Carlos Novaes, 12 de junho de 2021
Há anos o esforço maior deste blog é discutir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, mostrando como essa crise se torna dia-a-dia mais aguda com a intensificação da luta entre as facções estatais em busca de poder para fazer dinheiro através do exercício faccioso dos poderes institucionais. Essas facções fazem seu jogo de costas para a imensa maioria da sociedade brasileira e vem daí a sensação correta de que Estado e sociedade estão separados no Brasil. A crise é de legitimação porque a imensa maioria da sociedade já não reconhece como legítimo o Estado de Direito Autoritário, que mata e pune fazendo uso ilegítimo da força; rouba fazendo uso ilegítimo do poder de contratar; cria privilégios para alguns enquanto desampara a maioria fazendo uso ilegítimo do poder de distribuir verbas; promove a injustiça fazendo uso de um sistema tributário ilegítimo, que obedece à máxima de que “os ricos não podem perder”, enquanto esmaga as camadas médias e esfola o povo pobre; condena o país ao atraso fazendo uso ilegítimo do poder estatal para, ora manter, ora reforçar o que há de pior na estrutura econômico-social do país: a desigualdade.
A imensa maioria da sociedade já enxergou tudo isso e muito mais, mas o faz de maneira desigual, segundo preferências em conflito, pois nossos cérebros não poderiam mesmo concatenar de uma hora para outra, de modo coletivo, as razões e os afetos suscitados por esse conjunto de desafios, que nos são apresentados em meio a sofrimentos que não param de crescer numa luta pela vida cada vez mais dura. Sem saber como, temos de enfrentar de uma só vez duas urgências: uma urgência social e uma urgência por ordem. Como já discuti aqui, a dificuldade de concatenação mencionada arrastou a maioria da sociedade brasileira a se dividir opondo essas duas urgências, ao invés de procurar uma saída que encare o fato de que as duas urgências são mutuamente dependentes. Vem daí, em última instância, a mais nova polarização fajuta, Lula x Bolsonaro. Nem Lula é resposta para a urgência social; nem Bolsonaro é alternativa à urgência por ordem, como detalhei quando discuti Haddad x Bolsonaro em 2018. A maioria da sociedade brasileira marcha no pátio do seu labirinto.
Para piorar a situação, como Bolsonaro orienta seu governo criminoso segundo o desejo delirante de se tornar um ditador, criando com isso toda sorte de tensão institucional, a maioria da intelectualidade brasileira e a nossa autointitulada esquerda encontraram uma oportunidade para, ao defenderem as franquias democráticas agredidas pelo desejo ditatorial de Bolsonaro, acabarem por entrar no beco sem saída de defender este Estado de Direito Autoritário como se ele fosse um Estado democrático de direito. Com isso, ficam todos na contramão do virtuoso vetor saído dos sentimentos conflitantes da maioria da sociedade brasileira: a crise de legitimação do Estado que a massacra. Em suma, esses bem pensantes ficam a defender um Estado que a maioria de nós já não quer!
Esse é o equívoco básico da “Frente” contra Bolsonaro, não sendo surpresa alguma que esse “frentismo” rapidamente tenha vindo a dar saltos para o nada. Primeiro pularam fora os oportunistas, que logo puseram na rua suas candidaturas. Mais adiante, a volta de Lula ao cenário eleitoreiro com aura de injustiçado (que o foi!) soterrou de vez o “frentismo”, visto que a força de Lula escancarou uma das fraquezas mais evidentes da ideia de Frente: na verdade, falava-se em frente porque não havia ninguém em condições de liderar o campo antiBolsonaro… Com o revigoramento de Lula… Finalmente, temos agora uma nova versão do “frentismo”, cujo principal teórico é o professor de filosofia da UNICAMP e presidente do CEBRAP, Marcos Nobre, que acaba de descobrir o papel do segundo turno numa eleição presidencial em dois turnos: promover a reunião de quem pensa de modo semelhante contra o candidato a quem rejeita…
Em entrevista recente, Nobre pretende dar fundamento à sua descoberta com três ideias básicas: (i) nossas instituições estão em colapso; (ii) se perder a eleição, Bolsonaro tentará dar um golpe; (iii) Bolsonaro é um candidato fortíssimo.
(i) Bem, Nobre está a chamar de “colapso das instituições” a crise de legitimação do Estado, só que ele vê essa crise pelo lado do Estado, não pelo lado da maioria da sociedade. Note bem leitor, Nobre fala de “colapso” como se esse tal colapso nada dissesse acerca da qualidade da prática propriamente institucional dessas instituições estatais. Por isso, ele defende o Estado. Ora, essas instituições estão voltadas para dentro de si mesmas porque são, faz tempo, teatro de uma luta entre facções estatais pelo exercício faccioso dos poderes institucionais. Esse encapsulamento nas instituições só cresce, como estamos a ver todos os dias e é por isso que a maioria da sociedade já não as legitima. Peguemos casos recentes: como não ver facciosismo quando Pazuello não é punido; ou quando a Polícia Civil do Rio mata a esmo no Jacarezinho; ou quando a Caixa lança um programa de crédito voltado à PM com 100% de financiamento da casa própria; ou quando Fux direciona a dedo a distribuição de processos no STF; ou quando o deputado Silveira é preso ao arrepio da lei; ou diante de um orçamento paralelo que permite a certos deputados comprarem tratores por cinco vezes o preço; ou quando mineradoras e madeireiras encontram aliados nos órgãos ambientais; ou quando a FUNAI se volta contra os índios?!
(ii) Não é que Bolsonaro pode tentar um golpe. Não. Ele vem tentando faz tempo. Afinal, o que têm sido as manifestações antiinstitucionais dos últimos anos senão tentativas de golpe, ainda que na forma de blefes?! Só que, como detalhei aqui e aqui, a besta tem se deparado com a rejeição da maioria da sociedade brasileira a mais autoritarismo (afinal, essa maioria entende ilegítimo nosso Estado de Direito Autoritário não por ele ser de Direito, mas por ele ser Autoritário…) e na falta de apoio das FFAA (que estão à vontade com o autoritarismo já em vigor). Se perder a eleição, como é mais provável, Bolsonaro ainda terá contra suas pretensões golpistas a materialidade dessa derrota, quer dizer, a maioria do eleitorado terá lhe dado as costas. Logo, o desejo delirante de Bolsonaro de se tornar ditador não deve servir para desenhar nenhuma tática e, muito menos, para orientar qualquer estratégia na luta por um Estado de Direito Democrático para o Brasil. O que Nobre propõe é o que também o Centrão e os militares querem: a restauração do estado de coisas anterior a Bolsonaro, justamente o que nos levou a Bolsonaro…
(iii) Não temos como antecipar a força eleitoral de Bolsonaro em 2022. Contra ele há tudo o que sabemos; a favor dele pode haver uma melhora sensível na economia e o arrefecimento da pandemia. Quanto essas “melhoras”, se ocorrerem, compensarão os sofrimentos e contrariedades havidos? Não sabemos. A julgar pelos dados hoje disponíveis, as escolhas de Bolsonaro o fixaram na contramão das preferências da imensa maioria da sociedade brasileira, o que torna muito difícil uma vitória eleitoral numa eleição disputada em dois turnos, por mais competitivo que ele venha a ainda se mostrar. Agora, se não houver “melhoras”, não há porquê descartar uma vitória de Lula já no primeiro turno.
Enfim, não precisamos de Frente alguma para enfrentar Bolsonaro, ainda menos se o programa da Frente for restaurar a situação anterior a Bolsonaro (como se isso fosse possível…). Precisamos reunir forças para construir um projeto que nos permita combater a desigualdade na direção de um Estado de Direito Democrático articulando as nossas duas urgências, a urgência social e a urgência por ordem. Se não houver essa reunião de forças até a eleição de 2022, voltaremos a nos dividir tão improdutivamente quanto em 2018 e, nessa situação rebaixada, cada um escolherá o que parecer menos pior, o que nos levará a fazer maioria contra Bolsonaro, se ele estiver no segundo turno.
Fica o Registro:
– Faz algum tempo, discuti em mais de um post neste blog indícios de que a luta entre facções estatais havia chegado ao Exército. Tempos depois, ponderei que a defesa do impeachment de Bolsonaro era contraproducente quando se almeja construir no Brasil um Estado de Direito Democrático, pois o vice-presidente da República é o general Mourão, que se chegar ao poder dará ainda mais coesão ao facciosismo militar. Mais recentemente, apontei a dinâmica facciosa dos militares em torno de Bolsonaro e discuti porque eles não entrariam na aventura de um golpe para dar ainda mais poder ao besta: além de já estarem sendo atendidos pela situação atual, se participassem de um golpe a favor de um mandatário impopular eles não poderiam deixar de se transformar em força auxiliar da PMilícia. Por último, ao analisar a caso da indisciplina de Pazuello, observei que a decisão de não puni-lo abriu o Exército para a lógica da PMilícia, que reside na quebra permanente da hierarquia militar em favor da disposição para o uso danoso da força. Ainda que essa decisão do alto comando militar tenha sido um recuo tático para melhor enfrentar o golpismo de Bolsonaro, e não uma capitulação diante do aspirante a ditador, o fato é que essas intenções dos agentes valem pouco diante da dinâmica criada pela força dos fatos: pode haver incremento à insubordinação e à quebra da hierarquia.
– Para acompanhar essa dinâmica propriamente militar vejo como fonte interessante o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza. Em entrevista recente, ele fala do que intitula um Partido Militar, chefiado por generais da reserva e da ativa e voltado a ocupar e permanecer no poder sem um golpe como o de 1964. Olhada com atenção, a reflexão do ex-coronel mostra em detalhes o funcionamento faccioso desse braço político dos militares, sendo útil substituir a metáfora “partido militar” pela designação mais apropriada de facção, providência que joga luz na crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que nos foi legado pela transição democrática truncada.
– O voto impresso vem sendo combatido de maneira improdutiva porque o argumento básico é condená-lo como um “retrocesso” quando comparado ao avanço tecnológico alcançado com o voto virtual. Esse fetiche tecnológico bloqueia discutir o principal. O problema com o voto impresso é político, seja num sentido analítico, seja num sentido prático. De uma perspectiva analítica, ao imprimir o voto para a verificação pelo eleitor se dará a ele um poder contraproducente (e que ele jamais teve!): o poder para conferir o seu voto individual. No sistema antigo, uma vez aberta a urna, eleitor nenhum poderia identificar nela o seu voto. Às mesas de apuração cabia conferir as cédulas e apurar os votos. O fundamento de um sistema eleitoral, seja o voto em papel ou eletrônico, é realizar a conferência depois que o eleitor, ao delegar a parcela de poder que o seu voto representa, delegou também a competência para que se faça a conferência da preferência embutida nessa delegação. No caso do sistema adotado no Brasil, a conferência eletrônica pode ser verificada e acompanhada por vários agentes independentes e concorrentes, não havendo ganho nenhum em transferi-la para o eleitor individual. Do ponto de vista prático, se está a abrir a possibilidade de que eleitores interessados em impugnar os votos de determinadas urnas, ou motivados a tumultuar a hora da eleição, apontem defeito inexistente, pois sendo o voto secreto, não será possível tirar de pronto a prova.