Carlos Novaes, 05 de agosto de 2021
A percepção da maioria da sociedade de que o Estado de Direito Autoritário não apenas não favorece como solapa as condições para a consolidação de uma democracia no Brasil é o vetor central da crise de legitimação do Estado brasileiro, que atua segundo práticas escancaradamente ilegítimas nos três poderes da República. Quer dizer, quando se refere ao Estado, a maioria de nós, que preferimos a democracia, já está além da desconfiança contra ele e, por isso, estamos prontos para receber com simpatia qualquer crítica à atuação arbitrária, corrupta, enganosa e privilegiadora dele.
Já vimos a origem da prolongada crise de legitimação que se confunde com esses sentimentos, já discutimos seu desenvolvimento, já mostramos que não se trata de uma crise institucional e, chegando aos detalhes, explicamos que a vitória de Bolsonaro em 2018 se deu porque ele logrou a maioria ao fazer parecer que seu alegado (e falso) compromisso “antissistema” era uma resposta real à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.
O desespero que conduz Bolsonaro pela trajetória que o leva a um beco-sem-saída se deve ao fato de que o logro chegou ao fim: não apenas a maioria da sociedade, mas até a maioria dos eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno em 2018 já entendeu que esse imbecil não tem a menor condição de oferecer uma alternativa à crise de legitimação do Estado; pelo contrário: seja por suas delirantes motivações ditatoriais, seja em sua autocontraditória (pelo que diz), mas coerente (pelo que sempre fez) rendição ao Centrão (um dos vetores facciosos que embarreiram a consolidação de uma democracia entre nós), seja, ainda, por sua incompetência desumana (escancarada diante da Covid-19), Bolsonaro está na contramão do que quer que a maioria de nós possa almejar como saída para o país. É nessa espiral para o fundo do poço que entra a bandeira do chamado “voto impresso”.
O voto impresso é uma tentativa do besta de juntar os trapos e dar aos seus últimos seguidores uma bandeira para empunhar: combina crítica (falsa) ao Estado, aprimoramento (inexistente) de nossa engenharia eleitoral, defesa (fajuta) da democracia e empoderamento (vicário) do eleitor individual. Detalhemos.
Ao fazer a crítica de como o Estado organiza a eleição, Bolsonaro tenta vibrar a corda “antissistema” que a crise de legitimação mantém esticada. Ocorre que todas as alegações de fraude eleitoral trazidas por ele contra a urna eletrônica são falsas. São uma mistura de histórias velhas com conjeturas idiotas, para as quais não há uma única evidência nem amparo na razão. Ao revidar pedindo prova de que a urna eletrônica não é fraudável o besta nos dá, isso sim, mais uma prova da própria imbecilidade, afinal, qualquer pessoa capaz de pensar com o mínimo de lógica sabe que todo sistema complexo é comprovadamente hígido até que se prove sua falha, sendo impossível fazer prova outra da infalibilidade dele!
Pretender que o voto impresso seja um aperfeiçoamento da engenharia eleitoral eletrônica esbarra em evidências contrárias: a impressão do voto traria custos financeiros e materiais adicionais, além de aumentar consideravelmente o tempo de votação, o que exigiria, no mínimo, dobrar o número de urnas (seções eleitorais). Além disso, o voto impresso seria retrocesso inconveniente porque introduziria, ele mesmo, um elemento de fraude, pois traria de volta a conferência manual do voto, evento que sempre esteve no centro das fraudes eleitorais do tempo do voto em papel, cujas impropriedades veremos a seguir.
Ao invés de defender a democracia, o movimento pelo voto impresso é um ataque às bases dela, e por meio de um argumento fajuto. A delegação de poder está na base da democracia: o eleitor delega ao Estado o poder de organizar o processo eleitoral e, no curso dessa delegação de longo prazo ele, o eleitor, delega a outrem (ao candidato eleito), pelo voto, a delegação conjuntural da sua própria parcela de poder. Quer dizer, o poder do eleitor é por assim dizer delegado duas vezes: primeiro, de forma mais estável, a quem organiza o pleito, segundo, de forma mais dinâmica, a quem se submete ao pleito. O movimento pelo voto impresso parte da suposição fajuta de que é possível ao eleitor não fazer a primeira delegação, justamente aquela da qual deriva a segunda. Por essa ideia fajuta, é como se o eleitor pudesse ser o fiscal e o garante do seu próprio voto individual. Além de contrariar os fundamentos da democracia, essa ideia também é fajuta à luz de um reles raciocínio prático: ao conferir e fiscalizar seu voto impresso caindo na urna o eleitor nada faz de diferente do que fazia o eleitor do passado, quando escrevia, olhava e enfiava na urna o seu voto em papel. Esses gestos nada garantem sobre os passos futuros daquele pedaço de papel: reunido a outros, ele será anonimamente despejado numa mesa e contado por mãos humanas. Ou seja, escrito em papel, impresso, ou eletrônico, o voto sempre foi e sempre será conferido, fiscalizado e contado pelos agentes previstos pelo Estado, nunca pelo indivíduo – e isso está na base da democracia.
Reside justamente nessa volta da manipulação do voto em um pedaço de papel o desmentido de que o voto impresso aumentaria o poder do eleitor sobre o seu voto individual. Essa fantasia requer acreditar que tudo se resume no fato de o eleitor enxergar seu voto impresso caindo na urna plástica. Por fiel que tenha sido a impressão, e por mais que o eleitor esteja seguro de que viu seu voto impresso cair na urna, ele não terá o menor controle sobre as etapas subsequentes, as quais, como vimos no parágrafo acima, dependerão de operações manuais de terceiros, tal como era na época do voto em papel. É a essa manipulação material, não eletrônica, que os defensores do voto impresso chamam indevidamente de auditagem pública!
O movimento pelo voto impresso destina-se a tornar ainda mais frágil o exercício das franquias democráticas. Ao contrário do que dizem seus defensores, o que se pretende é questionar o “de direito” e incrementar o que há de “autoritário” no Estado de Direito Autoritário.
Como já esmiuçado em vários posts deste blog, é exatamente por ser “de direito” que nosso Estado de Direito Autoritário dialoga com aspectos fundamentais do Estado de Direito Democrático a que ele arremeda desde a transição democrática truncada. Ali onde esse arremedo impõe a consulta à vontade popular na hora de decidir o quinhão de poder de cada facção na luta pelo privilégio de comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais, o Estado de Direito Autoritário se viu constrangido a banir a fraude da engenharia eleitoral, tudo o mais podendo ser fraudado depois. É essa contradição que está na base da frustração em que vive a maioria da sociedade brasileira: lutou pela democracia, prefere a democracia, vota democraticamente e foi condenada a viver sob um Estado de Direito Autoritário – eis outra maneira de mostrar a crise de legitimação.
Vejamos mais de perto essas complexidades, no próximo artigo.