Carlos Novaes, 28 de julho de 2021
Em Fica o Registro, link para meu livro sobre obras de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev
O modo saliente com que a facção militar vem se conduzindo no governo intensifica duplamente a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: primeiro, porque permite ver também as instituições militares segundo suas práticas ilegítimas (o que a análise convencional chama de “perda de prestígio”); segundo, porque é uma saliência que traz à lembrança, na forma de blefe, o autoritarismo real que os milicos promoveram e que a maioria da sociedade repudia pelo menos desde a chamada transição democrática. Ou seja, a facção militar está na contramão do que interessa à maioria e, como já vimos, nem no meio militar ela teria condições, se realmente o quisesse, de impor uma saída golpista para a crise.
Entretanto, desde o início do ano passado a mídia convencional insiste em insuflar o medo ao golpe. Fazendo o inverso disso, desde sempre este blog veio explicando o quão infundado é esse medo, que está a serviço da restauração. Só muito recentemente, depois da total desmoralização de Bolsonaro e seus blefes, a mídia tem combinado a propagação desse medo com o deboche. Entretanto, mesmo quem debocha sucumbe à confusão divulgando a ideia tola de que as movimentações mais salientes da facção militar (à qual chamam de “ala militar” ou de “partido militar”) são o sinal de um golpismo latente a ameaçar um suposto Estado democrático de direito. Não é nada disso, leitor.
Peguemos o exemplo mais recente, essa história em torno do general Braga Neto, ministro da defesa. Tudo se passa como se o tosco Braga Neto estivesse realmente empenhado em obter o voto impresso e, assim, resolveu enviar recados golpistas, primeiro ao Congresso, depois ao STF, sobre cancelar as eleições em caso de não adoção da mudança pretendida por Bolsonaro. Essa leitura permite ao comentador convencional abordar a situação como mais uma “crise institucional” a ferir a nossa democracia… E chovem manchetes e comentários indignados!
Na verdade, o que quer que tenha sido dito e venha sendo feito por Braga Neto deve ser avaliado tendo em mente que o general é chefe de facção, assim como Ciro Nogueira ou Lula – é um jogo dentro do Estado, pelo qual os atores buscam reunir poder para fazer dinheiro. Vendo que sua facção está a perder poder (portanto, um sinal de fraqueza, não de força), Braga Neto grita o que o chefe quer ouvir para mostrar serviço, tal como o Centrão faz pela outra ponta. Estão todos a tentar arrancar tudo o que podem enquanto há tempo. Quer dizer, Braga Neto se dirigiu a Bolsonaro, não ao Congresso, nem ao STF. O “recado” dele deve ser recebido pelo leitor bem informado como um lance intra muros, a soar como um blefe dentro do blefe. O que disse o ministro da defesa não encontra eco substancial na alta oficialidade das FFAA que, entretanto, não pode desmenti-lo precisamente porque entende como mais vantajoso obedecer a Constituição a que o golpismo estaria a ameaçar!
Quem não faz uma análise detida da situação estrutural do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação fica assim, dançando ao ritmo do que há de supérfluo na conjuntura, e só põe a mão no fruto quando ele já está podre. Por exemplo: só agora descobriram a rivalidade entre os milicos do palácio e os paisanos do Centrão, as duas facções que dão expressão original (militar e congressual) ao autoritarismo de Bolsonaro… Quem lê este blog sabe, pelo menos desde junho de 2020, que Bolsonaro teria de fazer
“uma reconfiguração da presença militar, levando os milicos a entregarem postos de mando recém conquistados. Essas conquistas haviam sido obtidas no embalo de um projeto ditatorial sem lastro e, portanto, eram uma exceção que erodiu à medida que Bolsonaro veio sendo empurrado de volta ao velho normal.”
Em suma, quanto mais a facção militar grita as suas perdas, mais longe estamos de um golpe e mais fundo nos abismamos na crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário…
Enquanto isso, os braços congressuais das facções fingem disputas que encobrem a disputa que deveras fazem: fingem que travam uma batalha sem trégua por objetivos gerais contrastantes; enquanto disputam para valer os meios de ditar os termos da trégua em que deveras se entendem para distribuírem entre si o que arrancam do lombo da maioria da sociedade. Exemplo disso é o fundo eleitoral: todas as facções querem dinheiro público legal para repartir entre si (o PT sempre foi o maior entusiasta desse fundo, assim como do outro, o fundo partidário), mas sabendo da oposição da maioria da sociedade, embrulham a coisa de modo a obter o dinheiro se comprometendo o mínimo possível, encenação pela qual empurram o ônus uma para a outra, o que reitera a ilusão de polarização ali onde todos estão de acordo. Em seguida, se unem na propagação de que ser contra esses fundos é ser contra a política, como se a política se resumisse à prática e à existência dos políticos profissionais, ávidos por fundos.
Nessa disputa facciosa pelo modo de configurar a forma do poder entra, por exemplo, o telequete “presidencialismo versus parlamentarismo”… A coisa toda pode ser resumida assim: as facções que dispõem de estrutura burocrática firme e liderança arbitral preferem o presidencialismo (PT, PDT etc), já as facções que dependem de ampla e permanente concertação interna de interesses (cuja origem são os partidos da ditadura, p-MDB e ARENA, formados na prática miúda, pois não podiam disputar a presidência da República), se dizem parlamentaristas. A versão mais recente dessa patranha é o semipresidencialismo (ou semiparlamentarismo), que consiste em manter a figura do presidente, mas retirando poderes da presidência da República em favor do Congresso, deste Congresso…
Enfim, pró ou contra Bolsonaro, as facções continuam a se entender para preservar o Estado de Direito Autoritário e nada do que aconteceu no último mês trouxe novidade.
FICA O REGISTRO:
Aos interessados no realismo literário na Rússia do século XIX, informo que no curso deste mês de julho concluí a versão final do meu livro sobre as relações que julgo ter descoberto entre obras dos escritores russos Ivan Turguêniev e Aleksandr Púchkin. A mera leitura dos índices do meu trabalho mostra que o estudo do material literário me levou a interpretar de maneira nova passagens decisivas de Eugênio Oneguin e de Notas de um caçador.
Eis o link para a versão integral do livro, em formato .pdf:
LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX
Realismo literário como crítica em obras-primas de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev