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PACTO FAJUTO E SAÍDAS AUTORITÁRIAS

Carlos Novaes, 01 de agosto de 2015

 

À medida que Dilma vai se firmando em sua mediocridade, o vigor da demanda pelo impeachment arrefece e dá lugar a propostas de um pacto nacional, “acima dos partidos” (com os partidos que temos fica difícil imaginar algo abaixo deles). Do golpismo de quem procurava um pretexto passa-se ao pretexto para que tudo continue como sempre foi: preservar os “interesses nacionais”, como se a definição desses interesses não desse ela mesma lugar à controvérsia, e controvérsia indispensável.

Tudo se passa como se estivéssemos todos de acordo sobre o caminho a seguir e, então, a insensatez seria continuarmos em porfias vãs, que tanto mal fazem aos destinos do Brasil… Essa concepção rebaixada da política é uma decorrência da nossa política profissional rebaixada, não de uma clareza presumida sobre o que seria essencial e indisputável no caminho a seguir. Enxergar como dispensável e, até, nocivo, o debate e a intransigência em torno do que nos interessa é próprio de quem nunca tendo arriscado os dedos insiste em preservar os anéis. Com essa ideia de pacto temos mais um capítulo da novela do Real: ao se desfazer por todas as costuras, o pacto primeiro suscitou uma troca de protagonista; como não deu certo, agora se fala em união de todos — se esse todos forem apenas eles, então tá certo! são todos farinha do mesmo saco! Em suma, eles simularam uma discordância para agora se apresentarem unidos em torno daquilo que jamais os diferenciou: a manutenção do status quo com incremento aos de baixo sempre e enquanto os ricos nada percam.

A país teria ganho muito se tempos atrás PT e PSDB tivessem se unido para tocar o projeto comum que sabem ter, mas fingem não ter porque lhes pareceu mais rentável mobilizar cada um sua parcela de atraso e reacionarismo no intuito de derrotar o outro na disputa pelos rentáveis postos de mando. Como agora todos estamos vendo, e não poderia ter deixado de ser, além de terem a mesma empreita, eles também tem partilhado as mesmas empreiteiras — não é por outra razão que vai se falando em união nacional, tratando como patrimônio do país o patrimônio pessoal dos protagonistas do escândalo mais recente, como se eles fossem “grandes demais para quebrar” a cara. Digo que o país teria ganho porque: primeiro, não teríamos revigorado p-MDB, DEM e assemelhados, pois sem o racha artificial eles teriam ficado do outro lado, ou teriam aderido subalternamente à aliança vantajosa para o país; segundo, teríamos tirado de maneira mais direta e proveitosa todo o suco que o Real podia dar; terceiro, teríamos tido a oportunidade de colocar num patamar superior a discussão e a arregimentação de forças em torno de um projeto alternativo. O que bloqueou esse caminho não foi apenas o oportunismo que puderam exercer esses protagonistas de uma política profissional autônoma, descolada do mundo da vida e a serviço do detentores do dinheiro grosso e organizado. Afinal, a desigualdade, mãe de todos esses vícios, não tem sentido único: além de proporcionar a autonomia referida, ela também solapa a energia que poderia pôr fim a esses estado de coisas.

Nosso caminho tem sido bloqueado pelo atraso ele mesmo. Despreparado e ignorante, nosso povo só sabe que sofre, mas não sabe o por quê. Seduzido por valores perversos, aspira consumir, fruição que se dá no plano pessoal, num frenesi desagregador cujos danos imaginários vem antes do, e frequentemente no lugar do, consumo propriamente dito, pois a falta de dinheiro é generalizada: um país de consumidores frustrados cercados de corrupção e maus tratos que, não obstante, ainda escolhe lado nessa ordem política que não o representa (será?). Digo que não o representa porque estivesse ele inteirado do que está em jogo por certo lhes viraria as costas, mas ponho a interrogação porque ao fim e ao cabo, na ignorância reinante, escapulir com base na esperteza, individual ou de grupo, acaba se tornando a regra, como tem deixado claro o inestancável sucesso do negócio evangélico e o vigor crescente do poder policial corporativo, que estão em franca expansão na ordem política: a política profissional, que fez da representação uma prática de reiteração da memória reificada em práticas de rotina, em esquemas de corrupção (mando+dinheiro), oferece a esses grupos organizados em torno, também eles, de rentáveis memórias reificadas hierarquizadas (bíblias-pastores e códigos de conduta-oficiais) dispositivos ideais de acoplamento: eles já chegam ao parlamento amarrados hierarquicamente a grupos de interesses específicos, num reforço colossal à manutenção da ordem como ela é, até pela sinergia que rapidamente passa a haver entre eles. As pré-candidaturas à prefeitura de SP de três figuras saídas dessa junção malsã de hierarquia e truculência tonitroante (em canais religiosos e programas policiais), postas contra as alternativas orgânicas de PT e PSDB, não deixam dúvidas acerca do perigoso sentido que vai recebendo o desarranjo em curso.

A ideia de um pacto nacional num cenário desses é o que há de mais reacionário. O país precisa de discordância genuína e ela só vai aparecer se os descontentes se fizerem ouvir para além do acordão em curso (cuja inviabilidade vai acabar aumentando a insatisfação difusa que beneficia candidaturas “diferenciadas”) e com uma bandeira clara, que mostre às pessoas a origem política de todos os males: a representação profissional pela reeleição para o legislativo. Se esse pilar for posto abaixo, toda a cúpula dessa ordem política malsã desabará, pois o cidadão terá sido chamado a exercer um segundo direito eleitoral, hoje esquecido, de que também dispõe: o de ser votado.

LINCHAMENTO

Carlos Novaes, 10 de julho de 2015

O que justifica a abertura de um processo de impeachment é a plausibilidade, no âmbito do rito legal, de que um crime tenha ocorrido, o que permite a quem julga decidir a sentença e a quem assiste entende-la, tendo todos ficado cientes dos passos que levaram a ela; no caso do linchamento o crime é sempre pré-suposto, e pré-suposto não porque necessariamente ele não exista, mas porque quem lincha age com base no furor que ritualiza a ira pessoal e não com base na evidência legal de fatos serenamente apurados.

No impeachment, independentemente das motivações de cada um há uma meta coletiva a ser atingida, que não se esgota no ato ele mesmo porque ela está além da pessoa julgada; no linchamento, cada um age segundo o que supõe ver e não visa outra coisa senão a pessoa martirizada. No impeachment, a ordem e a decência públicas ficam preservadas, mesmo para quem discorda do seu resultado; no linchamento impera a desordem que permite a cada um ser indecente à sua própria maneira para obter e regozijar-se com o resultado.

O ambiente social está sempre preenchido de energia. Essa energia dispersa tem fontes variadas, que podem ser benignas ou malignas. Um linchamento é sempre o resultado da vetorização perversa de uma energia dispersa que se fez maligna. Essa malignidade é sempre oportunista e se propaga na direção em que há menor resistência: sangue chama sangue. É o que está a se dar nos presídios do Brasil, superlotados de miseráveis.

De outra perspectiva, quem almeja uma transformação, ou uma mudança ou a realização de um interesse, por mais reles que seja, tem de lograr vetorizar a energia dispersa, ou parte dela, por menor que seja, no sentido do objetivo que quer alcançar. Arregimentações orientadas para o bem comum atraem energias benignas, mas, quando frustradas, podem liberar forças malignas, que não deixarão de linchar o alvo mais frágil. É o que está a se dar nas redes sociais do Brasil, superlotadas de pobres de espírito. Todo linchador chamado a se explicar tenta responsabilizar aquele contra quem objetivou a sua fúria, invocando para isso qualquer mazela que esteja ao alcance da mão.

Se o leitor me dá razão nos parágrafos acima, não pode deixar de estar tão repugnado quanto eu diante desse espetáculo em que vizinhos, colegas de trabalho, conhecidos, um ou outro amigo e até parentes, motivados pelos sentimentos mais primitivos e tão bem representados naqueles em quem votaram para presidente, para o Senado e para a Câmara Federal, transformaram uma sempre justificável discordância política nessa inaceitável danação contra Dilma, que vem sendo responsabilizada sobretudo pelo que não fez, não obstante os muitos e graves erros que cometeu (e nos quais não está sozinha).

O que está em curso no Brasil não é um processo de impedimento político segundo o rito legal, o impeachment, mas um martírio político segundo uma fieira de baixezas, um linchamento. A principal evidência da loucura em marcha é a repetição por onze de cada dez analistas do seguinte “diagnóstico”: a fragilidade do governo Dilma (criminosa ou não) é a causa do que se passa no planalto, no Congresso e no Judiciário. Quem propaga um diagnóstico desses tem as três características básicas de um linchador: não pensa, segue o enxame e se compraz na escolha do alvo mais frágil.

A imprudência de Lula ao indicar Dilma para a presidência da República esteve clara desde o início e exatamente nos termos em que se dá o malogro: ela não teve, como não teria sob quaisquer circunstâncias, condições de conter os apetites e mesmo arbitrar a luta por poder e dinheiro entre PT e p-MDB (coisa que não estou a dizer agora, depois de todas as evidências. Não. Eu o disse em 2008, como o leitor pode ver aqui). Também é verdade que a essa sua fragilidade política original Dilma somou uma incompetência surpreendente, pois se mostrou incapaz de entender até mesmo a natureza do pacto que preside. Nele, os ricos jamais perdem, os pobres só ganham quando for possível e a classe média é a fiadora dessa possibilidade: se faltam recursos para sustentar benefícios já dados aos pobres, a classe média cobre a fatura tendo sacrificada sua já sofrível qualidade de vida; afinal, numa sociedade desigual como a nossa não há como alguém ganhar sem ninguém perder, pois uma desigualdade dessa monta compromete a geração de riqueza nova na magnitude necessária a que todos ganhem enquanto se diminui para valer essa mesma desigualdade.

Como o p-MDB já nasceu sob as interdições à mudança dos que se beneficiam da desigualdade, como o PSDB forjou o pacto do Real, que deu nova versão a elas, e o PT aderiu a elas depois de descobrir o caminho das pedras, a sociedade brasileira não dispõe de ferramenta partidária para arregimentar a energia social na direção do desenvolvimento sustentável orientado contra a desigualdade: infra-estrutura, formação educacional, atendimento médico-sanitário e políticas sociais compensatórias são demandas sem defensor crível na nossa representação política profissional.

Enquanto o p-MDB investe na crise pela crise, pois é na sua irresolução que ganha tempo para uma nova laçada, o PSDB atua contra o que dizia acreditar apenas para colher da crise o que julga poder beneficia-lo, e o PT dá voz a bandeiras que há muito abandonou só para poder se safar da crise em que vê afundar a possibilidade de continuar a lucrar com a traição a estas mesmas bandeiras — nenhum dos três se importa com o sofrimento alheio.

É verdade que em sociedades desiguais não se arregimenta energia social sem sofrimento, mesmo quando se está orientado para o bem comum, pois o arranque para um novo estado de coisas sempre exige sacrifícios. O problema no Brasil é que a energia social, nutrida por sofrimentos para os quais não se atina um propósito senão gerar as condições para mais sofrimento, está dispersa na forma de descontentamentos vários, suscetível à ação de oportunistas e a alarmes de linchamento. Como temos visto, não tem faltado nem uma coisa, nem outra.

O que permitiu o surgimento espalhafatoso no proscênio da política brasileira desses personagens e dessas performances que antes habitavam o mundo das sombras foi a ruína do pacto do Real, cujo vácuo não apenas acionou o gatilho da implosão do PT (da qual o rastilho fora estendido pelos próprios petistas lá atrás, muito antes daquela carta de adesão ao pacto do Real), como também arrancou a fantasia democrática que escondia os tucanos, pondo a nu toda a sua avidez de poder (que já havia ficado clara pelo menos desde que eles lavaram as mãos na eleição para a presidência da Câmara federal) e ainda deu ocasião a que o Judiciário pudesse pescar robalos nas águas turvas de uma nação revolta sem propósito lúcido. Portanto, a fraqueza do governo Dilma, fenômeno derivado desse desarranjo geral, não pode ser dele a causa.

É esse desarranjo — que engolfa a todos, desorienta muitos e silencia por conivência, comodidade ou medo quem deveria estar a falar — que está a permitir a construção de uma nova ordem, rebaixada, retrógrada, orientada a obter via regimento interno e desfaçatez o que mesmo a precária dinâmica democrática da Constituinte não permitiu. São no mínimo irresponsáveis aqueles que celebram esse nefasto dinamismo legiferante do Congresso, como se a ação política pudesse ser desejável em si mesma, ao arrepio dos interesses que essa camarilha de profissionais representa.

Quando sair do transe maligno em que se encontra, quando tiver deixado para trás, mais ou menos estropiadas, as vítimas dele, a sociedade brasileira haverá de descobrir, não sem horror e vergonha, toda a extensão do mal realizado, e terá pela frente a tarefa ainda mais penosa de ao menos mitigar o comprometimento do nosso futuro que toda essa insânia em curso está a produzir.

ESSA REFORMA POLÍTICA É UM VÔMITO!

Carlos Novaes, 19 de maio de 2015

 

Empanturrada com a comida tóxica do cardápio midiático que buscou embota-la com a ideia de que o país precisa de uma reforma em seus sistemas eleitoral e partidário, a opinião pública brasileira é convidada a se reconhecer aliviada no vômito triplo em que seus profissionais da política mais uma vez transformaram no que lhes apraz os anseios difusos dela por uma representação autêntica. Primeiro, o “distritão” vai deixar sem representação alguma a maioria do eleitorado, uma vez que, por definição, 513 deputados federais não tem como traduzir, com seus votos exclusivos, mais de 200 milhões de eleitores; segundo, a coincidência de mandatos de cinco anos é o paraíso da malandragem, proposto por Marina Silva e adotado, claro, pelo p-MDB, que já critiquei pormenorizadamente aqui: mais mandato para os políticos profissionais e menos força de mudança nas mãos do eleitor; terceiro, o fim da reeleição para o executivo vai retirar do sistema de gestão da coisa pública (executivos) a possibilidade de reconduzir as boas experiências, que seriam ainda melhores se a “representação” (nos legislativos respectivos) não fosse composta pelos esquemas de rotina saídos do mal uso do nosso sistema eleitoral.

Tal como é hoje, nosso sistema eleitoral é muito bom: de um lado, para o legislativo vota-se em indivíduos ou em lista (o voto na legenda partidária), sendo que o voto individual do eleitor não esgota sua força no indivíduo que recebe o voto, pois ela se propaga mesmo se o candidato escolhido não ganha a eleição: os votos dados a ele são somados aos de outros perdedores e ganhadores do mesmo partido ou coligação, de modo que nada é desperdiçado no cômputo final e, assim, se o sistema produzisse representantes, todos estaríamos, sempre, representados; de outro lado, para o executivo, pode-se reconduzir o gestor que faz uso apropriado dos recursos do orçamento. O defeito, portanto, não está na distribuição da força dos votos, mas naqueles que os recebem, leitor. Temos que trocar de políticos, não de sistema político. A única maneira de trocar, mesmo, de políticos é impedi-los de voltar uma vez cumprido um, e único, período legislativo, ou seja, acabar com a possibilidade de reeleição para representantes (e não para os gestores!), como já tratei aprofundadamente aqui e em outros textos deste blog.

Políticos profissionais tem o mesmo defeito de todo ser humano: querem o paraíso, sem precisar morrer. A diferença é que eles imaginam, mesmo, que é possível chegar lá, e fazem dessa meta a principal ocupação de suas vidas tortas! O paraíso para eles é chegar ao poder depois de uma campanha em que não precisaram pedir nem dinheiro, nem voto. Pois bem, a proposta de coincidência de mandatos de cinco anos os deixa bem próximos dessa meta religiosamente perseguida, especialmente se caída do céu amarrada a uma outra providência, o tal financiamento público de campanhas eleitorais: o conforto de mandatos de cinco anos, sem nenhuma consulta intermediária para qualquer instância, consulta essa que permite ao eleitor ajuizar a situação política e punir ou premiar com seu voto, logo em seguida, este ou aquele partido, grupo ou esquema político. Hoje, bem ou mal, nosso calendário de eleições descasadas a cada dois anos permite, por exemplo,  ao eleitor insatisfeito com o governo de Dilma eleito em 2014 punir o PT nas eleições locais de 2016, o que, se não constitui uma ferramenta de transformação, configura, pelo menos, um serviço de crítica indireta que altera a rotina demoníaca do poder.

É difícil para uma pessoa de bem imaginar a alegria coruscante na alma de um político profissional, desses de carreira, diante da possibilidade de somar à reeleição infinita, regalia de que já goza, uma troca compulsória nas cobiçadas cadeiras de gestão orçamentária (prefeitos, governadores e presidentes) junto com o conforto de só ter de lembrar do eleitor a cada cinco longos anos e, ainda por cima, com o chantili do financiamento público de campanha, que não é senão a satisfação safada de poder bater impunemente a carteira do mesmo eleitor a quem não precisou dar conversa para arrancar mais um período de sossegada “representação”. Ou seja, o eleitor vai pagar, via canalização compulsória do seu dinheiro (assim como um “gato” numa rede de água já escassa), a propaganda enganosa de mandatos que não terá sequer como ajuizar, uma vez que o fervor dessa cozinha embaçada da eleição geral não vai aprontar senão uma gororoba de alhos, bugalhos, joio e, vá lá, algum trigo. Em suma, a institucionalização da rotina do vômito, quando o que precisamos é de um laxante!

“FORA DILMA” É BOLA FORA

A morte de uma irmã minha, Elisa, em dezembro, levou-me a deixar este Blog de lado. A cobrança amena de amigos e leitores no frigir dessa crise que o país atravessa me empurrou a retomá-lo.

Carlos Novaes, 11 de março de 2015

 

Collor foi posto para fora da presidência da República porque não teve como impedir que o fizessem símbolo do que há de pior na política brasileira aos olhos do cidadão: a rotina da corrupção. Hoje, porém, todo cidadão medianamente informado tem clara toda a limitação do justo fora Collor, afinal, não só o próprio Collor é senador da República, como as duas principais casas legislativas da mesma República trazem na presidência dois colloridos de primeira hora naqueles dias: Renan no Senado e Cunha na Câmara devem sua arrancada para esses cargos ao profissionalismo com que prestaram serviços ao mesmo Collor. Para variar, fizemos o serviço pela metade: faltou o legislativo, essa casamata da corrupção em que as políticas anti-povo são a rotina.

Ninguém de boa fé compara Dilma a Collor, pois, para dizer o mínimo, ela não pode ser apontada como estando à testa de um esquema de corrupção: o cabeça dessa testa é outro. Assim, já devíamos ter percebido duas coisas: primeiro, que impeachment é medida paliativa que fortalece o legislativo, o poder cuja rotina corrupta infelicita o país, segundo, que nossos problemas não se resolverão afastando a presidente; na verdade, eles ficarão ainda maiores se ela sair, pois seus substitutos, a depender do desfecho, serão Temer ou Cunha, os dois homens fortes do p-MDB, partido cuja prática nefasta analisei em artigos recentes aqui.

Também já tratei aqui da fragilidade política de Dilma, assim como das limitações do projeto a que obedece, não sendo o caso repetir os argumentos só para não parecer dilmista; o que importa é apontar o erro monumental de aderir a essas manifestações, comandadas por gente que na campanha presidencial recente defendeu a abertura de um “saco de maldades” repleto de “medidas impopulares” cuja inspiração é a mesma das medidas adotadas pela presidente, que nada mais faz do que se conformar às exigências inescapáveis do pacto costurado pelos tucanos e ao qual o PT se rendeu faz tempo, como já discuti aqui, aqui e aqui (e em muitos outros artigos neste Blog). A essência desse pacto é: se as coisas vão bem e os ricos podem ganhar, dá-se alguma coisa aos de baixo; se as coisas vão mal, os pobres pagam o ajuste, sempre em respeito à cláusula pétrea de que os ricos não podem perder.

É exatamente porque o tal pacto comum a tudo preside — as duas principais forças não apresentam caminhos alternativos e toda eleição revela-se apenas a disputa pela troca de turno na guarda presidencial — que muitos dos que dizem não defender o impeachment não se saem melhor do que os colloridos em revolta: do muito de irresponsabilidade e besteira que tenho lido sobre a situação política, nada foi mais repelente do que a emblemática declaração de Aloísio Nunes, para quem o gozo está em “ver Dilma sangrar” até o fim do mandato — esse senhor, que defende o quanto pior melhor (certamente porque o pior fica para os pobres) é um irresponsável senador por São Paulo, leitor. A besteira mais nociva, não apenas porque encobre o essencial, mas porque fortalece a farsa dominante, é a confusão entre preconceito de classe e luta de classes (como se a palavra classe operasse milagres), como se a raiva contra os pobres por parte dos colloridos frustrados que comandam essas manifestações fosse suficiente para trazer de volta uma polarização que o tempo e as circunstâncias tornaram implausível: assim como Collor não foi escorraçado pela luta de classes, Dilma não está sendo vítima dela. Se o espectro de uma anacrônica luta de classes tivesse removido Collor, o desfecho não teria sido tão incompleto a ponto de mais do que preservar ervas daninhas como Cunha, ter fertilizado o solo para a prosperidade delas. Se Dilma estivesse no topo da pirâmide de uma luta de classes, não seria tão frágil e nem dependeria tanto de ser quem liga cadeira e caneta no âmbito do pacto conservador que partilha com seus principais “adversários”.

O essencial que essa pretensa luta de classes em torno do impeachment da presidente encobre é a falência do sistema político que submete, penaliza, coloniza e avacalha o país: na barafunda que fala de classes presumidamente em luta sem sequer nomeá-las, que dirá distingui-las, singularizá-las no cenário político, se acaba por legitimar como eixo articulador dessas classes (só em sonho insurgidas) precisamente a ordem política que abriga tudo o que não presta. É a luta de classes fajuta à serviço da manutenção do status quo! Que legitimidade tem o Congresso, ESSE Congresso, para afastar a presidente? Que crime cometeu a presidente que a distinga para pior dos presidentes, e das maiorias legislativas que os elegeram, das casas que comandariam o processo do seu impedimento? O país precisa é do impeachment do Congresso Nacional e a única maneira de fazê-lo é pelo fim da reeleição para o legislativo, como já demonstrei em vários textos aqui.

A ideia de que estaria a haver luta de classes fortalece a farsa dominante, o que também contribui para a manutenção do status quo: a farsa de que o PT representa os interesses dos pobres. O lulopetismo habituou-se a arregimentar os pobres em favor de um projeto político voltado à manutenção do poder que permite fazer dinheiro, não distribuí-lo e, por isso mesmo, também ele mantém Dilma sob pressão nefasta. A prática recente atesta para quem quiser enxergar que no xadrez jogado por Lula o sacrifício da rainha (por definição, da Inglaterra) não é carta fora do baralho manjado: Dilma será útil enquanto puder realizar o ajuste que o pacto conservador exige para o lulopetismo poder dar mais uma volta no parafuso sem rosca em que gira o país. Se essa volta for bem sucedida, Dilma terá sido maltratada no cargo para o retorno do aliado Lula em 2018; se der errado, Dilma terminará o mandato sacrificada por um Lula que sempre terá deixado claro seu desacordo com a “sucessora-traidora”, etc. Agora, se conseguirem a proeza de se enroscarem ali onde não há rosca, sempre haverá a saída de a rainha ser sacrificada com a perda do cargo, em favor de uma crise ainda maior, da qual suponham poder sair vencedores, distraídos de que o vórtice já engoliu a todos.

Em suma, ao teimar em não aceitar o papel de Dutra, para o qual fora escolhida por Lula para manter quente a cadeira, Dilma se reelegeu presidente para conhecer uma solidão política só comparável com a de Vargas. Entretanto, “Dutra” que é, ela não dispõe de nenhum dos recursos políticos que permitiram ao ex-ditador fazer de seu auto-sacrifício uma rosca nova no parafuso de então. Por isso mesmo, a menos que se comprove relação direta da presidente com os desmandos na Petrobrás ou em outra parte, quem é responsável defende a continuação de Dilma, não para vê-la sangrar, mas para que faça o melhor que puder para aliviar a carga inescapável que está a cair sobre os ombros dos mais fracos.