Carlos Novaes, 22 de agosto de 2021
O que vou dizer a seguir poderá ser melhor compreendido por quem tiver em mente tudo o que foi dito em pelo menos dois antigos artigos deste blog. É que há pouco mais de quatro anos (Jun. 2017), escrevi aqui que a banalização do recurso ao impeachment estava associada à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário:
o impeachment já não tem o poder prestidigitador que vinha tendo, pois a ilegitimidade do próprio Congresso veio a furo. A melhor maneira de perceber que um truque de mágica ficou manjado é vê-lo a ser encenado por qualquer um – pois é o que estamos a ver: há gente propondo impeachment por todo lado; ele, o impeachment, virou a varinha de condão da luta de facções em que está abismado nosso Estado de Direito Autoritário.
Na mesma conjuntura em que as linhas citadas acima foram escritas, também tentei mostrar aqui a diferença entre “crise institucional” e “crise de legitimação”, explicando que as facções são transversais às instituições do Estado de Direito Autoritário, indicando o facciosismo no meio militar e apontando que, naquela altura da crise (set. 2017), estávamos abrindo espaço para
uma solução ao mesmo tempo conservadora, constitucional, eleitoral e militar. A versão abominável seria a eleição de Bolsonaro, que banalizaria o emprego das prerrogativas do art. 142 da Constituição, tornando rotina a presença militar nas ruas; a versão horripilante seria a eleição de qualquer dos nomes do chamado “centro”, com o qual se alinhem as bancadas evangélica, da bala e do boi. Nossa passividade levou o Brasil a uma atipicamente prolongada crise de legitimação, uma vez que a falta de legitimidade do Estado não encontra outra ebulição senão a das suas próprias facções internas, as quais, dada sua natureza apartada da vida real, não podem gerar alternativa. Se não nos mexermos, se nos limitarmos a rogar respeito a uma Constituição que já foi rasgada, acabaremos por encontrar uma nova estabilidade, em termos muito mais desfavoráveis à imensa maioria de nós e, ainda pior, com o voto da maioria de nós.
O jogo pós 2017 foi jogado do modo como sabemos e nossa situação só não é pior porque, para nossa sorte, Bolsonaro revelou-se ainda mais imbecil do que parecia: como expliquei aqui, aqui e aqui, ele desperdiçou a oportunidade que o coronavírus lhe deu de figurar como salvador da pátria enquanto nos imporia restrições militares constitucionais na forma de GLOs voltadas ao combate da pandemia. Se Bolsonaro tivesse logrado colocar os milicos na rua sob seu comando, seria muito mais difícil fazê-los voltar para os quartéis do que será agora, quando eles tiverem de deixar os cargos que passaram a ocupar disfarçados de paisanos nesse desgoverno. Quer dizer: com GLOs generalizadas (e legais!!), Bolsonaro teria pavimentado com material sólido o caminho para uma tentativa de golpe.
Mas a preferência da imensa maioria da sociedade pela democracia, em contraste com a ruidosa minoria saudosa da ditadura paisano-militar, arrastou o imbecil a uma série de escolhas incongruentes: fazer o jogo do Centrão em busca da “governabilidade” e, na direção oposta, insistir em tentativas de golpe condenadas ao fracasso, tudo isso combinado com o abandono da população à própria sorte, seja na pandemia, seja na ausência de alguma governança. Felizmente, essa danosa barafunda impediu que em torno de Bolsonaro se fundissem, por exemplo, as bancadas BBB (Bíblia, Bala e Boi), como eu temia que ocorresse se o eleito em 2018 fosse um candidato do chamado “centro”, ou seja, algum profissional do velho normal. É que ao insistir em ser adversário do Estado de Direito Autoritário, Bolsonaro se coloca como não confiável para o jogo institucional faccioso em que estão arrumados os negócios de boa parte dos membros dessas bancadas, por mais conservadoras e reacionárias que elas sejam (e são!). Assim, esse pessoal fascistóide fica com ele, mas não vai com ele: ficam para receber o butim, mas o abandonarão assim que ele tentar colocar na panela a galinha dos ovos de ouro, como ficou claríssimo na derrota do voto impresso.
Como já disse aqui, não é que Bolsonaro vá tentar um golpe – ele tem feito seguidas tentativas de golpe, novela que ainda exibe traços de tragédia porque a desorientação é a principal característica da conjuntura. Não fosse a sagacidade dos profissionais e o alarido da multidão de inocentes úteis que enche páginas e telas da mídia, já deveria estar claro que as tentativas de golpe (que o são!) sempre assumem a forma de blefe porque o golpe é inviável, e inviável principalmente em razão da enorme assimetria de forças: a imensa maioria da população é contra uma solução autoritária para a crise de legitimação, estando incluída nessa maioria esmagadora até parte dos defensores de Bolsonaro. Daí que a encenação seja sempre a mesma: tensão verbal máxima na tentativa, seguida de rabo entre as pernas ao ganhar a forma de blefe. E tem mais: se a assimetria entre as forças que se enfrentam vier a sofrer alteração, será pelo aumento do percentual das pessoas alinhadas contra as pretensões ditatoriais do besta, não a favor. A maioria de nós está farta do Estado de Direito Autoritário, mas quer vê-lo pelas costas não pela supressão do “de Direito”, mas pela eliminação do “Autoritário”, que garante privilégios, impõe arbítrios e promove assimetrias injustas. Infelizmente, esse estado de coisas ainda não ganhou clareza cognitiva e não tem como ganhar a forma de um vetor pela transformação.
Deixando de lado a desorientação dos numerosos inocentes úteis, que vivem a combater os próprios medos fazendo alarido mais ou menos intelectual contra o golpe, prestemos atenção nos espertos: eles estão se aproveitando da imbecilidade de Bolsonaro para tentar unir ao lado deles a maioria da opinião pública, que vem sendo conduzida a achar que era feliz e não sabia, como se fosse possível esquecer as derrotas e sofrimentos de onde esses espertos tiraram poder, dinheiro, prestígio e privilégios no curso dos últimos trinta anos. Vem daí o alarido em torno de um suposto Estado democrático de direito ameaçado. Vem daí o “frentismo” contra Bolsonaro e, ao mesmo tempo (até porque não se trata de uma conspiração), as tentativas de acerto com o besta, em nome da harmonia entre os poderes… Vem daí o revigoramento de Lula.
Quem é do ramo sabe que o recurso ao impeachment está esgotado; já Bolsonaro, que não é do ramo (e contra quem há pilhas de pedidos de impeachment), se presta ao papelão de fazer pedido de impeachment desprovido de qualquer base legal. Se estivéssemos sob um Estado de Direito Democrático, esse disparate de Bolsonaro seria recebido às gargalhadas. Mas como vivemos sob um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação, o gesto desesperado do inimigo patético se torna tábua de salvação para os espertos: chamam todos a cerrarem fileiras em torno de um STF e de um Congresso que têm sido unha e carne com as injustiças, arbitrariedade e privilégios que infelicitam a maioria da sociedade brasileira insatisfeita. É nessa onda que Lula vem surfando como se ainda fosse alternativa e tipos como Alexandre Moraes vão ganhando impulso para nos impor toda a sua agenda reacionária depois que puderem deixar de se ocupar desse tigre de papel que é Bolsonaro (ainda que o papel, por estar em chamas, esteja a provocar muitos incêndios danosos).