COMO SE AGARRAR AO VELHO — EM VÃO
Carlos Novaes, 15 de outubro de 2018
Reproduzo a seguir entrevista com o professor Marcos Nobre, publicada hoje pela Folha de S. Paulo e, em contraponto, apresento minhas respostas às mesmas perguntas, como se tivesse sido perguntado…
[Com acréscimo em Fica o Registro, às 15:24h]
Folha – O senhor falou em artigo recente que, mais uma vez, o PT tem uma chance de renascimento. Qual seria o caminho para o candidato Haddad vencer as eleições, com essa vantagem tão grande para Bolsonaro?
Marcos Nobre – Se quiser ganhar, Haddad tem que ser o candidato de uma frente de defesa das instituições democráticas. Se quiser ser o candidato do PT, vai perder. E o peso de uma possível regressão autoritária vai cair sobre as costas do PT.
Novaes – Fiz aqui uma crítica ao artigo de Nobre mencionado na pergunta. Acrescento ainda que:
- a votação recebida pelo PT não representa uma “chance de renascimento” como quer Nobre porque, além de tudo o mais ter permanecido igual, não houve renovação nos eleitos — o PT elegeu para a Câmara os mesmos de sempre, os que tinham mais máquina para arrancar o voto, ao mais velho estilo político;
- se Haddad defender as “instituições democráticas” vai perder, pois essas “instituições” são o próprio sistema que está sendo recusado pela maioria, como expliquei no artigo de anteontem e em série recente, iniciada aqui. Para vencer Haddad teria de fazer o eleitor democrata entender e acreditar: entender que Bolsonaro é anti-sistema mas é contra a democracia; e acreditar que ele, Haddad, é anti-sistema mas a favor da democracia, distinguindo “instituições democráticas” (o Estado em crise) de “franquias democráticas” (a sociedade em movimento) — uma operação dessas é quase impossível em 10 dias, talvez se abrisse mão para Ciro…
E como construir essa frente?
Nobre – Haddad deveria sinalizar claramente para o eleitorado que o governo dele será radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT.
A primeira coisa é chamar Ciro Gomes e dizer: “Eu abro mão de me candidatar à reeleição se for eleito e acho que nessa frente que montamos Ciro deveria ser nosso candidato em 2022”. Com isso, afasta-se o medo que as pessoas têm de que o PT vai se perpetuar no poder.
A segunda coisa é tomar pontos programáticos não só dos partidos que apoiarão Haddad, como PSOL, PDT e PSB, mas também tomar de outras candidaturas, de maneira unilateral, sem ter o apoio deles. De todas as forças políticas que disseram que não votam no Bolsonaro, ele tomaria unilateralmente os pontos do programa , sem negociar, sinalizando: “eu quero você dentro do meu governo”.
Poderia adotar, por exemplo, a agenda ambiental de Marina Silva, a proposta de Alckmin de criação de uma força de segurança nacional. Precisa abrir espaço para que Marina e Ciro participem. Deveria chamar uma figura como Joaquim Barbosa para representar, dentro do governo, o combate à corrupção. Chamar Nelson Jobim para ser responsável pela segurança pública.
Haddad precisa fazer movimentos nesse sentido. Se não fizer, não estará querendo de fato ampliar a sua base, não mostrará empenho em fazer um governo diferente.
É um desafio histórico, uma oportunidade de refundação. Para sair das cordas, o PT precisa de ajuda. E o PT pedindo ajuda, precisa também distribuir poder, de verdade.
Novaes – Todo o raciocínio de Nobre está voltado para a construção de uma verdadeira Frente do Sistema. A chance disso encantar o eleitor democrata que está com Bolsonaro é nenhuma. O erro desse eleitor não é ser anti-sistema, mas acreditar que Bolsonaro é uma saída. Esse eleitor democrata que é anti-sistema só pode ser ganho para uma saída que seja, ao mesmo tempo, anti-sistema e democrática. Essa frente do Nobre é o próprio sistema que a maioria do eleitorado acaba de recusar no primeiro turno…
Ao dizer que a primeira tarefa é chamar Ciro, Nobre mostra toda a irracionalidade da situação: Ciro foi esmagado quando era a única saída disponível; ao ser esmagado, se perdeu em contradições; agora, em razão dessas escolhas desastrosas, quando tudo deu errado, volta a passar por Ciro a saída, mas Nobre insiste em salvar o sistema e, junto com ele, o PT! Nobre chega ao cúmulo da irracionalidade de, sob uma crise dessas, pretender arrancar promessas e legislar intelectualmente sobre o que seria 2022!!
Seja com Haddad, seja com Ciro, a saída, para hoje, passa por reconhecer que o sistema e o PT estão perdidos.
Mas lideranças como Ciro, Marina e Fernando Henrique Cardoso têm se mostrado resistentes a um apoio aberto a Haddad…
Nobre – O que acabei de dizer significa fazer gestos concretos na direção dessas pessoas. Não é apenas, “eu quero conversar com você”. Palavras não bastam.
São gestos concretos para se formar uma frente. Uma frente não se forma apenas porque do outro lado há um risco à democracia. “És responsável pelo segundo turno que conquistas” —o “Pequeno Príncipe” aplicado à política.
Não pode simplesmente dizer, “perdemos”. Pode perder, evidentemente, mas tem que de fato tentar.
Novaes – Haddad é um príncipe pequeno porque há um rei no comando, e esse rei recusou lá atrás o caminho dessa frente pouco inovadora, mas que poderia ter sido uma saída realista, com Ciro na cabeça, como divisei aqui. Ao contrário do que quer Nobre, Lula, que sempre tem a si mesmo em primeiro lugar, já dá sinais de um conformado “perdemos”, como apontei no final do artigo de anteontem.
Pelo que conhecemos do DNA do PT, vê alguma chance de isso realmente acontecer?
Nobre – Quando se tem uma tarefa histórica na sua frente, as pessoas e as instituições mudam. A situação é completamente diferente da de qualquer outra eleição. Se Haddad jogar essa chance fora, carregará esse peso. Vão perguntar: “por que, então, não deixou o Ciro ir?”.
Então Haddad deveria dizer ao eleitor: “Eu proponho essa frente e quero te convencer de que esse governo será muito diferente de todos os outros, que o PT não terá o protagonismo que teve nos governos anteriores. Então quero que seu voto, que hoje é de Bolsonaro, venha para mim. Mas se isso for impossível para você, se sua ojeriza ao PT é superior a qualquer outro sentimento, então, por favor, não vote em Bolsonaro”. Isso ele poderia dizer ao eleitor do PSDB.
Novaes – A pergunta é excelente. Nobre está tão cego para o que realmente está em jogo que insiste em salvar não apenas o sistema, mas ao próprio PT e, por isso, não atina para o que sua própria proposta exige: para ter alguma chance de êxito eleitoral fazendo o que Nobre quer, Haddad teria de se rebelar contra a linha do PT, se atirar na direção do novo, escancarar suas diferenças com Lula e com a máquina, que são reais — mas para isso ele teria de não ter aceito o papel de “Haddad”…
Se FHC se mantiver neutro, isso mancha a biografia dele?
Nobre – Se queremos formar uma frente que tenha por princípio aceitar toda e qualquer pessoa que defenda as instituições democráticas, não pode ter pedágio. O primeiro pedágio é começar a acusar as pessoas. A formação dessa frente é uma dança, e cabe a Haddad dar o primeiro passo. São vários passos simultâneos.
Novaes – Claro que não mancha. Para bem e para mal, a biografia do FHC está consolidada. Entre simplesmente apoiar Haddad e resguardar o que resta de sua voz para se contrapor a Bolsonaro como alguém que não tomou partido, a segunda opção me parece a melhor.
Por enquanto, parece que a abordagem do PT tem um pedágio, usa a mensagem de “ou você nos apoia, ou apoia o fascismo”…
Nobre – Também não digo que essa seja a abordagem do PT. Não quero botar pedágio nem de um lado, nem do outro. Cabe a Haddad, não ao PT, dar o primeiro passo.
Isso são sinais para o eleitorado, as pessoas têm que perceber isso. Haddad tem que dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho que esse sistema funcione de maneira diferente. Meu adversário quer que esse sistema seja destruído. Isso é que está em jogo”.
Novaes – A maioria já enxergou que não tem como fazer esse sistema funcionar em seu favor. E não tem como em razão do que ele conservou da ditadura, não em razão do que a sociedade ganhou em democracia. E o PT não apenas não combateu, como se apoiou nessa herança da ditadura. Por isso, insiste em não atacar o sistema, em confundir esse Estado de direito saído da ditadura com a democracia almejada e nunca consolidada. Haddad teria de reconhecer a contradição entre a sociedade e este Estado de direito e, só então, poder dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho um novo sistema, que permita preservar e, mais adiante, consolidar a democracia que a gente vem construindo há trinta anos. Meu adversário quer preservar o que há de pior no sistema, seu autoritarismo, isso vai trazer de volta a ditadura, jogando fora o esforço democrático dos últimos trinta anos.”
O senhor sente um movimento de setores da sociedade e da imprensa para normalizar Bolsonaro, ou existe de fato um exagero nessa ideia de que ele fará um governo autoritário?
Nobre – A normalização está sendo feita há muito pela mídia tradicional e pelo mercado. No momento em que ficou claro que as forças anti-PT e antissistema confluíram para a candidatura dele, passaram a tentar civilizar Bolsonaro. Mas Bolsonaro já deixou absolutamente claro que é incivilizável. Há uma ilusão da elite pensante de que é um candidato controlável. Pergunto: se o New York Times fosse um jornal brasileiro, o que teria feito com Bolsonaro?
Novaes – Concordo.
Bom, mas existe a discussão sobre o posicionamento do NYT em relação a Trump, que seria panfletário e enviesado, em comparação, por exemplo, com o Washington Post, que adotaria postura crítica, mas com maior distanciamento…?
Nobre – O NYT tomou uma decisão: Trump não é um candidato normal, as instituições estão em risco, e nesse momento as regras mudam. O WP resolveu tratar Trump como um candidato normal. A imprensa brasileira foi WP, não o NYT. Acho a posição do WP equivocada.
E não estou aqui comparando Trump a Bolsonaro. São incomparáveis. Um dos movimentos mais fortes de normalização de Bolsonaro é compará-lo a Trump.
Nunca houve uma ditadura militar nos EUA. Nunca o cara que ganhou uma eleição nos EUA apoiou uma ditadura militar. As instituições americanas têm uma solidez que aguenta o Trump. Imagine um presidente autoritário no Brasil, com instituições em colapso, como são as nossas? Não há instituição democrática que aguente Jair Bolsonaro.
Novaes – Concordo. Pense-se no seguinte: nos EUA, com toda a solidez institucional e com uma opinião pública predominantemente civilizada, Trump separou milhares de crianças dos pais, transportou-as por milhares de quilômetros e as confinou em celas de abrigos, tendo sido necessárias uma batalha judicial e uma cruzada cívica para reverter a medida, reversão que ainda não foi concluída e cujas consequências danosas jamais serão superadas inteiramente. Tanto quanto me ocorre nesse momento, essa foi a operação mais brutal e incivilizada que um país de primeiro mundo praticou em solo próprio desde o que Hitler havia feito na Alemanha contra os judeus, os homossexuais e os ciganos. O que pensar de um Brasil sob Bolsonaro?!
O fato de o PSL, o partido de Bolsonaro, ter feito a segunda maior bancada da Câmara, e que provavelmente será engordada com deputados de partidos nanicos que devem migrar para ele, isso não significa que haverá governabilidade?
Nobre – O partido com a maior bancada, o PT, tem apenas 11% da Câmara. A fragmentação é gigantesca. Você precisa ter uma capacidade de articulação, de reorganização do sistema, que o Bolsonaro não tem. A única resposta que poderá dar é truculência. Ele não tem equipe, nenhum requisito para reorganizar o sistema. Reorganizar o sistema não tem nada a ver com ter maioria parlamentar.
O risco de que o sistema político não consiga se reorganizar é muito alto. E, se não se reorganizar, a hipótese de um golpe volta à mesa.
Novaes – O problema não está na fragmentação, até porque esses partidos vão convergir para blocos nas casas congressuais. Ao contrário do que pensa Nobre, o sistema não vai precisar ser “reorganizado”; no plano congressual ele está organizado como sempre esteve e vai se acertar em “situação”, “oposição” e alguns espertinhos “independentes”. Sob uma presidência Bolsonaro, os problemas serão:
- o grau de compromisso com a democracia que esse Congresso vai ter — a possibilidade de um golpe vai crescer na proporção em que o Congresso proteger as franquias democráticas;
- no preço que o bloco da “situação” + “independentes” impuser para votar com o presidente, pois, mesmo que esse bloco se mostre tão anti-democrático quanto Bolsonaro, vai cobrar para dar ao presidente o que já quer, como expliquei aqui;
- esse preço, e as negociatas em torno dele, podem escancarar para a opinião pública a manutenção do sistema que ela imaginou estar a derrubar, o que tornará a situação instável e pode colocar o país entre o impeachment e o golpe.
Quando o senhor menciona a possibilidade de golpe, estamos falando de um golpe clássico ou algo mais insidioso, os golpes graduais, em sistemas com eleições, que vêm ocorrendo em países como Turquia e Venezuela?
Nobre – Seria uma mistura de Filipinas com Turquia. Nas Filipinas, virou uma coisa do tipo: você tem algum problema para resolver com seu vizinho, com lideranças indígenas, pode resolver que o Estado não vai mais arbitrar. O Estado deixa de arbitrar conflitos violentos na sociedade.
Novaes – Não é que “seria”… O Estado de Direito Autoritário já é essa mistura, basta ver os assassinatos de índios, camponeses, gays, mulheres e a ação do “sistema” diante de tudo isso: finge combater, mas, no fundo, arbitra favoravelmente aos agressores, em graus variados de omissão e engajamento. Temos sido apenas uma Filipinas-Turquia menos ruins. Nobre quer salvar um suposto Estado democrático de direito e, então, fecha os olhos para essas evidências de que ele jamais existiu. Bolsonaro é resultado da contradição irresolvida entre essas práticas autoritárias e a existência de amplas franquias democráticas, tudo sob desigualdade brutal. A autointitulada esquerda brasileira não pôde, e não pode, tirar proveito dessa contradição numa direção emancipatória porque se agarrou a este Estado, ajudou a construí-lo, e quer mante-lo.
O senhor vê isso como uma possibilidade no Brasil?
Nobre – Isso já está acontecendo e vai piorar. Se Bolsonaro tivesse alguma responsabilidade, iria para a TV e diria para essas pessoas: parem. Só que ele tem um problema. Se disser para essas pessoas pararem, está aceitando que é responsável por essa violência. Então temos um impasse. Esse é o lado Filipinas. O outro lado é o de estrangular as liberdades, como é no caso da Turquia.
Como sabemos, a mídia tradicional está em crise profunda. Caso ele ganhe, teremos um presidente com tendências claramente autoritárias num momento em que a imprensa está com dificuldades enormes. Então é a receita para ter restrição, para o governo ir para cima da imprensa.
Você elege seus próprios canais oficiais, segue com campanha em redes sociais, em que não há nenhum controle, e diz : “não acredite em nada que a mídia tradicional diga”.
Novaes – Nobre supõe que o que está acontecendo é uma novidade trazida pelos bolsonaristas radicais. Não é. É a ampliação do que já vinha acontecendo, pois era parte do funcionamento do sistema, sem que os governos do PSDB e do PT tenham realmente se empenhado em combater, ocupados que estavam em sua polarização fajuta e nas vantagens de poder e dinheiro que tiravam dela. Agora, a classe média esclarecida está a enxergar toda a extensão da sua omissão quando quem sofria a violência social eram os índios e os pobres do campo e das cidades. Assim como os desdobramentos do impeachment e da Lava Jato levaram à conflagração do Estado em uma guerra de facções estatais, generalizando para a luta dentro do Estado os métodos facciosos antes empregados apenas contra partes da sociedade, agora, em mais uma volta do parafuso da crise, a generalização do arbítrio vai engolfar novas franjas da sociedade, contra segmentos que se julgavam protegidos. Ou seja, com uma vitória de Bolsonaro se obterá a “pacificação” do Estado de Direito Autoritário, com a moderação da luta entre as facções estatais, ao preço de conflagrar a sociedade. Bolsonaro — que não lidera coisa alguma, ele é a marionete das massas — só irá aumentar a crise de legitimação e, diante dela, vai ficar cada vez mais inclinado, e será cada vez mais empurrado, a resolver na marra.
[15:24h] – Fica o Registro:
- Apesar de todas as evidências, a autointitulada esquerda não deixa de nos surpreender em seu infantilismo e falta de consistência: a essa altura da crise, Boulos, lá do fundo da sua votação ridícula, vem insistir na sua superficialidade deletéria fazendo o que chama de ironias, quando o que o país precisa é de argumentação dedicada. O Brasil está em jogo, em meio a forças tremendas, e Boulos fica a se medir com Bolsonaro com provocações contraproducentes!
Bom dia Sr. Carlos Novaes,
Só nos resta esperar o pior? devemos ficar com medo? É inacreditável que estamos no limiar novamente de um golpe militar!!!!
As respostas às suas perguntas estão no post de hoje.