minas pôde notar tanto o facciosismo que construiu a condenação de Lula, quanto aquele que permitiu aos tucanos se safarem das consequências dos malfeitos havidos em obras do Metrô e do Rodoanel, ou nas negociatas de Minas. Por um lado, montaram contra Lula processos judiciais fajutos, de modo a forçar a relação direta dele com a roubalheira havida na Petrobrás quando, de fato, era ele o presidente da República; por outro lado, as investigações sobre as roubalheiras no Metrô e no Rodoanel sequer chegaram a se desenvolver a ponto de permitirem denunciar judicialmente os governadores Geraldo Alckmin e José Serra. Os processos contra Aécio jazem sob lápide. O que há de comum nos dois casos e qual a relação disso com o cinismo de Lula diante do que se passa na Nicarágua?

O que há de comum é a incontornável conclusão de que Lula, Alckmin, Serra e Aécio protagonizaram governos e ações políticas com vastas e profundas ações de corrupção. Se contra nenhum dos quatro foi possível conduzir um processo judicial hígido, com direito à ampla defesa e sem facciosismo, a Justiça não pode, mesmo, puni-los pelos crimes havidos sob sua responsabilidade. Entretanto, qualquer pessoa que tenha conhecimento dos fatos, ainda mais quando diante da recuperação de vultosas quantias do dinheiro roubado (como no caso da Petrobrás), qualquer pessoa razoável, eu dizia, não poderá deixar de repudiar politicamente esses personagens e (se não seus partidos), pelo menos, seus assessores e correligionários mais diretos.

O cinismo está em fazer do caráter inconclusivo da dimensão judicial um meio de legitimar a covardia conveniente de não tirar consequências políticas dos crimes havidos. Lula e os seus usam as condenações injustas como atestados de inocência ampla, geral e irrestrita (inclusive para crimes conexos, pois estão, mais uma vez, prontos a se aliarem ao MDB e a forças do Centrão profundamente implicadas na Petrobrás e em outros casos de corrupção). Já os tucanos tocam suas vidas políticas com a normalidade cínica que a mídia convencional aceita daqueles a quem reconhece como aliados.

Talvez não haja exemplo mais redondo desse cinismo comum a lulopetistas e tucanos do que o modo pelo qual Fernando Haddad se conduz na cena política, como tempos atrás já apontei, na seção Fica o Registro deste post aqui. Naquela altura, em 2018, além do cinismo, descortinei, e critiquei, também o ensaio da jogada em que, agora, em 2021, o mesmo Haddad se empenha com a desenvoltura dos convictos: a união facciosa de Lula com o mais notório dentre os tucanos conservadores em atividade, Geraldo Alckmin. Recuperemos o que vimos lá atrás:

  • Fernando Haddad apontou em entrevista o caráter seletivo da indignação que certos setores da sociedade têm exibido contra a corrupção. Ele tem toda razão e entendo como fundamental apontar que essa hipocrisia é parte do que há de fraudulento no jogo de poder em curso. Entretanto, entendo como igualmente fundamental registrar que a escolha de Haddad não é melhor: ele não mostra nenhuma indignação com a corrupção… A outra face dessa fleuma conveniente é a esperteza contida nessa forma de tergiversar sobre o caso de Lula: “Eu tenho a convicção de quem leu o processo”… – como se convicções políticas se formassem da mesma maneira como se fazem as convicções jurídicas… Por isso mesmo, Haddad abre mão de toda luta política contra Alckmin nesse assunto, como se apontar a convergência entre Paulo Preto e os governos tucanos fosse algo a ser feito apenas no plano jurídico! Não à toa, Haddad declara preferir a palavra de Alckmin à palavra “de quem quer que seja que esteja aí, enrolado com a justiça”, como se enrolados com a justiça não estivessem todos, inclusive Lula. Haddad escolheu esconder-se da crise acocorado sob um telhado de vidro, mas de microfone na mão.
  • Na mesma entrevista, Haddad anacronicamente salientou convergências que vê entre PT e PSDB, como se fosse possível saltarmos os últimos trinta anos (no curso dos quais eles montaram uma polarização fajuta) e covardemente esquecermos que as convergências se deram sobretudo na acomodação à desigualdade, na revitalização dos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) e na adesão à corrupção como método de reunir poder para fazer dinheiro. Perdidos no tempo, o PT e o PSDB que ele tem na cabeça são personagens de fábula.
  • É que, tal como naquele cinema pobrinho dos faroestes fajutos dos anos sessenta, onde as cenas perigosas recusadas pelos dois protagonistas “adversários” eram encenadas pelo mesmo dublê, nessa pantomima anacrônica para reavivar a união FHC+Lula Haddad tem a pretensão de ser “descoberto” como o dublê ideal, o que nos leva ao risco de assisti-lo a pregar a união nacional contra o “patrimonialismo moderno” vestindo um macacão emporcalhado de petróleo e montado num jegue – ficcionista nenhum anteciparia que a realidade pudesse descaracterizar D. Quixote e Hamlet a ponto de ser possível desfigurá-los numa fusão tão impertinente.

Se os três parágrafos imediatamente acima descreveram, a quente, o que se passava em março de 2018, agora, em novembro de 2021, estamos a assistir o frondejar daninho do que foi plantado então: a união facciosa (e para inglês ver) de duas forças que, há trinta anos, recusaram unir-se quando isso teria significado a construção de um vetor de luta contra o facciosismo!

Quer dizer, tanto na desejada vitória com Alckmin, quanto no comentário sobre a “vitória” de Ortega, Lula está a exercitar sua condição de líder faccioso empenhado em proteger o Estado de Direito Autoritário como modelo, de costas para tudo o que signifique a trabalheira de construir um Estado de Direito Democrático. Só os muito cínicos e/ou muito cegos podem se entusiasmar com mais essa postulação de Lula à presidência da República.

Fica o Registro:

– Na mesma entrevista ao El País, Lula saiu-se com essa:

“O eleitor brasileiro votou no Bolsonaro pelas mesmas razões que o americano votou no Trump. Foi um momento de desajuste emocional de uma parte da humanidade.”

O obscurantismo dessa observação não faz feio ao lado de uma outra, já explorada aqui, e permite ver por outro ângulo o facciosismo de Lula: ele trata como mero “desajuste emocional” a infelicidade dos descaminhos havidos na luta das mais diferentes sociedades contra o sistema que ele e outros representam, aqui e alhures, sistema esse que deu ocasião ao sucesso dos aventureiros mencionados. Como líder faccioso, Lula pretende que se tome como racionalidade inescapável a razão cínica que o orienta precisamente porque abdicou da luta contra a desigualdade na perspectiva de construir um Estado de Direito Democrático.

– Bolsonaro, embora tenha abandonado o golpismo, continua com seu “método” de blefador: insinua que pode não renovar a concessão da Globo, que vence em outubro de 2022, como se estivesse em condições de posar de machão e, pior, como se dependesse apenas dele a decisão.

– O UOL publicou artigo interessante sobre a condução daninha que Ortega dá ao processo institucional na Nicarágua, no qual o autor explora as ambivalências que caracterizam o exercício da vice-presidência e da “copresidência” pela mulher de Ortega. Ainda que se empenhe em mostrar as diferenças entre a condição de vice-presidente e a de copresidenta, o autor deixa escapar o principal quando se trata de caracterizar a natureza institucional deletéria da ação de Ortega. Nos meus termos, o facciosismo de Ortega pode ser facilmente resumido se recorrermos a ensinamento de Afonso Arinos: “o vice-presidente é vice da República, não do presidente”. Já a copresidente é “co” do presidente Ortega, não da República da Nicarágua.

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