No contexto da paralisação do transporte de cargas
Carlos Novaes, 30 de maio de 2018 — 01:13h
[com acréscimos às 13:00h]
Quem acompanha este blog está familiarizado com a articulação que vejo entre o caráter prolongado da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade brasileira diante das tarefas que essa crise impõe. Quero crer que também já deixei claro que essa crise de legitimação só se resolverá se a maioria da sociedade de mexer em desobediência civil contra o Estado, ou se as facções estatais agora conflagradas lograrem resolver sua crise de hegemonia para voltar à rotina do exercício faccioso dos poderes institucionais conferidos pelo Estado de Direito Autoritário àqueles que alcançam seus postos de mando, seja por via eleitoral, seja por concurso ou nomeação. É evidente que se enveredarmos por um caminho francamente autoritário, via intervenção militar, a crise de legitimação será abolida pela entronização da própria ilegitimidade do Estado, que, então, já não será “de direito”.
De novo: a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro vem prolongada porque nem as facções estatais conflagradas têm como encontrar por si mesmas um novo arranjo de arbitragem para a própria locupletação (pois elas já não contam com laços sociais que possam invocar umas contra as outras para, então, parar a sangria); nem a maioria da sociedade tem claro que essa dificuldade vivida pelas facções estatais é a evidência mesma de que já não há o que esperar delas para sequer um arremedo de bem comum.
O fio no qual vêm precariamente se equilibrando essa conflagração (no Estado) e essa inércia (na sociedade) é o respeito ao calendário eleitoral – um respeito que embora tenha orientação democrática e venha inflado de expectativas, não deixa de carregar uma forte dose de frustração antecipada, pois fora a horda boçalnarista, são poucos os que chegam a se entusiasmar com qualquer das outras candidaturas (o que é outra maneira de exibir a crise de legitimação: as pessoas querem algo mais, mas não sabem o que é).
Assim, tudo vem sendo adiado em nome da eleição de outubro de 2018 e qualquer ação anterior à eleição que traga a furo a crise de legitimação, seja pela via da sociedade (se uma desobediência civil generalizada emparedar a malsã rotina estatal que nos infelicita), seja pela via do Estado (se alguma facção estatal reunir a força necessária para submeter as outras), qualquer ação dessas, eu dizia, ou alterará profundamente a natureza do pleito ou simplesmente o abolirá. Alterar profundamente seria, por exemplo, realizar eleições realmente democráticas, que não nos obriguem a votar segundo as regras e candidaturas atuais; abolir o pleito seria, por exemplo, acabar com a democracia, impondo ao país mais uma ditadura paisano-militar.
Nas linhas a seguir vou tentar articular o conteúdo dos parágrafos acima com a paralisação do transporte de cargas por todo o país. Vou buscar fazer a articulação mencionada discutindo a paralisação tanto à luz da crise de legitimação do Estado, que postulo estar em curso, quanto à luz da inércia prolongada que enxergo na maioria da sociedade brasileira.
Um Estado em crise de legitimação prolongada é como um animal ferido: tenta se manter, até luta, mas a perda de sangue tanto o enfraquece sem parar como atiça os adversários (sejam eles oportunistas ou guerreiros), combinação adversa que reclama solução: ou vence, ou morre.
A paralisação do transporte de cargas tensiona ainda mais o equilíbrio precário de que falei mais acima porque o contraste entre a virulência danosa do movimento e a falta de resposta econômica ou política a ele torna o conjunto um êmbolo a aumentar a pressão da crise, mesmo que se simule uma “solução”: nem as facções estatais conflagradas estão em condições de dar resposta econômica sólida às reivindicações propriamente profissionais do movimento, nem a sociedade está em condições de apoiar ou repudiar ativamente possíveis desdobramentos propriamente políticos do mesmo movimento.
Não há como dar resposta econômica às reivindicações porque ela supõe um novo pacto, pois estamos a viver os estertores do pacto do Real, cuja clausula pétrea é a manutenção da desigualdade, ou “os ricos não podem perder” – qualquer solução no quadro do Estado atual seria um arremedo do que Temer fez e vêm daí as tergiversações dos presidenciáveis sobre como resolver o problema (repetir que o Temer é um incompetente golpista idiota não chega a ser uma alternativa). Ou seja, o aspecto propriamente econômico do movimento está, por si só, a apontar a crise de legitimação do Estado, pois para enfrentar um problema central como o transporte de carga será necessário discutir muito mais do que os preços do diesel e dos pedágios (tem gente falando que o que faltou foi competência aos arapongas da Abin…).
Em razão da erosão dos fundamentos do pacto, esse aspecto econômico reúne indevidamente, pelo lado da sociedade, sofrimentos reais e espertezas conjunturais: os caminhoneiros autônomos lutam para sobreviver; os empresários do transporte de carga fazem de seus motoristas agentes para o aumento de seus lucros – ambos viram na crise de legitimação do Estado (que eles confundem com a fraqueza do “governo Temer” a sangrar) uma deixa para agir, mas as motivações são muito diferentes e o fato de essa diferença não ser levada em conta é parte da inércia mental de quem observa os acontecimentos. É de registrar que nas entrevistas dadas às redes de TV as queixas dos caminhoneiros parados eram os preços do diesel e dos pedágios, enquanto os motoristas assalariados de empresas de transporte se queixavam do frio, da falta de comida, de banho, de roupa limpa…
Não há como tirar consequências prático-políticas imediatas do movimento precisamente porque elas exigiriam discernir e escolher lado nessas diferenças – teríamos de inscrever o movimento numa visada democrática para além dessa expectativa acomodada pela eleição. Não foi por outra razão que a “solidariedade” havida se resumiu à caridade de levar comida aos manifestantes e a vociferar nas redes sociais, duas formas de covardia política que apontam para o que há de fundamental na inércia e, por isso mesmo, dialogam com a deriva autoritária de parte do próprio movimento que investiu contra a inércia: quem leva comida e vocifera dá apoio malandro a quem está a agir, assim como quem pede intervenção militar está malandramente a querer que outro haja em seu lugar – esse é o fundamento da inércia dessa crise de legitimação: estamos a esperar que “alguém” faça alguma coisa.
Até aqui, a frustração com as candidaturas presidenciais oferecidas pelo calendário eleitoral em que a sociedade aposta as suas últimas fichas democráticas é um sinal subterrâneo de que a crise exige mais do que meramente esperar pela eleição. Não conseguimos enxergar nos candidatos alguém que possa agir em nosso nome precisamente porque identificamos sem querer ver que o tamanho e a qualidade da crise requerem nos darmos ao trabalho de criar a condições para forjar lideranças sintonizadas com a luta contra a desigualdade e pela consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático.
Nos dois artigos mais recentes deste blog, e em resposta a leitor de um deles, foi dito que, embora o cenário seja marcado pela incerteza, não se via sinais de que o curso do calendário eleitoral pudesse ser alterado… Bem, esse movimento dos transportadores deu concretude à incerteza da situação e deu indicação de que a crise de legitimação do Estado talvez não caiba no calendário eleitoral tal como se apresenta. Entretanto, não vi sinais de que a coisas pudessem ir na direção de uma crítica ao Estado de Direito Autoritário, pelo contrário (até porque, em geral, o caminhoneiro, do ponto de vista político, não é senão um taxista de grande porte…).
Por outro lado, aqueles que se manifestaram contra as reivindicações autoritárias o fizeram de um modo que fortalece a ilusão de que vivemos sob um Estado democrático de direito: ficaram, como Barroso, do STF, a defender a democracia, “o feito da sua geração”, como se não houvesse crise de legitimação do Estado. Até Bolsonaro fez profissão de fé na democracia, dizendo que “se [o poder militar] tiver de voltar um dia, que volte pelo voto”. Esse é o perigo que o ex-capitão defensor de torturadores representa: resolver a crise de legitimação do Estado com a instauração, pelo voto, de um renovado Estado de Direito Autoritário com hegemonia da facção militar, num reforço sem paralelo do exercício faccioso dos poderes institucionais, mas com democracia eleitoral.
Como já disse em outro artigo: não devemos confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade.
Tomado em seu conjunto, o estado atual da crise está a indicar que, quando muito, a inércia nos empurrará para o realismo de uma polarização eleitoral entre, de um lado, as candidaturas dos que pretendem uma reconfiguração do Estado de Direito Autoritário e, de outro, quem tem compromisso com a luta contra a desigualdade e por um Estado de Direito Democrático — essa regressão medonha terá sido o legado dos trinta anos de um presumido Estado democrático de direito em que PT e PSDB protagonizaram uma polarização fajuta enquanto soerguiam os dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM). Logo saberemos.
Fica o Registro:
- Foi divertido ver os defensores do livre mercado, do Estado mínimo, das privatizações, atacarem a Petrobrás (por sua conduta rigorosamente empresarial, de mercado, na definição dos preços dos seus produtos) exigindo providências do Estado contra a estatal que, não obstante, querem privatizar!
- A reivindicação de zerar impostos sobre combustíveis diz muito sobre a junção de ignorância com descompromisso com o bem comum.
- [13:00h] Acabo de ler no UOL resultado de pesquisa telefônica realizada pelo DataFolha. Nada de surpreendente: esmagadora maioria (87%) apóia a paralisação (sente a crise de legitimação do Estado), maioria absoluta (56%) apóia a continuidade do movimento (percebe que há na manifestação um caminho para enfrentar a crise), mas outra maioria esmagadora (87%) se recusa a pagar a conta (se mantém inerte diante das tarefas impostas pela crise), sendo que, como não poderia deixar de ser, 77% desaprovam a condução que Temer deu ao enfrentamento do problema (qualquer governo está aquém de dar resposta convincente para uma crise de legitimação do Estado que finge governar); finalmente, vale registrar que metade dos entrevistados alterou sua rotina em razão do movimento e outra metade diz sequer tê-la alterado. Em suma, o movimento foi um espasmo da crise no sentido de romper a inércia, não o fez, mas deu materialidade às incertezas e, com isso, tornou mais perceptível o contraste entre o tamanho da crise (afinal, é uma crise de legitimação do Estado) e as alternativas oferecidas pela forma e pelo cardápio da eleição de outubro (forma e cardápio típicos de uma eleição de rotina, sem crise).
- Em entrevista à Folha de hoje, o general Heleno, ex-comandante das tropas da intervenção no Haiti, vê semelhanças entre a situação atual e a de 1964, se diz lisonjeado com as solicitações de intervenção militar, mas faz profissão de fé no respeito ao calendário eleitoral, dizendo da formação do oficialato. Bem, todos sabemos o que vale esse padrão de formação quando a tropa se inquieta na direção contrária a ele. Esse é um dos riscos que corremos: a tropa resolver agir na direção dos clamores saídos da inércia da sociedade inconsequente.
Moisés VC apagou o texto ” regressao autoritária ” ? Tinha ficado tao bom e cirurgico…sorte minha ter lido. VC querido precisa ir pro facebook e ganhar repercussão. VC é um grande escritor além de ser cirurgião da analise política
O texto Regressão autoritária continua aqui (https://novaes-c-politico.com.br/?p=3631). Aliás, jamais apaguei texto algum. Certo ou errado, cada um deles é memória do que pensei em cada contexto.
Como você me lembrou desse texto, fiz um hiperlink para ele no texto acima, enfiando uma crítica ao Barroso.