NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 3 – SLAVOJ ZIZEK

Carlos Novaes, setembro de 2013

ENTREVISTA – SLAVOJ ZIZEK – Folha de São Paulo, 29 de setembro de 2013.

“Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos”

O filósofo contra o relativismo cultural

Folha – O senhor faz uma crítica muito forte à democracia liberal. Diz, no novo livro, que os partidos de esquerda erraram ao aceitá-la e que não tem medo de ser visto como antidemocrático ou totalitário?

Slavoj Zizek – Veja bem, não estou dizendo que a democracia liberal seja algo ruim. Claro que eu prefiro isso a uma ditadura aberta. Mas a democracia liberal tem as suas limitações.
Em primeiro lugar, seus mecanismos tradicionais não são fortes o suficiente para controlar problemas ecológicos e econômicos.
Em segundo, veja o que as revelações recentes sobre espionagem nos dizem. É fácil ver o jeito como somos oprimidos e controlados em um Estado abertamente autoritário, como a Rússia ou a China. Se alguém diz “na China, nossa liberdade é limitada”, meu Deus, você está falando o óbvio!
Mas o fato é que, na democracia liberal, também somos muito controlados e oprimidos, embora a maioria das pessoas tenha a sensação de que suas vidas são livres.
Isso não quer dizer que todo controle seja igual. Claro que, nesse sentido, prefiro os EUA à China. O que teria acontecido com Bradley Manning [soldado do Exército americano condenado por vazar documentos ao Wikileaks] se ele fosse chinês ou russo? Na China, teriam prendido até a sua família.

Novaes – Para não cair na irrelevância prática, toda crítica à democracia liberal deve partir de que esse modelo de arranjo político é um ganho, ainda que não seja o melhor. Reconhecer isso exige abandonar a conduta revolucionarista, valorizar o estado democrático de direito e buscar nele, em suas próprias contradições, uma mudança de paradigma que nos conduza a uma arranjo democrático superior, que reconfigure a representação política, o direito de propriedade e a noção de conforto. Nessa ordem de idéias, revoluções são eventos limite, que não devem, e nem precisam, ser buscados – revoluções são um modo de sofrimento adicional que irrompe ali onde o sofrimento se tornou insuportável e, por isso mesmo, devem ser apoiadas. Como ainda está preso a uma crítica revolucionarista do status quo político em sociedades de mercado,  Zizek faz aquele reconhecimento a contragosto e, por isso mesmo, sua crítica vai girar como parafuso sem rosca. Em outras palavras, o dialético esloveno não apresenta compreensão dialética do problema, não retira das contradições da própria democracia liberal uma alternativa – no fundo, fica preso ao dilúvio.

Qual seria a alternativa às democracias liberais?
Zizek – Bom, não é um problema simples. Não concordo com quem diz que bastaria que um Hugo Chávez assumisse o comando e tudo se resolveria… Não é só uma questão de imperialismo americano ou algo assim, é toda nossa organização social, tecnológica.
Você vai se surpreender, mas sou contra ficar esperando uma revolução. O Brasil, apesar de todas as limitações, mostra que é possível melhorar as coisas. Se os pobres estão melhor, se a classe média se fortaleceu, é cínico dizer: “Ah, mas são as mesmas velhas relações capitalistas”.
Eu discordo daquela esquerda que nega isso, para quem a social-democracia é um compromisso com a burguesia que só atrapalha a revolução autêntica. Mas isso não significa que não exista uma problemática tendência neutralizante da democracia liberal.

Novaes –  A alternativa à democracia liberal é mais democracia e menos liberalismo. Ou seja, a solução está em redefinir a assimetria entre os termos. Para obter mais democracia temos de alcançar um novo paradigma de representação política democrática. Para um novo paradigma é necessário encontrar o nó de amarração dos problemas. Para nossa sorte, ele está claro: é a representação como profissão – acabemos com ela. Impedir a reeleição de representantes legislativos provocará uma reconfiguração geral da democracia, pois esse terreno contaminado da reeleição legislativa é a base para o surgimento da rotina daninha de artimanhas dos profissionais de carreira, cujas práticas ilegítimas e poderes viciosos são responsáveis pela não-democracia de todo o sistema, incluindo indivíduos, partidos, empresas, sindicatos, ONGs e instituições do estado. Para obter menos liberalismo temos de reconfigurar democraticamente tanto o direito de propriedade, notadamente o direito de herança, núcleo a partir do qual se reitera e propaga a desigualdade, cuja origem não é senão a diferença de “ponto de partida”, quanto a nossa relação com a ciência orientada para o conforto, uma orientação condenada a gerar desperdícios crescentes: herança e conforto são centrais na solda perversa do liberalismo e sua centralidade decorre de que praticamente todos defendem a, e pretendem desfrutar de, ambos, não apenas os ricos.

Mas o sr., como intelectual e escritor, não utiliza justamente a liberdade da democracia para expor suas ideias e convencer as pessoas?

Zizek – Veja, não sou daqueles que dizem “nossa liberdade é ilusão, vamos jogá-la fora”. A liberdade é muito preciosa.
Mas você pergunta sobre a minha condição pessoal. Não é que eu possa publicar tudo que eu queira. Recentemente recebi muitos ataques. Na “New Republic”, no “New York Times”. O “The Telegraph”, na Inglaterra, disse que eu era um fascista de esquerda. Fui acusado até de defender um novo holocausto. E o espaço para responder, quando existe, é mínimo.

Novaes – Essa é a vantagem da democracia liberal, em sua versão estado democrático de direito, sobre todos os outros arranjos existentes: pode-se discuti-la, ainda que com limitações. Mas suas múltiplas mazelas deixam claro que esse arranjo não é o desejável e, menos ainda, que seja o limite a que podemos chegar.

A liberdade deles de criticar não é a mesma que o sr. tem para opinar?

Zizek – Mas há a proporção, é diferente. Publicar na mídia marginal, em pequenas editoras, é fácil, mas a grande mídia é muito fechada.
Não sou só eu. Veja Noam Chomsky. É um intelectual extremamente conhecido, mas você nunca o viu na grande mídia americana. E não estou falando da Fox News. Você nunca viu Chomsky ser convidado a falar na CNN, mesmo no “New York Times” ele é boicotado. Claro que você pode falar que Chomsky é livre para fazer o que quiser, mas há essa exclusão do espaço público.

Novaes – Reclamar das limitações existentes à propagação da palavra divergente é quase uma tolice. Digo quase porque talvez tenha algum valor como propaganda. Afinal, a tarefa é mesmo essa: perseverar à espera de que mais e mais gente reconheça os problemas, se interesse pela sua discussão e, então, convirja para uma mudança virtuosa. Os inimigos da mudança, incluindo os proprietários dos grandes meios de divulgação, por definição mais poderosos, não irão mesmo facilitar as coisas.

Vejo seu nome na grande mídia…

Zizek – Sim e não. Há três ou quatro anos, publicaram aqui e ali sobre mim no “New York Times”. Agora não mais. Na França, há dois ou três anos, escrevia regularmente para o “Le Monde”. Agora estou fora, fui considerado radical demais. Na Alemanha foi parecido.
Não é paranoia minha. Não estou dizendo que haja conspiração, mas que, se você passa de determinado um ponto, decidem que isso é demais. Eu fico me perguntando que limite é esse. Sempre fui muito crítico à esquerda, escrevo muitas críticas a Stálin.

Novaes – As respostas dele levaram a essa esgrima rasteira das três últimas perguntas. Pouca importa o quanto se apareça na grande mídia. Importa fazer um diagnóstico tão fecundo na direção da mudança que possa, inclusive, prescindir dos “favores” do inimigo “dono” da mídia para ser aceito de modo generalizado.

Sobre Stálin, o senhor defende que não há como comparar a União Soviética de Stálin com a Alemanha nazista de Hitler.

Zizek – Veja, a União Soviética stalinista foi horrível. A quantidade de assassinatos, o sofrimento.
O que eu digo é que Stálin e Hitler não foram iguais. A prova, para mim, é a existência de dissidentes. Stálin teve a todo tempo de lutar contra quem o questionava. Muita gente dizia que Stálin tinha traído o comunismo autêntico, Trótski é um exemplo. Desculpe, mas não havia ninguém assim no nazismo, nenhum grupo questionando Hitler, dizendo que ele era um traidor do nazismo autêntico.
Na União Soviética, algo que originalmente era para dar na libertação do povo –a Revolução de Outubro– terminou em um pesadelo. Mas o objetivo inicial era outro. O nazismo era diferente. Os nazistas conseguiram exatamente o que eles queriam.

Novaes – A tema está mal e confusamente colocado. Mal colocado porque conduz o debate para as intenções (disfarçadas de objetivos iniciais); confusamente colocado porque desemboca numa comparação entre pessoas, Stalin e Hitler, coisa que, quando muito, deve interessar a leitores de biografias. Findas as duas experiências, sempre que se pensa em compará-las a primeira coisa que nos vem à mente é a ideia de horror, sinapse que já diz quase tudo. À partir da ideia do horror se impõe o inventário das mortes brutais de inocentes e engajados, da tortura, das privações materiais, das mutilações psíquicas, das chacinas de ordens simbólicas, sendo as vítimas sempre contadas na casa dos milhões. Em suma, qualquer comparação bem feita entre as duas experiências impedirá o comparador de escolher uma como melhor. É o que basta. Outra coisa bem diferente é discutir as situações alemã e russa antes das respectivas rupturas, que conduziram aos eventos, conflitos e contradições  que romperam a ordem malsã e resultaram em escolhas cujos desdobramentos perversos foram a União Soviética e o Estado Nazista.

Agora, pretender oferecer a existência aguerrida (e efêmera) de um Trotsky como benefício à comparação de Stalin com Hitler  não presta nem como piada macabra. Afinal, os trotskys existiram graças à vitalidade da sociedade russa, e Stalin não se cansou de matá-los. Ele só parou quando a sociedade, exausta, deixou de produzi-los. Putin é o vigoroso filho dessa exaustão mórbida.

Mas o sr. escreve que não vê contradição entre violência e política.

Zizek – Esse é um ponto importante a esclarecer. Há uma violência no mundo para permitir que as coisas continuem como são. Violência para mim não envolve só armas, polícia, gangues.
Há, por exemplo, a violência social, a violência econômica –uma crise financeira brutal que acaba com empregos e economias de milhões não é uma violência?
Para entender o terrorismo, por exemplo, você tem de entender esse tipo de violência. Não estou dizendo que uma coisa justifica a outra. Mas a violência econômica ou social tem consequências.

Novaes – A violência sempre emana do exercício da força, por mais tênue que ele seja – a política sempre emana da busca da persuasão, por mais incisiva que ela seja. O estado de direito é a convivência tensa, disputada, da violência e da política. Quando nessa tensão o predomínio é da política, temos o Estado de Direito Democrático. Quando a convivência se dá em desfavor da política e sob o predomínio da violência, temos o Estado de Direito Autoritário. Fora do Estado de Direito, nas ditaduras, não há propriamente tensão ou disputa, pois a política é apenas um sobrevivente mutilado sob o mando da violência. Quando a violência é absoluta, temos o totalitarismo, onde não há política.

Que relação há entre essa forma de ver a violência e a crítica que o sr. faz à noção de direitos humanos?

Zizek – Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos, que acham que os direitos humanos são apenas uma ideologia do imperialismo. Eu concordo que, em algumas situações, direitos humanos podem ser importantes.
Eu não compro o relativismo de esquerda que diz que nós não deveríamos impor uma noção ocidental de direitos humanos. Isso justifica qualquer coisa. Se estão arrancando os clitóris das mulheres, dizem “é a cultura deles, não deveríamos intervir”. É nesse sentido que critico a tolerância.
O que me incomoda é que as decisões de intervenção em nome dos direitos humanos são arbitrárias. Agora se fala muito na Síria. Mas, se você quiser ver sofrimento de verdade, vá ao Congo.
Em dez anos, morreram 4 milhões de pessoas. O Estado não funciona, os poderosos aterrorizam a população enquanto vendem minerais preciosos a empresas ocidentais. Esse é o pesadelo verdadeiro sobre direitos humanos. Mas ninguém se importa. Os países estão fazendo negócios lá –e não só os EUA mas também a China, vários outros–, então ninguém dá bola.
Eu fui a Ramallah, na Palestina, e falei: “Vocês sofrem com Israel, mas, para as pessoas do Congo, mudar para cá seria um sonho”.
Decide-se fazer intervenções por motivações geopolíticas e econômicas. Aí, de repente, surgem milhões de imagens terríveis do lugar. Agora lemos todos esses artigos sobre como o Irã é opressivo para as mulheres. Mas o Irã é um paraíso feminista perto da Arábia Saudita, e não se fala sobre isso.

Novaes – Todo direito é a pseudo-consolidação de uma memória, preservada para que a ela se possa recorrer no ajuizar com legitimidade situações controversas. O problema é que a memória é plástica, não sendo por outra razão que o passado não pode ser deixado em paz. Os direitos humanos, como toda memória, são de aplicação controversa, especialmente porque sua aplicação se dá no terreno em que disputam a violência e a política. A cada configuração dessa disputa se tem uma vigência e/ou uma violação particulares dos direitos humanos. A leitura do que são essas vigências e violações é sempre interessada, e freqüentemente serve mais à violência do que à política, o que, não obstante, não nos leva a negar que os direitos humanos são uma conquista.

O sr. diz que o totalitarismo é mal compreendido. Em que sentido?

Zizek – Eu não gosto do termo totalitarismo. Ele tem sido usado de maneira muito genérica. Do mesmo jeito que, nos anos 1960, manifestantes de esquerda diziam que os Estados Unidos eram fascistas.
Meu medo é que o mesmo aconteça com o termo “totalitário” e ele acabe sem sentido, banalizado. Veja como Hannah Arendt usava o termo. Ela é muito específica: apenas nazistas e soviéticos –e estes somente por alguns anos– foram totalitários.
O que muda agora dizer que Assad é totalitário? Claro que ele é um cara mau. Mas totalitário? Ao falar isso, uma análise real de como funciona o regime, das suas particularidades, se torna difícil.

Novaes – Salvo pela ressalva soviética do “alguns anos” , concordo.

O sr. defende muito a ordem, acha que o mundo é melhor quando tudo está organizado. Seria, nesse sentido, um totalitário?

Zizek – Nesse sentido, sim. Esse é, aliás, o meu problema com o Brasil. Rio, Carnaval, Bahia, eles dançam muito, se divertem muito, por mim iriam a um gulag [risos].
A sério: eu não acho que desordem, Carnaval, seja libertação. O problema das nossas sociedades é que elas são muito caóticas.
É isso que os americanos não entendem: se você quiser ser um ser humano verdadeiramente livre –ir aonde você quiser, encontrar quem você quiser–, você precisa de uma estrutura muito rígida de ordem pública, de boas maneiras. Sem isso, nossa liberdade é sem sentido. Liberdade e ordem andam juntas. Veja a economia soviética. Não é que ela fosse superorganizada. É o contrário. Por baixo da superfície planejada, nada funcionava, um grande improviso. A União Soviética era autoritária, mas ela não era organizada. O que ela precisava não era de mais caos, mas de mais ordem.
Para isso, acho que precisamos de mais Estado, de poderes internacionais. Os problemas que confrontamos não serão resolvidos nesse nível estúpido de comunidades locais, democracia local.

Novaes – A ordem totalitária é uma ordem só-violência, sem política. Querer a ordem não implica totalitarismo em nenhum grau, pois a ordem é compatível com a política e, num grau superior, com a democracia liberal e, num grau ainda mais refinado, com a democracia representativa não-profissional. Em outras palavras, a ordem desejável é aquela em que haja um amplo predomínio da política sobre a violência, é aquela que propicie o máximo de democracia e o mínimo de liberalismo.

Uma ordem assim abriga a hierarquia apenas em instituições muito específicas e nunca abrangentes para a sua reprodução e permanência enquanto ordem mesma. Por outro lado, o benefício da horizontalidade que se deseja abundante não deve prescindir de sua contrapartida necessária, a verticalidade, que não deve ser confundida com hierarquia, como tem sido tão comum em nossos freqüentemente estéreis e histéricos debates políticos. A hierarquia subsiste em funções, a verticalidade se efetiva em situações. Aquela é firme, essa é transitória e, até, volátil. Há verticalidade entre representante e representado, mas não deve haver hierarquia aí. Uma evidência da deformação da ordem representacional é precisamente ela ser vivida como hierárquica. A resposta à hierarquia indevida não é a horizontalidade impotente, mas a justa combinação entre horizontalidade e verticalidade numa representação não-profissional. Nessa ordem de formulação, não faz nenhum sentido opor local e internacional.

Quanto ao Brasil, parece suficiente encaminhar Zizek à leitura de Sergio Buarque e de toda a fortuna crítica sobre sua fértil formulação acerca da cordialidade brasileira e suas limitações.

No livro, o sr. conta a história de um amigo americano que foi à Romênia após a democratização, nos anos 1990, quando a polícia secreta local decidiu ser mais amigável. No hotel, ele ligou para a esposa e disse que o país era pobre, mas as pessoas muito agradáveis. Ao desligar, o telefone toca: um oficial da polícia secreta que ligava para agradecer as palavras gentis. O sr. dedica o livro a esse policial.

Zizek – Essas histórias sempre me fascinaram, histórias de como, na passagem de um sistema para o outro, a linguagem e algumas regras de comportamento se conservam e criam confusão.
O sujeito da polícia é um caso. Na época da queda do comunismo na Iugoslávia, havia uma rádio independente, de estudantes. Eles convidaram um antigo comunista, um “real” burocrata, para falar.
Perguntaram a ele sobre sexo, e ele queria agradar os jovens, mostrar que aceitava os novos tempos. Então ele disse: “Eu concordo com vocês, sexo é um instrumento muito importante na construção do progresso social e político da nação”. Todos ficaram sem reação [risos]. Eu amo esses momentos.

Novaes – Em situações de mudança não-revolucionária e/ou sem efetivo ímpeto transformador, em que predomina a pactação entre o velho e o novo, abrigam-se situações como essa. Mas não creio que se deva sempre saboreá-las, afinal, o fim pactadíssimo da nossa ditadura criou limitações que nos infelicitam até hoje – o exemplo mais presente são as restrições impostas à ação da Comissão da Verdade, que investiga os crimes da ditadura paisano-militar brasileira.

PARTIDOS E PROFISSIONAIS DA REPRESENTAÇÃO

Carlos Novaes, setembro de 2013

Não é tão difícil constatar que o prestígio dos partidos não está em expansão em parte alguma no mundo, havendo situações de manutenção e muitos exemplos de declínio propriamente dito. Menos trivial é uma explicação razoável para o fenômeno. Uns dizem que as pessoas já não querem partidos porque eles não têm nitidez ideológica ou programática, diagnóstico que põe o problema lógico de que se há tanta gente querendo partidos ideológicos ou programáticos, eles deveriam existir fortes às pencas…Outros entendem que os partidos são por demais hierarquizados, embora quase todo partido que surge, por mais que trombeteie novidades, já venha com sua pirâmide de poder pronta, provida de altar e sarcófago.

Numa outra linha explicativa, há quem arrisque um palpite aparentemente mais radical: a crise seria da forma partido, que já não responderia às exigências políticas de nosso tempo, devendo ser substituída por outra coisa(¿). Mas, para que essa abordagem tenha alguma chance de parar de pé, é necessário que se defina a forma partido como sendo necessariamente aquela dos partidos que conhecemos e, assim, se condene à condição de velharia sem remissão toda e qualquer associação para organizar a ação coletiva na esfera pública política eleitoral. Encarcerada no dogma de que não se pode imaginar partidos diferentes dos que temos, a ação política eleitoral organizada já não seria possível, sendo necessário imaginar um outro mundo. Como essa opção vai ser muito demorada, talvez seja melhor fazermos um esforço para reconhecer que a forma partido não pode ser descartada, pois algum partido é, necessariamente, pelo menos nesse mundo, a única forma de organizar a ação política eleitoral daqueles que pensam de maneira semelhante o diagnóstico e as soluções para os problemas que nos atribulam na esfera pública.

Como no Brasil a legislação permite total liberdade de organização partidária, estamos com sorte: ninguém precisa se desculpar por querer um partido, pois ele pode ter a forma que quisermos e, assim, pode ser bem diferente de tudo o que conhecemos. Aflições com o tema são desnecessárias, salvo a ginástica exigida de todo aquele ou aquela que, apegada ao mando, e sem querer deixar o fluxo da moda, não assume o risco de desconstrui-la, preferindo por um pé em cada canoa: afirma a crise irremediável da forma partido; mas trata de hierarquizar e mandar no seu, que ninguém é de ferro.

Como quer que se apresentem partidos velhos e novos, o fato é que nove de cada dez críticos dos partidos no Brasil dizem, impertinentemente, que eles são fracos. E entendem essa suposta fraqueza como sendo, vejam só, ou o resultado da, ou a própria, falta de nitidez ideológica ou programática; ou a consequência de os eleitores darem o voto a indivíduos, não a partidos (esses mesmos que não são programaticamente atraentes…) . Feito o “diagnóstico” equivocado, os engenheiros institucionais passam a matutar uma engenhoca legal que nos dê, a um só tempo, partidos fortes, ideológicos e programáticos, como se qualquer uma dessas características pudesse brotar da vigência de alguma lei urdida para tanger o eleitor e não fosse necessariamente o resultado contingente de uma complexa dinâmica social em que as pessoas se interessem pela esfera pública política e, uma vez nela, venham a se reconhecer, talvez, em partidos assim.

O embaraço principal em que se metem nossos engenheiros resulta de que não há exemplo mundial a apontar. O mundo, em sua infinita diversidade, conhece todo tipo de arranjo entre sistemas eleitorais e partidários e, não obstante, padece dos mesmos males: baixa representação e responsabilização (accountability), com desprestígio dos partidos. Assim, por mais difícil que seja abandonar a atmosfera da invencionice institucional, o melhor é descer da jabuticabeira e buscar a causa do problema fora dos sistemas eleitoral e partidário. E, uma vez escolhida outra abordagem, a solução está na cara: o que há de comum a todos os países ditos democráticos, com os mais diferentes sistemas combinados, é a existência malsã de uma representação profissional, cujo lastro central é a prerrogativa da reeleição, quase sempre infinita, para os legislativos.

Além do que já foi dito sobre o tema dos profissionais da representação política em outros posts deste Blog, parece oportuno chamar a atenção — nesse momento em que mais uma busca por partidos “fortes” é empreendida entre nós, com a tentativa, dessa vez equivocada, de lei de iniciativa popular para o sistema eleitoral do pessoal da “ficha limpa” — para o fato de que uma das consequências da representação ter se tornado uma rotina de profissionais é a paulatina descaracterização das diferenças entre partidos. Ninguém mais parecido com um político de carreira do que outro político de carreira. Eles criam laços corporativos contra nós, eleitores, que somos mais e mais vistos como o problema. Além dos cacoetes comuns do próprio exercício modorrento da representação como carreira (ora vereador, ora deputado estadual, mais adiante deputado federal, etc), que corrompem diferenças “ideológicas” que fossem de esperar (e que só aparecem como artifícios de campanha ou ferramentas fajutas da luta interna), obter a reeleição contínua requer uma nova ciência, com suas respectivas técnicas, tecnologias e profissionais especializados, estabelecendo-se uma padronização em tudo ao avesso do que seria uma relação de representação por si mesma dinâmica, atenta aos ajustes ou às mudanças requeridas pela sociedade. Em outras palavras, o sistema político, enquanto sistema, se diferencia e se opõe ao mundo da vida, enquanto vida.

Se queremos que os partidos mudem, ainda que venham a continuar tendo as preferências que tem, precisamos entender que não devemos dar força a quem neles já tem poder de mando, como iria acontecer se déssemos a eles o conforto do voto em lista ou o dinheiro certo do financiamento público. Acabemos com a reeleição para os legislativos, obrigando os partidos a se abrirem para a sociedade de modo permanente, ininterrupto. Com isso, quem se interessa por política, e até contingentes porventura existentes de uma demanda reprimida por participação, ou irão buscar suas afinidades nos partidos estabelecidos, complicando a vida dos caciques que serão obrigados a se submeterem a uma dinâmica permanente de renovação; ou irão propor a criação de partidos novos. Num caso ou no outro, como resultado da renovação compulsória,  os partidos acabarão por apresentar diferenças significativamente mais nítidas entre si e haverá poucas chances de que se aboletem no poder interno os mesmos de sempre.

CONTRA A REFORMA POLÍTICA DA TURMA DA “FICHA LIMPA”

Carlos Novaes, setembro de 2013

Depois da acertada e bem sucedida campanha da “ficha limpa”, destinada a corrigir os políticos, o mesmo pessoal vem, agora, com uma equivocada pretensão de corrigir o eleitor. Ou seja, não entenderam direito onde estão os nossos problemas. Nosso problema é a representação profissional, não a conduta do eleitor; nossos problemas começam depois do voto posto na urna, não antes.

Como não poderia deixar de ser, corrigir o eleitor significa tirar-lhe direitos. As ideias são tão velhas quanto nefastas: voto em partido e financiamento público de campanhas eleitorais. Ou seja, querem diminuir os poderes do eleitor para fazer mudanças, quando o que ele quer é mudança e, pior, nos dois casos se quer obrigar o eleitor a fazer o que ele tem preferido não fazer!

Nosso sistema eleitoral é tão bom que já prevê o voto em partido, através do voto livre e direto nas legendas partidárias: o chamado “voto de legenda”. Se apenas uma minoria de eleitores faz uso desse voto, não cabe ao engenheiro institucional inconformado querer obrigar a todos a fazê-lo — deve-se antes perguntar o por quê de a imensa maioria dos eleitores preferir votar em nomes, na democrática lista aberta. E a resposta é simples: os partidos não são atraentes e o eleitor entende que no voto de indivíduos para indivíduos há mais potencial de mudança.

Obrigar o eleitor a escolher partidos não atraentes não vai melhorar os partidos, vai tanger o eleitor a dar um enorme poder aos profissionais da política que já controlam os partidos, e que são os responsáveis por eles não serem atraentes. Em suma, a reforma da turma da “ficha limpa” quer dar força ao que não presta, ao invés de investir na liberdade de escolha do eleitor. Essa nova proposta é o sonho dos caciques: libera os políticos até de correr atrás do voto, pois torna possível que um partido tenha sucesso mesmo se seus políticos individuais não forem bem quistos!

O financiamento público de campanhas eleitorais vai dar mais dinheiro aos políticos profissionais, só que sem que eles tenham nem mesmo que pedir. Ou seja, a turma da “ficha limpa” quer garantir a eles o nosso dinheiro por cima da nossa vontade. Na verdade, o correto é exatamente o contrário: obrigá-los a correr atrás do voto e do dinheiro, ou seja, nada de voto garantido via partido e nada de dinheiro sem a decisão individual do eleitor.

Não há como aumentar o vínculo entre representante e representado se liberamos os políticos de pedir voto e dinheiro. Vamos manter o voto individual em indivíduos na lista aberta e estabelecer um teto de 100 mil reais para contribuições individuais e de empresas. Se fiscalizada com rigor, essa ordem legal provocaria uma grande mudança em nosso sistema político, ainda que não resolvesse o principal, que é a existência de profissionais da representação.

Quem duvida que o teto de 100 mil reais impeça o caixa2 tem toda razão: teto nenhum e modelo de financiamento algum vão impedir práticas ilícitas. Os malfeitos só serão impedidos com a aplicação efetiva das leis JÁ existentes. Basta que a Justiça Eleitoral dê menos atenção ao, e, sobretudo, gaste menos dinheiro com o, suspeitíssimo brinquedinho da urna eletrônica e seus conexos e passe a fazer com presteza e rigor o que é comezinho: fiscalizar eleições, validar fichas de filiação sem perseguição a ninguém, escrutinar o uso que os partidos dão ao dinheiro público que já recebem, etc.

(Para uma fundamentação mais detalhada desses pontos, leia, nesse Blog, os outros posts dessa categoria REFORMA POLÍTICA).

SERRA, MAIS UMA VEZ, CANDIDATO DE SI MESMO

 Carlos Novaes, setembro de 2013

Mesmo arrastando evidências que se acumulam no transcurso dos últimos 11 anos, desde quando perdeu o tira-teima geracional, político-social e programático contra Lula, na disputa presidencial de 2002, Serra insiste em se auto-iludir com pretensões presidenciais, obstinado em  não reconhecer que é titular de uma trajetória política que já se cumpriu, tenha ela, ou não, os méritos que supõem.

Ainda que ele pudesse ter ignorado o significado explícito do resultado de 2002 e toda a dimensão simbólica dele decorrente, não poderia deixar de tirar da derrota na disputa pela prefeitura de São Paulo em 2012 a lição inescapável de que quem o derrotou não foi Haddad, mas seu próprio anacronismo: mesmo sem ter para onde correr, o eleitor não-petista (e até anti-PT) que participa daquele contingente sujeito a mudanças na preferência, próprias das campanhas eleitorais paulistanas, mesmo esse eleitor, na hora H, evitou a aventura com Russomano, mas não foi na direção de Serra, preferindo o “desconhecido” Haddad. Deveria ter sido o bastante, pois foi assim que outro obcecado reconheceu que o tempo dele passara: ao não se dar por vencido depois da derrota óbvia para Covas na disputa estadual de 1998, Maluf acabou por desistir quando foi derrotado por Marta na disputa para a prefeitura, em 2000.

No fim da carreira, Serra se comporta como se fosse disputar a primeira eleição, só que sem o pudor do novato, que esconde a certeza íntima de que é um predestinado: o tucano exibe a crença de que o destino lhe reserva um posto que a história insiste em mostrar a todos que ele jamais alcançará. Por isso mesmo, aparece isolado, no papel de profeta de si mesmo, como uma cartomante a colocar cartas e fazer amarrações para, em data certa, trazer de volta a pessoa amada que ela própria perdeu.

Uma candidatura presidencial pelo PPS, dando as costas ao PSDB precisamente porque os tucanos entenderam que o tempo de Serra já passou, só irá ampliar uma imagem que todos já conhecem: um Serra inconformado porque a vida lhe negou a realização do maior desejo.

Seria necessário que o país conhecesse uma crise sem precedentes (que não está no horizonte) e, diante dela, se configurasse um quadro ainda mais remoto: Lula insistir em pedir votos não para si, mas para Dilma; só numa situação assim, propícia à irracionalidade, e plena dela, com a ordem política de ponta cabeça, é que Serra poderia sonhar com uma remotíssima chance de chegar à presidência. Sem uma desordem dessas, o eleitor só dará um voto presidencial a ele por piedade.

NEM DELEGATÁRIOS, NEM ABNEGADOS

Carlos Novaes, janeiro de 2012

 

Seja no parlamento francês, no Congresso americano, na Câmara da Patagônia, nas assembleias municipais inglesas, na Assembléia do Rio de Janeiro, ou nas Vilarias espanholas, o cenário é um só: os políticos estão de costas para os cidadãos.

Contra esse estado de coisas posicionam-se dois vetores de opinião mais salientes: de um lado, os que valorizam a representação, mas para quem todo o mal se resume à má conduta da maioria dos políticos; de outro lado, os que enxergam na prática abjeta deles evidências suficientes para defender a substituição do instituto da representação pela democracia participativa. Os primeiros vão buscar no paiol dos participacionistas instrumentos complementares à representação, como a convocação esporádica da consulta direta ao eleitor (plebiscitos, referendos, etc), pensando com eles se contrapor ao exclusivismo dos profissionais, mas sem livrar-se deles, até porque querem conservar os tido como bons profissionais; os segundos, partindo de que há uma abrangente energia potencial mobilizável, a seu ver indevidamente contida pelos mecanismos da representação, apregoam a ação direta contínua, em que as maiorias se ocupem permanentemente da coisa pública. Uns são reformistas demais; outros, revolucionários de menos e ambos não se dão conta de que estão a combater uma quimera com soluções ilusórias.

Quando os reformistas buscam preservar os políticos tidos como bons e se esforçam para oferecer estacas participacionistas aos mecanismos da representação existente, deixam escapar o essencial: o problema não está na prática dos políticos, a ser melhorada pela consulta direta esporádica ao eleitor, mas sim no arranjo representacional tal como o conhecemos e, pior, tomamos como sendo a representação.

Ora, o modelo político de que dispomos nas democracias atuais, baseado em políticos profissionais, que se esmeram em fazer carreira,  não é representação. Antes é a negação dela. Esse corpo de delegatários aos quais descuidadamente se deixou a possibilidade de eternização nos cargos eleitorais é hoje o principal obstáculo à representação dos interesses e preferências dos cidadãos no firmamento político. Dispondo do tempo, das conexões e dos recursos que permitem a qualquer um a busca e a defesa dos próprios interesses, esses delegatários voltaram as costas para os eleitores e há muito deixaram de representá-los, ocupados que estão com a própria reeleição e a consequente conservação dos benefícios que a condição desfrutada traz.

Contrapor a esse modelo, porém, a chamada democracia direta, como o fazem os participacionistas, é contraproducente. Ao fazê-lo, os bem intencionados reforçam os argumentos “realistas” contrários, pois é mesmo muito difícil convencer o eleitor médio de que a solução para uma política melhor é ele se incumbir das tarefas políticas no mundo contemporâneo — simplesmente não há essa imaginada demanda reprimida por participação, uma vez que, entre outras coisas, a vida de grande parte das pessoas adultas está repleta de obrigações e preferências, ambiente em que dedicadas atividades políticas cotidianas não têm lugar. Levá-las ao engajamento político equivaleria a exigir que trocassem sua vida por outra — o gasto e infértil projeto do homem novo.

Esse pré-requisito do homem novo é infértil e contraproducente. Infértil porque desloca as energias da busca do que as pessoas podem realmente fazer na esfera pública para aquilo que elas deveriam se tornar na vida privada. Contraproducente porque abre caminho para a entronização dos militantes abnegados da causa, já agora sacrificial  (“deixamos tudo para trás”, “somos soldados da causa”, etc), nos lugares de representação que as exigências de mediação jamais deixarão de impor aos movimentos de mudança, por mais calor que eles tenham produzido em seu momento de ápice. A todo pináculo de participação segue-se a acomodação, acomodação que requer alguma representação. Sem ter sido pensada e valorizada, a representação adquire dinâmica inercial, que é a pior, porque escoada do cansaço das maiorias abnegadas e sequiosa de hierarquia nova, saída das ruínas da hierarquia antiga e que acabará por ser ocupada pelos abnegados militantes sacrificiais…

A impossibilidade de reconduzir os poucos que são bons é o preço a pagar pela não recondução dos muitos que são ruins. Não é caro, especialmente se considerarmos que mesmo fora dos cargos de representação os bons sempre encontrarão meios de continuar na luta pelo bem comum.

Sejamos radicais, peçamos o que o homem médio pode pedir conosco: o fim da política como profissão! Com isso, teremos uma verdadeira representação, pois a troca permanente dos representantes, aliada às consultas diretas, permitirá uma dinâmica participativa que não procurará repudiar, mas antes se alimentará, das assimetrias nos graus de engajamento na esfera pública.

UMA MUDANÇA DE ALCANCE MUNDIAL

Carlos Novaes, dezembro de 2011

A insatisfação está em toda parte e o desafio é encontrar uma bandeira de mudança que possa trazer três reconhecimentos simultâneos pelos indivíduos interessados e a interessar: a mudança proposta não é uma quimera inalcançável, ela tem alcance mundial e, o mais importante, ela tem potência para alterar profundamente a ordem política que gera decisões no país em que cada um de nós vive.

Para não ser uma quimera a proposta de mudança não pode nem pretender mudar tudo de uma só vez, nem exigir de quem se engaja uma transformação completa de si mesmo. Querer mudar tudo de uma só vez é uma forma de criar as condições para uma mudança tão paulatina que ao final nem se sabe o que mudou; dar valor a quem se engaja segundo o que deixe para trás em favor da causa permite forjar vanguardas militares sacrificiais, mas afasta a maioria, para quem a vida é cansada, mas é boa.

Uma proposta de mudança para o mundo complexo e infeliz em que vivemos deve buscar aumentar o controle da maioria sobre o poder de alterar os códigos de direitos e deveres que nos regem e abandonar qualquer inspiração militar para lograr esse objetivo, reconhecendo como equivalentes todos os níveis de engajamento, sem que o empenho dos mais ativos gere direitos hierárquicos para eles. Engajar-se pela mudança não pode levar aos profissionais da mudança, do contrário só se reproduziria o circuito infeliz da política convencional, onde o engajamento na vida política leva aos profissionais da política.

O grande inimigo do poder da maioria para alterar aqueles códigos é o sistema político convencional, em vigor em todo o mundo intitulado de democrático e que contraproducentemente aparece como desejável nas sociedades que sequer desse arranjo malsão dispõem: não podemos olhar senão com reservas para quem almeja que a primavera árabe venha a se afunilar num sistema político que reproduza os das sociedades ditas democráticas: está mais do que na hora de abandonar a idéia de que as sociedades mais avançadas são a imagem especular do futuro das mais atrasadas. Os dias de hoje estão a mostrar como nunca antes que há a possibilidade de o impulso de mudança entre os relativamente mais atrasados se tornar o dispositivo para levar à mudança os relativamente mais avançados, desde que não se pretenda uma solução militarista que prefigura o “nós” e o “eles”.

O pilar de sustentação do sistema político convencional em todo o mundo dito democrático é a reeleição infinita para as instâncias legislativas, que permitiu aos mais dedicados rotinizarem o sequestro de poder inerente a toda representação, tornando sem efeito a representação em si mesma, uma vez que a maioria dos indivíduos não se reconhece nela. A função de representante não é uma profissão, mas a possibilidade de reeleição infinita empurrou todo o sistema para uma profissionalização que mineralisou a relação representante-representado e permitiu que o mundo político se autonomizasse como instância à parte.

Ao colonizar a representação, a reeleição infinita por muito tempo blindou a si mesma contra toda crítica eficaz, pois numa dinâmica política baseada no binarismo “amigo-inimigo” logrou dirigir os críticos para o lugar errado. A quimera da democracia direta faz a crítica errada da representação porque traz em si o germe militar do prêmio aos mais ativos, estando condenada a uma prática contraditória: como é impossível manter a maioria mobilizada permanentemente para o exercício da ação política direta, termina-se por instituir mecanismos de representação que por não terem sido valorizados em si mesmos, acabam inercialmente se apoiando na valorização do desprendimento militante enérgico de quem a tudo (ou quase tudo) abandonou pela causa: não há déspota nacional, liderzinho aboletado ou politiqueiro de província que não tenha brotado desse circuito rotinizador, o qual  repele precisamente os mais desprendidos, que se engajaram atraídos pela oportunidade de ação direta havida no início, mas que não tinham nenhum projeto de abandonar sua inserção no mundo da vida em troca de uma profissionalização no mundo dos políticos. Não é por outra razão que se diz que as revoluções devoram os melhores revolucionários.

Resgatar a representação do sequestro indevido permitirá que o mundo da vida flua  continuamente para o mundo político, pois os representantes de apenas um mandato levarão para ele o frescor da suas vivências, partilhadas com todo nós, e não terão instrumentos para se deformarem na busca pela eternização da condição de representante.

Um movimento pela transformação política do mundo só encontra razão de ser naquilo de particular que precisa ser transformado em cada sociedade específica. Em nossos dias, uma transformação política deve começar não pela economia, ou pelo meio-ambiente, mas pela política mesma. Obtendo-se aí uma mudança importante, os esforços de arregimentação para alcançá-la criarão motivações novas, dirigidas para outras mudanças. A bandeira pelo fim da reeleição infinita para os legislativos pode ser entendida, valorizada e defendida por qualquer cidadão que viva sob um sistema político convencional e veja a razão de seu sofrimento ou insatisfação no modo como hoje se dá a representação. Ao mesmo tempo, é uma bandeira que confere dimensão mundial às lutas nacionais por uma ordem política que dê alguma chance para mais liberdade e justiça. Por difícil que seja, a conquista dessa mudança é factível por meios pacíficos, com base em uma desobediência civil que ganhe as maiorias para uma inércia promissora: simplesmente deixar de dar o voto a quem já tiver sido eleito anteriormente. O passo seguinte é conquistar a proibição legal definitiva da reeleição para as instâncias legislativas de representação política.

SÓ 4 JÁ – representação não é profissão

Carlos Novaes, junho de 2013

O movimento de revolta que atravessa o Brasil e o mundo precisa encontrar uma bandeira política que corresponda à sua motivação transformadora e lhe dê impulso, amplitude e materialidade:

–          Impulso – isto é, o torne mais forte;

–          Amplitude – isto é, o leve a reunir ainda mais gente;

–          Materialidade – isto é, dê a cada um de nós uma meta fecunda, agradável, clara e realizável.

O problema dos problemas políticos no Brasil e no mundo é a farsa da representação legislativa: a representação virou uma profissão e, com isso, política virou carreira. A prática rotineira dos políticos profissionais os levou, e leva, a darem as costas às sociedades que deveriam representar. A representação não existe, pois eles estão todo o tempo ocupados com seus próprios interesses e não dão atenção aos desejos da sociedade. O primeiro interesse deles é fazer carreira, continuar a ser político para sempre. A sociedade só é levada em conta quando suas demandas não atrapalham essa meta permanente deles ou podem ser usadas para ajuda-los a permanecer.

Por melhor que seja a origem eleitoral de um político, a profissionalização sempre o arrasta para longe das metas iniciais, pois ele passa a ser regido pela lógica férrea da reeleição. Tão logo tenha sido eleito, a  primeira preocupação de um político é tudo fazer para conseguir um outro mandato legislativo na próxima eleição, mesmo que em um outro cargo.

Para recuperar o sentido da representação a solução é muito clara: o fim da reeleição para todos os cargos de representação legislativa. Política não é profissão e cada um só deve ter um mandato de 4 anos, seja de vereador, deputado ou senador. Quando um eletricista, uma professora, um médico, uma petroleira, um lavrador ou uma esteticista se torna um político profissional e passa a trabalhar por uma carreira política, perdemos todos:

–          perdem os seus colegas de profissão de origem e seus “clientes”, pois o novo político passa a manipular as ferramentas de uma outra “profissão”. Deixa os seus iguais para trás sem jamais pensar em voltar à antiga profissão, que está na origem de tudo;

–          perdem seus eleitores, que imaginaram estar elegendo um representante, mas vão ter que aturar mais um político entocado em uma vida política rotinizada em nome de uma carreira;

–          perde a sociedade como um todo, pois perde seu, ou sua, eletricista, professora, médico, petroleira, lavrador, esteticista, etc e não ganha em troca alguém voltado para os interesses de todos nós, pois o político profissional vai se ocupar em primeiro lugar de buscar dinheiro e poder para continuar empoleirado no legislativo.

As coisas estão de ponta cabeça: permite-se a reeleição ali onde deveria ser obrigatória a renovação. Se a recondução a qualquer outro mandato legislativo for proibida, mesmo que para um cargo diferente do já ocupado (fim da política como carreira), ganhamos todos:

–          o fim da recondução acabará com a perspectiva de uma carreira política, o que será um filtro poderoso contra o ambicioso político típico de nossos dias;

–          todo aquele que se candidatar saberá que terá de voltar à sua profissão depois dos 4 anos de mandato como representante – se for um mau representante poderá comprometer seu futuro profissional, pois terá de voltar para o meio de onde saiu (os políticos só se reinventam e traem porque tem a perspectiva de uma carreira);

–          a troca periódica e compulsória dos representantes vai tornar a representação o que ela deve ser: fluxo dos interesses, desejos, expectativas, projetos e esperanças da sociedade (hoje a representação não é fluxo – é rotina que segue a cadência dos interesses mesquinhos dos que fizeram da política uma profissão);

–          a renovação permanente de representantes vai obrigar os partidos a funcionarem de modo totalmente diferente, pois hoje eles estão deformados pelo domínio  burocrático dos profissionais da política – os partidos terão de liberar energias e talentos internos que seus mandachuvas sufocam, e terão de abrir as portas à sociedade, se quiserem representa-la;

–          um representante legislativo bem avaliado, tenha sido eleito como candidato avulso ou por um partido, poderá aspirar a condição de gestor público num mandato executivo, seja de prefeito, governador ou presidente.

A bandeira de SÓ 4 anos de mandato legislativo é radical porque ao mesmo tempo em que se luta para mudar a Constituição via um projeto de lei de iniciativa popular, colhendo milhões de assinaturas em todo o Brasil, podemos praticar desde já o que propomos: em 2014, nenhum voto para representante em quem já tem, ou tenha tido, mandato legislativo, por melhor que seja o político.

Essa bandeira é radical porque seu sucesso depende, antes de tudo, da nossa própria prática horizontal, dispensando-nos de esperar pela mudança legal vertical que não obstante defendemos. Essa bandeira é radical porque vai à raiz de todos os problemas políticos. Essa bandeira é radical porque propõe uma transformação viável sem derramamento de sangue, embora imponha algumas perdas.

Não há transformação sem perdas. Vamos ter de abrir mão dos poucos representantes em quem atualmente confiamos para alcançar uma meta mais elevada: uma representação que corresponda à dinâmica de uma sociedade em mudança: cheia de problemas, mas a cada dia mais comunicativa e participante.

 

PESQUISA DA OAB DÁ CARNE A LOBO EM PELE DE CORDEIRO

Carlos Novaes, agosto de 2013 

Pesquisa IBOPE encomendada pela OAB mostra o que todos sabemos: as pessoas querem mudanças o mais rápido possível, sempre. No caso da reforma política, o cidadão quer a mudança valendo já para 2014 porque está insatisfeito e revoltado com nosso modelo de representação. Mas é justamente a urgência saída dessa insatisfação e dessa revolta que cria o ambiente ideal para os pescadores de águas turvas, que querem aproveitar o momento para alterar as regras do jogo em seu favor como se estivessem dando uma resposta efetiva à indignação que tomou as ruas do país.

Para valer em 2014, qualquer mudança tem de ser proposta, discutida e votada no Congresso em menos de dois meses. Não é preciso pensar muito para concluir que todo aquele que defende isso tem de considerar dispensável a participação popular no debate. Mais uma vez, tudo se passa nos moldes e sob o tacão da política dos profissionais no Brasil dos doutores: alguns sabem o que é bom e o povo atrapalha a ação eficaz e salvadora dos engenheiros institucionais. Na melhor das hipóteses, tem gente confundindo coleta de assinaturas inscientes com adesão informada ao que quer que seja.

O voto em listas partidárias fechadas vai diminuir o direito de mudar do cidadão e é uma traição à vontade de mudança.

As pessoas têm sido levadas a achar que o defeito do nosso sistema de representação está no fato de escolherem segundo candidaturas individuais, nas chamadas listas abertas. É natural que na ausência de debates elas não tenham podido refletir sobre tudo o que perdem ao não poderem mais escolher o nome da sua preferência. Além disso, a ausência de debate esconde o verdadeiro problema: a existência de políticos profissionais que podem se reeleger infinitamente para os legislativos.

O voto em lista fechada tira poder do eleitor e dá mais poder aos dirigentes dos partidos – quem ganha com a lista fechada é quem já manda no sistema político partidário brasileiro, não você, pois os profissionais da política ficam ainda mais fortes para evitar mudanças que ameacem esse seu domínio (com a tal lista o eleitor perde ou vê restringido o poder de interferir na composição individual do feixe de forças que constituí a representação política).

Se para o eleitor já é difícil cobrar e fiscalizar políticos individuais, imagine-se como não será difícil encontrá-los depois da eleição, se até na hora da escolha eles já estiverem escondidos na lista!?

A lista fechada não vai tornar mais programáticos os partidos, que, não obstante, são fortes. Imersos na mesma cultura política não programática em que vivemos, os partidos serão dirigidos pelos mesmos políticos não programáticos que conhecemos, com a mesma força tenaz que nos infelicita. Ou seja, a atuação política segundo programas (algo em desaparecimento em todo o mundo) não tem qualquer relação com o mecanismo segundo o qual o eleitor vota – basta olhar a política infeliz dos países em que se vota nos mais variados modelos de lista. Essa alegada relação aparece ora por ignorância, ora por oportunismo, para persuadir a opinião pública, pois o eleitor médio sonha com um mundo “mais programático”.

Dar o voto para uma lista de nomes não vai levar os nomes dessa lista a agirem segundo programa algum, eles vão continuar agindo exatamente como agem em seus mandatos atuais.

Há quem diga que as campanhas vão mudar para melhor, pois ao invés de pedir o voto para si, os candidatos devem convencer os eleitores a votar no partido deles. Essa crença é ilusória. Na verdade, os candidatos vão fazer o que sempre fizeram: vão imprimir propaganda com o seu retratinho e pedir ao eleitor “vota nessa lista aqui porque eu estou nela” – o resto fica igualzinho… Por que ele se daria ao trabalho de explicar e defender o partido se atualmente ele não faz isso?  Defender e explicar o que pensam os partidos não se obtém com mudança no modo de o eleitor votar, muito menos diminuindo seus graus de liberdade. Seria necessário, primeiro, que os partidos dos políticos profissionais tivessem o que dizer!

Areia nos olhos do cidadão

Carlos Novaes, maio de 2011

A pilastra do chamado “financiamento público” é pura areia e surpreende que os bem intencionados ainda não se tenham dado conta: tudo se passa como se as campanhas eleitorais fossem caras, corruptas e desiguais porque o dinheiro legal que entra nelas é privado, não público. Ora, o problema não é o dinheiro legal, escriturado, contabilizado, doado por empresas e por cidadãos, mas sim o dinheiro ilegal, o do caixa dois. Logo, proibir a doação legal  de empresas e indivíduos, substituindo esse dinheiro pelo dinheiro do tesouro, dos nossos impostos, é uma troca que, em si mesma, nada altera da realidade imposta pelo caixa dois: campanhas caras, corruptas e desiguais. Ou seja, defender que o financiamento público acaba com o caixa dois e com os problemas derivados dele é o mesmo que dizer que os crimes de assassinato vão acabar se substituirmos a lei que proíbe o cidadão de matar por outra que diga que só o agente público em serviço pode matar.

A falácia é tão flagrante que até um político sério como Tarso Genro, ao defender o financiamento público se vê na obrigação de acrescentar “desde que com fiscalização e punição rigorosas dos infratores”. Ora, a legislação atual já determina essa “fiscalização e punição rigorosas” e, não obstante, o caixa dois impera. Por que deveríamos acreditar em “fiscalização e punição rigorosas dos infratores” no cenário do financiamento público? Em suma, o financiamento público troca a origem do dinheiro legal (de privado, para público), mas nada pode contra o dinheiro ilegal, do caixa dois. Acabar com o caixa dois não depende de mudança na legislação eleitoral, depende de fazer valer os mecanismos institucionais que já existem!

A pilastra do chamado “voto em lista fechada” é a reunião, sem cimento, de quatro areias: a grossa, a média, a fina e a extrafina: a besteira grossa é a idéia de que os partidos políticos brasileiros são fracos; a besteira média está em imaginar que as dificuldades de obter maioria para a governança resultam do mecanismo pelo qual o eleitor escolhe, não do comportamento dos políticos posteriormente à escolha ajuizada do eleitor; a besteira fina é supor que é mais fácil controlar e cobrar agrupamentos impessoais de políticos do que políticos individuais; a besteira extrafina é supor que lista fechada torna as coisas “mais programáticas”.

Ser forte significa poder fazer valer seus interesses, se fazer ouvir, ser levado em conta. Que dúvida pode haver de que os partidos políticos brasileiros têm sido fortes para conseguir quase tudo o que lhes interessa, sobretudo poder, dinheiro e imunidade? Nas instituições em que se fazem representar, distribuem livremente os cargos de provimento disponíveis; quando algum dos seus é apanhado em maus feitos com dinheiro e benesses indevidas, fecham-se em torno deles numa defesa de matilha treinada, freqüentemente eficaz; a legislação lhes confere total autonomia nas lides internas – enfim, que a luz da razão nos proteja de dar ainda mais poder a eles!

As dificuldades de obter maioria para a governança decorrem do fato de que, sendo fortes, os partidos impõem seu preço para dar apoio aos governantes. Essa realidade nada deve ao fato de o eleitor votar em indivíduos, precisamente porque esses indivíduos estão submetidos à dinâmica dirigente dos partidos fortes antes descrita (eles são fortes precisamente porque podem submeter, premiar e proteger os seus indivíduos). O voto em lista fechada tira poder do eleitor e dá mais poder aos dirigentes dos partidos, sem tornar mais fácil a vida dos governantes que querem obter maiorias – quem ganha com a lista fechada é quem já manda no sistema político partidário, pois fica ainda mais forte para evitar mudanças que ameacem esse seu domínio (com a tal lista o eleitor perde o poder de interferir na composição individual do feixe de forças que constituí a representação política).

A que servem, então, o financiamento público e o voto em lista?

Há séculos os políticos se empenham numa tarefa animal: construírem para si mesmos o meio ambiente mais confortável possível. O diabo é que há um elemento hostil: tu, eleitor, a necessidade de obter o teu apoio e o teu voto, que são individuais. O pesadelo de todo político é o período eleitoral – depois disso, se eleito, ele pode ir em busca do céu na terra: se livrar da fonte de dissabores que, para ele, o eleitor representa. É do que eles estão tratando agora, antes de 2014, quando terão de fazer nova campanha para o Congresso… O financiamento público é mais uma medida para facilitar a vida dos políticos em seu almejado micro-clima, longe de nós, indivíduos cidadãos. No devaneio musical sob o tilintar das moedas em que dança o político profissional, esse “financiamento público” é como uma daquelas antigas e plácidas reservas aristocráticas de caça: torna coisa certa, favas contadas, o dinheiro para as despesas básicas da campanha eleitoral e, melhor, sem impedir a obtenção de recursos extras por baixo do pano. É quase o céu!

O que falta para alcançar definitivamente o sonhado mundinho à parte? Ah, depois de se livrar de ter de pedir a ti dinheiro legal para a campanha dele (vai arranca-lo através de um, digamos, imposto para campanhas políticas), só falta ao político escapar dos compromissos que advém de ter de pedir para si mesmo o teu voto. Para isso surgiu a idéia do “voto em lista fechada”. Como essa solução terminal encontrou resistência relevante na opinião pública, apareceu, claro, a mágica: o “voto misto”, com base no ardil de que, por definição, toda mistura resulta em coisa boa (“um pouco de bom de uma coisa e da outra, manja?”).

Essa é a origem da proposta de dois votos ao eleitor para a escolha deputados e vereadores: um na lista, um em indivíduos. Tirar do eleitor o direito de eleger indivíduos para a metade das vagas de representação significa amputar pela metade seu já diminuto poder de provocar alguma mudança.

Que mudanças seriam oportunas?

No financiamento das campanhas eleitorais, o caminho a ser seguido é o inverso do proposto: obrigar os políticos a buscarem apoio nos cidadãos, estabelecendo um teto para a contribuição individual/empresarial legal de, digamos, 100 mil reais. Se houver contra o caixa dois a fiscalização e a punição rigorosas que todos declaram defender, essa medida baratearia as campanhas de pronto, obrigando os políticos a um verdadeiro esforço de persuasão junto aos eleitores (aí, sim, com algum ganho “programático” para todo aquele que tem essa exigência). Ou seja: apoio individual para indivíduos candidatos, com os vínculos claros decorrentes, permitindo responsabilização posterior.

No sistema eleitoral, o ideal seria a adoção de três votos para deputados e vereadores, mas os três votos seriam dados em indivíduos, em listas abertas, como é hoje. Os vencedores sairiam da soma simples dos votos recebidos, não havendo hierarquia entre as três opções, que o eleitor deveria efetivar sempre em candidatos de mesmo partido. Em outro texto explico melhor essa ideia, acho.

ERUNDINA NÃO DEIXOU A VICE DE HADDAD POR UMA FOTO, MAS POR UM FATO

Carlos Novaes, junho de 2012

Especialmente em política, o moralismo é a perversão da moral, e do discernimento. Ambos ficam comprometidos quando se diz que Luiza Erundina foi incoerente quando deixou a condição de candidata a vice-prefeita na chapa liderada por Fernando Haddad à capital paulista. Vários articulistas, com ares de quem descobriu a pólvora, insistem prolixamente na idéia de que a força de uma “imagem” levou Erundina a abandonar um barco no qual aceitara entrar antes da fotografia em que Lula e Haddad aparecem ao lado de Maluf nos jardins da mansão dele. Esse pessoal não atina para o básico: Erundina reagiu a um fato, não a uma imagem. Ao conseguir impor a Lula um deslocamento até sua casa e uma fotografia incômoda, Maluf evidenciou uma força que não estivera clara, nem seria de supor, enquanto o apoio de seu partido à chapa não passava de formalidade para obter tempo na TV.

Os princípios, em política (atividade coletiva), estão necessariamente atados ao quantum de força disponível para fazê-los valer num jogo de tensões – por isso, o moralismo de fundo dos que condenam Erundina é uma bobagem; em política não se afirmam princípios com o queixo. O deslocamento e a fotografia impostos mostraram para Erundina, e para outros que estavam nesse mesmo barco, que Lula e o PT estão frouxos além do tolerável nesse jogo de forças. A reação dessas pessoas que haviam sido tolerantes com a aliança antes do episódio (repito episódio – a fotografia não é só, e nem principalmente, uma imagem, ela é a representação de um ato, uma ação forçada) nada tem de incoerente: elas fizeram um cálculo novo sobre o que se passava. Erundina aceitara a presença do partido de Maluf na aliança, mas deixou de aceitá-la quando a força da inconveniência dele ficou, no juízo dela e dos que a seguem, desproporcionalmente desfavorável ao que entendem como adequado. Antes tarde do que nunca.

Lista Fechada, Financiamento Público, Coligações e Candidaturas Avulsas

Carlos Novaes, maio de 2011 

Quando se identifica um problema, é de esperar que ao diagnóstico se sigam uma ou mais medidas de solução coerentes com a mudança almejada. Não menos trivial é supor que havendo mais de uma medida a ser tomada, elas sejam concebidas de modo a não contrariarem umas às outras.

O propósito desse texto é mostrar, por um lado, que a Lista Fechada e o Financiamento Público de Campanha são medidas incoerentes com ao diagnóstico de que nossa representação política vai mal e, por outro, esclarecer que as propostas coerentes pela Proibição das Coligações Proporcionais e pela adoção da Candidatura Avulsa, livre de partido, são medidas contraditórias com a Lista Fechada.

A insatisfação com a nossa representação política encontra lastro final numa constatação simples: nossos representantes não nos representam. Ora porque estão distantes, ora porque não respeitam compromissos programáticos, ora porque se tornaram assalariados autointeressados de uma nova “classe”, a classe política, ora porque são ladrões, corruptos ou corruptores, ora porque são instrumentos de seus financiadores – sem prejuízo das combinações que se queira imaginar entre duas ou mais dessas mazelas.

A Lista Fechada retira do eleitor o instrumento da escolha individual nominal, transferindo às direções partidárias (sejam elas uma Executiva, um Diretório ou uma Convenção – instâncias essas comandadas por esses políticos que não nos representam) essa escolha dos indivíduos que irão nos representar (sim, tenhamos em mente, sempre, que o representante é um indivíduo). Salta aos olhos que não há correlação virtuosa entre desejo e medida, pois a Lista Fechada:

  1. VAI afastar ainda mais o eleitor do representante, VAI interpor um filtro (mais um!) entre o candidato e o eleitor, não cumprindo o desejo de acabar ou diminuir a distância entre um e outro;
  2. NÃO VAI tornar mais programática a atuação dos representantes, pois não há vínculo entre o “formato” lista fechada e compromisso programático. Cada candidato presente na lista vai pedir o voto, distribuir materiais, da mesma maneira como faz hoje: “EU estou nessa lista aqui, vote nela para ME eleger”. Não há fundamento nenhum na esperança de que com a Lista Fechada os partidos farão campanhas onde idéias e vínculos programáticos serão mais sólidos do que o são hoje – a coisa não passa por aí;
  3. VAI tornar ainda mais confortável a ação intramuros desses membros da “classe política”, que ficarão protegidos até mesmo da incerteza benéfica que o voto individual nas mãos do eleitor ainda instila no processo;
  4. VAI tornar, por isso mesmo, muitíssimo mais difícil a renovação política, pois novos valores não poderão surgir pelas mãos do eleitor (que não poderá votar em indivíduos), tendo que furar a pedreira das oligarquias partidárias, que resistirão tenazmente a dar lugar viável, ou mesmo qualquer lugar, na lista, aos novatos. Na mesma linha, VAI oferecer mais poder para quem já manda nos partidos submeter suas minorias, que hoje sobrevivem porque conseguem chegar ao eleitor por si mesmas e, na lista, serão deixados fora ou longe de uma posição viável;
  5. NÃO VAI ter qualquer incidência corretiva sobre a atuação corrupta, de um lado, porque não há correlação entre concentração de poder (na confecção da lista) e diminuição da corrupção (até pelo contrário, não é?); de outro lado, porque o indivíduo corrupto terá conduta corrupta tenha sido eleito pela Lista ou não;
  6. VAI tornar os indivíduos da lista ainda mais sujeitáveis à ação dos financiadores. De um lado, porque não terão os “seus” votos para contrapor às pressões; de outro, porque ficarão devendo a “alguém” da hierarquia partidária o seu lugar na lista (tenhamos em mente a pergunta sábia do velho Miguel Arraes: “pois sim, e quanto vai custar um bom lugar nessa lista?”);

Em suma, com a Lista Fechada se retira do cidadão uma ferramenta cujo único “defeito” é o de permitir a cada um fazer dela uso diferente do que gostaria o observador ao lado (são os inconformados com essa liberdade que gostam de encher a boca para dizer que o povo, ou parte dele, não sabe votar, como se o “saber votar” tivesse qualquer relação com uma verdade presumida). Em troca dessa amputação se oferecem quimeras regulatórias bem ao gosto daqueles que supõem que os nossos problemas nascem na hora do voto (no fundo, culpam o povo) e não se dão conta de que o ambiente do erro é aquele do depois do voto (está na prática dos políticos).

Embora seja de rir, não devemos apenas rir daqueles que combinam a Lista Fechada com Candidatura Avulsa. Essa reunião esdrúxula é muito instrutiva sobre a confusão a que foram levados aqueles que confundem os próprios desejos com reflexão detida acerca dos nossos problemas políticos. A Candidatura Avulsa aposta ainda mais no vínculo indivíduo eleitor-indivíduo eleito, retirando parcialmente do processo o filtro que o partido representa, oferecendo ao eleitor insatisfeito com o quadro partidário a possibilidade de apresentar(-se) candidato alternativo e/ou nele votar. Ou seja, a Candidatura Avulsa potencializa o voto nominal individual precisamente porque faz a leitura correta de que, de certa maneira, temos partidos de mais. Ora, a Lista Fechada parte do diagnóstico oposto, isto é, o de que temos partidos de menos e de que é imperioso conter o poder individual.

A oportuna proibição das Coligações Proporcionais visa principalmente impedir o que se convencionou descrever como “o voto do eleitor ser transferido para alguém em quem ele não tencionava votar”. Ora, o que é a Lista Fechada senão a consagração, em altíssimo grau, da transferência do voto do eleitor “para alguém em quem ele não tencionava votar”? Permitam-me ser didático: um candidato de “opinião”, minoritário em seu partido, digamos, contrário à posse de armas pelos cidadãos comuns, pede o voto ao eleitor dizendo o que propõe e indicando a Lista Fechada (na qual figura lá embaixo). Apurados os votos, os eleitos pela mesma lista são todos defensores do direito à posse de arma, e obtiveram êxito com votos não mensuráveis (a Lista engole tudo, coisa terrível) daqueles que eram contra esse direito e haviam votado do candidato que só não se elegeu porque estava em posição desfavorável na lista do partido em que é minoria. Pois bem, pululam tagarelas que defendem as duas coisas: fim das coligações com base no fim da “transferência espúria de votos” e voto em lista, que consagra essa mesma transferência espúria.

A desigualdade no poder econômico disponível é grave no cenário político brasileiro e, até certo ponto, não passa de reflexo da desigualdade brasileira como tal. É necessário corrigir o problema, ou seja, é necessário diminuir (se não dá para anular) a distância entre a campanha com mais recursos e a campanha com menos recursos, sempre que por recursos se entenda aquilo que o dinheiro permite contratar. Ao mesmo tempo, é necessário conceber uma alternativa de financiamento que não se contraponha ao que se pretende alcançar com a mudança no sistema eleitoral: aumentar o vínculo eleitor-eleito. O Financiamento Público de Campanha seria uma resposta adequada?

Desde logo parece pouco provável que liberar partidos e candidatos do esforço de persuasão inerente ao tentar obter do eleitor apoio para suas campanhas seja uma forma de aumentar os vínculos entre eles. Pelo contrário, o Financiamento Público vai oferecer às direções partidárias (essas ocupadas pelos mesmos políticos profissionais que hoje manejam o Fundo Partidário…e que seriam as organizadoras das Listas Fechadas respectivas) um solo firme e certo, longe da vontade e do escrutino do eleitor, a partir do qual comandariam a garrafaria de campanha, submetendo os seus comandados, as suas minorias, os seus dissidentes, que estariam proibidos de captar recursos em suas próprias redes de apoio. O pior dos mundos para quem quer mudanças!

Além de configurar esse arranjo contraproducente mencionado acima, o Financiamento Público – que sempre terá de guardar alguma proporcionalidade com a força eleitoral já recebida pelo partido (o PSOL não receberia tanto dinheiro quanto o PMDB) – não traria por si mesmo qualquer trava ao caixa2, uma vez que:

  1. o caixa2 resulta da combinação de ambição com certeza razoável de impunidade, variáveis que o financiamento público não atinge (e até pode robustecer) – para mudar isso é necessário fiscalizar e punir, coisa que poderia ser feita qualquer que fosse o sistema de financiamento das campanhas, se os políticos aprovassem leis e a destinação de recursos nessa direção…;
  2. as diferenças visíveis entre as campanhas sempre poderiam ser atribuídas às diferentes dotações de financiamento público, o que ajudaria a mascarar a desigualdade advinda do caixa2 mais bem sucedido.

Assim como a Lista Fechada, o Financiamento Público é o remédio errado. Precisamos aumentar o vínculo eleitor-eleito e para isso não há nada melhor do que obrigar o candidato/partido a pedir dinheiro ao eleitor individual, seja ele rico ou pobre. Essa seria a fonte legal central de recursos para as campanhas. Fiscalizada a sério, essa medida produziria uma imediata diminuição na distância do poder econômico entre campanhas, pois não há nada mais difícil do que tirar dinheiro dos indivíduos. A lei definiria para cada cargo em disputa seu próprio teto de captação.

Se o leitor considera essa medida inviável porque é impossível controlar o caixa2, que não deixe de considerar que essa impossibilidade não muda em nada com o chamado Financiamento Público de Campanhas. O caixa2 é doença de ordem policial (legislação e prática), não havendo remédio na farmácia do modelo eleitoral.

Em suma, a uma sociedade que clama por mudança em sua representação política se está a oferecer, com apoio infernal de inúmeros mudancistas bem intencionados, inovações que vão tornar os sistema político mais protegido da ação livre do eleitor, único a partir do qual se pode esperar algum impulso de mudança. Nesse ambiente de manipulação o que não falta é inocente útil.

Questionamentos que recebi em mensagens sobre o chamado Voto Distrital

Carlos Novaes, maio de 2011

Questionamento 1:  Com o voto distrital, a eleição vai ser descentralizada. Cada estado será divido em distritos com um número fixo de eleitores. Os partidos apresentam os candidatos por distrito. E quem receber mais votos ficará com a vaga. Assim, os eleitores terão um leque mais reduzido de candidatos a escolher.

Minha opinião: não há motivo consistente para preferir (ver alguma vantagem) que os eleitores tenham “um leque mais reduzido de candidatos a escolher”. Ao escolher um candidato, o eleitor não leva em conta uma lista com todos eles, tendo que passar pelo esforço exaustivo de avaliar a todos, ou mesmo quase todos. Toda escolha é feita segundo um juízo que, desde logo, exclui um grande número dos nomes ofertados. O eleitor escolhe segundo sua inserção social, familiar; segundo suas preferências políticas (por mais difusas ou “erradas” que sejam), segundo moradia, profissão; segundo parâmetros pessoais, enfim. Não se trata de uma entrada às cegas no supermercado eleitoral, tendo que percorrer todos os corredores, gôndolas e produtos. Não, o eleitor escolhe tendo uma rota e uma rotina pré-organizadas. Logo, não há nenhuma razão para achar interessante fechar o leque de opções. Pelo contrário, devemos sempre encarar como vantagem um leque amplo, trata-se de REPRESENTAR a sociedade.

Questionamento 2: Com um representante por distrito fica mais fácil para o eleitor fiscalizar o parlamentar. Hoje, o parlamentar não é fiscalizado, aliás, pelo sistema atual, a maioria dos eleitores não sabe em que deputado federal votou.

Minha opinião: essa suposição tem dois erros básicos:

1. mesmo que os distritos fossem pequenos, não há razão para supor que “fica mais fácil fiscalizar”. Se fosse assim, os vereadores de pequenas cidades seriam fiscalizados impiedosamente e, como resultado, teríamos Câmaras Municipais ideais em pequenos municípios. Pense-se, então, nos prefeitos: todos sabem quem é o prefeito de sua cidade, cuja atuação se dá segundo parâmetros muito mais claros para o eleitor do que aqueles que orientam os legisladores. Nem por isso os prefeitos são “fiscalizados”…

2. No caso do “distrital puro”, divididos em 513 distritos, os 150 milhões de eleitores brasileiros formarão distritos de quase 300 mil eleitores cada um. Logo, além de populosos, para serem formados, em sua grande maioria, os distritos eleitorais vão reunir dezenas (d e z e n a s) de municípios e milhares de quilômetros quadrados. Por que, então, supor “mais fácil para o eleitor fiscalizar”?

Quem diz isso não sabe do que está falando. Nunca se deu ao trabalho de simular distritos em todos os estados brasileiros.

Questionamento 3: No sistema distrital haverá o barateamento das campanhas, pois cada candidato só disputará voto em seu distrito, reduzindo os custos com viagens e gastos com material de propaganda.

Minha opinião: mais uma vez, hipóteses não demonstradas e erradas:

Não há porque contar com barateamento porque:

1. a maioria dos distritos, como vimos, reunirá muitos municípios (na verdade, os distritos serão maiores do que as atuais “regiões de campanha” dos candidatos a federal e estadual), com deslocamentos de centenas de quilômetros e tudo o mais;

2. em geral, uma eleição de prefeito é mais cara do que a de um deputado, precisamente porque o voto é majoritário (como no distrital): cada candidato tem de chegar, nesse caso, a todos os eleitores do distrito, e contra os outros candidatos.

Na verdade, essas hipóteses resultam do desconhecimento de que os candidatos não fazem campanha por todo o estado, querendo chegar a todos os eleitores. Não é assim. Na verdade, as campanhas são regionais.

Questionamento 4: Os deputados distritais não vão se transformar em vereadores de luxo, para só tratar de sua paróquia, porque o eleitor estará presente para cobrança. Hoje, pelo sistema atual, muitos parlamentares são mais estaduais do que federais, fisiologistas e estão no Parlamento por cabide de emprego ou para defender interesses particulares ou de grupos que representam.

Minha opinião: típico raciocinar com os próprios desejos. Afinal, por que supor que o eleitor “vai estar presente para cobrança”? E mais, porque o eleitor não gostaria de alguém que se comportasse como um “vereador de luxo”, se por vereador, se entende, aqui, aquele que defende interesses locais?

Questionamento 5: O sistema não prejudicará minorias. No Brasil não existem minorias permanentemente alijadas, como os sunitas, em alguns países árabes. Na prática, os candidatos de um distrito terão de buscar o apoio de todos os grupos de eleitores, se quiserem vencer.

Minha opinião: não se trata de “minorias”. Trata-se do “voto de opinião”, que pode, ou não, estar referido a minorias. Como a opinião não está limitada a um território, sendo como que transversal à geografia, o modelo distrital (ainda mais o puro), praticamente elimina o voto de opinião. Eleitores com a mesma opinião ficarão obrigatoriamente separados, pois pertencerão a distritos diferentes, tendo anulada a sua capacidade de “reunião virtual pelo voto”. Por exemplo: descriminalização do aborto; da maconha; adoção do ensino religioso nas escolas; da pena de morte, etc.

Questionamento 6: Não haverá dinastias locais eternizadas pelo poder econômico e político, como existe no sistema atual – José Sarney, Jáder Barbalho etc – em que o dinheiro faz a diferença para aqueles que precisam se deslocar em grandes territórios para disputar votos. Ao concentrarem a campanha em um distrito, os candidatos menos poderosos terão mais facilidade de chegar ao eleitor no corpo a corpo.

Minha opinião: argumento falso e desinformado. Falso porque supõe que o dinheiro e as famílias não iriam exercer sua mesma influência (até maior) nos distritos. Desinformado porque desconhece que a maioria dos distritos (fora das poucas grandes cidades) terá territórios enormes, não havendo esse “corpo a corpo” idealizado.

DEZ PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE O VOTO DISTRITAL PROPOSTO PARA O BRASIL

 Carlos Novaes – março de 1999

1. O modelo proposto para o Brasil é basicamente o modelo alemão?

Não. Na Alemanha os distritos levam em conta o eleitorado do país e cada cidadão vale um voto. Na proposta defendida pelo Senador Sergio Machado e outros, os distritos seriam construídos com base no eleitorado dos estados e no seu atual número de representantes. Um deputado distrital da Bahia, por exemplo, estaria representando cerca de 412 mil eleitores. Um de São Paulo representaria 665 mil eleitores. Não obstante, eles teriam o mesmo valor na Câmara Federal. Na verdade, se aprovado, o novo modelo nos deixaria muito próximos da Bolívia em matéria de sistema eleitoral, país de voto distrital misto que incluiu, na sua adoção, distorções na representação dos cidadãos dos diferentes Departamentos.

2.  O chamado voto distrital misto iria  fortalecer os partidos?

Depende do que se entende por “fortalecer”. Se a idéia for dar consistência programática e/ou ideológica aos partidos, a resposta é não. Não há na experiência dos outros países razão para supor uma relação entre sistema eleitoral e a consistência programatico-ideológica dos partidos.

Se “fortalecer” significa dar mais poder aos atuais partidos brasileiros, a resposta é “em termos”. O voto distrital iria polarizar a disputa dentro do distrito e levaria ao fortalecimento dos que já são fortes, em prejuízo dos mais fracos.

Em suma, o modelo proposto beneficiaria os grandes partidos.

3. Com o voto distrital o eleito ficaria mais perto do eleitor, que disporia de maior poder de cobrança do que detém hoje, com o voto proporcional, e aumentaria seu interesse pela política?

Não. A maioria dos distritos seria bastante grande, com dezenas de municípios. A esperança, simpática, de um deputado que caminha, e é cobrado, nas ruas do seu distrito seria, na maioria dos casos, simplesmente frustrada. Mesmo em São Paulo, por exemplo, estado onde mais de 80% da população vive em áreas urbanas, haveriam distritos com mais de 50 mil km2 , com mais de 50 municípios. Em suma, na imensa maioria dos casos, o eleitor teria menos poder de cobrança do que detém hoje sobre o prefeito ou o vereador em que votou no seu próprio município.

Como o novo modelo diminuiria drasticamente o número de candidatos, pois cada partido lançaria uma lista com, no máximo, o número de cadeiras em disputa, parece difícil argumentar que diminuindo o número de pontos de contato ativos entre o eleitor e a campanha que discute as alternativas de rumo político para o país seriam incrementadas justamente as possibilidades de participação desse mesmo eleitor.

4. Com o voto distrital misto, em que o eleitor dispõe de dois votos (um na lista partidária e outro no candidato do distrito), haveria a alegada combinação virtuosa entre a preferência ideológica por este ou aquele partido e a orientação pragmática por este ou aquele interesse em jogo na disputa distrital?

Em tese, sim; na prática, não. Em tese, dispondo de dois votos, o eleitor poderia colocar um pé em cada canoa. Assim, poderia, por exemplo, votar na lista do PT e num candidato distrital do PFL. Ocorre que a experiência internacional demonstra que o voto majoritário, no distrito, “coloniza” o voto proporcional, na lista, porque os partidos põem também na lista os nomes que disputam nos distritos (em geral nomes fortes, que vem nas melhores posições da lista, para aumentar suas chances de eleição em caso de perderem a disputa distrital para o nome forte do outro partido, que, por sua vez, estará na lista daquele partido…). Em suma, o eleitor pragmaticamente orientado tenderia a votar no candidato do distrito por assim dizer duas vezes, no distrito e na lista.

Ademais, esse argumento dos dois votos complementares (pragmatismo e ideologia) é ilógico para quem defende que a reforma viria para fortalecer ideologicamente os partidos. As duas idéias estão erradas. Como já dito, iriam se fortalecer os partidos que já são fortes, e não porque teriam ficado mais ideológicos ou programáticos…

5. O voto distrital misto iria alterar para melhor a forma de os partidos recrutarem seus candidatos, acabando com a captação oportunista de pessoas “boas de voto” mas sem compromisso com o partido?

Não. Essa inclinação pelos “bons de voto” continuaria existindo. No caso da lista aparece uma diferença que prejudicaria o “bom de voto” mas não iria impedir os partidos de irem buscá-lo, pelo contrário: com pouca ou nenhuma força na máquina partidária, o “bom de voto” acabaria mal colocado na lista do partido e poderia deixar de ser eleito, mesmo tendo trazido muitos votos para ela. Mais uma vez, os homens fortes das máquinas partidárias, nem sempre os mais votados, é que seriam beneficiados pela mudança, pois, embora com limites desenhados pela luta interna, reservariam para si os melhores lugares da lista.

6.  O modelo distrital iria aumentar a coesão interna dos partidos?

Não. A briga pela vaga majoritária de um mesmo distrito criaria/explicitaria profundas clivagens internas, polarizando os filiados de um mesmo partido. No caso do candidato distrital, seria como as disputas internas para definir candidaturas a prefeito, governador e senador, também majoritárias. No caso das listas, a disputa pelos melhores lugares seria tremenda, com a desvantagem de que o eleitor não iria controlá-la com seu voto, como acontece hoje, quando os mais votados estão, por definição, nos melhores postos da lista, que é aberta.

7. O modelo distrital iria provocar pequenas mudanças, pois o eleitor já vota em distritos virtuais?

Pelo que vimos até aqui, as mudanças seriam enormes. Quanto ao argumento de o eleitor já votar “distritalmente”, não é verdade. Quem diz isso comete dois erros bastante primários:

a-      confunde distrito com reduto. Todo candidato tem um reduto eleitoral, que não configura distrito, tendo dimensões muito diferentes. Por exemplo, um deputado federal com forte votação em Araçatuba, populoso município do interior de SP,  tem ali o seu reduto, mas isso não configura voto distrital, pois Araçatuba terá de ser reunido a cerca de outros 40 municípios para configurar um distrito.

b-      deixa de levar em conta que os grandes municípios (basicamente as capitais dos estados) terão de ser subdivididos em mais de um distrito. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, serão 11 distritos. Assim, não faz sentido argumentar, como se tem visto, com a votação que esse ou aquele deputado obteve na capital paulista, pois ela não serve como parâmetro de concentração de voto. Na pratica, esse eleitorado do candidato forte na capital seria retalhado no novo modelo.

8.  O modelo distrital acabaria com a eleição tremendamente dispersa dos deputados, que atualmente acabam por não prestar contas aos seus eleitores? [argumento logicamente contraditório com o anterior, mas que também é usado pelos defensores do novo modelo proposto, que embaralham tudo]

Não, e por mais de uma razão:

Primeiro, não é verdade que o modelo predominante seja uma dispersão amalucada. Na verdade, praticamente todo candidato tem um reduto, ao qual, a seu modo, presta contas. Ter votos em muitos municípios não descaracteriza o fato de que os eleitores dos candidatos estão, nesta ou naquela medida, mais concentrados aqui e ali. Segundo, e por isso mesmo, no atual modelo os deputados lutam e prestam contas (com deficiências e incorreções que não vem ao caso discutir aqui) dos seus atos de uma maneira que nada faz supor menos própria do que a que seria obtida no novo modelo: o que faz o deputado quando luta para incluir no orçamento a autorização para uma obra na sua cidade-reduto e divulga isso para os seus eleitores? Faria coisa diferente eleito pelo modelo distrital? Ou, por outra, não é exatamente a institucionalização disso que se daria com o voto distrital?

9. Dando a possibilidade de dois votos, o novo modelo preservaria o voto de opinião?

Não. Voto de opinião não é apenas – nem principalmente — o voto em partido. Aliás, em todo o mundo decresce a capacidade de representação efetiva dos partidos. Eles estão, sabe-se, em decadência como instituição de representação da opinião. As clivagens de opinião têm crescentemente atravessado as organizações partidárias. Exemplos de temas que encontram ferrenhos defensores e adversários dentro de um mesmo partido: a legislação sobre o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a mudança na idade para responsabilidade penal,  a descriminalização de drogas, a censura aos meios de comunicação, a pena de morte, as compensações étnicas, o ensino religioso nas escolas públicas.

O modelo proposto restringiria muito a possibilidade de as opiniões controversas se expressarem na arena política. De um lado, o candidato pelo distrito seria pragmaticamente orientado a evitar esses temas (não será possível construir distritos tematicamente homogêneos ); de outro lado, na lista, o candidato com opiniões controvertidas poderia não ficar bem colocado nela e, “seus” votos, votos dados na lista pela sua opinião, seriam como que deslocados para outros. Hoje também existe essa transferência de votos, mas não há a possibilidade de um candidato transferir votos a quem teve menos votos do que ele e não se eleger, vendo o outro ser eleito.

Ademais, como vimos, o voto no distrito tende a colonizar toda a eleição, diminuindo as possibilidades de expressão do pensamento divergente mesmo nas pálidas chances da lista.

10. O modelo distrital poderia ser aprovado em tese, com os detalhes sendo discutidos depois?

Não, a menos que se queira enganar os votantes. O modelo tem de ser votado inteiro. Como vimos até aqui, os detalhes são fundamentais e empurram todo o sistema político para esse ou para aquele lado. Vejamos algumas questões preliminares não resolvidas, embora cruciais:

a-      a eleição no distrito seria em um ou dois turnos? Se em um turno só, um partido poderia fazer maioria na Câmara sem ter maioria de votos no país. Se em dois turnos, o sistema todo seria levado a uma extrema polarização, acabando por restarem apenas dois ou três partidos, altamente atritados.

b-      como compatibilizar os distritos para deputado federal e estadual? Um eleitor iria pertencer a dois distritos diferentes, a um para o caso federal e a outro para o estadual ? (nesse caso, a confusão não seria pequena, além de pôr sérios problemas para a concatenação da ação nos planos estadual e federal). Para os distritos coincidirem, seria necessário alterar o número de deputados de cada estado (federais ou estaduais), diminuindo uns, ou aumentando outros. Nesse caso, quem iria perder ou qual seria o custo (político e financeiro) da mudança?

c-      quem iria construir/desenhar os distritos, a Justiça Eleitoral (o TSE ou os TREs?),  uma comissão partidária (paritária?), segundo que critérios?

d-      municípios com eleitorado menor do que um distrito poderiam ter seus eleitores alocados em distritos diferentes? Ou os municípios seriam indivisíveis, salvo, claro, aqueles que comportassem mais de um distrito?

e-      qual seria o percentual de tolerância para desigualdades na magnitude eleitoral dos distritos?

f-       buscar-se-ia respeitar acidentes geográficos tais como rios, lagoas e serras na reunião de municípios para construção de um distrito? Por exemplo, embora no mapa pareçam vizinhos (geograficamente o são) os municípios paulistas de São Bernardo e Cubatão  não têm nenhuma relação na sua dinâmica política – há a serra do mar e muita floresta entre seus respectivos eleitores.

Sobre tudo isso e muito mais o modelo proposto silencia, apoiado na tese marota e frágil de que o modelo vai nos conduzir ao melhor dos mundos, vindo os “detalhes”(!) depois…

2014 precede 2010

Carlos Novaes, Junho de 2009

A situação da política brasileira de nossos dias é de tal ordem que já não é o caso de só reclamarmos que ela se faça sem a participação de militâncias partidárias ou mesmo sem o engajamento dos cidadãos; se nada fizermos, um dia desses nos acharemos lamentando que ela se dê sem fazer caso sequer da tênue e quase inaudível opinião pública. Estamos mais e mais submetidos a um jogo oligárquico cujo tabuleiro foi posto além do nosso juízo e cujas regras, além de não nos darem a conhecer, têm sua vigência sujeita ao correr do jogo. Esse estado de coisas compõe o cenário despojado de encantos à imaginação criadora que emoldura projetos sem contraste, ornamentos para uma mesmice de candidaturas que desanima até as plateias arrebanhadas para consagrá-las.

Essa mesmice que prepara uma disputa inercial para 2010 – e que nasce da oligarquização do processo político – repousa sobre análises e alternativas econômicas cujas linhas gerais foram pensadas nos anos 50 do século passado e, já então, embaladas por matrizes teóricas desenvolvidas no século retrasado: crescimento industrial mais ou menos induzido ou dirigido pelo Estado, com uma distribuição do excedente que variaria segundo este fosse mais ou menos controlado por um de dois pólos da disputa então reconhecida como a mais promissora para estruturar as escolhas de dias melhores – empresários e trabalhadores.

Como a ditadura militar interrompeu aquele processo, a luta pela redemocratização do Brasil e os anos que se seguiram a ela não puderam escapar das aporias postas por aquela interrupção, notadamente porque foi no período ditatorial que a chamada questão social, simbolizada na desigualdade, conheceu sua fermentação máxima. Lula e Serra, homens da mesma geração, representam as duas pontas da força que a ditadura por assim dizer dividiu: os do exílio (que voltaram para reatar a luta) e os de dentro (que ficaram travando a luta); a classe média preparada e com compromisso com os de baixo e os trabalhadores que descobriram a própria força. Serra representa aquela metade da geração a quem a ditadura removeu do proscênio e, ao voltar, encontrou seus pares de geração já imantados pelo metalúrgico que protagonizara mais uma volta no parafuso da história.

Nessa ordem de idéias, no encontro-disputa de 2002 Lula estava à frente de Serra porque sua liderança emergiu do pólo mais dinâmico e mais moderno do processo então em curso: a massa trabalhadora. E emergiu de forma orgânica (era um deles) e numa perspectiva de enfrentar o problema da desigualdade tendo escolhido resoluta e incontrastavelmente o lado que sempre perdera. Naquela altura, Lula representava de maneira cabal a oportunidade de realização de um projeto para a qual Serra fora levado a chegar atrasado ao encontro. Com os governos de Lula, o projeto truncado em 64 se cumpriu, deu-se o envelhecimento inapelável das propostas políticas arranjadas no período e o país deve entrar em uma nova era.

Se for assim, a vitória de Lula em 2002, e os governos que realizou, tornariam por si sós anacrônica a presença de Serra na disputa de 2010, não fosse o fato de o presidente ter optado por uma forma de escolha do seu candidato a sucessor que é em si mesma a materialização do atraso, pois não só contraria o que seria de esperar de um processo político institucionalizado, como agride a percepção que se tem da trajetória do próprio Lula. Ao escolher por vontade pessoal e fazer essa escolha recair em personagem desprovido de luz própria que, quando muito, não pode propor senão mais do mesmo, o presidente impõe a si mesmo como o limite a que o país pode chegar, confundindo o fim do projeto que tão bem representou com o fim da história que, nesse equívoco, já não precisaria respeitar cronologias: o ano de 2014 precede 2010 e já estaria, nos sonhos lulianos, condenado a repetir a consagração de 2006.

Não é por outra razão que a polarização Serra-Dilma aparece a um só tempo tão inescapável quanto desestimulante. Inescapável porque o brilho do presidente ofusca a opinião pública e reduz artificialmente o espectro do que está em disputa (nesse trilho, as chances de Serra estão menos em ele se mostrar uma alternativa e mais em ele se apresentar como melhor continuador de Lula do que Dilma); desestimulante porque mesmo o menos atento dos observadores recebe com frieza e desconforto esse congelamento da ação política (o desempenho de uma Heloísa Helena nas pesquisas traduz essa ânsia por mudança que ainda não encontrou lastro).

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

Na verdade, isolando-se apenas os aspectos formais, a candidatura Dilma tem menos semelhança com a de Medvedev na Rússia distante do que repete frágil experimento local recente, proposto em São Paulo em 1996: um governante muito bem avaliado nas pesquisas, mas impossibilitado de se reeleger e cioso do seu capital político (Lula e Maluf), escolhe alguém desconhecido, sem histórico político-eleitoral, moldado para “continuar na mesma enquanto eu vou ali e já volto” (Dilma e Pitta). Para compensar a falta de lastro público próprio, o nome escolhido deve trazer em si mesmo evidência óbvia e inegável que permita dialogar com nossa cultura política de massas vibrando a corda sensível da reparação (Mulher e Negro), e a ele se atribui com estardalhaço um programa governamental tão visível quanto controvertido (PAC e CINGAPURA). Em suma, Dilma é o Pitta de Lula. Para completar, se não fizer o recuo que a lógica exposta acima impõe, caberá mais uma vez a José Serra disputar com o preposto em seu próprio campo e, claro, mais uma vez caberá aos transformadores alargar o espaço que há para uma alternativa a essas duas versões do mesmo. Não será de surpreender se este espaço se revelar maior do que a atual paleta de tintas sugere.

À luz de suas realizações desiguais, e até contraditórias, o período Lula aparece a um só tempo como progressista, continuista, conservador e reacionário: progressista em políticas sociais compensatórias, continuista em política econômica e desenvolvimento, conservador na dimensão institucional-democrática e reacionário em meio ambiente e telecomunicações.

Uma política orientada para a transformação não pode deixar de propor uma reformação política antioligárquica, que valorize a democracia. Uma política orientada para a transformação deve encarar o desafio do nosso desenvolvimento entendendo que ele é bifronte: de um lado, dotar o país de um projeto de desenvolvimento que promova condições sociais, ambientais, energéticas, culturais e industriais mais propícias ao bem estar do nosso povo; de outro lado, um modelo de desenvolvimento em consonância com o potencial do Brasil para ser um dos protagonistas de dias melhores para a humanidade.

Não é a primeira vez na era moderna que um país ainda atrasado em seu desenvolvimento interno descobre que o melhor caminho da mudança para si é aquele que também serve de dispositivo para fazer avançar a luta planetária pela solução das aporias de sua época. A história nos mostra que os passos de quem recua ante a tarefa mais longínqua esmagam as possibilidades de realização da mais próxima. Insistir numa concepção anacrônica de crescimento nacional que contraria as exigências para o desenvolvimento da humanidade em seu conjunto comprometerá nosso próprio futuro como nação ao permitir que interesses apequenados se interponham entre o nosso próprio povo e os benefícios que ele pode receber de um projeto de desenvolvimento sustentável que tenha implicações diretas na transformação do modo de vida de todos os povos.

As evidências dessa concatenação auspiciosa entre o local e o internacional renovam oportunidades de luta pela mudança porque elas já não chegam a nós apenas pela pregação dos mais interessados, ou pela via indireta da Internet, da TV ou dos jornais, antes fazem parte da nossa experiência sensível mais básica, pela vivência de intempéries surpreendentes, de cujas consequências a ninguém é dado escapar, seja pobre ou rico; mulher ou homem; amarelo, negro, branco, mulato ou índio: são calores súbitos, chuvas torrenciais, cheias inusitadas, ventos impetuosos, degelos continentais, secas abrasadoras, mares amotinados. Uma natureza que até bem pouco tempo o homem insciente celebrava como a seu dispor põe desafios à existência humana em razão de técnicas humanas adversas a maltratar todo o globo.

Se o Brasil, gigante pela própria natureza, faz por si só diferença no curso da vida mundial, nós, os brasileiros, muito teremos de pensar e lutar se não quisermos abrir mão de fazer diferença na definição sobre c o m o nosso país participará das escolhas mundiais. Mas não poderá oferecer alternativas de ordem geral quem não souber fazer as escolhas locais para superar seu nanismo político, a começar por aquelas que tornem seu próprio povo um protagonista autônomo.

Nossos valiosos cabedais humanos vêm sendo subvalorizados, subutilizados ou simplesmente malbaratados. Os talentos da nossa gente se dissipam numa escolarização tão precária que ao não contribuir para aliviar a faina cotidiana leva a uma depreciação crescente do próprio conhecimento; nossa má distribuição alimentar e nossas redes mambembes de saúde e saneamento abandonam no desvalimento e na doença um enorme potencial humano de criação; nossa produção cultural aparta da fruição, pelo preço, justamente aqueles que são a sua inspiração e que mais carecem dela; nosso desenvolvimento centrado num crescimento submetido a forças deletérias do mercado frustra nossa gente no momento da vida em que cada um tem mais para oferecer como trabalhador e empreendedor; nosso modo corrupto de fazer política exaure antes do desabrochar o ânimo transformador de uma juventude numerosa como nunca antes; nosso jeito excludente de tocar a inovação tecnológica vem colonizando via propriedade material o que é próprio do mundo virtual livre; nosso modelo de produção agropecuária contraditoriamente repele o homem e maltrata a terra; nosso sistema político oligarquizado desdenha a participação de muitos e remunera a obediência de poucos.

Parte considerável das nossas riquezas naturais ou tem sido gasta com o desperdício que a abundância franquia aos incautos, ou se esvai numa avidez danosa que o estado brasileiro não tem querido conter ou jaz adormecida em seu amazônico potencial restaurador e inovador para nós e para toda a humanidade. A extração ruinosa da madeira de nossas matas tem baixa produtividade e acarreta danos ambientais para todos, sem que os empregos locais que gera possam servir de consolo, uma vez que são de qualidade tão baixa que chegam à escravidão e colocam o Brasil na companhia dos que pior tratam seu próprio povo trabalhador. Escolhas governamentais feitas sob a pressão dos negócios têm cimentado nossa matriz energética em modelos cujos ganhos privados não se realizam sem prejuízos públicos, que se avolumam em estragos ambientais progressivos e degradação continuada da qualidade da vida humana. Custos crescentes empurram uma infraestrutura viária voltada para o uso do automóvel à sua própria inviabilidade, cuja paisagem é a de uma paradoxal imobilidade urbana fumegante pela queima de combustíveis fósseis de obtenção e uso cada vez mais onerosos. Nosso imenso potencial para a produção de energia de origem renovável inicia sua realização já limitado pela miopia que os sempre mesmos interesses privados de curto prazo produzem.

É hora de descortinar uma alternativa política inovadora para o Brasil. Devemos buscar reunir todos aqueles que continuam a perseguir a transformação da vida brasileira e gostem da idéia, e queiram partilhar de igual para igual a alegria, de trabalhar na elaboração de uma proposta de Reformação Política e de um projeto de Desenvolvimento Sustentável para o Brasil. Que seja desenvolvimento não pelas obras vistosas que venha a erguer, mas, sobretudo, porque ofereça possibilidades de uma vida menos cansada, mais saudável e prazerosa para o nosso povo. Que seja sustentável não para alimentar em nós brasileiros a ilusão de que é possível virar as costas ao mundo e sustentar-se por si mesmo; mas porque, ao contrário, estimule com o exemplo brasileiro a luta mundial animada pela convicção de que só é realmente possível ir adiante quando se tem em conta o bem estar de toda a humanidade.

O nome para liderar esse projeto e representa-lo na oportunidade única ensejada pela disputa presidencial de 2010 é o da Senadora Marina Silva, não por acaso aquela cuja atuação demarcou os limites da era Lula, cuja trajetória simboliza o que deve haver de continuidade com o caráter popular dessa mesma era e cuja visão de mundo está em consonância anímica com a perspectiva transformadora que nos remete para além dessa era.

NOTA DE 2009 – Este texto resulta da fusão, com cortes e acréscimos, de dois outros, escritos pelo autor entre novembro de 2008 e janeiro de 2009. O de 2008 tratava apenas da candidatura Dilma e foi enviado à Folha, que não o publicou. O de 2009 foi enviado a amigos tempos depois de escrito, quando o autor imaginou que uma candidatura de Marina em 2010 estava, como continua, sendo imprudentemente negligenciada.

A FRAQUEZA DA PRESIDENTA, QUE PARECE FORTE

Carlos Novaes, abril de 2013

A presidenta Dilma almeja a reeleição. A lei dá a ela o direito de pleitear um segundo mandato e seu trabalho como governante vem sendo crescentemente bem avaliado pelo eleitorado ouvido em pesquisas confiáveis. Entretanto, ninguém pode dar como certa a sua candidatura em 2014 e a razão é uma só: Lula pode querer ser candidato.

Ou seja, numa situação inédita, a titular do mais alto posto político do país não é senhora da própria vontade quando se trata de disputá-lo uma segunda vez. Deixemos claro esse ineditismo: todo o poder dela se dissipa ante a vontade de uma outra pessoa, pois se Lula disser que quer ser candidato a presidente em 2014 a presidenta Dilma não terá como sê-lo — ela nem teria como enfrentá-lo nas urnas, e muito menos poderia disputar com ele a indicação partidária do PT.

Exceto problemas intransponíveis de ordem pessoal, nada pode impedir Lula de querer voltar a ser presidente já em 2014. Ele pode não querer, mas não há indicações disso, pelo contrário: no transcurso do tempo Lula tem dado declarações que em nada desencorajam o “volta Lula”, ora quando se recusa a “prever o futuro”; logo adiante quando se diz pronto a fazer política na ruas; mais recentemente quando se faz fotografar em reunião de trabalho com o prefeito de São Paulo recém empossado, ambos acompanhados de seus respectivos ministeriáveis e secretários;  ou ainda quando se declara dedicado a costurar o arco de alianças partidárias para a disputa presidencial de 2014. Vistos de longe, esses gestos aparecem como uma sucessão de estacas cuidadosamente fincadas na demarcação do caminho de volta.

Cada nova declaração ou situação criada por ele enfraquece a condição da presidenta como candidata. Em resposta, na sua aparição recente em cadeia nacional, a presidenta fez dois pronunciamentos dentro de um. No primeiro, Dilma tratou da diminuição do preço da energia elétrica; no segundo, ela explicitou toda a fragilidade da sua condição de candidata, pois se empenhou sobretudo em afastar o fantasma do “volta Lula” num texto que só os ingênuos enxergaram como de combate à oposição. A enumeração do que o petismo encara como feitos de sua era presidencial, por contraste com “aqueles do contra”, apenas subalternamente visou a oposição  — o que se buscou ali foi sobretudo fazer de Dilma a titular em exercício de todo o presumido legado dos últimos 10 anos, para ocupar terreno contra o “volta Lula” dentro do próprio petismo e na opinião pública mais geral. As chances de sucesso são pequenas.

Eduardo Campos e Sergio Cabral em apuros

 Carlos Novaes, fevereiro de 2013

Nem todo mundo deve lembrar, mas Lula na presidência adulava Cabral e Campos com frases como “esses meninos tiram de mim o que querem”. E eles acreditaram. O problema é que só se tira do Lula o que ele quer que tirem dele. Bem aos pouquinhos, tanto Campos como Cabral vão se dando conta de que os meninos do Lula são Haddad e Lindenberg. Comecemos do início.

Os desdobramentos do chamado mensalão e do caso dos “aloprados” removeram da sucessão presidencial vários nomes da geração sênior do PT, tendo restado apenas dois políticos com envergadura para a presidência: Tarso Genro e Marta Suplicy. Nenhum dos dois, porém, com possibilidades de conseguir emplacar na cabeça de chapa: Tarso Genro, pelas suas qualidades, sempre se viu barrado pela burocracia petista, a quem desagradou ainda mais com as posições republicanas que assumiu no caso do mensalão ; Marta porque se deixou enredar pelas ambições precipitadas de parte da burocracia petista paulistana, travestidas, como sempre, num ardiloso ultra petismo, e escanteou o PMDB paulista, no que acabou por colidir com os interesses de Lula na presidência, que buscava consolidar a hoje consagrada parceria com o mesmo PMDB, que tem em Cabral um dos quadros que mais foi mimado por Lula.

Resultados da situação sumariada acima foram a escolha de Dilma-Themer para suceder Lula e a constatação de que o PT não dispunha de uma geração intermediária com possibilidades eleitorais para a presidência. Até as eleições de 2012 a movimentação de Eduardo Campos deve ser observada com esse cenário de fundo: cumprisse um ou dois mandatos, Dilma significava o marco a partir do qual Campos desataria as próprias ambições. Se Dilma viesse a dar lugar a Lula em 2014, Campos buscaria a condição de vice de Lula no sonho de sucede-lo já em 2018, sonho esse embalado pela benevolência esperta com que o líder máximo do PT sempre o mimoseou. Se Dilma buscasse a reeleição, Campos disputaria em 2018 na condição de titular da posição de protagonista da nova geração, pois o PT não disporia de rival nacional viável.

Os apuros do governador de PE começaram quando Lula viu que precisava contornar o mensalão e agiu para preencher o vazio geracional na esfera nacional petista lançando Haddad e Porchman como candidatos a prefeito em São Paulo e Campinas em 2012. O PSB de SP resistiu o quanto pôde a apoiar Haddad, e muitos viram nisso uma ação local. Nada mais ingênuo: a resistência era nacional, pois não pode haver escapado a Eduardo Campos que Haddad eleito em SP significaria o sepultamento de seus sonhos de contar com Lula e seu PT, quer em 2014, 2018, 2022… Como sempre, Lula cortejou Campos até conseguir o apoio a Haddad, mas agora o neto de Arraes sabia que estava a receber um abraço de urso. Vem dessas circunstâncias a tranqüilidade com que o PSB acolheu a atribulada e danosa decisão de Luiza Erundina de deixar a condição de vice na chapa de Haddad: o que Campos mais queria era criar problemas para uma vitória do petista.

Haddad prefeito da maior cidade do país tem tudo para ser o candidato a presidente do PT em 2018 e Campos precisa redefinir seu jogo, pois 2018 ficou longe demais. O problema é que Lula, pelo qual, assim como seu partidário Ciro, ele se deixara levar, está sempre um passo à frente. Ao antecipar o início da campanha de 2014  Lula aperta os parafusos a ponto de faze-los cantar: Eduardo Campos terminou por se dar conta de que se quiser a presidência terá de a disputar contra a força do metalúrgico astuto – fim de tango.

Sergio Cabral, cujas ambições são regionais, até porque seu peso partidário nacional é pequeno, começa a ver o que lhe deveria ter estado claro há muito tempo: o que Lula fez — só até conseguir o PMDB paulista e, com ele, o nacional — não foi domesticar o PT do Rio, mas apenas procrastinar o desabrochar de uma ambição local que o PMDB fluminense ajudou a incubar. Ao obter êxitos junto ao eleitorado popular da baixada fluminense através de Lindenberg e ao dividir o ninho carioca com o PMDB, o PT como que superou seus problemas na populosa zona oeste da capital e já não há como barrar (e seria a terceira vez!) uma postulação custosa mas viável ao governo do estado. As reações ventríloquas de parte do PMDB do Rio à movimentação de Lindenberg têm sido tão impertinentes que o ajudam, pois obrigam setores minoritários do próprio PT a defenderem publicamente o direito a uma candidatura própria que não almejam, de olho que estão na vice do até aqui competitivo Pezão. Dessa vez o Rio terá um forte candidato do PT ao governo do Estado e Cabral verá que os arrulhos vão se tornando um rufar de tambores.

PODER MILITAR, PODER DE POLÍCIA E LEGITIMIDADE PARA O USO DA FORÇA

 Carlos Novaes, julho de 2013

Num estado democrático de direito, as legitimidades da ação militar e da ação de polícia são diferentes porque se assentam em terrenos muito diferentes. Enquanto a ação militar legítima de um estado qualquer diz respeito ao uso da força contra o não-cidadão, que, por definição, é o estrangeiro; a ação policial legítima desse mesmo estado se dá sobre o cidadão, que, por definição, é o suspeito. A diferença básica que se quer salientar aqui é a de que no primeiro caso o agente da força militar a exerce na certeza de que está diante de um inimigo; ao passo que no segundo caso o agente da força policial a exerce tendo de mobilizar princípios, cautelas e reservas próprias do exercício da dúvida – ficando claro que certeza e dúvida aqui não são atributos pessoais do agente, mas status próprios das funções que exercem sob o estado democrático de direito que os regula.

De outra perspectiva, e deixando momentaneamente de lado a escolha sobre quem tem razão, escolha que só pode ser feita em cada situação dada, o fato é que quando um estrangeiro enfrenta ou contesta a ocupação de seu território nacional pela força militar alheia, ele o faz na condição de inimigo do ocupante. Do invasor não se requer a mais remota esperança de ser aceito ou reconhecido pelo invadido e sobre aquele nada podem as leis locais que regem a conduta deste. Essa situação de enfrentamento se configura no âmbito do uso puro e simples da força (por mais que haja legislação internacional para prevenir e punir excessos) e não há como um pretender que o outro reconheça a legitimidade da ação contrária a si, salvo em figuras desviantes como a capitulação ou a deserção. Em contrapartida, quando o cidadão de um país se vê objeto da ação do agente da força policial, seja aquele mais ou menos resistente, a conduta de ambos está recoberta pela mesma abóboda jurídica nacional e aquele que usa a força o faz no bojo de uma legitimidade que inclui o reconhecimento do suspeito como cidadão, que por sua vez reconhece o policial como agente da lei.

Em suma, a força militar propriamente dita só se realiza enquanto tal na medida em que se exerce sobre o outro de modo discricionário, contra a sua vontade civil e sem se interrogar sobre a condição do outro ante a lei. Em tudo ao contrário, a força policial só se efetiva enquanto tal ali onde se exerce levando em conta o ordenamento jurídico que, por definição, é reconhecido por ambos e, a um só tempo, regula a suas condutas e confere direitos também e, de certo modo, sobretudo, àquele cuja condição é incerta. Dizendo de uma só vez: se é militar, não pode ser polícia; se é polícia, não pode ser militar. É nessa ordem de razões que em situações normais de vida democrática a condição dos militares é a de uma inutilidade que é só aparente: a sociedade aceita o gasto de alimentá-los, vesti-los, calçá-los, abrigá-los, transportá-los, educá-los e diverti-los precisamente para que eles fiquem no ócio da prontidão para a eventualidade de serem chamados contra o inimigo — mas lá nos quartéis. Ao poder político civil da democracia corresponde uma polícia civil da mesma democracia.

Durante a ditadura paisano-militar que nos infelicitou entre 1964 e 1989 (Castelo-Sarney), período em que a sociedade brasileira ficou desprovida de um verdadeiro estado de direito — só restaurado com a nova Constituição e a volta e o exercício da eleição direta para a presidência da República –, as forças armadas ilegitimamente desaquartelaram contra a cidadania a força militar reservada ao combate contra o inimigo e, com isso, deram origem à ideia e à prática esdrúxulas de um exercício de cunho militar da força policial.

Esse arranjo malsão só foi possível porque os militares contaram com o apoio dos seus paisanos de estimação, dentre os quais a figura de José Sarney se destaca como emblemática porque essa caricatura de homem civil travestido de profissional tarimbado(link), último “presidente” do período autoritário, logrou moldar o Maranhão como um bonsai retorcido pelo enxerto ditatorial, estendendo para além do imaginável a marcha pela família (dele!) e pela propriedade (deles!) a serviço do nanismo social, econômico e institucional que os aninha, enquanto amarra no nível da sobrevivência a sufocada sociedade civil local. A Polícia Militar-PM como instituição, uma contradição em termos, é a versão, agora no âmbito do exercício do poder de polícia, dessa outra malformação que a antecedeu e lhe deu origem narcisa: o mando político paisano-militar-PM. A PM é a polícia ilegítima do domínio PM. Por isso mesmo, ela é o mais vistoso monturo deixado pela varrição democrática na forma de entulho autoritário não recolhido aos quartéis.

Essa incongruência ficou escancaradamente evidente no combate militar aberto à recente ocupação das ruas do país por jovens manifestantes de classe média com motivação política contestatória. E digo escancaradamente evidente porque a opinião pública pode se dar conta, a um só tempo e como nunca antes nesse país, de que: (a) os governadores, ainda hoje, exercem seu poder de polícia na forma de força militar em combate; (b) contra a ruas ocupadas em ação coletiva cidadã; (c) essa ação era protagonizada por jovens; (d) esses jovens eram majoritariamente de classe média e (e) a motivação desses jovens é a contestação política(link).

Nessa enumeração de cinco razões para o aprendizado da opinião pública ante um estado de coisas inaceitável, talvez a única não evidente seja eu ter frisado, em separado, que os jovens eram majoritariamente de classe média. E o fiz para salientar o que boa parte dessa mesma opinião pública não quer encarar: a ação da PM em que se prestou atenção indignada nesses dias só diferiu em truculência de outros exemplos da sua prática cotidiana porque na rotina do combate peculiar que ela dá à pobreza juvenil não é raro que se mostre muitíssimo mais assertiva na determinação de não deixar pedra sobre pedra: ela tortura e empilha corpos.

Está mais do que na hora de fazermos melhor uso do suado dinheiro público e de darmos melhor destinação à energia dos policiais de bem, que são muitos: extinguamos a PM, pois ela é não apenas incompatível com a vigência do estado democrático de direito, ela é uma ameaça a ele. Por falar nisso, onde está o Amarildo?

NÃO FUI PERGUNTADO, MAS…_2 – Paolo Gerbaudo

 Respostas de Novaes a uma entrevista feita com PAOLO GERBAUDO, Folha de São Paulo, 08 de julho de 2013

Objetivo de manifestações é nova forma de democracia

Sociólogo italiano critica presidente Dilma e diz que protestos voltarão em “novas ondas e novas formas”

BERNARDO MELLO FRANCO, DE LONDRES

Folha – O sr. estudou manifestações impulsionadas pelas redes sociais em países como Egito, Espanha e Turquia. O que elas têm em comum com os protestos no Brasil?

Paolo Gerbaudo – Da Primavera Árabe ao Occupy Wall Street, os ativistas se definem como integrantes de movimentos de praças. Eles veem praças e ruas como pontos de encontro da sociedade para protestar contra as instituições. O caso brasileiro é mais complexo, porque envolveu várias cidades, mas também houve a ocupação de lugares que simbolizam a nação, como o Congresso.

A noção de povo é a chave para entender esses novos movimentos. A alegação básica deles é que representam todo o povo, e não apenas uma classe, na luta contra um Estado visto como corrupto. Isso os diferencia dos movimentos antiglobalização, que reuniam minorias e tinham um espírito global.

Esses novos movimentos são nacionais, dirigem suas reivindicações a cada país. Isso fica claro numa frase que foi muito usada nos cartazes brasileiros: “Desculpe o transtorno, estamos construindo um novo país.”

Novaes – O que há em comum são basicamente duas coisas, uma real, a outra ilusória. A real explica o que há de esperançoso, de positivamente contagiante nos movimentos; a ilusória mostra o que há de risco regressivo neles. O impulso real à movimentação política coletiva é a percepção de que a representação é uma mentira, uma vez que há um fosso instransponível entre representantes e representados. O impulso ilusório é a crença improvisada de que a resposta a uma representação esgotada é aferrar-se a supostos interesses nacionais, que aplainariam todas as diferenças que põem problemas de coordenação à democracia e, assim, já não precisariam ser “representados”. Essa ilusão é a canção de ninar almejada por todo projeto autoritário de cunho nacional, e há mais do que paradoxo no fato de ela, a ilusão nacional, ser comum a movimentações que sacodem ao mesmo tempo vários países, de culturas e arranjos políticos muito diferentes: está faltando comunicação esclarecedora que enfatize o que há de global no mundo horizontal das redes globais. Contra a representação esgotada (e no mundo todo!) a solução não é negar a forma representação, mas identificar o vertedouro do esgotamento: a representação como profissão. Isso sim é comum a todos os países e não tem nenhuma razão nacional, tem tão somente maneiras nacionais de se mostrar ruim (como disse Tolstoi, “as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”).

Redes sociais como o Facebook têm papel importante nessas mobilizações. O que elas mudam no jogo político?

Paolo Gerbaudo – A ascensão das redes sociais permite que a sociedade se organize de forma mais difusa, especialmente as classes médias emergentes e a juventude das cidades. Isso desorientou os políticos e os velhos partidos, que estavam acostumados a buscar consensos através dos meios de comunicação de massa.

Os partidos têm pouco a fazer diante das novas formas de comunicação mediadas pelas redes sociais. A não ser que mudem completamente as suas práticas, baseadas no velho sistema de quadros e caciques locais, e se abram para novas formas de participação popular.

Novaes – A redes sociais possibilitam comunicação horizontal e sem centro a pessoas, sobretudo jovens, que já vivem uma situação sociocultural de horizontalidade e ausência de centro. A família, a escola e o trabalho (pela ordem crescente de desgarramento) vem atravessando um processo de redefinição duríssimo desde muito antes do alastramento da WEB: são instituições que vem precisando se reiventar, reinvenção que passa precisamente por mais horizontalidade (negação da hierarquia) e coordenação descentralizada ou, no mínimo, multicentrica. As redes, como não poderia deixar de ser, encontraram solo fértil: daí a fecundidade transformadora de sua versão propriamente política. A ordem política em que vivemos não tem como oferecer respostas. Logo, Paolo fica pelo meio do caminho quando ainda busca saídas para os políticos profissionais em “novas formas de participação popular”.

No Brasil, militantes com bandeiras de partidos foram expulsos de vários protestos.

Paolo Gerbaudo – Isso é muito comum nesses movimentos, porque os manifestantes querem ser vistos como uma onda única. No Egito, os militantes de partidos também foram impedidos de mostrar suas bandeiras na praça. Só permitiam o uso da bandeira nacional.

Como eles dizem representar toda a nação, são contra todos os elementos que podem dividir as pessoas na luta contra um inimigo comum, representado pelo aparato repressivo do Estado.

Em geral, eles dizem que não há ideia de esquerda ou de direita, o que existe são ideias boas e ideias ruins. Sonham com uma política sem partidos políticos.

Novaes – Os partidos estão sendo identificados como portadores do mal a combater de maneira dupla: de um lado, são os veículos compulsórios da representação defeituosa; de outro, são a expressão de interesses vivenciados como apartados de um suposto interesse nacional. Assim, há, como sempre, erro e acerto na crítica. O erro mais preocupante é a confusão entre a necessidade de buscar o “bem comum” com a identificação aplastadora do nacional e contra as busca legítima de afirmar (e defender!) diferenças. Desse erro decorre negar a forma partido enquanto instrumento de gente reunida para afirmar valores e interesses, o que é incontornável numa democracia.

Qual é o significado disso?

Paolo Gerbaudo – É um discurso populista. Isso emerge em alguns momentos na história que Antonio Gramsci [1891-1937] chamava de “interregnum”. É quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou.

Nesses momentos, aparecem o que Gramsci chamava de sintomas mórbidos. Fenômenos estranhos, criaturas monstruosas e difíceis de serem decifradas. Hoje, as criaturas estranhas são esses movimentos populares.

Para eles, a classe política rompeu o contrato social que sustenta o sistema representativo. O acordo era: Vocês, o povo, nos concedem o poder. Em troca, nós atendemos às suas demandas’. Agora, as pessoas percebem que a classe política só está atendendo à sua própria agenda.

Há um problema fundamental na democracia representativa como ela existe hoje. Ou os partidos encontram um caminho para reconquistar legitimidade, ou vão ser superados por novos partidos sintonizados com as demandas da sociedade pós-industrial de hoje.

A crítica à partidocracia é legítima. Por outro lado, às vezes parece haver nos movimentos uma crença quase religiosa de que é preciso eliminar todas as mediações.

Novaes – Um dos componentes mais regressivos desses movimentos é a volúpia pelo comportamento de enxame, pela anulação de qualquer saliência do eu. Há muita impaciência com quem pensa diferente. Essa é uma armadilha da pseudo defesa da diversidade que está presente. É como se todos possam pensar o que quiserem, desde que obedeçam uma regra básica, não escrita, mas que germina daninhamente por toda parte: “não perturbem com tentativas de argumentação a minha indiferença ante a opinião de quem pensa diferente”. O neo nacionalismo é uma face evidente disso, o máximo de diversidade com o máximo de indiferença – obscurantismo.

Em que sentido?

Paolo Gerbaudo Eles parecem ter a ilusão de que a solução é eliminar os partidos, os sindicatos. Essa ideia em si é muito problemática e ingênua. É uma ideia religiosa, absolutista, que compete com a democracia. A política é uma obra coletiva, não um agregado de indivíduos. São blocos diferentes que interagem. Para isso, você precisa dos partidos. Eles sempre existiram e sempre vão existir.

Novaes –  Como sintoma da recusa correta à Hierarquia temos o mal da recusa à Verticalidade, o que é uma confusão que precisa ser combatida. Ninguém mais quer se ver “por baixo”. As pessoas estão cada vez menos propensas a aceitar a condição de quem aprende (daí, também, a crise da escola) com outra(s) pessoa(s). Há uma certa ilegitimidade em “ter razão”. É como se todos os pontos de vista fossem válidos não apenas para serem expostos (sem que se tenha de prestar atenção), mas também, e sobretudo, para serem aceitos (daí, também, a nova criminalidade). É como se a obediência sempre colocasse um problema de hierarquia – embora, muitas vezes, ela possa ser apenas uma condição não necessariamente errada da verticalidade. Horizontal e vertical são parâmetros que dizem respeito, e só tem sentido, relacionados um ao outro. A perda de um é a perda do outro.

Este sentimento contra os partidos pode ameaçar a democracia como a conhecemos?

Paolo Gerbaudo – Existe um risco. Os momentos de “interregnum” oferecem bifurcações. Estamos num momento de crise sistêmica mundial. O Brasil está melhor que outros países, mas também está desacelerando. Nesses momentos, podem emergir forças progressistas ou reacionárias. É preciso ver se a esquerda vai saber interpretar o espírito do tempo ou se vai adotar uma postura defensiva.

Há uma demanda correta por renovação moral, mas setores mais reacionários podem explorá-la para fins antidemocráticos. A ideia de que a política tem que buscar “o bem” é ingênua, representa uma visão em preto e branco. Maquiavel dizia que o caminho para o inferno é pavimentado de boas intenções.

Novaes – O que pode ameaçar a democracia é a intolerância contra quem pensa diferente. A recusa à verticalidade democrática pode nos conduzir de volta à hierarquia militar. O que vemos no Egito é basicamente isso: a sociedade exige horizontalidade, enquanto o exército e a ordem religiosa querem reinstaurar a hierarquia. O caminho é redescobrir a importância da verticalidade, via representação democrática não profissional: nem todos estão nas ruas todo o tempo (embora devam ser consultados através de macanismos diretos); nem a representação é reserva de caça para profissionais (essa nova aristocracia que nos oprime).

Como os protestos afetam a esquerda brasileira, que está há 10 anos no poder com o PT?

Paolo Gerbaudo – Em tese, o que está sendo cobrado no Brasil não precisaria estar sendo cobrado de um governo do PT. As pessoas estão pedindo escolas, hospitais. Para um governo de esquerda, é constrangedor estar sendo pressionado com pedidos de coisas que ele já devia estar fazendo.

O aumento da tarifa dos ônibus não foi tão grande, mas se tornou um símbolo de outros problemas. Foi a gota que fez o copo transbordar.

Há outro problema. Os governos do PT proporcionaram muitos avanços na área social, mas os casos de corrupção, clientelismo e compra de votos minaram a legitimidade moral do partido.

Também há um problema de representação. O PT foi criado para representar os metalúrgicos das fábricas. Nós agora vivemos numa sociedade pós-industrial. Há uma nova classe média cheia de designers e trabalhadores criativos, por exemplo, e eles não têm uma rede de proteção que os atenda. Há uma mudança histórica, mas os partidos e sindicatos tradicionais não têm demonstrado capacidade para entendê-la.

Novaes –  O PT é um projeto esgotado – é só uma questão de tempo. Isso provavelmente ficará claro quando Lula deixar a atividade política. Depende bastante de Lula porque não há, no curto prazo, uma alternativa modernizadora real. Digo há anos que a força dele vai levá-lo a ser candidato a presidente em 2014, fato que só não se dará se motivos de saúde o impedirem. Fora isso, na conjuntura atual, o PT, em declínio, está numa situação eleitoral inédita: dispõe, ao mesmo tempo, da possibilidade de se apresentar como a “continuidade necessária” (Dilma) e da possibilidade de oferecer uma alternativa para corrigir um “desvio de curso” (Lula). Por que eles iriam abraçar o projeto de alto risco de reeleger Dilma se dispõem da saída vicária de a tudo propor consertar/concertar com a volta de Lula?

Na tentativa de responder aos protestos, a presidente Dilma Rousseff já propôs uma constituinte exclusiva e um plebiscito para fazer a chamada reforma política. Isso é suficiente?

Paolo Gerbaudo – Eu duvido que as promessas de Dilma sejam suficientes para acalmar a ira popular. Ela pode atender a pedidos específicos, mas a essência das manifestações vai além de demandas concretas. A luta principal é por uma nova forma de democracia, na qual os partidos não poderão mais lidar com os cidadãos apenas de quatro em quatro anos.

A solução para isso seria uma mudança constitucional ampla, bem além da que Dilma propõe. É preciso abrir espaço a novas formas de controle popular sobre os políticos, mais transparência contra a corrupção, novos instrumentos de democracia direta e consulta popular.

Novaes – Nada que Dilma fizesse a salvaria, pois ela é sobretudo parte do problema. Vejo o plebiscito como uma oportunidade de debate e disputa.

As manifestações no Brasil esfriaram nos últimos dias. Com base no que aconteceu em outros países, elas estão fadadas a desaparecer?

Paolo Gerbaudo – Devido à ausência de uma estrutura formal, esses novos movimentos populares tendem a sumir com a mesma velocidade com que aparecem. É impossível manter uma mobilização de massa a longo prazo, como se viu nos indignados da Espanha ou no Occupy Wall Street.

Mas, assim como aconteceu lá, é de se apostar que o outono brasileiro’ vai ressurgir em novas ondas e novas formas. Estamos vivendo tempos revolucionários, em que as pessoas voltaram a sentir que podem mudar o mundo. Veja o que está acontecendo agora no Egito.

Novaes – Não vão acabar porque os problemas que geraram a ida à ruas vão continuar existindo e não há solução rápida nem fácil. A sociedade brasileira precisa reaprender a escolher prioridades (verticalidade) numa situação em que o adversário é menos claro do que no passado recente. No Egito a luta é (como foi aqui) contra uma ditadura militar. Lá o fim se dá pelo colapso, aqui foi pactado. Tudo tem seu preço. Estamos nos reencontrando com os problemas e, por isso, vamos ficando cada vez mais parecidos uns com os outros.

NÃO FUI PERGUNTADO, MAS…1 – Castells

Carlos Novaes, junho de 2013

 Respostas de Novaes a uma entrevista feita com o Castells, em O Globo.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?

Castells – Claro que é uma qualidade. Não há cabeças para serem cortadas. Assim, as redes se espalham e alcançam novos espaços na internet e nas ruas. Não se trata, apenas, de redes na internet, mas redes presenciais.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?

Novaes – Nem qualidade, nem defeito – é uma característica prática surgida da falta de “instituições para protestar”, que tem vantagens e limitações. Essa prática nova decorre do esgotamento de certas energias utópicas (notadamente as que dependiam de um sujeito prefigurado para a ação) e de uma forte e justíssima crítica à hierarquia, mas que tem levado a uma hipertrofia da horizontalidade.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?

Castells – Eles apresentam suas demandas no espaço público, e cabe às  

instituições estabelecer o diálogo. Uma comissão pode até ser eleita para encontrar o presidente, mas não líderes.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?

Novaes – A interlocução é um processo prático, que vai mudar junto com o movimento. A hipertrofia da horizontalidade tem levado à negação da verticalidade, confundindo Vertical com Hierárquico. Abre-se um processo algo confuso, mas que está apenas no começo e haverá de conhecer nova configuração, na qual não voltarão a haver líderes tradicionais, mas onde certamente haverá lugar para protagonistas com atribuições mais definidas.

Como explicar os protestos?

Castells – É um movimento contra a corrupção e a arrogância dos políticos, em defesa da dignidade e dos direitos humanos — aí incluído o transporte. Os movimentos recentes colocam a dignidade e a democracia como meta, mais do que o combate à pobreza. É um protesto democrático e moral, como a maioria dos outros recentes.

Como explicar os protestos?

Novaes – Cada vez mais gente está se enchendo. As pessoas estão insatisfeitas com o alargamento crescente do fosso entre as grandes possibilidades evidentemente existentes para uma vida melhor e a vida que de fato levam, não obstante a energia vigorosa que direcionam para alcançar uma vida boa.

Os políticos profissionais passaram a ser vistos como o que de fato são: os cavadores do fosso. Suas ferramentas de cavar são a corrupção, o tráfico de influência, o descaso ante as agruras alheias e a férrea determinação de não largar o osso.

Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?

Castells – É a primeira vez que os brasileiros se manifestam fora dos canais tradicionais, como partidos e sindicatos. As pessoas cobram soberania política. É um movimento contra o monopólio do poder por parte de partidos altamente burocratizados. É, ainda, uma manifestação contra o crescimento econômico que não cuida da qualidade de vida nas cidades. No caso, o tema foi o transporte. Eles são contra a ideia do crescimento pelo crescimento, o mantra do neodesenvolvimentismo da América Latina, seja de direita, seja de esquerda. Como o Brasil costuma criar tendências, estamos em um ponto de inflexão não só para ele e o continente. A ideologia do crescimento, como solução para os problemas sociais, foi desmistificada.

 Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?

Novaes – Não vejo a inflexão que Castells vê nem na forma, nem no conteúdo. Não há primeira vez. Já houve muitos movimentos sociais fora de partidos e sindicatos no Brasil– e aos montes. Movimentos contra a carestia, por moradia popular, contra a construção de barragens, e outros. A idéia de que esses movimentos recentes desmistificaram a ideologia do crescimento chega a ser engraçada, pois não houve NADA nem parecido com isso.

A “inflexão” que houve foi outra – e foi mais do que “inflexão”: os novos movimentos deram as costas à política como a conhecemos, seja de direita, seja de esquerda (até porque essa distinção já não faz sentido, mesmo).

O que costuma mover esses protestos?

Castells – O ultraje, causado pela desatenção dos políticos e burocratas do governo pelos problemas e desejos de seus cidadãos, que os elegem e pagam seus salários. O principal é que milhares de cidadãos se sentem fortalecidos agora.

O que costuma mover esses protestos?

Novaes – Concordo.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?

Castells – Acho inacreditável. Além de passarem por uma série de problemas urbanos, ainda se exige que eles façam o trabalho de profissional que deveria ser dos burocratas preguiçosos responsáveis pela bagunça nos serviços. Os cidadãos só apontam os problemas. Resolvê-los é trabalho para os políticos e técnicos pagos por eles para fazê-lo.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?

Novaes – O sucesso desses movimentos está em existirem para dar voz coletiva expressiva (nas ruas) ao que está calado dentro de cada um. Essa ação cheia de novidades dará lugar a uma nova forma de construção de pautas. Só não se pode cair na armadilha de deixar às autoridades políticas profissionais o papel de dar respostas, pois elas acabariam por fazer dessa demanda um modo de se fortalecerem. Cairiam alguns, mas seriam substituídos por outros, iguaizinhos. REPRESENTAÇÃO E GESTÃO públicas não são técnicas a serem manipuladas por profissionais da política e os movimentos precisarão encontrar a origem dos problemas e se concentrar em alterá-la.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?

Castells – Vai durar para sempre na internet e na mente da população. E continuará nas ruas até que exigências sejam satisfeitas, enquanto os políticos tentarem ignorar o movimento, na esperança que o povo se canse. Ele não vai se cansar. No máximo, vai mudar a forma de protestar.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?

Novaes – Não só pode durar como pode determinar uma profunda transformação no nosso modelo de representação política legislativa: fim da reeleição infinita, mandatos legislativos de só 4 anos, com as evidentes vantagens horizontais de uma dinâmica permanente de substituição de representantes políticos. Fim da representação como profissão. Se não fizermos isso os profissionais vão se rearrumar em campo e nos darão o troco.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?

Castells – O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade. A direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados — todo mundo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. É o caos criativo, não a ordem preestabelecida.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?

Novaes – é possível porque já não faz sentido pensar, falar e, sobretudo, agir, como “esquerda” ou “direita”. Essas são referências de ordem espacial&ideológica que perderam o referente faz tempo. De novas práticas surgirão novos valores, novas instituições e novos problemas. A ideia de caos criativo é simpática mas fecha os olhos ante as ameaças de regressão que se mantêm latentes e precisam ser tenazmente contidas.

Há uma crise da democracia representativa?

Castells – Claro que há. A maior parte dos cidadãos do mundo não se sente representada por seu governo e parlamento. Partidos são universalmente desprezados pela maioria das pessoas. A culpa é dos políticos. Eles acreditam que seus cargos lhes pertencem, esquecendo que são pagos pelo povo. Boa parte, ainda que não a maioria, é corrupta, e as campanhas costumam ser financiadas ilegalmente no mundo inteiro. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos nas bases de uma lei eleitoral trapaceira. As eleições viraram um mercado político, e o espaço público só é usado para debate nelas. O desejo de participação não é bem-vindo, e as redes sociais são vistas com desconfiança pelo establishment político.

Há uma crise da democracia representativa?

Novaes – Há, e esse é o ponto em torno do qual todo o novo processo deverá girar se quiser aproveitar o máximo de convergência que as energias despertadas contém. A resposta de Castells é um resumo perfeito de todo o erro da imensa maioria dos analistas simpáticos (e contrários) aos novos movimentos: eles permanecem reconhecendo os políticos tradicionais como o outro a ser criticado e, ao mesmo tempo, a ser demandado. Castells sonha com uma nova prática, mas não propõe nada realmente transformador. O ativismo horizontal não vai poder ficar todo o tempo apontando as mazelas e requerendo mudanças dos políticos profissionais. Castells e outros simplesmente não enxergam que o problema está na representação como PROFISSÃO. O problema não está nem nos partidos como FORMA, nem na representação como FORMA. Está no modo como os partidos se organizam e no modo como a representação se dá: ambos são dependentes diretos da PROFISSIONALIZAÇÃO para uma carreira. Acabemos com ela.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?

Castells – Sim, a deterioração da qualidade de vida urbana sob o crescimento econômico irrestrito, que não dá atenção à vida dos cidadãos. Especuladores imobiliários e burocratas, normalmente corruptos, são os inimigos nos dois casos.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?

Novaes – Sim, em ambos os casos as pessoas estão cheias de trabalharem e não verem resultados positivos sobre suas vidas. Essa ausência de resultados é colocada, muito acertadamente, na conta dos políticos profissionais. Os únicos cuja vida jamais deixa de melhorar.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?

Castells – O meio não é a mensagem. Tudo depende do impacto que uma mensagem tem na consciência de muitas pessoas. As mídias sociais só permitem a distribuição viral de qualquer mensagem e o acompanhamento da ação coletiva.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?

Novaes – Uma reúne gente. A outra, não. O sucesso da convocação contra os 0,20 centavos não está na convocação, que nunca imaginou adesão tão massiva e, sobretudo, jamais antecipou uma pauta tão diversificada à partir dos 0,20. O sucesso está na adesão em razão de cada vez mais gente enxergar que vale à pena se reunir uns aos outros, mesmo pensando diferente, porque há um inimigo comum: os políticos profissionais. Falta dar um passo: concentrar-se em acabar com a representação profissional e dar início a uma nova era de experimentação, acertos e problemas.

BICICLETA NA MALHA METROPOLITANA DE SP: PROBLEMA, NÃO SOLUÇÃO

 Carlos Novaes, junho de 2011

(Em razão de debate no Jornal da Cultura – TV Cultura de SP)

Neste texto quero ponderar o seguinte:

I. O uso que se faz da bicicleta como meio de transporte na RMSP não chega a ser relevante para entender, dimensionar e conceber alternativas para o problema de ganhar fluxo e conforto no transporte metropolitano – é relativamente irrisório o uso da bicicleta como meio de transporte entre nós;

II. A explicação para essa irrelevância na RMSP não é a falta de ciclovias, mas a própria bicicleta, o que ela exige do usuário;

III. Alterar essa situação na direção de aumentar a presença da bicicleta na cena urbana como meio de transporte não é adequado quando se tem em mente tornar menos atravancado e sofrido o deslocamento diário de milhões de pessoas na RMSP;

IV. O uso da bicicleta nas vias de tráfego principais, destinadas aos veículos automotores, é parte do problema, não da solução para a falta de fluxo e conforto no deslocamento diário de milhões de pessoas pela RMSP;

V. Toda essa irrelevância ciclística ganhou destaque desproporcional no debate público em razão da afeição de parte considerável da classe média por saídas fantasiosas dos problemas.

I. O uso atual, que JÁ se faz, da bicicleta como meio de transporte na RMSP é irrelevante para pensá-la como alternativa pública

  1. Os usuários de bicicleta representam apenas 0,8% das viagens diárias realizadas pela população da RMSP;
  2. Além de pouco significativas como alternativa de transporte, essas poucas viagens estão concentradas em áreas da periferia, principalmente em idas para o trabalho em trajetos curtos, sem o emprego da indumentária e dos equipamentos adequados. Um exemplo entre outros são os empregados em atividades industriais, pois as indústrias (diferentemente dos serviços) não foram instaladas nos centros urbanos, mas nas periferias, em razão dos custos das grandes áreas que suas plantas ocupam;
  3. Não é de surpreender que 27% dos usuários de bicicleta digam: o que os leva à prática é o fato de o transporte público ser caro, passar lotado e/ou estar mal planejado onde moram. Vale dizer: trocariam de bom grado a bicicleta pelo ônibus, se tivessem mais dinheiro ou se ele fosse menos desconfortável;
  4. Outros 57%, desses que fazem menos de 1% das viagens diárias na RMSP, justificam o uso da bicicleta pelo trajeto curto – logo, se fosse mais longo, também optariam (27+57=84%!) pelo veículo automotor, conclusão nada trabalhosa de tirar, pois    

II. Da perspectiva individual do trafegante na RMSP, esse uso irrisório da bicicleta como meio de transporte está ligado aos seguintes aspectos:

5. Bicicleta é um meio de transporte MUITO cansativo na RMSP: relevo (aclives de todo gênero), clima e grandes distâncias entre trabalho e casa. Antes de mais nada, essas características exigem um preparo físico que a maioria das pessoas não têm. Mesmo se fossem oportunas, ciclovias não mudariam esses fatos.

5.1.   O cansaço fica mais relevante se levarmos em conta que:

a. é necessário voltar para casa depois de um dia inteiro de trabalho;

b. na bicicleta, a responsabilidade pelo bom transcurso é do usuário (stress, concentração ao longo de todo o trajeto, etc);

c. a volta para casa se dá ao crepúsculo, ou mesmo quando já é noite fechada, o que põe exigências adicionais de atenção, implica em faróis na cara e traz ainda mais riscos, mesmo se houvessem ciclovias, que são impróprias por outras razões, como veremos.

5.2.   As pessoas não usam bicicleta como meio de transporte porque para a maioria de milhões esse método de transporte é desproporcionalmente trabalhoso, muito diferente de quando o objetivo do ciclista não é o transporte, mas o próprio pedalar (lazer, esporte), eis porque:

d. o ciclista deve fazer uso de equipamentos especiais: proteções de articulações, capacete, óculos, além de roupa e calçado adequados ao pedalar, mormente para grandes distâncias. Quando a idéia é pedalar por pedalar, tudo bem, pois o destino final será, quase sempre, o mesmo do início, e o ciclista não precisará RETIRAR seus equipamentos e roupas no meio do trajeto. Ora, quem se dirigir ao trabalho de bicicleta terá de RETIRAR e GUARDAR seus equipamentos, e ao final de um dia de faina, se remontar para enfrentar o trajeto de volta – simples, não?;

e. para pedalar até o trabalho, muitos ciclistas precisariam levar seu calçado e uma muda de roupa, pois não poderia trabalhar com a indumentária de ciclista, pelo menos na imensa maioria dos casos. Mesmo que usasse bicicleta com bagageiro (em desuso) e acomodasse ali, diariamente, uma bolsa adequada, onde passaria a roupa a ferro? – Naturalmente, o ciclista de lazer e esporte não tem esse problema, pois só vai tirar a roupa na volta – e ainda há a chuva, reinante na RMSP;

f. pedalar longas distâncias (mormente com subidas e descidas) não apenas cansa, mas leva o ciclista a suar. Não é difícil constatar a diferença entre pedalar para se exercitar e pedalar como transporte: no primeiro caso o destino do pedalante é o chuveiro e um merecido descanso; no segundo caso, o destino do pedalante é o ambiente de trabalho, onde ele terá de trabalhar por 08 horas (ou mais!) e onde não há chuveiro;

g. seja ou não o leitor sensível à realidade feminina, concorde ou não com certos traços dela, temos todos de reconhecer que fazer uso de bicicleta como meio de transporte é especialmente complicado para a maioria das mulheres. Elas não vão de bicicleta em razão de: maquiagem, roupa, sapato, cabelo, higiene, bagageiro limitado, ausência de infra-estrutura decente no local de trabalho, etc (a menos que o leitor tenha em mente alterar hábitos e preferências culturais arraigadas com base na propaganda do uso benéfico da bicicleta…);

h. ou seja, essas dificuldades (e os 84% mais acima) explicam porque não é razoável supor que haja uma demanda reprimida considerável por melhores condições para o uso da bicicleta como meio de transporte na RMSP;

i. em suma, nada do que se disse até aqui mudaria se houvesse as indevidamente reclamadas ciclovias nas grandes vias da RMSP. Ou seja, os custos dessas ciclovias não se justificam quando se tem em mente essa demanda pequena para o transporte cotidiano por bicicleta.

6. Bicicleta é um meio de transporte MUITO perigoso na RMSP, perigo que resulta também da conduta criminosa, imprudente e, especialmente, imperita e distraída dos motoristas de veículos automotores, somada à condição particularmente frágil do ciclista, que não passa de um pedestre ainda mais tolhido em suas possibilidades de autodefesa. Esmiucemos isso.

Para o que nos ocupa aqui, parece produtivo classificar a conduta indevida dos motoristas de veículos automotores em: criminosa, imprudente, imperita e distraída. A ação da imensa maioria de nós, que dirigimos, pode ser descrita por alguma dessas rubricas:

a. criminosos: são os motoristas que assumem o risco de danos graves a outrem para obter fluxo indevido – avançam sinais, invadem faixas de pedestres, trafegam em velocidade superior à permitida;

b. imprudentes: são os motoristas que andam no limite, em busca de ganhos permanentes de fluxo: colam na traseira de quem vai à frente, mudam de faixa repentinamente (achando que basta dar seta);

c. imperitos: são os motoristas desprovidos da perícia necessária à condução de um veículo automotor, ainda que munidos da CNH;

d. distraídos: são os motoristas que não alocam ao ato de dirigir a concentração devida.

Pois bem, empregar bicicleta como meio de transporte na RMSP faz do ciclista vítima potencial de TODOS esses tipos de motoristas, e não apenas dos dois primeiros tipos. Dizendo de outro modo: diariamente ocorrem na RMSP centenas de acidentes entre motoristas dos dois últimos tipos e nós nem ficamos sabendo, a imprensa não chega a noticiar, pois as coisas se resolvem no local e/ou segundo entendimentos entre os motoristas imperitos/distraídos. E por que não noticia, se são, de longe, os acidentes de tipo mais numeroso? Pela simples razão de que lata batendo em lata, de leve, amassa, mas não faz vítima. É um aborrecimento, mas a vida segue. TUDO muda de figura se a batida de leve se dá não contra a lata de outro, mas contra o corpo de outro. Ou seja, a multiplicação dos ciclistas levaria necessariamente à multiplicação das tragédias, pois não se trata apenas (nem principalmente) de crime e imprudência, mas de imperícia e distração, muito mais frequentes e muito mais difíceis de coibir e educar. É nesse contexto que afirmo: o ciclista que se põe a andar em meio aos veículos automotores, nas grandes vias da RMSP, apoiado na idéia de que tem um direito, é um insensato, pois está voluntariamente arriscando a própria vida. É mais uma forma estúpida de exercer um direito. Outros exemplos dessa mesma estupidez com base num direito que torna vítima o próprio interessado:

–          comprar uma arma

–          fumar

–          entrar no mar em ressaca

No caso da arma, o dano a si mesmo só aparece se e quando a arma for utilizada, sem que possa haver dúvidas de que quanto mais as pessoas se armarem, mais tiros e violência vai haver.

No caso do ato de fumar, finalmente se entendeu que o dano a terceiro coincidia, em geral, com o dano a si mesmo e, assim, vem havendo restrição progressiva ao exercício do suicídio com cigarro – ainda que não se possa, nem deva, proibir o uso privado isolado do cigarro.

No caso do nadar no mar em ressaca, o dano a si mesmo só aparece quando se dá o afogamento…ocasião em que se irá provocar, inclusive, indevidas despesas públicas (fora desse cenário trágico, é uma discutível glória…)

Deixo ao leitor descrever a ramificação dos custos no caso dos acidentes com bicicletas, que iriam se multiplicar na exata medida em que mais ciclistas exercerem o seu direito – sendo certo que um ciclista no leito carroçável de uma grande avenida é tão impróprio quanto um pedestre que insistisse em andar entre os veículos automotores (e o cicilista solitário em movimento ocupa mais espaço do que um veículo utilitário, pois todos devem guardar dele 1,5 metros nas quatro direções. Ou seja, o ciclista em movimento no meio da via ocupa, no mínimo, 3,6mx4,8m da via pública!). É dessa semelhança que nasce a surpresa inconformada quando se vê um ciclista entre os carros (“o que ele faz aqui!!?”), e não necessariamente de uma suposta intolerância ou propensão criminosa dos motoristas, não obstante existam.

III. Da perspectiva do interesse coletivo dos que se deslocam na RMSP, o uso da bicicleta como meio de transporte é contraproducente

  1. A falta de áreas laterais livres, que permitissem a expansão do leito carroçável, na imensa maioria das vias da RMSP, exigiria ceder para as ciclovias áreas hoje destinadas aos veículos automotores, medida contraproducente porque:

1.1.        imporia restrições ainda maiores ao fluxo dos veículos automotores, sem ganho efetivo, pois não tiraria motores fumegantes das ruas (como vimos, não há porque ter a esperança tola de que milhões de indivíduos irão optar pela bicicleta como meio de transporte na RMSP);

1.2.        anularia o esforço que se deve fazer para retirar das ruas veículos automotores individuais. Não devemos trocar 6 por meia dúzia: tirar os carros, mas para pôr mais ônibus, não bicicletas. Ou seja, nas grandes vias, mais corredores para ônibus, não ciclovias;

1.3.        imporia penalidades sem oferecer alternativa para quem se desloca com veículo individual automotor – criar ciclovia nas faixas em que hoje trafegam os carros é como impor rodízio, ou seja, uma mera negação – tiremos os carros, mas ofereçamos mais e melhores ônibus;

2. A idéia da bicicleta como meio de transporte complementar na RMSP, permitindo estacionamento para ela em estações do metrô, não é viável como solução de massas porque:

2.1.  nossa malha de metrô é pequena e pouco ramificada: a distância entre local de moradia e/ou trabalho e uma estação de metrô é sempre grande para a maioria, o que traz de volta as observações sobre cansaço e trabalheira vistas mais acima;

2.2.  nossa malha de metrô vem sendo construída sob as grandes avenidas, ou seja, chegar às estações de bicicleta exigiria pedalar em grandes avenidas, em meio aos veículos automotores.

Construir dezenas de quilômetros de ciclovias nas grandes vias da RMSP imporia gastos contraproducentes porque elas nem aumentariam o fluxo, nem melhorariam o conforto dos milhões de pessoas que se deslocam diariamente aqui.

IV. Bicicleta nas grandes vias da RMSP é parte do problema, não da solução

  1. A insistência em trafegar em bicicleta nas grandes vias da RMSP é insensata e gera problemas coletivos em nome de benefícios privados para poucos e, ademais, relativamente desconsideráveis;
  2. Exatamente por ser um pedestre ainda mais frágil, pois está limitado pela bicicleta (não pode saltar, recuar, etc) lugar de ciclista não é entre os veículos automotores;
  3. Para tentar dar alguma segurança ao ciclista, a lei adota medidas que o levam a ocupar mais espaço nas vias do que um carro comum: 0,5m de distância para o meio fio + 0,5m da própria bicicleta + 1,5m da exigência legal para os veículos automotores que passam pelo ciclista = 2,5 m. A lei tem de mudar e proibir o tráfego com bicicleta nas grandes vias metropolitanas, em SP.

Alguns dados sobre a fragilidade do ciclista de classe média padrão, que sai de casa paramentado como se fosse entrar num velódromo, mas o que faz é arriscar a vida nas grandes vias saturadas da RMSP, nas quais nenhum enfeite o levará a desenvolver uma velocidade média de sequer 10 km/h: com seu capacete vazado (ideal para a passagem do vento, mas que permite que uma ponta de vergalhão, uma quina de meio-fio mal alinhado, atinjam seu crânio); com sua bermuda colada ao corpo (ideal para comprimir os músculos do atleta e para facilitar a passagem do ar pelo velocista, mas inócua em caso de impactos); com braços e pernas nus (ideal para o suor escorrer ao vento, mas desprovidos de qualquer proteção em queda no asfalto abrasivo); com suas sapatilhas (ideais para pedalar, mas impróprias para proteger os pés, tão vulneráveis quanto os de um pedestre); com seus pneus sem pára-lamas (ideais para evitar o valor de arrasto, mas causa de trabalho redobrado para quem lava suas roupas). Assim fantasiado o ciclista de avenida é o próprio retrato da alienação: decorado para flanar, como se num velódromo sem competidores; mas recheado de apreensão, a se arrastar mal humorado por vias enfumaçadas.

V. Bicicleta: encanto e alienação

A bicicleta encanta. A imensa maioria de nós aprendeu a andar de bicicleta na infância. Quem esqueceu a emoção de receber a primeira bicicleta? E a alegria de andar nela, então! A primeira sensação de autonomia, de liberdade – depois das rodinhas laterais ficarem para trás, depois de nos livrarmos das mãos zelosas do adulto prestativo ou impaciente, era só o vento na cara e sua promessa de fluxo futuro pela vida aberta. Ah!, que imenso contraste com a vida adulta entulhada que levamos. Melhor era o mundo da bicicleta, claro! Daí para um mundo de bicicletas é só uma pedalada no dispositivo da fuga regressiva, engatilhado em nós qual um inseto, diria o poeta. Ainda mais se emprestarmos à fantasia improvisados argumentos ambientalmente corretos, tendo o cuidado de deixar de lado o esforço enorme que o pedalar diário para o trabalho, e sobretudo na volta dele, exigiria ao homem comum, engajado nos pedais e já não contando sequer com o consolo casual (quando o tem!) de uma janela de ônibus para se perder na azul distância, numa fuga, essa sim, de consequências individuais benfazejas. A bicicleta é lúdica, sugere romanticamente a recuperação, na vida urbana insalubre, de um tempo em que o trabalho e o corpo saudável estavam integrados. Ah! O que já não devemos à nostalgia insciente das durezas da vida rural.

São essas saudades cruzadas trafegando em via congestionada por frustrações que induzem ativistas bem intencionados a celebrar o uso da bicicleta como meio de transporte na obliterada malha urbana da RMSP, a qual esforço nenhum, por hercúleo que fosse, poderá transformar na plana, amena, rica e relativamente espaçosa Amsterdã, onde a solução antiga de outras interdições à alegria de viver livrou seu povo da infantilidade outra de encarar a posse de veículo automotor individual como simulacro de integração autônoma no fluxo da vida.

Libertos dos impulsos alienantes que a dureza local instila, não podemos deixar de ver que a vocação da bicicleta entre nós da RMSP é o lazer, o aprimoramento físico e a integração das gerações, havendo muito por fazer, muito pelo que lutar, para que tenhamos espaços adequados à realização mínima que seja dessa vocação. Em suma, para nós da RMSP bicicleta é principalmente brinquedo, e lugar de brinquedo é no playground, por mais espaçoso que venhamos a conseguir que ele seja. Nas áreas onde realmente houver ganho em tê-las como meio de transporte periférico, nada a opor que se tenha políticas para facilitar as coisas.

Quanto ao transporte de massas, pelas grandes vias, e na integração entre elas, gastemos nossas energias a lutar para que seja coletivo, confortável, farto e movido a eletricidade.

Nem mensalão, nem Getúlio – só Lula impede Lula candidato a presidente em 2014

Carlos Novaes, junho de 2013

O que impediria  Lula de ser candidato a presidente em 2014 é sua recusa pessoal a entrar na disputa, situação que, entre outras coisas, expõe a fraqueza de Dilma como eventual candidata: ela jamais teve, tem ou teria qualquer condição de impedir uma candidatura de Lula em substituição à sua própria. Essa menoridade da presidente não escapa a ninguém – agora ela é o nosso Medvedev.

Se é assim, porque acreditar que não será Lula o candidato do PT em 2014?

Dentre as razões para que alguém acredite que Lula efetivará a recusa de que tem falado estão o apego dele à palavra dada, ou seja, o fato de ter dito que a candidata é Dilma; a saúde, ou seja, a condição de quem venceu um câncer e sofreu seus efeitos conexos; o cansaço/inapetência, ou seja, ele estaria farto da ação política; o cálculo, ou seja, ele avaliaria que a situação não parece favorável a um bom desempenho na disputa pela presidência.

Nenhuma delas resiste ao exame mais simples: desde sempre sabemos que não há político cuja palavra dada não possa ser revista sob argumentos como “se é para o bem de todos e felicidade geral da nação”; a saúde de Lula é, hoje, provavelmente melhor do que em 2006, pois com o susto adotou cuidados jamais experimentados antes; melhor atestado disso são suas viagens pelo país e suas aparições na TV, que indicam, aliás, não haver sombra de inapetência pela ação política exaustiva; finalmente, por mais preocupantes que sejam os números da realidade econômico-social brasileira, eles sempre poderão ser atribuídos pelo petismo justamente ao fato de que Lula não é o presidente…

Há ainda uma razão, que deriva do cenário circunscrito pelas anteriores, para que Lula venha a ser candidato a presidente em 2014: em 2010 o eleitor que queria Lula na presidência votou em Dilma não apenas porque Lula pediu, mas também porque entendeu que Lula estava impedido constitucionalmente de disputar um terceiro mandato seguido. Ora, como Lula vai solicitar ao eleitor que transfira para Dilma o voto que quer dar a ele em 2014, quando reúne todas as condições de ser ele mesmo o candidato? Essa inconsistência contrariaria o eleitor petista e abriria uma janela de incerteza na cabeça do eleitor não petista que quer Lula de volta.

Mesmo diante desses argumentos, em conversa com amigos alguém sugeriu uma razão diferente, de ordem, digamos, místico-psicológica: Lula não seria candidato por temer repetir Getúlio Vargas, que voltou à presidência em 1951 depois de um intervalo de quatro anos (período para o qual o Brasil elegeu presidente, com apoio de Vargas, o Marechal Eurico Gaspar Dutra – 1947-1950) e se viu enredado numa “maldição de segundo mandato” tropical que lhe custou a vida para preservar parte da excelente imagem pública de que desfrutava até e eclosão do, por assim dizer, “mensalão” da época.

O argumento é interessante, mas ultrapassado. Interessante porque todos sabemos que Lula tem Vargas na cabeça, a tal ponto que ao ser reeleito em 2006 começou a providenciar o seu próprio Dutra, ou seja, alguém que, desprovido de personalidade política própria, pudesse sucede-lo sem despoja-lo do controle das variáveis para a eleição presidencial seguinte (1950 e 2014). Tal como Vargas, que adotou Dutra, Lula indicou Dilma.

Se algum dia houve razões para que o trauma vivido por Vargas pudesse ser empecilho pessoal à postulação de Lula em 2014, o próprio Lula acaba de deixar claro que as superou: em declaração recente, comparou o mau momento vivido no estouro do mensalão em 2005 precisamente com a situação que levou Vargas ao suicídio em 1954, deixando claro que, ao contrário de Vargas, derrotou as elites perniciosas de sempre. Lula tem para si que já superou a “maldição”, uma vez que já voltou à presidência, num segundo mandato concluído com muito êxito na opinião pública depois de um escândalo que poderia ter lhe custado os favores dela. Ou seja, livre do mensalão e de Getúlio, nada há de sólido no caminho de Lula para ser candidato a presidente em 2014, salvo ele mesmo.

REFORMA CONTRA MUDANÇA

Carlos Novaes, maio de 2009

 

Avaliemos a reforma política que acaba de ser anunciada, tendo em mente que numa democracia o bom sistema eleitoral e partidário é aquele cuja desejável estabilidade de coordenação institucional que favorece seja amiga da alternância de poder em toda a cadeia e se harmonize com a participação do cidadão interessado. Por isso mesmo, toda reforma em favor de mais controle no topo do sistema deve ser avaliada tanto segundo este precise ou não de facilitadores para a construção de maiorias, quanto se ele padece ou carece de participação cidadã  — em outra chave, se ele está aberto demais ou fechado demais à mudança. Quem já está acomodado nos postos de mando tem inclinação por buscar mais recursos de coordenação, em geral inibindo as minorias e reduzindo os espaços propícios à intervenção do cidadão, agentes cuja atividade é vista, no limite, como perturbadora daquela que é tida como a ordem natural das coisas. No pólo oposto, minorias que aspiram poder institucional tendem a lutar contra as pretensões de quem manda mobilizando a participação cidadã pela mudança. Olhada desse ângulo, toda reforma política numa democracia deve ser observada tanto segundo facilite ou evite a prevalência de maiorias facciosas, quanto segundo repila ou propicie o engajamento dos cidadãos.

É voz corrente que a política brasileira precisa de mudanças. Os descalabros mais recentes, sem serem os piores, deitaram combustível à fogueira que vem acesa de décadas, sempre produzindo muito calor e pouca luz, de modo que é muito difícil ao eleitor discernir qual é, afinal, o bom caminho de mudança. Mas como fogueira que incendeia jornais também pode assar batatas, eis que as lideranças dos maiores partidos engendram uma satisfação ao alarido mudancista propondo mais uma vez uma reforma política que, despida da retórica que a embala, se faz em prol de mais controle no topo do sistema, partindo tanto de que ele precisa de mecanismos adicionais para permitir construir maiorias, quanto de que ele se desempenhará melhor se restringir e até abrir mão do engajamento do cidadão. Deu-se o paradoxo: a uma sociedade que clama por mudança se oferece uma reforma política que, se aprovada, resultaria em mais inibição à mudança.

Examinemos o que se propõe: voto em listas partidárias fechadas e financiamento público de campanhas eleitorais. As duas propostas vão na mesma direção: aumentam a capacidade de construir maiorias estáveis e restringem ou eliminam a participação do cidadão  — um sistema menos permeável à mudança, portanto. Pelo voto em listas o eleitor vota em partidos, não em indivíduos. A idéia é enfraquecer os indivíduos candidatos e, sobretudo, os que vierem a ser eleitos, em prol do fortalecimento dos atuais coordenadores da vontade partidária e, então, lograr a construção de maiorias de rotina. O eleitor veria restringida sua participação porque sua vontade de mudança teria de se exercer sobre o resultado do trato digestivo das burocracias partidárias e já não poderia contar com a força rompedora do indivíduo criador. Pelo financiamento público o Tesouro Nacional destinaria dinheiro público aos partidos, em troca de ficarem proibidas as contribuições privadas, sejam individuais, sejam coletivas ou empresariais. Se tudo corresse como se declara pretender, se fortaleceriam as atuais direções partidárias pela centralização dos dinheiros de campanha, extinguindo o poder de captação legal dos indivíduos candidatos e eliminando a participação cidadã no financiamento.

Tudo se passa como se o problema político-institucional mais urgente a resolver fosse essa alegada dificuldade para dar coordenação ao sistema e, para isso, o remédio seria conter ainda mais a liberdade dos indivíduos portadores da novidade, sejam eles candidatos, representantes eleitos ou eleitores. Será?

O sistema político brasileiro vem recebendo propostas e medidas de mudanças para melhor faz trinta anos. Exibidas no quadro abaixo, elas podem ser observadas segundo tenham sido benéficas ou prejudiciais à busca da democracia e conforme facilitem ou dificultem a coordenação.

 

TIPO

MUDANÇA

Efeito sobre a Democracia

Impacto sobre a Coordenação

Devolução de prerrogativas ao eleitor

Eleição direta para governador

Foram benéficas para a democracia, pois se tratava de ultrapassar a “estabilidade” da ditadura militar.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois aumentaram as preferências em presença.

Eleição para prefeitos das capitais e outras cidades “especiais”

Extinção da figura do Senador Eleito pelo voto indireto

Eleição direta para Presidente

MUDANÇAS EM PROL DO PLURALISMO

Retorno da liberdade partidária. Fim do bipartidarismo

Foram benéficas para a democracia, sobretudo porque reintroduziram prerrogativas das minorias.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois foram mudanças que ampliaram as vozes e os interesses em presença.

Propaganda Eleitoral Gratuita

INCREMENTO E DIVERSIFICAÇÃO DO COLÉGIO ELEITORAL

Voto do Analfabeto

Foram benéficas para a democracia porque o alijamento anterior dos contingentes agregados era contraditório com a presença que já tinham na cena pública política.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois trouxeram para o circuito dos votos válidos contingentes novos de preferência.

Voto aos 16 anos

Urna Eletrônica

MAIS ROBUSTEZ À REPRESENTAÇÃO

Dois Turnos

Foram benéficas para a democracia porque contiveram o individualismo exacerbado sem sufocar minorias, dando mais consistência à representação.

Facilitaram a coordenação e estabilidade do sistema, fortalecendo a representação, aumentando a previsibilidade e/ou contendo, na justa medida, a propensão individual à novidade.

Prazo mínimo para Filiação Partidária do candidato

Prazo mínimo de Domicílio Eleitoral

Voto nas Legendas-Listas Partidárias

Cláusula de Barreira

Fidelidade Partidária

Instituto da Reeleição Limitada a UMA

 Se fiscalizada, não prejudica a democracia.

Proibição de Coligações partidárias em disputas proporcionais

Seria benéfica porque não se deve partir de que o eleitor está informado.

Será inócua para a coordenação porque hoje ela não vincula o pós-eleitoral.

 

O quadro é cristalino e mostra a marcha equilibrada dos esforços institucionalizantes que vimos fazendo. Vale notar que a última mudança, a da fidelidade, não por acaso teve de vir via Judiciário, pois o sistema político dera sinais de que esgotara sua capacidade de fazer de forma autônoma as mudanças boas. Tudo indica que o mesmo se dará com a ainda irresolvida proibição das coligações partidárias em eleições proporcionais (deputados e vereadores). Esse esgotamento para a mudança boa reflete não a insuficiência de instrumentos de coordenação, mas, muito ao contrário, a oligarquização precoce do poder Legislativo, que, mais e mais constrangido pela hipertrofia do poder Executivo, se vê impelido a buscar meios de melhor se apresentar em bloco e encontra a resistência desconfiada dos indivíduos interessados submetidos, que temem as conseqüências de dar ainda mais poder aos “chefes”. É nessa linha de atrito que se põem as duas mudanças dessa reforma política.

As listas partidárias são desnecessárias porque ao punir com a perda do mandato aquele que troca de partido a lei já deu aos partidos instrumento que faltava (v. quadro acima), e que é suficiente, para dotar de solidez institucional as dinâmicas partidárias, que antes estavam à mercê de humores individuais, o que abria brecha para barganhas deletérias até mesmo da boa coordenação e permitia conduta fraudulenta para com o eleitor que votara no indivíduo imbuído de motivação partidária. As listas fechadas são desnecessária e inconvenientemente restritivas porque, em primeiro lugar, o sistema já dispõe do voto de legenda, que permite ao eleitor a escolha voluntária de um partido, se ele se der por satisfeito com um voto que já não é senão um voto na lista oferecida. Em segundo lugar, porque não há vantagem em retirar do eleitor, para ceder à liça das burocracias partidárias, o direito de votar em um nome da sua preferência, mormente depois do esforço ainda recente de lhe devolver essa prerrogativa, e na ausência de qualquer indício de que a vigência dela seja empecilho à boa ordem democrática. Em terceiro lugar, com a fidelidade, o candidato/eleito que receber a confiança pessoal do eleitor já está obrigado a buscar o entendimento no âmbito da ordem partidária, devendo a ela, portanto, um grau de obediência que só poderia ser aumentado pela supressão precisamente do elo representado pelo eleitor na cadeia. Ou seja, trocaríamos a escolha do eleitor por ainda mais poder para os dirigentes dos partidos submeterem seus liderados, facilitando o sufocamento de minorias internas que, não obstante, poderiam, pelas mãos do eleitor, se revelarem maiorias sociais.

O financiamento público de campanhas eleitorais é desnecessário e nocivo. Em primeiro lugar, porque o que falta ao sistema não é dinheiro. Em segundo lugar, porque conflita quer com as mudanças que buscaram devolver prerrogativas ao eleitor, quer com aquelas que buscaram incrementar e diversificar o colégio eleitoral brasileiro (v. quadro acima). Ou seja, querem nos fazer crer que será melhor para o sistema levá-lo a prescindir dos benefícios que a participação do cidadão a duras penas incorporado a ele traz ao contribuir financeiramente para o êxito da candidatura que apóia. O financiamento público sonegaria ao sistema um dos mais relevantes elementos para construir vínculos entre ele próprio, os candidatos e os eleitores, indo na rota contrária do que a democracia requer e contrariando a ampliação das possibilidades de contato, engajamento, captação e fiscalização que as novas mídias oferecem. Em terceiro lugar, ao impedir os candidatos de fazer captação de recursos a nova lei os deixa à mercê das preferências das direções partidárias, elas próprias resultado de disputas internas para construir maiorias, maiorias estas que receberiam do Tesouro um apoio que poderia facilitar sua transformação em maiorias facciosas, isto é, aquelas que atuam para suprimir as condições institucionais que permitiriam às minorias internas aspirar com realismo o lugar de maioria no futuro.

É até covardia, mas necessário, argumentar contra essa reforma invocando, ainda, o óbvio: a lei do dinheiro público não vai impedir a entrada pela janela dos dinheiros privados assim como a lei atual não impede o velho caixa dois. Nosso sistema precisa antes é do contrário: obrigar nossas elites partidárias a trabalharem para conquistar o apoio financeiro do cidadão. Ao ter de persuadi-lo, terão de criar mecanismos de participação e fiscalização, o que traria benefícios para todo o sistema. O dinheiro público só iria acomodá-las ainda mais, pois teriam garantido o básico sem oferecer garantias de que não buscariam o plus via caixa dois.

Tudo somado, essa reforma política despojaria nosso sistema de qualidades que já alcançou e não o dotaria de norma nova capaz de debelar problemas que ainda persistem, não obstante venha embrulhada numa retórica valorizadora de ideais e ornada de repulsas à corrupção. Nessa propaganda malsã, as listas fechadas nos dariam partidos ideológicos, mais puros, como se partidos assim fossem resultado da norma política que repele a participação e não da cultura política incorporadora que, ao longo do tempo, traduz e organiza diferenças reconhecidas na e pela sociedade. Propala-se ainda que o financiamento público acabaria com a corrupção e com a dependência aos donos do dinheiro, esquecendo-se que o dinheiro do caixa dois entra nas campanhas pelas mãos de oligarcas, os mesmos que controlam os partidos e suas campanhas, os mesmos que agora querem também uma dotação pública, com o nosso dinheiro.

MAIS PODER AO ELEITOR – eleitor e telespectador são a mesma pessoa

Carlos Novaes, Abril de 2011

O principal problema a enfrentar em nosso sistema político é sua autonomia. Ou seja, o mundo político, em que atuam os políticos, está como que desligado do “mundo da vida”, em que vive o povo. Essa separação permite, de um lado, que os males se acumulem a ponto de a corrupção virar rotina, e, de outro lado, essa autonomia empurra o cidadão para a indiferença e, em seguida, para a desesperança. Como voltar a conectar ação política institucional com o “mundo da vida”, através de uma verdadeira representação? Como extinguir, ou mitigar, a autonomia do mundo político?

Para começar, acabar com a possibilidade da reeleição para o legislativo. Com o fim da política como profissão teríamos a volta da política como representação. Representar é estar no lugar de, e para estar no lugar de é necessário ter ligação efetiva com os representados, atributo que se perde na rotinização da carreira política, facilitadora da corrupção, que leva o político a se concentrar nos próprios interesses. Ao ter de manter laços com a profissão de origem, que lhe provê a vida e para onde terá de voltar, o representante se vê obrigado a uma outra prática política.

A solução não está em esperar pelos políticos enquanto tal, pois eles estão impedidos até mesmo de enxergar o problema. A legenda básica do político médio será sempre: “preciso me reeleger e, se há problemas, corrijamos o comportamento do povo”. Ora, nossa aposta tem de ser no contrário. Apostar todas as fichas nos indivíduos que dão sentido ao povo, único e real protagonista do que quer que vejamos de bom em nossa história (mais recente ou ultra-remota que seja).

Não se pode crer em mudanças que, para darem certo, tenham de contar com o engajamento virtuoso dos que hoje têm uma conduta viciosa. Mudança é aquela que independa da “virtude” do político, e aposte no eleitor, pois um diagnóstico adequado dos males a serem superados em nosso sistema político é, em si mesmo, um combate às idéias desfavoráveis sobre o eleitor brasileiro. A maior parte dos argumentos em prol da mudança do modelo eleitoral é variação do velho “o povo não sabe votar” – logo, é preciso empurra-lo a votar de outro modo. O desafio é outro: são os políticos que têm de ser empurrados a uma outra prática, não o eleitor.

Mais de 20 anos debruçado sobre eleições e cerca de 15 anos de trabalho em televisão, medindo audiência, fazendo testes de programas, avaliando apresentadores, telenovelas, telejornais, minisséries e infantis, para TVs Comerciais,  Públicas e Governamentais, me permitem entender que além de serem a mesma pessoa, eleitor e telespectador são o mesmo sujeito de preferências, vale dizer, fazem suas escolhas sob formato de estrutura muito parecida.

De uma maneira geral, telespectadores e eleitores têm uma primeira preferência e, dela, seguem-se outras. Há um apresentador preferido, mas não significa que não haja um outro. Ou ainda, entre uma novela preferida e o telejornal em um dia de notícia quente, o telespectador terá de fazer uma escolha entre preferências. Com o eleitor se dá o mesmo.

Tal como na rotina do gosto do telespectador, o eleitor também tem uma preferência rotinizada, como se pode observar estudando em detalhes as preferências havidas (ou seja, os resultados de eleições passadas). A história escrita nas urnas mostra que levar a mudar o voto é tão difícil quanto levar a mudar de canal. No caso do eleitor, é difícil leva-lo a mudar porque ele ajuíza tanto a escolha, pondera tanto, que uma vez ela feita segue nela por muitas eleições – salvo acontecimentos extraordinários.  Há uma parcela minoritária mais aberta à mudança, ao experimento, e é ela que escreve as primeiras linhas de uma nova narrativa, que pode prosperar ou não. O voto em Marina Silva em 2010 foi dado por parte desse contingente, por exemplo.

Adotar o voto impessoal em Lista Fechada para eleger os nossos representantes não vai nos ajudar a diminuir a autonomia do mundo político, valorizando o “mundo da vida” porque:

  1. a lista fechada vai aumentar a concentração de poderes nas figuras que hoje estão na ponta da pirâmide da autonomia: os chefes partidários;
  2. a lista fechada vai retirar do eleitor justamente o vínculo entre representante e “mundo da vida”, isto é, o vínculo (mesmo vicário como é hoje) entre eleitor e candidato/eleito;
  3. a lista fechada vai retirar do eleitor o instrumento eleitoral que lhe resta para criar algum tipo de incerteza para esse sistema político oligarquizado.

O que fazer?

Proponho radicalizar o que já temos de melhor: o voto proporcional em lista aberta, que aposta todas as fichas no juízo do eleitor.

1. Cada eleitor teria não Um, mas três votos para Deputado e Vereador.

2. Teria de votar em nomes de um mesmo partido.

3. Os vencedores seriam os mais votados segundo a soma de TODOS os votos recebidos, não importando se o voto recebido foi o primeiro, o segundo ou o terceiro.

Razões para esse modelo alternativo:

1. O Eleitor, assim como o Telespectador tem uma primeira preferência e, então, seguem-se outras;

2. Em geral, segundo o público médio, a primeira preferência é a do mundo dos AFETOS, e resulta da inserção acrítica no mundo, com alto engajamento afetivo e baixo engajamento cognitivo;

3. As preferências seguintes distanciam-se dos afetos, e aproximam-se do balanço mais racional da interação;

4. É essa estrutura que permite explorar as diferenças e distâncias entre a TV que temos, a TV que queremos e a TV que deveríamos ter.

5. Pois bem, o eleitor poderia, democraticamente, dar o primeiro voto para a celebridade ou o ilusionista do momento – não há porque dar tudo por perdido nessa escolha;

6. O erro esta em dar a ele, ELEITOR, apenas UMA oportunidade de realizar suas preferências;

7. Os dois votos seguintes dariam a oportunidade de o eleitor estimular outras áreas do seu SER SOCIETAL, de equilibrar sua escolha, exercendo preferências que também tem e compartilha com qualquer um de nós;

8. Esse mecanismo poderia atenuar o “efeito celebridade”, obrigando o puxador de voto não só a afunilar o voto em si, mas, ao fazê-lo, dispersar sua vantagem pela concatenação não antecipável das segundas e terceiras preferências dos eleitores;

9) Trabalho com a hipótese adicional de que, em suas campanhas, os candidatos seriam levados a se apresentarem em trios, tão mais atraentes/rentáveis quão mais diversificados (celebridade+pensador+moralista), com semelhanças transversas como as que se tem, hoje, nas dobradinhas estadual-federal — que ora têm êxito, ora não o têm), num modelo que ajudaria a consolidar o partido (voto individual com feição de lista);

10) Além de tudo, esse arranjo tem a vantagem de dialogar com nossa cultura política, ao invés de pretender melhorá-la a golpes de martelo de engenheiros institucionais tão inconformados quanto apressados (quando não mal intencionados).

Se combinarmos a essa providência aquela que impede a reeleição para os legislativos, teremos dado um passo resoluto para diminuir a autonomia do mundo político, amarrando-o mais ao “mundo da vida”, que queremos ver realmente representado.

UMA AÇÃO PREVENTIVA DOS OLIGARCAS CONTRA INQUIETAÇÕES QUE SE ANUNCIAM

Carlos Novaes, maio de 2011 

Há um fio exposto na vida política brasileira: a distância entre o mundo dos políticos e o mundo da vida, onde estamos todos nós. A mazela mais sensível dessa exposição é a desigualdade, seguida da corrupção, pragas que a imensa maioria sente presentes e condena com um misto de indignação, impotência e resignação prática.

A ditadura, a inflação e a estagnação econômica (desemprego+miséria) – aspectos da desigualdade brasileira – encapavam precariamente esse fio, impedindo sua completa exposição, porque diante desses problemas, tendo de enfrenta-los na luta pela vida, o cidadão não podia se ocupar dessa distância e se limitava a registrá-la ao fundo, não sem raiva dela.

A sociedade brasileira lutou e, ao longo de décadas, foi eliminando, ou redefinindo de forma menos desfavorável para si, cada um desses problemas.

Na luta contra a ditadura houve ampla unidade.

Na luta contra a inflação houve uma unidade conflituosa.

Na luta contra a estagnação e a miséria extrema não houve polarização significativa, embora tenha havido caminhos cuja complementaridade não fôra antecipada (ao PROER de FHC se somou o BNDS do Lula, e por aí vai – não acho que deva me alongar sobre isso agora).

Pois bem, um dos resultados alcançados nos últimos 16 anos é o fato de que as queixas estão para mudar de patamar. Tendo mais bem equacionados os problemas de consumo de feijão e eletrodomésticos, o cidadão pode levantar a cabeça e descobrir outras fomes. Esse é o resultado das últimas conquistas da sociedade brasileira que todo democrata radical deve comemorar. Deixemos aos petistas os gritos de “eu te dei um prato de comida”, deixemos aos tucanos proclamarem “deves a mim o teu celular”. O que nos importa é que quem come feijão está mais forte, quem fala ao celular se comunica mais direta e abertamente.

Esse fortalecimento e essa disponibilidade para a comunicação potencializam a ação individual, a escolha individual. É do indivíduo que parte a disposição à mudança, mormente quando ele se agrega, o que é sempre mais auspicioso. Nosso sistema eleitoral de lista aberta, com possibilidade de voto numa lista fechada (o voto de legenda não é senão uma maneira perfeita de contemplar quem não vê necessidade de escolher um indivíduo e prefere chancelar um partido) é um sistema ótimo quando se tem em mente as possibilidades que ele dá para acolher, na política eleitoral, a maré de motivações novas que as mudanças sócio-econômicas estão a proporcionar a um eleitor que já pode começar a se ocupar do fio desencapado: os políticos estão lá, de costas para nós; nós estamos aqui, de frente para os problemas.

Poder votar num indivíduo, na lista aberta, é contar com a possibilidade de gerar um dínamo de mudança para além das fortificações oligárquicas construídas pelos profissionais da política. Mas eles são animais de matilha, farejam longe. A lista fechada é a manobra quase instintiva operada no intuito de conter o potencial de mudança dos novos tempos. Por ela, os oligarcas e suas máquinas asseguram ainda mais sua capacidade de antecipação, pois o instinto de todo ser apegado a rotinas é diminuir a incerteza. Com a lista fechada eles oferecem um prato feito a quem tem fomes variadas, sob o argumento de que com menos variedade o faminto tem menos trabalho para escolher!

Democratas incautos vêm caindo na armadilha seduzidos por um ou mais dos seguintes argumentos ou “constatações” fantasiosos:

1. a lista fechada fortalece os partidos (como se eles fossem fracos! – olhe à sua volta leitor, onde está a fraqueza deles, que tudo arrancam de nós, dos executivos e do judiciário?);

2. a lista fechada leva o eleitor a votar em programas (como se ela operasse o milagre de fazer surgir práticas programáticas ali onde vão estar os mesmos políticos a pedir o voto);

3. a lista fechada vai baratear as campanhas (confundindo custo de campanha com preço da vaga vitoriosa – este vai, por certo, aumentar!).

Do ponto de vista democrático, um dos resultados contraproducentes da lista fechada vai ser a diminuição dos pontos de contato do mundo político com o mundo da vida: menos candidatos, logo, menos motivações engajadas no período eleitoral. Ao contrário do que se pensa, aqueles candidatos “sem chances” são fundamentais no processo. O entusiasmo deles, por pequeno que seja (e, em geral, é grande, pois são quase sempre novatos) agrega interessados, amplia a superfície de contato do eleitor com a dinâmica eleitoral (mormente quando se tem o beneficio do voto obrigatório). Numa sociedade em mudança, essas motivações novas podem surpreender e é desse clima que surge, por exemplo, a idéia oportuna das candidaturas avulsas. Ora, a lista fechada vem na contramão de tudo isso, tornando ainda mais difícil mudar. Em suma, é uma reforma contra a mudança.

O nosso modelo atual, com a lista aberta e com voto de legenda, mais as candidaturas avulsas, oferece um arranjo que permite ao eleitor valorizar minorias partidárias, fortalecer direções partidárias já instaladas ou valorizar ações político-eleitorais independentes de partidos. Pois bem, já temos lista aberta com voto de legenda.  Só faltam as candidaturas avulsas. Se, além delas, obtivermos o fim da reeleição para os legislativos, teremos construído um solo fértil à mudança virtuosa de nossa representação política, inundando-a de mundo da vida, trazendo-a para perto de nós.

Um detalhe final: observe o leitor que os legisladores estão muito interessados em acabar não com a reeleição DELES, mas com a correta reeleição dos executivos. Não é esclarecedor? Eles querem acabar com a reeleição limitada benéfica para o mundo da vida, mas que é hostil ao mundo político profissional, pois a reeleição para os executivos limita a fluxo de cadeiras que cada um deles quer disponível para si mesmo, pois ficam pulando de galho em galho para não largar o osso.

PARTIDO EM REDE – uma introdução

Carlos Novaes, abril de 2011

(contribuição ao movimento +1pela reforma política, retomando ideias apresentadas em 2009)

Como já disse em outro lugar, são três as tarefas principais para uma nova política: a primeira tarefa é encontrar modos de fazer e de organizar a ação política que diminuam a autonomia que o mundo da política ganhou em relação ao “mundo da vida” do cidadão comum. Os políticos profissionais estão num mundo próprio, com muito pouco contato com a vida real. Mesmo o dia das eleições é vivido por eles de um modo muito diferente do que sente o cidadão.

A segunda tarefa de uma nova política no Brasil é aumentar a capacidade do sistema político de representar a diversidade na sociedade. Além de autônomo, fechado em si mesmo, o mundo dos políticos profissionais representa pouco e mal a diversidade vivaz presente na vida brasileira.

A terceira tarefa de uma nova política no Brasil é se aproximar o máximo possível de um equilíbrio proveitoso entre representação da diversidade e capacidade de coordenação do sistema como tal. Hoje, a balança pende demasiado para a coordenação, com perdas para a representação. Não se trata de ir para o pólo oposto, pois o máximo de representação acabaria por gerar incapacidade de coordenação.

Qual a melhor estrutura de partido para antecipar, já na organização partidária, o que se pretende como novo?

Um partido estruturado em rede parece o mais indicado, desde que tenhamos em mente que partido em REDE não é partido na Internet, nem via Internet, ainda que ela seja ferramenta fundamental na sua dinâmica democrática.

Uma rede não tem centro, nem esquerda, nem direita. O partido também não deve ter. Os nós da rede são suas intervenções no mundo a transformar, e cada um deles será mais ou menos vistoso segundo a relevância que se atribua, a cada momento, ao que esse ou aquele nó significa/desempenha. É de esperar que essa relevância seja atribuída segundo o Programa do partido e as tarefas para uma nova política.

Os aspectos estruturais mais relevantes de um partido em rede são:

  1. Estrutura de organização
  2. Programa
  3. Sustentabilidade

1. Notas sobre a Estrutura

A estrutura de um partido em Rede deve ser ancorada no âmbito local, mormente em um país continental como o nosso. Ou seja, não se trata de usar a Internet para insistir sobre formas concentradas de decisão e poder próprias do formato Teia, não da forma Rede. O formato Teia acaba privilegiando aqueles que reúnem duas facilidades: são mais capazes de realizar comunicação remota direta e os mais dotados de recursos para deslocamentos rumo às custosas reuniões presenciais decisivas. O formato Rede é realmente aberto e não fica refém da estrutura plebiscitária da Teia. Nos plebiscitos há sempre alguém para decidir o que e como perguntar. Assim são as comunicações e movimentos em Teia: decide-se com aparência de não-decisão o que os inscritos na Teia vão ou não conhecer, esmiuçar e, ao cabo, fazer.

Em suma, enquanto a Teia está a serviço da autonomia do mundo político, a Rede valoriza e se beneficia do “mundo da vida”, que diz respeito ao cidadão, às suas agruras, alegrias e preferências.

Valorizar o plano local/municipal quer dizer que para as decisões de ordem nacional não cabe como que passar pela instância estadual/regional. Ou seja, a federação (estados) não deve ser um filtro entre a vida real das pessoas e as decisões nacionais do Partido Rede. A ligação deve ser direta (evitar, sempre, a autonomia do mundo dos políticos): delegados eleitos localmente direto para a instância nacional. As estruturas estaduais são um fim em si mesmo, não transição para o Nacional. Elas decidem o que diz respeito ao estado federado, e ponto. As decisões nacionais saem das instâncias locais (municipais e inframunicipais). Deixando ainda mais claro: encontros estaduais não escolhem delegados para o nacional.

Mesmo um partido em Rede precisa de uma plataforma estrutural com espaços físicos, veículos, materiais de apoio, funcionários e dirigentes remunerados. Mas é necessário prevenir a burocratização e sua filha direta, a oligarquização (vide a trajetória do PT). Então, que fique claro desde o início: quem é remunerado não decide e não defende propostas políticas ou programáticas nas instâncias ou momentos de decisão coletiva. Ou seja, uma vez remunerado para fazer política o dirigente/quadro partidário não poderá ter direito a voto ou voz nos Congressos de delegados com representação local ou em Plenárias locais. Sua atuação como proponente deverá se dar na rede como tal.

No caso dos membros do partido com cargos de representação obtidos pelo voto do eleitor, terão pleno direito de voz e voto nas Plenárias locais respectivas e/ou sempre que forem eleitos como delegados às instâncias superiores. Vale dizer: um Partido em Rede não discrimina para menos aqueles que receberam o voto do eleitor. Pelo contrário.

Para ajudar a evitar a oligarquização do Partido Rede, as instâncias de direção terão de ser renovadas, sempre, em pelo menos 2/3 de seus membros. O 1/3 remanescente terá, sempre, de estar nos 2/3 da renovação seguinte, sendo vedada a eleição para qualquer instância de direção a todo aquele que não tiver cumprido fora de qualquer direção pelo menos o tempo equivalente ao de um mandato da instância mais recente de que foi dirigente.

Essas exigências visam, ainda, evitar o empobrecimento da capacidade de o partido representar o “mundo da vida”. Sempre que uma médica, ou um motoboy, ou uma atendente de telemarketing, etc, se torna um político-burocrata-profissional perdemos todos: ao romperem o contato com sua realidade profissional o partido perde o que eles têm de melhor: representam o “mundo da vida” por estarem inscritos nele e passam a lutar pela sua nova “condição”.

Essa dinâmica contribuiria para uma nova política: representação ampla com capacidade de coordenação, evitando as formas de autonomia do mundo político (dirigentes e oligarcas que se eternizam, etc).

As votações internas no partido poderão ser por chapas ou avulsas. Cada eleitor disporá, sempre, de dois votos. As vantagens desse sistema são evidentes. Registro apenas que ele é um meio de valorizar não apenas as minorias, mas a conduta desviante e hostil com que todo partido em Rede deve ser capaz de conviver. Tendo dois votos, o delegado pode sufragar a chapa da sua preferência e ainda pôr alguma pimenta sufragando a incerteza individual eventualmente existente, se achar oportuno.

2. Programa

Aqui ainda não vou antecipar conteúdos, uma vez que isso é tarefa para muitos. Tendo como guarda-chuva mais geral o Desenvolvimento Sustentável (que é uma reunião de Alerta e Projeto) digo, apenas, que o Programa de um partido em Rede (com base local) deve resultar de contribuições oriundas das opiniões as mais descentralizadas, processo que culminaria num Congresso Nacional, tendo em mente, sempre, melhorar a vida das pessoas sem comprometer as possibilidades de vida das gerações futuras.

3. Notas sobre Sustentabilidade

Um partido em Rede deve ser sustentado pela rede que conseguir tecer, aceitando apenas contribuições individuais (nunca de empresas – falo do partido, não de campanhas eleitorais). Aportes oficiais, apenas os existentes (horário eleitoral e fundo partidário). Mas não basta captar fragmentadamente e segundo o voluntariado. Sustentável significa responsabilidade para o filiado e contrapartida do partido Rede. Para isso, toda filiação deve ter a forma de um contrato: ambos os lados assumem compromissos recíprocos. Sem contrato, não há filiação.

No tocante ao dinheiro propriamente dito, cuja centralidade todos conhecemos, é fundamental transparência total. Aquela mesma que levou o Delúbio, ex-tesoureiro do PT, a declarar “transparência assim já é burrice”.

Pois bem, o que proponho é que em matéria de transparência com dinheiro formemos uma Rede de burros irrecuperáveis. Para isso, devemos desenvolver uma ferramenta na WEB em que esteja escancarada a contabilidade do partido. Nada a esconder, nada a omitir. Simples assim: registra-se cada real que entra e cada real que sai, dizendo quem deu e onde foi gasto, diariamente. Cada membro ou simpatizante do partido acompanhará cada uma de suas doações ( e a de cada um dos demais), dia após dia, mês após mês, assim como saberá de cada gasto do partido. Além disso, tal ferramenta apontaria, dia-a-dia, os inadimplentes, conforme contrato.

A inadimplência injustificada do compromisso contratual assumido com o partido Rede retira do filiado os direitos de voz e voto. Uma vez que tenha pago compromissos em atraso, o filiado só recuperará seus direitos para exerce-los daí a dois eventos partidários, nunca antes de transcorridos pelo menos 60 dias. Essas exigências inibirão a prática nociva de pagamento por terceiro interessado.

IMPROVISO AUTORITÁRIO

ATENÇÃO:  Carlos Novaes, junho de 2009

O texto abaixo deve ser lido junto com este aqui, da mesma época. As primeiras versões destes dois textos foram escritas entre o final de 2008 e o início de 2009. Em meados de 2009 eles foram modificados, enviados a vários interlocutores e publicados no site do então Movimento Marina Silva. O compromisso explicativo deste blog (cabe ao leitor avaliar se proveitoso ou não) me leva a indicar a leitura deles, pois minha maneira de avaliar a conjuntura atual segue parâmetros que vêm de longe, o que me dá um conforto duplo: me protege de ter surpresas infundadas e facilita o comentário dos fatos.

Ao longo dos 13 anos em que fez a disputa para levar Lula à presidência (1989-2002), o PT sempre se empenhou em oferecer à sociedade brasileira o que de melhor pôde produzir como projeto, seja no diagnóstico, seja nas propostas de mudança. Mas, já na reeleição de 2006, embora fosse natural que a lógica de governo tivesse peso importante na discussão sobre como prosseguir, afinal buscava-se reconduzir Lula, um partido fragilizado pelos acontecimentos de 2005 acabou por não desempenhar o papel que outrora desempenhara no desenho de um projeto inovador, que contribuísse para liberar o segundo mandato de certas amarras do primeiro. Deu-se o contrário, ganhou força, ao invés de perde-la, uma dimensão do passado que não quer passar e que se infiltra não apenas ali onde a podemos identificar como má, mas também na forma como se passou a conceber o que deve ser celebrado como bom.

Deixemos aos estudiosos buscar se há precedência e, em havendo, se o que veio primeiro foi o abandono do projeto ou a negação das práticas inovadoras. Seja como for, faz 20 anos o PT escolheu pela primeira vez um candidato para representá-lo na disputa pela presidência da República. Naquela, como em todas as eleições presidenciais seguintes, quem era do PT decidiu pelo nome de Lula com o entusiasmo de quem foi chamado a participar. Mesmo quando foi o caso de escolher entre a amplamente majoritária opção Lula e o senador Suplicy, cada um dos petistas, tivesse a preferência que tivesse, se sentiu respeitado e contemplado tanto no método empregado para a escolha quanto na decisão final pelo nome de Lula, pois ela se deu reafirmando a tradição de consulta às bases.

Em 2010, em razão das regras do jogo democrático brasileiro, o petista não poderá contar com uma candidatura Lula à presidência — é imperativo mudar. Mas a exigência era para que se mudasse de candidato, não de método. Para os petistas tratava-se, agora, da experiência inédita de escolher um nome entre vários possíveis. Em política, cada um de nós tem a sua preferência pessoal e ela não vale mais do que a de qualquer outro. Só se sabe o quanto nossa vontade coincide com a do companheiro do lado ou distante quando há um movimento aberto de debate, consulta, p a r t i c i p a ç ã o, reafirmando um padrão democrático que lança um facho de luz contra a prática dos coronéis dos partidos convencionais.

Mesmo diante da notória, ainda que calada, insatisfação de grande parte de seus militantes, filiados e simpatizantes, a direção do PT se rendeu a um outro método de escolha: a chancela pura e simples de uma vontade pessoal, com as mesuras cênicas, e até cínicas, que vão se tornando praxe no arremedar a participação que ontem fez grande aquele que hoje faz uso da força a si confiada para impor. A canga imobilizadora em que obsequiosamente a direção do PT acomodou sua vontade repele o entusiasmo daqueles que driblam as rotinas cotidianas abrindo espaços para lutar, precisamente porque jamais aceitaram delegar aos profissionais da política a decisão sobre os nossos destinos naquilo que têm de comum, de público. Se os petistas deixarem, essa direção os aquartelará no quintal da obediência, em tudo desfavorável à realização da democracia ampla pela qual se tem lutado, pautados por valorizar em cada um a vontade pessoal e intransferível de fazer as escolhas que resultam em mudanças, deitando fora métodos saídos do populismo, expressão de massas da dimensão autoritária da nossa cultura política.

Mas, afinal, por que o presidente Lula escolheu uma neo-petista neófita em urnas como sua preferida para a sucessão presidencial e recebeu a aceitação do PT e do petismo para a imposição da ministra Dilma Roussef como candidata?

A preferência de Lula decorre de duas limitações: da natureza instrumental do seu vínculo com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.

A rendição do PT se dá pela natureza de seu vínculo com o Estado, que se baseia, antes de tudo, na busca pela primazia de nomear ou se fazer nomear.
Quanto ao petismo – desapetrechado de imaginário que revigore energias utópicas, distraído de propostas institucionais inovadoras, não obstante abrigue quem as faça –, vem se deixando reduzir à condição de dragão produtor de fumaça para encobrir o castelo em ruínas até que se resolva o clinch entre o carisma e a burocracia interessada.

Desde muito cedo Lula compreendeu que o PT era uma ferramenta necessária, mas não suficientemente manejável. Como já tive oportunidade de dizer em outro texto – na linha weberiana de que líderes carismáticos querem liberdade para agir e burocracias querem rotinas para controlar –, como resultado dos aprendizados da disputa de 1989, Lula montou o Governo Paralelo como uma burocracia a serviço do carisma, paralela não a Collor, mas ao PT, que crescia longe do seu controle. Tanto que jamais participou senão ritualmente (discursos de abertura e encerramento) dos Encontros e Congressos do partido, embora tenha dado detida atenção ao seu Instituto Cidadania, saído do Governo Paralelo.

Essa relação entre o carisma e a burocracia partidária encontrava expressão plástica cabal no tabuleiro armado ao longo dos anos em que Lula (o carisma) se candidatava a presidente em campanhas organizadas por Dirceu (a máquina). Esse arranjo continha um tenso dispositivo de amarração de interesses: a candidatura do próprio Dirceu à sucessão da almejada presidência Lula. O carisma abriria caminho para o nome da máquina desprovido de apelo eleitoral amplo, e só um acontecimento externo alteraria o curso arquitetado por Dirceu e vivido com desconforto por Lula – salvaguardada a estatura de cada personagem, foi mais ou menos o que Ruy Falcão tentou arrancar como vice de Marta na disputa para a prefeitura de SP em 2004: o desprezo insciente pela natureza não-petista do êxito de Marta em 2000, somado à precipitação de ambições em que a prefeita se deixou arrastar (Lula sempre soube que a vitória dele não foi petista e jamais teria aceitado Dirceu como seu vice) levaram à derrocada previsível, evidente para alguns só quando da tentativa atabalhoada de voltar atrás em 2008, quando Marta buscou, em vão, atrair o Quércia preterido na disputa de quatro anos antes por um Falcão agora em submersão tática. O alijamento do grupo de Marta do governo Lula provém dessas escolhas e dos erros conexos. Agora, no açodamento imprudente (e impudente) de mais uma vez cortar caminho, os parceiros de Marta a empurraram em sua ruidosa, e com ares de primeiros da fila, adesão à opção Dilma. Voltemos.

O episódio do mensalão deu a Lula ocasião para um passo largo na solução de um problema antigo: submeter o PT. A demissão com cassação que fez de José Dirceu uma assombração política abriu um horizonte novo para Lula, que passou a dispor de uma liberdade de movimentos inédita, pois, de um só golpe, removera-se Dirceu do governo, da direção do partido e do calendário eleitoral. Nessa ordem de idéias, o episódio de Belo Horizonte em 2008 (aliança entre Pimentel-PT e Aécio-PSDB), foi ilustrativo de como, desde a derrocada de Dirceu, o carisma se sobrepôs à dinâmica partidária institucional: Lula se posicionou ao lado da solução não-partidária, o partido esperneou dando sinais, pela primeira vez desde 2005, de que pretendia preservar uma zona de autonomia na relação com o carisma, mas acabou cedendo. Daí para impor Dilma foi um pulo nos gráficos das pesquisas de avaliação do governo. Para Lula, a ministra se encaixa à perfeição como silhueta exclusiva de seu facho de luz: o carisma abrindo caminho para uma candidatura lunar, sem apelo eleitoral próprio, desamarrada da máquina partidária e sem afinidades com o petismo (o carismático Vargas fez parecido quando escolheu eleger o anódino general Eurico Dutra em 1946, para acabar voltando em 1950…).

Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.

Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.

Também parece ter escapado que uma crise (dê-se a ela o nome de econômica, ou o nome Sarney) deveria ser uma oportunidade para o petismo voltar a influir no PT e restabelecer, num patamar política, ideológica e programaticamente mais qualificado, a tensão entre o carisma e o partido: no plano simbólico, a crise permitiria resgatar o debate sobre mais ou menos estado nas relações com o mercado; ou mais ou menos vínculo entre a ética e a política, temas emblemáticos dos embates entre esquerda e direita que, repostos, abririam perspectivas novas de persuasão e recrutamento, mormente se articulados a temário de mudança institucional motivadora; no plano político, uma crise em geral impõe a distinção partido-governo, uma vez que o partido, ao contrário do governo, tem o direito, e o dever, de ver na crise uma oportunidade para se desfazer de amarras que o própria crise tornou anacrônicas ou simplesmente desmoralizou; no plano eleitoral ou de um futuro governo, a crise, seja a econômica, seja a político-institucional, torna mais arriscada a aposta em um nome sem memória eleitoral e, assim, desprovido de liames próprios com eleitores e forças políticas.