Carlos Novaes, 23 de maio de 2021
Lá atrás, na luta contra a ditadura paisano-militar em prol de um Estado de Direito Democrático, Lula apoiou FHC para o senado (1978). Mais adiante, eles estiveram meio juntos, meio separados na Constituinte (1988) e na eleição presidencial solteira, vencida por Collor num segundo turno em que FHC apoiou Lula (1989). No impeachment de Collor (1992), FHC e Lula estiveram outra vez juntos, mas contando com o apoio de parte do que restara do dispositivo paisano da ditadura também contrariado por Collor (p-MDB, ex-arenistas e seus satélites do Centrão). Os eventos em torno da eleição e deposição de Collor (incluindo o nefasto papel da Globo) deixaram claro o caráter truncado da transição democrática: o entulho autoritário ainda jogava um papel central na vida política do país, sendo indispensável derrota-lo para construir um Estado de Direito Democrático.
O início dessa construção requeria uma aliança entre PSDB e PT, as duas forças nascidas da luta pela democracia. Por isso mesmo, em 1993, estava no ar a possibilidade de uma aliança entre PSDB e PT para, na eleição de 1994, derrotar o que restara da ditadura. Ministro da Fazenda de Itamar Franco, FHC construiu naqueles dias o Plano Real, Lula ficou contra, e consolidou-se entre eles uma polarização nefasta e fajuta: nefasta porque para derrotarem um ao outro precisaram nutrir o entulho autoritário; fajuta porque eles polarizaram para (i) fazerem as mesmas coisas e (ii) entregarem ao país o mesmo resultado: aliados ao entulho autoritário, (i) fizeram políticas compensatórias para os pobres obedecendo ao dogma de que os ricos não podem perder, e (ii) nos entregaram o Estado de Direito Autoritário, cuja crise de legitimação nos trouxe a Bolsonaro, que não é senão o representante do entulho autoritário nutrido pelas escolhas de Lula e FHC, ainda que eles não o soubessem e, muito menos, o pretendessem, é claro.
De modo que é simplismo imaginar que Bolsonaro seja filho do golpe do impeachment contra Dilma, iniciado pelo PSDB, ou da corrupção do PT, mais visível na roubalheira havida na Petrobrás. Na verdade, tanto o golpe contra Dilma como a corrupção do PT já foram elementos da deterioração do papel de protagonistas que ambos vinham desempenhando na polarização fajuta, conjunto anterior ao facciosismo da LavaJato: pelo lado do PSDB, Aécio questionou a legitimidade da vitória de Dilma apenas para “encher o saco”, mas não viu que a sua metade do entulho autoritário já sentia-se forte o suficiente para apoderar-se da molecagem e dar o golpe; pelo lado do PT, Lula legou a Dilma a corrupção (mensalão, petrolão, etc) com que contentara a sua metade do entulho autoritário, sem perceber que uma hora eles se julgariam fortes o bastante para dispensá-lo e, até, colocá-lo na cadeia — a LavaJato foi o terreno para essa guerra de facções. Ou seja, o que PSDB e PT apontam reciprocamente como causa para o surgimento de Bolsonaro são recibos de suas respectivas cegueiras para o que de pior fizeram: mantiveram as forças da ditadura paisano-militar em banho-maria enquanto fingiam combater o que sustenta toda essa (des)ordem autoritária, que rouba e mata: a desigualdade.
Por isso mesmo, nem PSDB, nem PT reconhecem seja que sofremos sob um Estado de Direito Autoritário, seja, muito menos, que esse Estado está em crise de legitimação. Reconhecer o caráter autoritário do Estado que eles construíram acabaria com a fantasia de que vivemos sob um Estado democrático de direito; reconhecer a crise de legitimação desse Estado denunciaria a própria ilegitimidade da ação política deles, o que desnudaria como ridículas as suas atuais pretensões de protagonismo conjunto. O encontro recente de FHC e Lula visando 2022 deveria ter ocorrido em 1993, e trinta anos de más escolhas não podem ser simplesmente abolidos pelo encontro amistoso de dois velhotes.
Como não poderia deixar de ser, esse encontro vem suscitando as mais vivas comemorações por parte daqueles que estão agarrados a este Estado de Direito Autoritário, especialmente nos “frentistas” da nossa autointitulada esquerda, ansiosos por mais uma falsa solução para os nossos problemas, querendo nos fazer acreditar que o Brasil precisa de uma restauração, não de uma transformação. Para essa mágica, precisam tomar os blefes de Bolsonaro contra as franquias democráticas como uma ameaça real, como se o besta pudesse, mesmo, suprimir o que de democracia há em nosso Estado de Direito Autoritário. Já vimos em muitos posts deste blog as explicações para a crescente desmoralização de Bolsonaro, já integrado ao velho normal, embora como uma versão especialmente danosa dele – mas danosa não contra as franquias democráticas, e sim contra o que sempre foi negligenciado por PSDB e PT: o exercício faccioso dos poderes institucionais contra os pobres e pretos, contra os índios, contra o meio-ambiente, tudo sob a solda da corrupção e em favor de reunir poder para fazer dinheiro, sem tocar, é claro, nos interesses dos donos do dinheiro.
Só a reunião de cegueira, covardia e oportunismo permite a alguém embarcar num arranjo desses!
Lula, à frente do PT, no processo de construir, lá atrás, a polarização com o PSDB optou pelo gasto lema maniqueísta do “nós contra eles”, colaborando com a não requalificação do debate político no país. Resulta que, depois de um século de golpes e governos autocráticos, nossa tradição permanece doentiamente personalista, ao ponto de “o encontro amistoso de dois velhotes” causar tanto burburinho na imprensa.
Apesar dos pesares, sinto que há boas chances de a sociedade brasileira começar a enjeitar a tríade maldita da nossa política (paternalismo, patrimonialismo e personalismo) a partir das eleições de 2022. Se o lulo-petismo e o bolsorarismo detêm, cada um, um quarto dos votos cativos, significa que 50% das intenções de voto estão permeáveis. Assim, se desta vez houver escolha acertada para o Palácio do Planalto (vale lembrar que crises são cenários que favorecem as mudanças), arrisco dizer que veremos o fim do lulismo e do culto à personalidade que tanto nos serve de atraso ao Brasil.
Claro que isso é apenas uma parte do problema, trata-se só da estrutura representativa. Os problemas do país não terminam na escolha de um bom presidente. Há que se entender que todo um conjunto de interesses financistas agem organizadamente por trás dos bastidores dos Três Poderes, subordinando os tomadores de decisão pelo poder de mando do mercado e das elites econômicas. Daí a conclusão de que, enquanto a sociedade se permitir polarizar, e enquanto persistirem as velhas estruturas (formas de viver e entender a política e modelos institucionais), não reuniremos força o suficiente para obrigar os poderes instituídos a trabalharem, de fato, para ensejar ao povo o tão almejado estado de bem-estar social.