ESTARÍAMOS CONDENADOS A TORCER PELOS CONSERVADORES CONTRA OS REACIONÁRIOS?

Carlos Novaes, 19 de dezembro de 2021

Nas linhas a seguir tentarei analisar a conjuntura política, tendo como parâmetro organizador a ideia propriamente política de que a sociedade brasileira está submetida a um Estado de Direito Autoritário-EDA em crise de legitimação, situação institucional precária que se deve, em última instância, à realidade econômico-social da desigualdade, cujas intensidade e longevidade obrigam a maioria de nós a viver sob variações infelizes de duas urgências: uma urgência social e uma urgência por ordem. Como este blog não faz jornalismo, mas teoria política viva (e, por isso mesmo, a quente), a leitura dos artigos assinalados nos hiperlinks dará ao leitor elementos para melhor compreender a concatenação entre as afirmações que acabo de fazer e o que foi dito há tempos, o que também ajudaria na compreensão do que se dirá a seguir.

Velhas de décadas, as duas urgências mencionadas já afligiam o eleitorado nas eleições de 2018, mas nenhum partido ou candidato à presidência apresentou uma proposta que as articulasse — naquela altura, discuti detalhadamente os motivos que impediam Bolsonaro e Haddad de oferecerem essa articulação. Como não poderia deixar de ser, depois de três anos de governo Bolsonaro e da mesma dinâmica congressual das facções, as duas urgências se agravaram: de um lado, a urgência social foi incrementada com as consequências da pandemia, com o desmantelamento de programas sociais, com reformas que suprimiram direitos e com uma política econômica que levou, dentre outros desmazelos e sofrimentos, ao desarranjo de cadeias produtivas complexas como a do petróleo, e ao aumento da fome.

De outro lado, a urgência por ordem contra a corrupção incessante, contra os abusos e privilégios de políticos e hierarcas insaciáveis, ou contra os desmandos de uma PMilícia sob comando faccioso, aparece incrementada pelo aumento da boçalidade armamentista e pela expansão da atividade criminosa, seja nos confins das florestas, nos enclaves rurais ou nos centros urbanos. Na floresta campeia a violência contra os índios e o meio ambiente por parte de mineradores e pecuaristas; nos enclaves rurais, o abuso contra posseiros e trabalhadores cresce na velocidade em que se legaliza o porte de armas; nos centros urbanos, os chamados criminosos comuns, na busca de alguma “legitimidade”, já vão além da “caridade” e se voltaram até para o ordenamento dos costumes, estabelecendo nas comunidades regras que, reunindo o comezinho ao bárbaro, explicitam o arbítrio reinante pelo que têm em comum com a ação da polícia que alega combatê-los — quer dizer: nas eleições de 2022 haverá uma necessidade ainda maior de concatenar nossas duas urgências.

Uma das evidências de que os políticos profissionais não oferecerão uma alternativa está no fato de que eles se ocupam tão somente da própria sobrevivência, isto é, estão sempre e antes de tudo voltados a continuar como políticos profissionais, reunindo poder para fazer dinheiro. Já detalhei aqui os problemas que decorrem da possibilidade de reeleição infinita para o Legislativo (representação). Discuti também o aspecto mundial dessa deformação da representação, que está na raiz da chamada “crise da democracia liberal“. Limitar a crise da democracia da “representação profissional” ao que há de liberal nela é muito cômodo e oportuno para a autointitulada esquerda, que se aproveita da crítica necessária ao liberalismo para esconder suas próprias mazelas e propagar a ilusão de que teria uma proposta alternativa, baseada na ideia enganosa de democracia direta, pela qual nada faz e cujas limitações já discuti aqui. É olhar e ver: desde seus primórdios, o que os profissionais do PT, do PSB ou do PSOL fazem é lutar para continuarem com seus mandatos, numa resistência intramuros à renovação que alimenta o facciosismo contra a mudança em geral — nada mais parecido com um político profissional do que outro político profissional.

Como o profissionalismo político fez do Congresso uma casamata contra a mudança, e como o eleitor médio não presta atenção ao conjunto, as eleições para o Executivo (gestão) passaram a concentrar toda esperança de mudança, sempre com o mesmo resultado: ou o presidente da República compra o Congresso, ou é anulado e até deposto por ele. A rendição de Bolsonaro ao Centrão é o exemplo mais recente, sendo a quebra pelo Congresso do veto presidencial ao obsceno fundo eleitoral de 5,7 bilhões de reais a evidência mais cintilante dessa pantomima, pois os parlamentares da oposição puderam camuflar de antibolsonarismo sua avidez por dinheiro.

De modo que, se queremos mudança, temos que derrotar conservadores e reacionários tanto na eleição presidencial quanto na eleição para o Congresso. O problema é que não só a disputa presidencial está polarizada entre um conservador (Lula) e um reacionário (Bolsonaro), como as candidaturas “alternativas” não passam de versões não menos facciosas desses dois. Como já vimos, toda a movimentação de Lula se dá na costura das facções, segundo um sentido rebaixado da ação política, tida como reservada aos profissionais. Para Lula, empenhar-se pela transformação do Congresso seria dar um tiro no próprio pé: o sucesso dele depende de negociações com o Congresso como ele é, estuário e teatro da luta de facções em busca de poder para fazer dinheiro, tudo com base no exercício faccioso dos poderes institucionais, práticas de que o caso da Petrobrás é o exemplo mais notório. É por isso que Lula se movimenta como se a anulação das condenações facciosas que sofreu valessem por um atestado de inocência ampla, geral e irrestrita, inclusive para os crimes conexos das forças congressuais cujos processos também já empacaram no concatenado facciosismo do Judiciário, como nos casos do quadrilhão do pMDB e do quadrilhão do PP.

É dessa perspectiva que a possível chapa Lula-Alckmin deve ser analisada: trata-se de uma solda facciosa para garantir às facções que tudo ficará como sempre, e não para enviar ao Mercado provas de um “centrismo” que Lula não precisa dar desde a Carta de 2002! Pretender que Lula precisa de Alckmin para não parecer um esquerdista é, na melhor das hipóteses, uma ingenuidade. Mesmo se fosse assim, a união deles seria um anacronismo que já discuti aqui e aqui: nem Lula, nem Alckmin representam hoje o que o PT e o PSDB foram no passado, quando ainda pareciam partidos voltados à transformação do Brasil, tema que recentemente retomei aqui. Embora haja quem enxergue nessa união uma “revolução republicana“, o fato é que a geringonça tupiniquim, pela adesão de Alckmin a Lula, finalmente chancelaria a saída facciosa com que os tucanos e o establishment sonharam em março de 2016, quando estavam em luta contra o que havia de republicano na não menos facciosa LavaJato: Lula cimentando as facções num muro de pedras para conter a vontade pela mudança da maioria da sociedade brasileira.

Diante da crise de legitimação do EDA, a solidez desse muro é aparente e ele poderá ruir se emergir uma alternativa que, dialogando sob orientação democrática com o sentimento antissistema da maioria da sociedade, concatene nossas duas urgências. Como a construção de uma alternativa assim demanda tempo, é improvável que ela se apresente para 2022. Entretanto, dado o Brasil ser como é, não é de descartar que a crise de legitimação acabe por produzir mais um aleijão político, levando a que nas fissuras do muro de Lula venha a medrar uma vigarice como a candidatura de Moro, como se ele ainda pudesse suscitar as esperanças que suscitou no início da LavaJato — seria a tragédia depois da farsa.

Fica o Registro:

Ciro perdeu a oportunidade de fazer da ação facciosa da PF contra ele e seu irmão um pretexto para atender a prevista movimentação das candidaturas regionais do PDT contra sua pretensão de disputar a presidência da República (Ciro está a ser cristianizado quase 1 ano antes da eleição…). A solidariedade que recebeu de Lula acabou por enredá-lo em mais uma contradição, pois acabou por dizer que nunca chamou Lula de ladrão… Ao fim e ao cabo, se Ciro fosse capaz de tirar consequências profícuas da sua situação política real, anunciaria apoio a Lula e se colocaria à disposição para ser candidato a governador de São Paulo, tendo Márcio França de vice e com Haddad para o senado. Seria uma frente de facções para ninguém botar defeito.

Heloísa Helena, porta-voz da Rede Sustentabilidade, deu entrevista sobre as aflições da agremiação, que vem sofrendo com a saída de parlamentares para outros partidos e precisa ampliar sua votação para o Congresso a fim de transpor a cláusula de barreira. Interessante observar que ela encarou com a maior naturalidade (a Rede “não pode reclamar”) a saída dos parlamentares eleitos pela Rede, como se o fato de eles terem se associado ao partido na modalidade de “candidaturas cívicas” independentes tornasse essa independência uma prerrogativa individual deles, e não um compromisso com os eleitores. Ora, eles se candidataram pela Rede precisamente porque perceberam, com razão, que seus eleitores não tinham simpatia pelos partidos para os quais agora migram. Logo, o vínculo com a Rede não deveria ser encarado nesse sentido liberalóide que lhe deu a ex-senadora. A desorientação dessa Rede não tem fim.

2 pensou em “ESTARÍAMOS CONDENADOS A TORCER PELOS CONSERVADORES CONTRA OS REACIONÁRIOS?

  1. Murilo

    Novaes, boa tarde.

    Como a presença do Alckmin na chapa ajuda o Lula a costurar negociações com o Congresso Nacional? Lula sempre me pareceu extremamente hábil nesse tipo de movimentação por si só.

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    1. Carlos Novaes Autor do post

      No primeiro mandato, Lula comprou apoio no Congresso com o mensalão; no segundo, com as diretorias da Petrobrás e outras providências do mesmo quilate. Portanto, ele não precisa de Alckmin para conseguir apoio no Congresso, até porque, sem dar dinheiro, nem com Alckmin, nem com o Papa, nem com o primaz da Igreja Ortodoxa Russa, nem com o próprio Cristo na vice, ele conseguiria arrancar apoio ali. Por isso tenho insistido que o desafio é transformar o Congresso. Mas Lula não quer saber disso: ele quer o Congresso como é, tanto que já negocia com o futuro Congresso partindo de que nele estarão os facciosos de sempre. Lula jamais colocaria sua indiscutível popularidade a serviço da transformação do Congresso. Ele jamais orientaria o eleitorado que lhe é fiel nessa direção. Mais uma vez, ele se posiciona como dobradiça entre as facções e a maioria da sociedade. Ele não precisa de Alckmin para ganhar eleitores; nem para provar que é o político pragmático que tem sido por décadas. Não. Ele almeja Alckmin ali para ajudar a soldar os compromissos facciosos próprios da campanha eleitoral e para facilitar a vida do PT no Estado de SP (Alckmin com Lula acaba com a polarização fajuta entre PSDB e PT, que nutriu as vitórias estaduais tucanas no curso das mesmas décadas em que Lula deu provas seguidas de não ser muito diferente deles).

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