Carlos Novaes, 26 de maio de 2021
O golpe contra a inepta Dilma deixou claro que “condições políticas” para o impeachment de um presidente da República podiam ser fabricadas a gosto pelos políticos profissionais com assento no Congresso, como explorei em série e artigos da época. Outrossim, a dinâmica política explicitada naquele golpe teve como resultado o escancaramento da luta de facções e a desmoralização do Congresso enquanto agente depositário das esperanças por dias melhores para a maioria da sociedade brasileira. Tendo ficado claro que o dispositivo do impeachment não garantia nada mais do que a repetição do circuito malsão, pois o problema está sobretudo no Congresso, os políticos profissionais passaram a ser confusamente execrados por grande parte da sociedade, em mais um sintoma da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que levou à vitória de Bolsonaro.
Embora os motivos miúdos, propriamente empíricos, sejam diferentes nos dois casos, o fato é que não há impeachment contra Bolsonaro pela mesma razão que não houve impeachment contra Temer: o Congresso não tem legitimidade política para propor o impedimento político do presidente da República. Por mais que a imprensa convencional alardeie a CPI e promova Renan (logo quem!!), já não há trouxas suficientes para legitimar essa “solução” política para os nossos problemas. Para quem não é tonto, os políticos profissionais se tornaram farinha do mesmo saco e essa é uma briga entre eles para benefício deles (ainda que a lâmpada de Diógenes possa mostrar exceções).
Bem sei que a “governabilidade” dos mandatos de Temer e Bolsonaro foi comprada ao Congresso (há sábios calculando a eficiência dessa compra), mas entendo essa capacidade de compra como resultado da própria crise de legitimação que, entre outras coisas, impede o impeachment. Quer dizer: o Congresso discute preço e aceita pagamento para dar governabilidade a um presidente claramente impopular porque não havendo grandes manifestações de rua pelo impeachment de um presidente impopular (pois a maioria da sociedade já não acredita neste mecanismo como solução política), para a maioria dos congressistas o impeachment continua a ser menos rentável do que o toma-lá-dá-cá.
Em suma: só haverá impeachment quando a política dos profissionais for deixada de lado e contingentes esmagadores forem às ruas entendendo que um presidente deva ser afastado do cargo por um crime não apenas claro e repugnante, mas pelo qual a pessoa se sinta realmente atingida. Numa situação assim, a maioria da sociedade usará o Congresso como mero dispositivo para livrá-la de um criminoso intolerável, engolindo a repulsa que tem pelos profissionais. Uma vez engolida, a repulsa teria de ser expelida, o que abriria novas possibilidades de luta. Infelizmente, até agora nem o coronavírus levou a maioria da sociedade a esse ânimo novo.
O revigoramento eleitoral de Lula é, entre outras coisas, sintoma desse impasse: com o impeachment desacreditado como solução política, e sem ativa e generalizada indignação anticrime contra o besta, a vontade de mudança dos descontentes com Bolsonaro se volta para o calendário eleitoral, o que dá novo empurrão à antecipação da campanha de 2022 que Bolsonaro já havia suscitado quando, aos blefes, passou a acompanhar (com idas e vindas) as manifestações das suas hordas autoritárias. Daí a precoce e precária polarização entre Lula e Bolsonaro, com o segundo turno parecendo se desenhar ainda antes do primeiro o turno, um estado de coisas que sacramenta a CPI como mero adereço cenográfico para o teatro eleitoral de 2022, conjunto que dá fluxo à inércia do jogo de facções que tenta contornar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, pois ninguém pode ignorar que a maioria do Congresso não vê senão como variantes do mesmo jogo ter Lula ou Bolsonaro como presidente.
Dessa perspectiva, podemos ver o alcance danoso dessa polarização:
– Lula e Bolsonaro funcionam como rolhas a impedir o surgimento do novo em seus respectivos campos, o que faz deles expressão acabada da falta de alternativas que caracteriza a prolongada crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário;
– são quase nulas as chances de que a sociedade se mova na magnitude necessária a empurrar para fora do cargo, antes da eleição de 2022, o repulsivo criminoso Bolsonaro (o que não seria de todo perdido se o intervalo fosse preenchido com a construção de uma alternativa centrada no combate à desigualdade e orientada para um Estado de Direito Democrático);
– Lula ganha ímpeto para uma eleição da qual, se vencer, sairá para entregar menos do mesmo, o que é outra evidência da sua inserção no jogo das facções em meio a uma crise de legitimação do Estado que ele, a autointitulada esquerda, os centros e as direitas defendem como um Estado democrático de direito.
Ter em mente o que acaba de ser dito ajuda a entender tanto a sensação crescente da inviabilidade de uma “terceira via” (entendida no sentido convencional ou no sentido transformador), quanto a impressão de que Lula pode ganhar no primeiro turno.
A terceira via convencional parece inviável precisamente porque qualquer dos candidatos de costume (Ciro, Marina, Dória, Jereissati) ou aventados como novidadeiros (Huck, Amoedo, Mandetta, Boulos, Moro) desde sempre se apresenta como integrado ao que precisa ser deixado para trás: o marco institucional construído nos últimos trinta anos que, não obstante autoritário, é defendido por todos eles como um Estado democrático de direito (daí a adesão ao “frentismo” por parte de todos eles). Esse é o fundamento último para o fato de todos esses personagens surgirem tão parecidos em sua inviabilidade e, por isso mesmo, gastam a maior parte do tempo buscando improvisar alianças entre si, como se a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não estivesse a exigir uma alternativa real. Note leitor como cada um desses candidatos, seja do grupo costumeiro, seja do grupo novidadeiro, pode ser imaginado fazendo aliança eleitoral com praticamente quaisquer dos outros, aí incluído o Lula, o qual, também por isso, pode simular que significa uma alternativa, e não a rolha que impede o surgimento de uma alternativa real. Como Bolsonaro é a encarnação macabra (e inefetiva) do espectro permanente da ameaça ditatorial, todos esses candidatos se dizem contra ele usando a defesa da democracia como biombo para esconderem a precariedade do que propõem.
A terceira via transformadora depende de um projeto consistente que reúna as nossas duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, como expliquei detalhadamente aqui, aqui, aqui e aqui. Ora, na polarização eleitoreira Lula x Bolsonaro, o primeiro funciona como rolha a impedir o surgimento do novo no campo da urgência social e o segundo é a rolha a entulhar o campo da urgência por ordem. O primeiro trata a urgência social com políticas compensatórias; o segundo trata a urgência por ordem com porrada. Todos os outros candidatos estão desequipados para liderar uma alternativa transformadora porque sequer reconhecem o básico: precisamos reunir as duas urgências para que a maioria da sociedade brasileira pare de sofrer desnecessariamente sob o atraso imposto por esse Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Enquanto a necessidade desse projeto não ficar clara, vamos ficar a oscilar entre as emoções de momento. A emoção da vez é o injustiçado Lula.
Caro Novaes,
tenho minhas dúvidas se uma terceira via, no presente cenário, tenha indiscutivelmente pouquíssima viabilidade. Creio que, de fato, o que nos é permitido perceber com completa certeza (a mais de um ano do próximo pleito eleitoral) é a condição de insuficiência das pesquisas que tentam antecipar o palco político do ano próximo.
Explico:
O que passa na política nacional, para além das nossas tensões e disputas intestinas, é em alguma medida influenciado pelo que decorre no mundo, em especial nos países vizinhos, onde, este ano, candidatos pouco cotados no começo da corrida eleitoral, inesperadamente, cresceram na reta final. O próprio presidente Mito do nosso país foi um que chegou aonde chegou driblando as pesquisas de intenções de voto. Outro ponto importante é que as manifestações incendiárias na Colômbia podem aguçar instintos adormecidos naqueles que observam, de fora, o desenrolar dos confrontos (cumpre ressaltar que a “esquerda” decidiu finalmente quebrar o isolamento social e sair às ruas do Brasil para protestar neste próximo final de semana). Por seu turno, o plebiscito no Chile, que marca a rejeição popular tanto à atual Constituição do país quanto aos políticos “profissionais/tradicionais” também pode servir de germe político que se espalha para além das fronteiras entre os Estados sul-americanos.
No cenário doméstico, propriamente dito, ainda temos uma agenda complicada para este ano e o próximo, que pode alterar a posição das peças no tabuleiro político. A nomeação dos novos ministros do Supremo (haverá um terrivelmente evangélico?). A permanência ou não de ministros no atual governo (Sales e Guedes se sustentam ou caem?). O calendário da vacina seguirá com recorrentes atrasos? A força e duração da terceira onda de Covid, como se dará? O PIB, enfim, voltará a crescer? Quando o desemprego irá diminuir? O que a imprensa descobrirá de mais revelador sobre o “orçamento paralelo” do governo? A CPI renderá algum fruto ao fim e ao cabo? O isolamento do Brasil na geopolítica mundial se agravará (em especial a deterioração das relações com a China e os EUA)?
Estas são apenas algumas das inúmeras questões que, a depender do modo como irão se desenrolar, podem determinar a derrocada do bolsonarismo logo no 1º turno e a ascensão de um desses candidatos pouco cotados para 2022.