Carlos Novaes, 05 de março de 2021
Como sabido, cerca de 80% da sociedade brasileira prefere a democracia à ditadura. A maioria dos que votaram em Bolsonaro deu-lhe o voto apesar de ele defender barbaridades ditatoriais, e não porquê ele as defendia. Como nosso cérebro é um poderoso criador de narrativas, essas pessoas improvisaram a ideia de que o discurso autoritário de Bolsonaro era “da-boca-prá-fora”. Quer dizer, a motivação antissistema desses eleitores era tão forte que eles preferiram engolir Bolsonaro a ter de votar em uma candidatura saída do “sistema”. Além disso, não se pode descartar que nesse “da boca-prá-fora” houvesse o seguinte subtexto: “até porque, se não for assim, a gente impede”. Como quer que tenha sido, para a maioria dos que votaram em Bolsonaro não havia uma adesão a qualquer projeto ditatorial, pelo contrário.
Se o que acaba de ser dito é verdade, Bolsonaro vem acumulando desgastes, afinal:
- Ao tentar confundir o apoio da maioria da sociedade para enfrentar o “sistema” com apoio a uma saída ditatorial, ele tem feito encenações pró ditadura (já discutidas aqui e aqui) que agridem a preferência democrática da maioria. Mais abaixo veremos que essas encenações apresentam duas fases diferentes: antes e depois da rendição ao Centrão.
- Ao constatar a inviabilidade de governar com êxito com base em blefes ditatoriais, Bolsonaro deu meia volta e voltou a marchar na direção claramente contrária à motivação antissistema da maioria que o elegeu: se rendeu ao Centrão.
Quer dizer, essa reunião de encenação pró-ditadura com rendição ao Centrão é tradução errada da motivação antissistema da maioria da sociedade e, portanto, danosa junto à opinião pública, pois a maioria da sociedade não quer nem uma coisa, nem outra. Ainda assim, poder-se-ia enxergar alguma astúcia nela se o Centrão pudesse funcionar como apoio paisano sólido para uma saída ditatorial almejada, somando-se a apoios militares segundo a seguinte equação: Centrão+FFAA+PMilícia=golpe a favor de Bolsonaro. Seria uma aventura contra a preferência da maioria da sociedade, mas poderia ser tentada.
Entretanto, o Centrão, cuja unidade é precária e precisa ser azeitada com acesso ao poder para fazer dinheiro, não tem interesse em uma saída ditatorial. Qualquer um que olhe a história dos políticos do Centrão constata que essa geleia é o fundo do tacho do dispositivo paisano legado por 1964 ao Estado de Direito Autoritário que nos infelicita há trinta anos. Eles têm ou receberam a memória de como era a vida como congressista sob ditadura e a comparam com a vida que têm levado nesses trinta anos: com a presidência da República sob Estado de direito, sujeita ao manejo da lei e a ter de agradar a maioria da sociedade, há mais espaço para negócios do que sob Estado ditatorial. E não é só isso. As franquias democráticas que esse Estado de Direito Autoritário preserva permitem o jogo faccioso na disputa para cargos de governador e prefeito. Por que iriam trocar tudo isso pelas incertezas de fazer do besta a besta?
A alta oficialidade das FFAA não tem coesão para quebrar essa ordem institucional que a beneficia. Pelo contrário, quem está na ativa prefere a vida como ela é a uma aventura com final incerto e, provavelmente, adverso [devemos lembrar que nossos oficiais não têm experiência de combate – menciono esse ponto não para lembrar a ideia de “combate”, mas para chamar a atenção para a ideia de “incerteza” que todo combate traz (de novo: nossos oficiais estão apegados ao rotineiro, não têm a experiência do incerto)]. Quer dizer, eles só entrariam numa aventura ditatorial de Bolsonaro se fossem empurrados por um vigoroso movimento de insubordinação. Um movimento desses requereria que se desse pelo menos uma de duas coisas entre os soldados: a emergência de uma sólida determinação ideológica, ou o cálculo para proteger ou alcançar benefícios palpáveis. Bolsonaro não tem meios de suscitar nos soldados nem uma coisa, nem outra: vem se desmoralizando no plano ideológico e não maneja recursos que possa distribuir aos soldados para além das benesses com que vem agradando a oficialidade mais aderida.
O pendor ditatorial da PMilícia é intrínseco. Como dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PMilícia sempre será um problema para quem almeja um Estado de Direito Democrático no Brasil, mesmo que nas fileiras da PM existam muitos democratas — o problema da PM está na forma militar rebaixada, condição de origem que gera uma liga profundamente antissocial e antidemocrática: ressentimento + truculência. Embora essa mistura venha servindo à dominação do povo pobre, ela só poderia tentar espraiar suas práticas para toda a pirâmide social se houvesse uma desagregação institucional que engolisse as FFAA. Bolsonaro, que foi expelido do Exército por ter se mostrado um soldado com motivações e práticas de miliciano, enxerga a si mesmo como beneficiário de uma situação assim, mas ela não está à vista.
Além de tudo que se viu acima como obstáculo a uma saída ditatorial para o Estado de Direito Autoritário a favor de Bolsonaro, há a circunstância de que, num golpe a favor, Bolsonaro teria contra si os desgastes propriamente governamentais do governo que ele próprio protagoniza. Não há campanha publicitária capaz de colocar Bolsonaro em condições de ser visto pela maioria da sociedade como o líder capaz de oferecer solução aos problemas do país. Pelo contrário, ele vem sendo crescentemente visto como alguém incapaz para o cargo. Depois de dois anos na presidência, Bolsonaro já não pode ser depositário das esperanças da maioria, fator indispensável para um golpe de Estado que se apresente como uma reconciliação entre Estado e sociedade. De novo: teria de ser um golpe abertamente sangrento, para o qual não há coesão militar.
Foi em resposta a esse conjunto de adversidades que Bolsonaro passou à segunda fase de sua encenação ditatorial, num malabarismo que só o enfraquece aos olhos dos que ainda têm alguma preferência por ele: acuado pelo STF e rendido ao Centrão, ele deixou de lado o combate às facções estatais e concentrou seu suposto compromisso antissistema contra o que chama de “imprensa mentirosa”, que insinua pretender proibir. Já nessa seleção Bolsonaro mostrou seu pendor estatista: deixou de lado a dimensão propriamente estatal do “sistema”, e passou a concentrar seu combate na dimensão de mercado do que ele chama de “sistema”: a imprensa. É evidente que o tempo vai corroer os pés de barro dessa tática imbecil, pois, quando mais não for, a maioria dos que votaram nele é pró-mercado.
Pois bem, em total convergência com a dinâmica propriamente estrutural-estatal acima descrita, que vem de longe, há contra a besta a dinâmica conjuntural que nos devasta, atingindo sociedade e mercado: está à solta um vírus mortífero com o qual Bolsonaro não apenas não sabe lidar, o que seria contornável, mas ao qual ele estupidamente escolheu como pivô para sua aposta final, estupidez da qual ele começa a se dar conta quando volta a blefar, dessa vez dizendo que tem um plano para enfrentar o vírus, mas quer mais poder para implementá-lo.
Para entender essa jogada de Bolsonaro é útil ter em mente sua natureza temerária, própria de quem se atira a realizar sonhos espetaculares com base apenas na vontade individual. Bolsonaro sempre foi um voluntarioso: muito afeito a correr riscos, mas com pouca capacidade de se antecipar a resultados adversos, coisa típica dos aventureiros de garimpo, que sonham com a pedra que lhes resolverá a vida. Bolsonaro se conduz na política sob uma “febre do outro” que não arrefece e perturba os cálculos que deveras faz.
Ao blefar que tem um plano e se agarrar às quimeras de um spray milagroso, o garimpeiro estúpido tenta, mais uma vez, criar a atmosfera de expectativas própria de uma campanha: põe a si mesmo como marco entre um hoje impropício e um amanhã promissor, sempre na base do tudo ou nada, como no garimpo, ou no jogo de azar. É uma tentativa triplamente imbecil, que só poderá fracassar: primeiro, porque faz segredo do suposto plano, como se ele fosse uma pedra preciosa, quando a emergência de uma resposta ao vírus requer divulgação; segundo, porque imagina poder apagar a memória viva do seu péssimo desempenho como governante com uma promessa assim vazia de dias melhores, tentando reinaugurar o próprio governo; terceiro, porque para ter elaborado um plano assim decisivo ele teria de ter passado a levar o vírus a sério, o que tornaria evidente o erro de tê-lo menosprezado até aqui, além de requerer desse tapado um comportamento diametralmente oposto ao que continua a ter. Enfim, nosso “gênio do mal” está cada vez mais perdido.
Seria de comemorar, não fosse pelo mal que tudo isso tem causado; não fosse pela falta de alternativa em que o país se encontra — afinal, o fato de Bolsonaro não poder se beneficiar da ruína que está a gerar não tem como resultado uma saída benfazeja para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.
Professor Novaes,
És um oráculo, estava precisando ler os artigos, há muitas análises equivocadas sobre um suposto golpe de Bolsonaro, o que, e sendo esclarecido pelo Sr. Em outros artigos, não se revela um fato sólido, haja vista que o Besta está rendindo pelo centrão e nutre esse para lhe ainda legitimar no poder.
O sr. ver possibilidade de um impeachment? Alguns já observam um movimento a isso. A governança do país diante da pandemia é insustentável.
João, o impeachment é recurso esgotado faz faz tempo. Há um artigo meu, do tempo do Temer, em que explico minha posição sobre isso. Mas, pode ser que o Centrão venha a se juntar aos outros para essa “solução”. O besta está acuado e em profunda desorientação. A volta de Lula à disputa aberta pelo controle do polo dinâmico do jogo de facções mostrou ao imbecil que a rendição ao Centrão foi apenas isso, rendição. Bolsonaro não tem recursos para liderar nada. Agora, faz um blefe por dia. Mas só os muito tolos o temem e os muito espertos fingem teme-lo. Bolsonaro se tornou utilíssimo à solda das facções em busca da restauração plena do velho normal.