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Posts sobre eleições passadas e sobre a que virá, afinal, uma eleição é, também, a reconfiguração da memória da anterior.

REAÇÃO EM CADEIA (PROVAVELMENTE RETROATIVA)

Carlos Novaes, 26 de novembro de 2015

Sem produzir fatos novos — pois a prisão recente de Bumlai veio acompanhada da declaração explícita do juiz Sergio Moro de que não havia provas contra Lula –, a Lava Jato vivia dias de certa rotina, pois desconfiados das motivações de Nestor Cerveró, duvidando da sua efetiva disposição para colaborar, recusavam a ele o benefício da “delação premiada”. Cerveró, espremido entre essa reticência do Judiciário e a certeza de uma longa pena a cumprir atrás das grades, tomou a decisão de forçar a aceitação da sua delação premiada entregando uma poderosa vertente do esquema. Se a prisão de um banqueiro “perplexo” ainda poderia ser vista como mais do mesmo, pois Marcelo Odebrecht já vinha representando com brilho o empresariado encarcerado, prender um senador da República no exercício do mandato e líder do governo no Senado é, realmente, algo novo. Agora a “crise” vai desaguar numa verdadeira crise política, cujos desdobramentos (se Cerveró, de fato, entregar evidência criminal contra Dilma) terão efeitos retroativos sobre todo o ano de 2015, dando sentido novo a essa memória recente da política profissional nacional.

Se for assim, apesar de toda a farsa, 2015 não terá sido um ano desperdiçado, mesmo que esse desfecho inesperado venha a emprestar uma falsa legitimidade aos disparates jurídicos e às operações antidemocráticas a que o país veio sendo submetido; paciência. As prisões de Delcídio e de André Esteves foram possíveis porque o Supremo, por unanimidade, acolheu uma interpretação nova da Constituição, encaminhada pela PGR. Como há ministros do próprio pleno constitucional mencionados no material que serviu de base às prisões, a decisão unânime mostra que se atingiu no Judiciário um ponto de virada, isto é, que ali se entendeu que as coisas chegaram a um ponto que já não há lugar para tergiversações. Dessa perspectiva, a “crise” que nos embrulhou ao longo de todo o ano terá servido de empurrão final para que, diante das evidências entregues por Cerveró, a sensação de desperdício fosse superada e do limão se venha a fazer uma limonada.

A decisão do Senado de manter, pelo voto aberto, a prisão de Delcídio saída da politicamente incontornável decisão do STF, contra a patética, desmoralizante e inábil atitude da bancada do PT (que, assim, se isolou como polo nefasto da crise), tanto evidencia que se instalou uma verdadeira crise política quanto sugere que o desfecho será rápido, pois há motivação embasada nos fatos e, por isso mesmo, essa motivação aparece orientada em uma direção única, avalanche que irá, claro, engolir os elementos restantes da “crise” que se arrastou pelo ano todo. A decisão do Senado, que Renan preside, dá ao político alagoano munição para, enfim, se desvencilhar da companhia incômoda do presidente da Câmara, seu correligionário Eduardo Cunha. Afinal, não escapa a ninguém o contraste entre a dinâmica da Câmara, voltada a proteger corruptos, e esse gesto do Senado, abertamente voltado a fazer o que for necessário para salvaguardar alguma credibilidade à política profissional.

Entretanto, há razões para uma incerteza geral, pois, a depender da extensão das confissões de Cerveró, supondo-se que ele possa vir a fazer entregas de tal envergadura que levem outros presos a já não verem sentido em ficar calados, todo o sistema político profissional, no Legislativo e no Executivo, pode vir a ser engolido no processo. O caso de Lula e do PT é mais grave, pois eles seriam os primeiros a serem atingidos por uma delação generalizada. Se as coisas se passarem assim, os tucanos vão ter uma oportunidade de renascimento, seja porque terão coroado de “êxito” suas trapalhadas de 2015, seja porque terão elementos para tentar incriminar a chapa Dilma-Temer, alcançando a tão sonhada nova eleição presidencial, agora num cenário em que Lula estaria definitivamente fora do páreo. Vamos ver como se desdobram os fatos, os quais, por enquanto, favorecem o mando do p-MDB, que pode vir a herdar a própria presidência da República. Como quer que seja, 2015 não terá sido desperdiçado, pois terá ficado claro todo o desastre da política profissional, que terá tido que entregar muito mais do que os anéis. Vamos ver.

LEGADOS DA “CRISE” — 1 DE 2

Demolição incompleta e alternativa reacionária

Carlos Novaes, 21 de outubro de 2015

[Com atualização no final, Fica o Registro, em 22 de outubro de 2015)

I. A “crise” engaiolou o governo

A inércia com que a sociedade brasileira se submeteu ao alarido da mídia deu aos políticos profissionais, na forma da “crise” política, o tempo necessário para que eles dissipassem as energias transformadoras geradas na primeira instância do poder Judiciário pela operação Lava Jato, que, atuando isolada, sem força política organizada em seu favor, acabou por ser contida — e eles o fizeram com os menores danos para o sistema de mando que infelicita essa mesma sociedade: será bastante que entreguem algumas cabeças, como acaba de ficar claro nessa historinha de que Fernando Baiano “se fazia passar” por operador do p-MDB, mas jamais o teria sido, tendo atuado como laranja de um diretor da Petrobras que roubava para si mesmo. Acredite quem quiser, especialmente quando essa revelação, tão novidadeira quanto tardia e conveniente, veio acompanhada de mais uma prisão decretada contra Marcelo Odebrecht, vaca premiada com tanta culpa no cartório que acabou útil como vistoso boi de piranha.

Ao lograrem nesse intervalo, sob a fumaça e o estardalhaço da “crise”, travestir de crise de governo uma crise de representação, isto é, ao transferirem para o poder Executivo (às voltas com uma crise econômica real) a crise de legitimação do poder Legislativo (nascida da indiferença para com o eleitor e da corrupção da coisa pública oriundas da reeleição infinita), os políticos profissionais deram sobrevida artificial a uma ordem que, embora condenada, só está de pé porque o executor da sentença ainda não se reconheceu no poder de aplicá-la: a sociedade brasileira ainda não entendeu que precisa negar o voto a todos os que lá estão ou lá já estiveram, pois é a rotina que os torna os operadores da corrupção: os elos políticos da corrupção são, sempre, deputados e senadores, dos quais depende a tramitação congressual da matéria governativa, engenhoca que já deveria ter posto por terra o mito, conveniente às traficâncias, de que nosso presidencialismo é imperial (mito este muito incensado pelos parlamentaristas doutrinários, e que se presta a que sempre se ponha a culpa na figura do presidente – simplismo que se encaixa na preguiça do eleitor, rotineiramente inclinado a culpar quem é mais visível). Ora, na verdade, é bem ao contrário, como essa “crise” mostrou à farta: Dilma só conseguiu se reequilibrar depois que cedeu tudo ao p-MDB e, através dele, para os seus satélites congressuais.

Esse estado de coisas esquisito se amarra a um outro mito: o de que para governar o presidente depende de uma maioria estável, quando não pétrea, no legislativo (exigência que, por si só, já desmente em parte o mito anterior, da presidência imperial que tudo pode…). Política é fluxo, negociação, conversa, gestão de incertezas; a exigência de maioria estável é fruto da abolição da política em troca da previsibilidade das rotinas reificadas nos esquemas de poder e dinheiro. Como as rotinas dos esquemas de corrupção engendrados no Legislativo são conduzidas por profissionais que estão de costas para o eleitor que eles deveriam representar, na prática deles já não há política, mas negócios. Como se aceita como “natural” o mito da necessidade da maioria estável, fica a parecer igualmente natural que a uma maioria estável deva corresponder com não menor naturalidade o caráter estável dos cargos de Ministro e seus nomeados de confiança respectivos. É essa pirueta que joga para dentro do poder Executivo os políticos eleitos para o poder Legislativo, com o resultado nefasto de que, ao se transfigurarem em gestores aqueles que foram eleitos como representantes, a sociedade se vê duplamente afrontada: não terá o representante comprometido com o que mentirosamente defendeu na campanha, e passa a ter um gestor das traficâncias que desde a campanha mentirosa eram urdidas, e por isso mesmo a financiaram. Para dar um basta, leitor, temos de parar de reelegê-los! Só então teremos representantes sempre novos, que, proibidos de se deslocarem para postos no Executivo, serão levados a apoiar, ou não, essa ou aquela política, medida, iniciativa do presidente, dinâmica da qual resultarão maiorias eventuais, com derrotas e vitórias do Executivo, como deveria, isso sim, ser natural. (Obama está em minoria há tempos, tanto na Câmara como no Senado americanos).

A exigência descabida dessa tal maioria estável facilitou o alarido em torno do impeachment de Dilma, contra quem ainda não há a mínima evidência na Lava Jato, alarido que foi a reunião artificial contra este governo de três circunstâncias: primeiro, o inconformismo dos tucanos de terem perdido por poucos votos uma eleição presidencial (mas basta um voto para definir o vencedor, oras!) — tanto que exigiram do TSE uma investigação sobre uma suposta fraude eleitoral, hipótese que foi desmentida categoricamente; segundo, a descoberta de um esquema de corrupção “nunca antes visto neste país” (ooohhh, que surpresa!), envolvendo empreiteiras cujos lucros irrigaram todas as campanhas eleitorais de 2014 (proporcionais e majoritárias, ainda que Aécio e seus tucanos insistam que o dinheiro recebido por eles tinha o carimbo de “não proveniente de lucros em contratos fraudulentos”);  e, terceiro, uma crise econômica que decorre, sobretudo, das inconsistências fundamentais do nosso velho “modelo” de “desenvolvimento”, no qual PSDB e PT são parceiros, as quais impedem a consolidação e o incremento entre nós do que é básico a qualquer sociedade de mercado bem assentada: uma classe média ampla, ainda que matizada em estratos, sem pobreza e, muito menos, fome.

Nossa pequena classe média não se espraia de forma sustentável de modo a engolir a pobreza porque no modelo partilhado pelo PT e pelo PSDB (e ao qual Marina Silva aderiu com suas propostas reacionárias e conservadoras na campanha de 2014) os ricos não podem perder e os pobres só ganham algum quando todo mundo estiver ganhando mais; quer dizer, em tempos de vacas magras, a classe média paga as migalhas que se destinam aos pobres, cujo sofrimento nunca tem fim. Na saga escalonada das agruras da nossa classe média tipo sanfona, nos tempos ruins, num primeiro momento, se deixa degradarem, onde ela mora, os serviços e a qualidade da vida urbana (desde sempre péssimos nas periferias que alojam os pobres), no passo seguinte da queda, estratos da classe média voltam à pobreza, e se as coisas vão realmente muito mal, que passem à pobreza estratos que nunca lá estiveram e cortem-se as migalhas aos pobres, desde que os ricos fiquem onde sempre estiveram. Nesse esquema perverso, se joga a classe média contra os pobres, pois, em razão da não menos perversa dinâmica das suas aspirações, ela almeja alcançar o consumo dos ricos e está sempre pronta a ver um vagabundo em quem recebe o bolsa-família, mas se recusa a ver um vagabundo no empreiteiro corrupto (ainda que preso), ou no banqueiro manipulador — esse conjunto recebe o nome legitimador de democracia de mercado, como se não fosse o Estado que estivesse a arbitrar quem sofre e quem é poupado nesse suposto jogo de mercado.

Foi justamente nessa arbitragem que as incompetências administrativa e política de Dilma tiveram papel decisivo na conjuntura complexa que estamos vivendo, pois não apenas ela não soube administrar os recursos públicos dentro das margens estreitas em que atua qualquer presidente docemente submetido ao pacto do Real em erosão, como também não foi capaz de exercer o mando e fazer política de modo a evitar a concatenação simbólica contra si daquelas três circunstâncias vistas no parágrafo mais acima. Em outras palavras, as responsabilidades de Dilma na “crise” política e na crise econômica decorrem mais do que falta a ela como quadro político, e menos do que ela tenha feito como gestor público, seja na política, na economia ou na administração dos bens e dinheiros públicos.

Por isso mesmo, ao virar, com base na sua fibra, e quase que só nela, a página de um impeachment injusto, Dilma herda, com toda justiça, um governo engaiolado, pois, assim como numa demolição mal-sucedida, caiu merecidamente sobre ela, na forma de elementos de reconstrução e entulho, um governo agora protagonizado justamente por um entulho que, reaproveitado pelo PT e pelo PSDB, vem de longe: o p-MDB. Esse entulho autoritário reciclado, tão arenoso que até uma figura como Eduardo Cunha chega a protagonizar, irá mostrar toda a sua capacidade poluente nos próximos anos — e o que ainda está em aberto no curso do mandato não é, portanto, se Dilma fica ou não na presidência (sem fato novo na Lava Jato, ela vai ficar, pois a opção de melar a eleição pelo TSE é uma invencionice a essa altura implausível), o que está em aberto é a extensão dos danos que advirão para o país de um domínio tão vasto e tão direto do p-MDB sobre unidades ordenadoras de despesas, e o quanto Dilma amealhará de recursos para, mais adiante, remover da esplanada pelo menos parte desse entulho (o que, se viesse a acontecer, daria ocasião a nova “crise”).

Não há razões para esperanças nessa linha, entretanto, seja pelo histórico da presidente, seja, sobretudo, porque ela, como já em março foi dito aqui , está numa solidão comparável à de Vargas, solidão que agora vem ficando clara aos olhos de todos, mas não tem sido bem compreendida: ao contrário do que muitos pensam, a solidão não levou Dilma a entregar para o Lula a condução política das suas escolhas, faltando entregar apenas a rapadura da economia. Não. Ao desautorizar Rui Falcão, dizendo que Levy fica, e ao espinafrar Cunha no momento em que Lula e Aécio estão empenhados em poupá-lo, a presidente mostrou ter entendido que Lula age não para protegê-la e ao seu mandato, mas segundo seus próprios interesses, os quais contemplam, inclusive, até um sacrifício dela, como também foi dito no artigo de março mencionado linhas atrás. O empenho de Lula por Cunha, combinado com suas críticas demagógicas ao ajuste fiscal, tem a ver com a sucessão presidencial (agora ou em 2018), não com a sustentação da presidente. De modo que a movimentação política de Dilma nestes últimos dias está a indicar que ela leu bem a conjuntura em que se deu a virada de página da “crise”, viu que Cunha está liquidado e que sua preservação na estufa do Legislativo só interessa a quem tem o rabo preso ou a quem quer melar o jogo, e trata de aproveitar o fôlego ganho para se distanciar publica e corajosamente dos esquemas de auto-preservação dos políticos profissionais e concentrar-se em obter no Congresso os resultados da reforma ministerial para poder, enfim, enfrentar a crise econômica, que vai piorar antes de começar a melhorar.

Como o velho não morreu e o novo sequer se apresentou, armou-se um estado de coisas em que os reacionários se fortaleceram, e se transformaram em conservadores todos aqueles que, exatamente porque organizados para fugir da desigualdade (não para enfrentá-la, sendo essa a marca de nascença dos nossos movimentos organizados pedinchões), agora se debruçam a defender o quinhão obtido dentro da ordem, fazendo-se desorientados, não mais sabendo quem é amigo e quem é inimigo, tornando-se incapazes de levantar a cabeça da presa fugidia para olhar adiante, o que permitiria a busca de uma alternativa transformadora — é nessa balbúrdia que se arma a eleição presidencial de 2018, que será polarizada por reacionários e conservadores na disputa pelo apoio dos assim chamados movimentos da sociedade civil, agora numa defensiva conservadora sem projeto próprio — foi a isso que chegamos em decorrência das  escolhas da burocracia oligarquizada do lulopetismo, que enfraqueceram a própria ideia de justiça social.

II. A “crise” chocou um mutante

Embora a desmoralização do PT tenha ficado clara, ainda não sabemos a extensão dos danos em Lula, até porque ele ainda não pode ser visto como totalmente livre da Lava Jato contida, mas não detida. Se tudo se passar como parece mais plausível, porém, Lula, desprovido do “lulismo“, será candidato na próxima eleição presidencial, nem que seja para defender seu próprio lugar na história. Mesmo com a presença dele na disputa, existirão tantos órfãos do PT a consolar que não haverá candidatura presidencial sem penduricalhos “progressistas” em 2018, ao contrário do que pensa quem imagina ter emergido das ruas do Brasil uma direita de manual que sustentaria uma competitiva candidatura presidencial puro sangue, embalada por uma luta de classes rediviva.

Tanto serão tempos de maquiagem, não de autenticidade, que já estamos diante dessa criatura que tem rabo de jacaré, pele de jacaré, boca de jacaré… mas parece a Carmem Miranda — é o Alckmin, depois de descobrir que não dá para ser presidente do Brasil com essa imagem de quem traz um cassetete sob o paletó. Assim como a pequena notável foi aos EUA e voltou americanizada, o pequeno reacionário foi ao Pontal e voltou reformista, embora ainda exiba seu característico modo raivoso de falar entre dentes, como se estivesse rasgando celofane. O personagem mostra toda a sua esperteza ao começar por agarrar para si, na corrente dos movimentos organizados, o elo do MST: trata-se do elo mais fraco dela, seja porque é o de menor custo (afinal, a imensa maioria da população é urbana e, por isso mesmo, não vê como custo para si uma desejável repartição de terras que será feita alhures), seja porque é dos elos mais afeitos a negócios, característica decorrente da longevidade de seus oligarcas. Como já se disse aqui, o “fica Dilma” favorece Alckmin, cuja candidatura em 2018 independe do que se passar com o, e no, PSDB. Na verdade, faz tempo que a única candidatura presidencial competitiva que se pode dar como certa é a dele, que tem plano para tudo e está muito bem situado com as forças de mercado, que adorariam ter alguém como ele para garantir um Estado favorável aos bons negócios. O novo figurino reformista vai cair muito bem no PSB, especialmente se contarem, em adesão ou fusão, com o PPS, cujo presidente, Roberto Freire, como todo ex-comunista que se preze, tem resposta prá tudo, até para uma aliança com Alckmin.

Alckmin pode se dar ao luxo de cortejar setores da chamada esquerda porque já deu provas suficientes de fidelidade, alinhamento e reiteração do que há de autoritário no cotidiano da cultura política brasileira, especialmente pelo manejo do braço armado dela: sua disposição de acolher como “erros” os modos brutais de setores da Polícia Militar sob seu comando não deixa dúvidas sobre seu compromisso com o “erro” para o qual seus soldados são treinados, embora ele sempre diga o contrário, claro. Aliás, a junção dessa fidelidade com as crescentes ambições políticas da cúpula da PM por todo o Brasil fará do atual governador de São Paulo o candidato natural da corporação em 2018, alinhamento que só pode ser visto como uma ameaça à democracia, pois, queiram ou não, políticos oriundos da corporação promovem a soma nefasta de memórias reificadas, redobrando suas forças: assim como os evangélicos com suas Bíblias e hierarquias pastorais, esses soldados carregam as rotinas de mando dos códigos da conduta hierárquica reificada para dentro das não menos reificadas rotinas de poder e dinheiro dos esquemas do parlamento. Enfim, a prosperar essa aliança de Alckmin com o MST, haveremos de ver, sob as bênçãos de Francisco e para inveja de certos utopistas, a passear nas terras de Piratininga, protegidos pela PM, a Opus Dei de mãos dadas com a Teologia da Libertação, estando a faltar apenas a benção evangélica — nada que o amor ao próximo, negócio, não possa resolver.

III. As “utopias” da “crise”

Se ninguém disse ainda, vale dizer que o grau de desorientação de uma sociedade se pode medir pelas utopias que seus intérpretes geram. A situação da sociedade brasileira é tão lamentável que aqui as utopias tem aparecido não como desenho de um futuro imaginado a ser alcançado, mas como reação a um passado de que se abriu mão de conhecer para superar. Em outras palavras, temos chamado de utopia não as aspirações a perseguir depois de vencida a crise econômica que nos maltrata, mas os subterfúgios pelos quais se pretende evitar o enfrentamento das causas da “crise” política que nos infelicita. De fato, primeiro foi o ex-presidente Fernando Henrique, que nos apresentou, numa entrevista à Folha de S.Paulo, a “utopia” de uma renúncia programada de Dilma, pela qual a presidente deixaria o poder no exato momento em que tivesse conseguido vencer a crise…(quanta imaginação e argúcia!). Tempos depois, foi a vez do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, que nos apresentou sua utopia Paraguaçu: a renúncia coletiva e simultânea de Dilma, Temer e Cunha… (uma solucionática digna das três irmãs Cajazeiras, que só fariam tal gesto em favor do seu bem-amado). Quando a gente podia pensar já ter visto tudo, eis que o economista André Lara Rezende, com a autoridade de quem já geriu a coisa pública “no limite da irresponsabilidade”, nos propõe a utopia de partir do zero em matéria de corrupção, ou seja, quem roubou, roubou, mas a partir de hoje fica, mesmo, proibido roubar (Ah! bom) — voltarei a este tema.

22/10/2015 — Fica o Registro:

– A Folha de S. Paulo (UOL) de hoje traz um artigo que vale o dissabor de ler, pois ele dá exemplo cabal (inclusive com gráfico mistificador) do simplismo arrogante que tem marcado muitas “análises” preguiçosas e inerciais da “crise”, tudo piorado pelo fato de o autor declarar que almeja um governo Temer com Serra de ministro da fazenda (quanta clarevidência…). Apoiando-se na desinformação que tornou Dilma um alvo fácil de atingir e, portanto, garante aplauso farto a qualquer um que a espinafre, o autor nos diz, com ares de quem anuncia o que deveria ser óbvio (que sumidade!), que a crise econômica está a piorar por culpa da “dupla” de vilões que só o simplismo oportunista torna plausível juntar: Dilma e Cunha!. É como se o Congresso não estivesse há meses empenhado em travar a ação governamental; é como se os tucanos não estivessem há meses negando a Dilma instrumentos de que eles próprios teriam de lançar mão para enfrentar a crise. O autor desconsidera até mesmo uma diferença que qualquer pessoa honesta teria de levar em conta: enquanto NADA se provou contra Dilma até agora, Cunha já tem contra si VÁRIAS evidências acachapantes apuradas por instituições internacionais confiáveis. Em suma, à sua compreensão simplória da “crise” o autor acoplou uma solução não menos simplória: basta remover Dilma e Cunha e o sol voltará a brilhar — sendo a Constituição só um detalhe inconveniente. Na verdade, o simplismo do autor expressou o cansaço do homem comum diante da “crise”, pois para ele, que quase nada compreende, ao fim e ao cabo, o melhor é tirar da sala os espantalhos convenientemente construídos pela mídia no curso da “crise” — o resto a gente vê depois… Tudo se passa como se a complexidade da situação fosse apenas um mal-entendido…

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 5 — Entrevista de FHC à Folha de S.Paulo

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2015

Folha – A cúpula do PMDB se distancia da presidente e os deputados negociam posições no ministério. O que significa?

Fernando Henrique – Em épocas de incerteza, é natural que os partidos fiquem oscilantes. O PMDB indica duas direções. Uns acham que vale a pena manter o governo. E há os que desconfiam que não dá mais. Isso vai continuar por muito tempo, até que se sinta que há mais clareza sobre o passo seguinte, seja do governo, seja dos que querem mudar o governo.

Novaes –Sendo o p-MDB um partido de correntes internas que se fazem e desfazem ao sabor de poder e dinheiro (poder para fazer dinheiro), estar no governo (em qualquer governo) é fundamental. Se compor em um governo de “outro” é sempre preferível, pois evita a definição de um mandante entre eles – como dizia Tancredo: “em política não se deve levar a conversa até o fim”. Como o partido está atolado em malfeitos, a Lava Jato gerou incertezas sobre quem vai ou não ser apanhado, levando a uma “crise” em que alguns (como Cunha) viram uma oportunidade. Tirar Dilma é definir a luta interna em favor de Temer, o que pode empurrar o p-MDB para um racha. É essa incerteza adicional que Dilma vem alimentando com esse ofertar-negacear ministérios, um espetáculo que mostra o divórcio total entre a política profissional e a sociedade brasileira, que, não obstante, a tudo assiste como se não fosse o futuro dela que estivesse em jogo.

O que falta para as principais forças políticas se definirem?

FHC — A presidente Dilma está num dilema grande. Ao nomear o [ministro da Fazenda, Joaquim] Levy, deu um sinal de que entendeu que o caminho que havia pego estava errado. Mas esse sinal não é convincente, e isso se reflete em tudo. Nosso sistema é presidencialista, mas muito dependente da capacidade do governo de formar maioria no Congresso. Ela não mostrou ainda que tem essa maioria.

Novaes – Não há dilema de Dilma que importe e as principais forças políticas já se definiram faz tempo: surpreendidas pela indomesticável Lava Jato, essas forças chamadas de principais (p-MDB, PT, PSDB e seus satélites) viram na “crise” uma maneira de  buscar fazer dos ovos quebrados um suculento omelete e, agora, brigam pelo tamanho da fatia que caberá a cada uma. Quando essa repartição estiver concluída, todos estarão prontos para serem convencidos do que lhes for conveniente, não tendo a crise econômica nada que ver com isso. Na hora em que o butim estiver repactuado, as soluções para a crise econômica encontrarão um rumo.

A oposição tem os votos necessários para abrir um processo de impeachment hoje?

FHC — O impeachment depende de você ter uma argumentação convincente, não só para o Congresso, mas para o povo. Os que desejam o impeachment não construíram até hoje uma narrativa convincente. Pega as pedaladas. Você pode argumentar, como juristas têm feito, que não há como caracterizar um crime.

Novaes – O impeachment depende de que haja plausibilidade na tese de que a presidente cometeu crime. Depois de tudo que já foi revirado, não se encontrou nada. Não há, até aqui, ponto de apoio para essa alavanca golpista.

A lei diz que precisaria ser um atentado à Constituição.

FHC  — Tudo depende de interpretação. No caso das pedaladas, para que se torne convincente, tem que fazer uma ligação direta com o uso de recursos para fins eleitorais. Aí o povo entende. Enquanto não houver uma narrativa que permita justificar politicamente o impeachment, é difícil.

Novaes – Narrativas tem havido muitas. O que não há é crime.

Mesmo se Dilma continuar com popularidade tão baixa?

FHC — Qual é a mágoa que a população tem da presidente? Ela ter dito uma coisa [na campanha] e fazer outra [no governo]. O que a salva em certos setores da opinião, o ajuste econômico, é o que a condena diante de outros.

No sistema parlamentarista, a perda da maioria no Congresso levaria à queda do governo. No presidencialista, não tem como fazer isso, a não ser por um processo mais violento, que é o impeachment.

O problema é a angústia do tempo. É tanto desacerto que surgiu uma grande inquietação. Se fosse por um ano, haveria a expectativa de uma mudança que estaria ao alcance. Como você não tem essa expectativa, a inquietação gera essas ideias para arranjar um modo de nos desvencilharmos da presidente.

Novaes – O que explica o “desacerto” político é a Lava Jato, não a crise econômica, que Dilma vem tentando enfrentar com medidas que seus adversários apoiariam se não vissem no “desacerto” uma oportunidade de levar vantagem: o PSDB quer melar a eleição de 2014, o p-MDB quer se safar da Lava Jato e conquistar mais poder para fazer dinheiro. Não fossem as incertezas e temores gerados pela Lava Jato, estariam todos em seus respectivos poleiros e Dilma estaria a comandar, com Levy ou assemelhado, mais uma tentativa de remendo para o desmanche do Real.

Essa dificuldade de “nos desvencilharmos do presidente” foi vivida por muitos brasileiros na virada de 1998-1999, quando o presidente recém eleito, esse mesmo FHC, teve de abrir seu saco de maldades para enfrentar o que viera escondendo na campanha da sua reeleição. Naquela altura, houve quem gritasse “fora FHC!”, mas, felizmente, prevaleceu a ordem contra os que queriam desvencilhar-se dele.

Deixo ao leitor ajuizar o que seria um sistema parlamentarista com esse Congresso que aí está (sim, porque não seria possível inventar outro).

O afastamento de Dilma seria suficiente para resolver isso?

FHC — A questão não é só a presidente. Temos um sistema partidário e eleitoral que tornou inviável construir maiorias sólidas no Congresso. Você tem 30 e poucos partidos, e a maioria está aí para disputar pedaços do poder, do orçamento. Qualquer um terá esse problema para governar.

NovaesA questão não é a presidente. Ponto. Todo o problema são os políticos profissionais, que estão “aí para disputar pedaços do poder, do orçamento”. Não há como governar senão na base do toma lá da cá.

O sr. defendeu outro dia a formação de um novo “bloco de poder” como solução para a crise política. O que falta?

FHC — Se estivesse no lugar da presidente Dilma… Eu perdi popularidade em mais de um momento, recuperei, perdi de novo, mas nunca perdi a maioria no Congresso, o respeito. É difícil imaginar, mas fui presidente, sei como é.

Ela teria uma saída histórica. Apresentar-se como coordenadora de um verdadeiro pacto. Em que não estivesse pensando em vantagens para seu grupo político, só no futuro do país, e propondo que o conjunto das forças políticas se unisse para fazer algumas coisas. Modificar o sistema eleitoral. Conter a expansão do gasto público. Reformar a Previdência. E ofereceria o seguinte: aprovado esse pacto, em um ano ela renunciaria. É utópico isso, eu sei.

Novaes – FHC, agora, pretende que um presidente só possa governar tendo maioria no Congresso. Ele parece ter esquecido os ensinamentos de Madison (no livro O Federalista), que viu de longe o perigo da “maioria facciosa” (é exatamente essa maioria nociva que se pretende forjar para o impeachment). Um presidente precisa viver e trabalhar na busca incessante de maiorias, que se formam e dissolvem ao sabor das matérias a decidir. Um presidente não pode pretender contar com UMA maioria pétrea (pétreas só as cláusulas da Constituição!).

Fernando Henrique, atropelando a lógica e a democracia com seus desejos, propõe que Dilma lidere uma saída para o país e, em seguida, tendo obtido êxito, renuncie! E ainda se faz o autoelogio de que ideia tão esdrúxula é utópica

Uma renúncia negociada?

FHC — Negociada em nome de objetivos políticos que não são do interesse do meu partido, de nenhum partido. Aí você segura a ânsia [das outras forças] de chegar ao governo.

O tempo dela está se esgotando. Ela tem que olhar para a história. Não convém ficar marcada como a presidente que não conseguiu governar. Ou que vendeu a alma ao diabo para governar. Agora, ofereceu cinco ministérios ao PMDB. Vai governar como? Não vai. Vai ser governada.

Novaes – Dilma sarneysou o governo porque não tem força para governar a fisiologia. Agora, a fisiologia governa. Foi levada a isso pelas contradições impostas pelo fim do pacto do Real, combinadas com os resultados da Lava Jato. Além de seus próprios erros, Dilma não dispunha da força política e do talento necessários para enfrentar uma combinação tão formidável de adversidades – é de perguntar se alguém teria.

Em caso de renúncia, o vice Michel Temer assume o governo.

FHC — A posse do vice não resolveria. Precisa realmente ter uma nova configuração. Mas não adianta uma nova configuração com regras antigas.

Dilma pode continuar a governar. Vai fazer pacto com o demônio o tempo todo. Vai ter que ceder cada vez mais. E o governo ficará mais contraditório. Na Fazenda, o que se requer é um ajuste. E isso é contraditório com os interesses dos grupos políticos que vão para o poder, porque eles querem estar lá para fazer coisas. E não vão poder fazer.

Então, vai ser um governo complicado, confuso. Pode? Se tivesse um ano só… Mas são três anos. É uma longa caminhada, de incertezas.

Novaes – Agora nosso “teórico” já não fala em um novo “bloco de poder”, mas em uma “nova configuração”. Ficou menos ruim, pois “configuração” significa uma disposição diferente das mesmas peças – é bem isso, mas não há nada de novo aí!

Como para o PSDB 2018 está muito longe, três anos parecem muito para FHC. Mas o fato é que este governo tem de ir até o fim, seja com Dilma, seja com Temer. Por melhor que ainda possa se revelar, não será um governo de realizações – será um governo de fisiologia em tempos de crise e desorientação, enquanto a sociedade não gera uma força transformadora que refaça a rosca no parafuso. Um desfecho verdadeiro, bom ou mal, será em 2018, não antes.

E a saída pelo impeachment?

FHC — Se houver alguma coisa que seja clara para a população, pode ser. Suponha que nos processos na Justiça Eleitoral se demonstre de forma inequívoca que houve dinheiro do petrolão na campanha. O que o juiz vai fazer? Aí não tem jeito, tem a lei.

Novaes – Aqui o tucano mostra toda a extensão do seu bico! Nesse caso, de vício original, já na campanha, Temer iria junto e, assim, teríamos uma nova eleição, dando aos tucanos a oportunidade de não terem de esperar até 2018.

Nesse caso, Dilma e Temer seriam cassados juntos.

FHC — A chapa inteira. Seria uma solução? Uma confusão enorme também. Porque os problemas estão aí. Não resolvemos nada, nem na política, nem na parte de gerência do Estado. Se não tiver uma perspectiva de reorganização das contas públicas, e do sistema político, não tem solução.

Novaes – FHC foge da questão, afinal, teríamos de ter uma eleição. Uma eleição abriria o debate sobre como “reorganizar as contas públicas”: a questão é definir quem paga a conta, o que abre a discussão sobre a desigualdade. Quanto a “reorganizar o sistema político”, só vejo uma solução: acabar com a reeleição para o legislativo. Mas uma nova eleição presidencial, solteira, agora, não daria oportunidade real para nenhuma das duas tarefas, pois a sociedade está inerme diante da crise. Haveria, no máximo, a tão sonhada “reconfiguração dos mesmos”, com o surgimento de um “novo” Collor, tão solteiro quanto o anterior.

Como têm sido as conversas do PSDB com Michel Temer?

FHC  — Quem pode dar as cartas hoje no jogo é o PMDB. Dilma pode ficar no feijão com arroz, ou fazer um gesto de grandeza. O mais provável é que continuará no feijão com arroz. O PMDB pode construir uma saída constitucional.

O PSDB se confrontará com outra questão. Vai ajudar, ou não? Se houver razão concreta, narrativa convincente, votará pelo impeachment. Mas e depois? Os problemas não vão mudar porque mudou o presidente. Precisa ter um sentido, um rumo. Aí o PSDB vai ter que cobrar esse rumo.

Novaes – O p-MDB já vem distribuindo as cartas desse baralho marcado. Eles agora estão empenhados em identificar as marcas das cartas uns dos outros e, então, decidir se vão ou não melar a rodada, tirando Dilma. O risco de melar é Temer decidir que, agora, o baralho é mais dele do que dos outros.

O PSDB já está totalmente desmoralizado: apostou no golpe, fez um recuo para inglês ver, tem um governador forte a quem só interessa o calendário normal de 2018 e, assim, está entre dois cenários complexos: se Dilma cair e Temer ficar, terá de decidir se em 2018 convém ser oposição ou situação; se Dilma ficar, terá de torcer para o ajuste dela não dar certo, pois, do contrário, Lula poderá renascer.

Se não for pego em malfeitos criminais, a posição mais cômoda para 2018 é, por incrível que pareça, a do Lula!

LULA + CUNHA: O DESFECHO DA “CRISE” NUMA “NOVA” FACÇÃO PARA 2018

Carlos Novaes, 19 de setembro de 2015

 

Como qualquer um dos que se têm ocupado da situação política, escrevo a quente — só o tempo dirá quanto elucidei ou confundi nesse esforço dos últimos meses. Mas este artigo é especialmente exploratório, trazendo notícias por assim dizer do front mental, pois comecei a trabalhar essas inquietações poucos minutos após ter publicado aqui meu artigo de ontem, mais exatamente, assim que li na WEB a notícia de que Lula se reunira com Cunha e humildemente pedira para que o p-emedebista retardasse o trâmite dos pedidos de impeachment. O título acima é uma hipótese, mas uma hipótese terrível que, me parece, não convém desprezar, ainda que nesse momento seja de configuração muito improvável. Se ela se verificar, a “crise” terá terminado mostrando toda a projeção danosa da sua fajutice, ainda que essa alternativa promova uma correta preservação do mandato Constitucional de Dilma.

Embora reconheça a situação patibular da presidente, vou explorar essa possibilidade que a complexidade da situação não permite descartar, e o faço amparado na ilusão de que o leitor conhece deste blog não apenas o post de ontem, mas também, digamos, as últimas doze postagens e, ainda, algumas das mais antigas, desde, pelo menos, os dois meses finais do ano passado. Convido a que pensemos (e especulemos) juntos, pois ainda que a hipótese explorada seja implausível e não se verifique, quero acreditar que a sua discussão permite dar tratamento proveitoso a temas conexos.

Lá atrás, quando Cunha era apenas uma ameaça que os profissionais da política brandiam, mas ainda não haviam cumprido contra nós, apontei que a melhor saída para o país seria PT e PSDB se entenderem sobre as presidências da Câmara e do Senado, evitando com isso a ascensão do ogro do Rio (o que pareceu a alguns desatentos mero exercício de um sonhador). Enquanto eu parecia sonhar, Lula exercia sua argúcia pragmática na direção contrária, e recomendava ao PT (com tanto sucesso quanto eu…), que ao invés de lançar candidato à presidência da Câmara, seu partido se compusesse com Cunha que, como ele previa (e temia), acabou vitorioso contra o PT, apartando o lulopetismo da dinâmica majoritária do bloco de poder dos profissionais. A seguir vieram os desdobramentos da Lava Jato e o aprofundamento da crise econômica, solavancos que o país tem vivido e cujos efeitos complexos têm desafiado o entendimento de todos nós.

Mais recentemente, Fernando Henrique, com a cegueira costumeira, especialmente para tudo o que envolve seu próprio papel na construção do desastre que estamos a viver, saiu-se com  a “teoria” (tz tz tz) de um “novo bloco de poder” para tirar o país da “crise” política e da crise econômica, fenômenos que, pare ele, claro, se fundem num só, confusão a que é levado por duas circunstâncias adversas fundamentais: primeiro, ele não pode reconhecer que, no lado econômico, o que está a desabar é o edifício do Real, que ele próprio começou a demolir depois de ter liderado sua notável construção (hoje está claro que ele nunca entendeu a grandeza, a potência e as limitações a que condenou o que havia feito); segundo, pela mesma ordem de razões, FHC está impedido de enxergar que o PT, o PSDB, o p-MDB e seus satélites já constituem, faz tempo, o mesmo “bloco de poder”, sempre que se entender por “bloco de poder” a expressão, na política profissional, de uma hegemonia econômico-social. Daí que nosso “teórico” junte as duas metades da própria confusão do modo mais cômodo para seu partido e para a sua biografia: em seus devaneios, o país estaria vivendo uma turbulência econômica decorrente sobretudo de erros de condução gerencial, turbulência à qual o eleitorado teria respondido condenando o bloco dos culpados (Dilma, Lula e o PT) e, ao mesmo tempo, pedindo que as forças que sempre teriam estado certas, lideradas pelo PSDB, claro, promovam a construção de um “novo bloco de poder”. Em suma, FHC resolveu nos fazer acreditar que a polarização fajuta entre PT e PSDB tem base real e, pior, que com apenas uma dessas duas metades da vanguarda política profissional brasileira se poderia construir um bloco de poder ao qual, ainda por cima, receberíamos como “novo”, delegando a ele a condução da política voltada a transpor de modo socialmente profícuo o impasse de destino em que o país se encontra com o desabamento do Real! O bicho é corajoso…

Mais espertos e prudentes do que o cacique tucano, movidos por desejos mais sólidos do que a própria reputação, os grandes agentes econômicos sabem que o lulopetismo é parte imprescindível do bloco de poder profissional que atende aos seus interesses e, por isso, jamais embarcaram na “aventura” da danação de Lula, o que se traduziu na resistência que vinham opondo ao “fora Dilma”. Naturalmente, até por razões antropológicas, ou por assim dizer “culturais”, as coisas estarão mais ao seu gosto sempre que no bloco de poder que os contempla o lulopetismo ocupar posição subalterna — mas isso não quer dizer que pretendam prescindir dele e, muito menos, que desprezem o potencial de dano contra si que haveria em empurrar o carona incomodo para fora do bloco, obrigando-o a questionar a ordem para poder voltar a dispor dos meios de obter nela o seu quinhão. Aliás, é a junção daquela assimetria cultural (velha como a escravidão e seus efeitos deletérios sobre a vida brasileira) com a luta profissional diária pelo quinhão nosso de cada cargo que explica a ferocidade crescente com que se dá a disputa eleitoral, fazendo com que muitos analistas vejam luta de classes na mera realização da máxima “farinha pouca meu pirão primeiro”, velha como a Bíblia e, claro, especialmente vigente em tempos de escassez.

A novidade (e o infortúnio) foi que à escassez desses tempos de crise econômica real se somou a determinação de Sergio Moro e do Ministério Público, esse sim um bloco novo, que aloprou a coreografia manjada do carnaval da nossa política profissional, com o inconveniente não antecipado, e muito menos planejado, de que sua ação indiscutivelmente positiva também serviu, infelizmente, como alegoria pirotécnica que, com a ajuda da mídia convencional, deu tempo aos profissionais para fantasiarem sua luta política de punhais (na qual se engalfinham por meras vantagens marginais) na figura conveniente de uma suposta expressão política da crise econômica real e, assim, levando quase todo mundo a nomear de “crise política” o desarranjo pastoso das suas práticas de repartição de poder e dinheiro. Assim, como todo inconsequente que é pego de surpresa com o anúncio da gravidez da amante, já lá se vão nove meses nessa batalha em que nossos políticos profissionais embrulharam o país numa confusão desinformada, usando Dilma e seus erros (pobre dela!) para ganhar tempo, enquanto buscam uma saída para o desabamento de todo um sistema de operações através do qual, há décadas, talvez século, reproduzem seu bem viver. A Lava Jato não só desmontou o esquema PT–p-MDB na Petrobrás, mas, como disse Geddel, pôs em cheque todo um modo de operar, no qual se pode reunir os Metrôs e aeroportos do PSDB, as contas inexistentes do Maluf, a máfia do ISS em SP, as falcatruas da operação Zelotes, os mensalões e mensalinhos ainda não apurados no PSDB e em Assembléias e prefeituras do Brasil, nas quais deputados e vereadores espetam caminhões e máquinas em nome de laranjas e reproduzem o modus operandi da máquina infernal da nossa política profissional, toda ela amparada na reeleição infinita para o Legislativo. Não foi por acaso que veio de um grupo de jovens atuando na primeira instância do Judiciário o aríete que se contrapôs a essa fortaleza do mal em que foi trancafiada a força de um Executivo Federal supostamente onipotente (essa “onipotência” é a maior das mentiras nas lendas que fazem a narrativa dos nossos três poderes).

Ao cabo desses nove meses, um Lula revigorado, e um Cunha que vê crescerem as dificuldades dessa vida evangélica de mãe solteira dissoluta que tem levado, podem se descobrir prontos para a união estável que lá atrás o primeiro já propusera e, assim, pleitearem a adoção da criança que, ajudando a superar o trauma da perda recente, faria a alegria do casal e seus padrinhos — até porque o pior que poderia lhes acontecer — mais lá adiante, no 2018 vindouro, se a relação já não puder ser discutida — seria terem de pactuar a guarda compartilhada da menina (desde que a arbitragem não seja do Moro, claro). Nessa ordem de pesadelos de Rosemary, teríamos não a construção de um fantástico “novo bloco de poder”, como fabula FHC, mas o arranjo pragmático de uma “nova” facção política dentro do velho bloco de poder de sempre, facção esta que lhes traria a vantagem operacional de abolir intermediários nesse verdadeiro casamento da fome com a vontade de comer. Se propriamente felizes não ficarem, os grandes empresários tampouco ficarão contrariados. Os que foram às ruas gastarão algum tempo refletindo sobre o que, afinal, deu errado, e acabarão por pedir ajuda ao Chaves (o do SBT, claro). Quanto a nós, restaria o consolo típico de perdedores inveterados: assistir os universitários do PSDB ruminarem sonhos de “voltarem” ao ideário social-democrata “original”, enquanto roem os cotovelos por terem sido alijados do tão almejado e ainda mais primitivo “pudê”.

Delírio puro?

COMO O GOVERNO DILMA ACABOU… LULA ABRIU A CAMPANHA DE 2018

Carlos Novaes, 18 de setembro de 2015

 

A “crise” política está em sua etapa final. Quando a fumaça em dissipação tiver ficado para trás, descobrir-se-á que o segundo governo de Dilma já acabara, embora jamais tenha começado: de um lado, assuma Temer ou não a presidência da República, não há razão para supor que o p-MDB vá perder poder na sarneyzação alcançada: é dele o governo; de outro lado, ao papel definitivo do PT como coadjuvante soma-se a decisão de Lula de jogar a toalha, ainda que sem dizê-lo de uma vez. Estão todos a empanar Dilma, para então passar a fritá-la à milanesa, cada um por seu lado, o que dá a impressão de que atuam como forças de projetos opostos: o p-MDB e a oposição oficial estão em vias de alcançar o pretexto que lhes permita condenar Dilma sem crime, para então fazerem o milagre de “resolver” a crise pondo em prática maldades como as que ela já propõe; Lula e o PT defendem acertadamente o mandato da presidente contra a qual não se demonstrou crime, mas atacam farisaicamente as maldades propostas por ela, muito embora não tenham outro projeto.

Para o establishiment, o afastamento dela vai ficando indiferente, pois, nesse tempo em que o rabo abana o cachorro, Lula, que passou a se sentir seguro com os resultados da Lava Jato, vem dando garantias crescentes de que não quer barulho, pois já está com os olhos em 2018 — o resto é ritual de passagem, ainda que barulhento, como convém a quem “defende os interesses do povo”. De fato, Lula vem há tempos buscando se vacinar contra os danos do governo Dilma sobre si, nunca perdendo uma oportunidade de salpicar na mídia alguma discordância, sempre dosada para não ser nem dura demais que pareça um rompimento ou abandono, nem branda a ponto de sugerir não haver diferenças entre ele e a pupila. Nos últimos dias, Lula deu mais um passo calculado nessa estratégia: depois de ter anunciado, em solo estrangeiro, publicamente, que não estava de acordo com um ajuste que antes parecera lhe convir, Lula agora se diz pronto para o “sacrifício” de ir às ruas defender uma versão ainda menos popular do tal ajuste, em favor do mandato de Dilma.

Não nos enganemos, esse anúncio de uma ida sacrificada às ruas é a abertura da campanha eleitoral de 2018, não o chamado a uma insurreição em defesa do mandato de Dilma. Lula está apenas a se pavonear como defensor do emprego de milhares de petistas (impossíveis de conservar/prorrogar com a queda de Dilma), enquanto também busca garantir a posição mais aberta possível para si mesmo, pois o debate da campanha já começou. Se Dilma superar o impeachment (o que vai ficando mais e mais improvável, até porque não depende dela), Lula poderá escolher, lá adiante, um de dois figurinos eleitorais, conforme o êxito ou o malogro do governo dela: ou aparecerá em 2018 como o chefe contrariado que conseguiu corrigir a pupila e vai retomar o rumo venturoso que ela abandonara; ou se apresentará como o líder que fez tudo o que pôde, mas a teimosia da outra, com quem já terá rompido, pôs quase tudo a perder e, agora, há que recomeçar. Se Dilma cair, tudo fica mais fácil: ele já terá dado à burocracia petista demonstrações suficientes de defesa dos empregos dela e, ao mesmo tempo, já terá deixado claro que não concorda com o ajuste e, assim, diante da ordem Constitucional quebrada, irá para oposição aberta em defesa dos interesses do povo pobre. E há quem acredite e veja nisso a diferença que sonha existir entre PT e PSDB!

Fica o Registro:

– As divisões no p-MDB em torno da queda de Dilma existem, mas não devem ser muito valorizadas: o problema maior está apenas no Rio, pois enquanto Cunha se vê entre a cruz e a fogueira, o núcleo Pezão-Picciani não pode, sem mais, debandar da base da presidente que tanto o apoiou (parte da “radicalidade” de Lindberg Farias contra o ajuste de Dilma está ligada a esse apoio que ela deu a eles na eleição de 2014).

– Quanto ao PSDB, o papel dele é esperar pela decisão alheia e, então, se for o caso, dar número para o impeachment, pois a desmoralização é total.

– Ao voltar à CPMF, da qual havia recuado erradamente, Dilma fez a coisa certa, mas só depois de ter dado uma oportunidade a mais para que a desautorizassem. Seja como for, ficou claro, como argumentei aqui, que não havia nada de “suicídio” em ter proposto a volta desse “imposto”.

– O corte na verba cultural do sistema “S” é mais uma evidência do misto de miopia e autoritarismo do governo nessa área: quer tirar dinheiro de programas culturais de comprovada relevância, enquanto mantém verbas laxas destinadas a esse verdadeiro “se vira nos trinta” nacional em que se transformou a tal “economia criativa”, com o detalhe de que no “se vira nos trinta” do lulopetismo o dinheiro é entregue antes da avaliação do público, cuja opinião jamais se leva em conta.

DILMA JÁ NÃO FAZ DIFERENÇA

Carlos Novaes, 13 de setembro de 2015

 

Venho insistindo que a crise econômica é real e a “crise” política, fajuta, entendimento que é o oposto da imensa maioria dos comentadores, que têm nutrido a desorientação quase geral propagando dois equívocos: o de que o país precisa de um “novo bloco de poder”, ou seja, a “crise” política seria real; e o de que a crise econômica comanda essa “crise” política encarada como real. A plausibilidade de ambos os equívocos decorre de uma mesma paixão, manipulada cuidadosa e milimetricamente pela razão cínica que fervilha na nuvem compartilhada por profissionais e operadores simbólicos da nossa política profissional: a paixão de que o culpado pelos nossos problemas tem nome e sobrenome, Dilma Roussef. Antes de enfrentarmos a relação entre as duas chamadas crises e o papel da infausta Dilma nela, convém recapitular esta decisiva semana que passou: aberta com o artigo de FHC no domingo passado, no qual nosso dublê de sociólogo “teorizou” sobre a suposta necessidade de um novo “bloco de poder”, a semana foi coerentemente encerrada com a notícia da ida de Temer para a Rússia, viagem a ser feita com pose e entourage de chefe de estado (nem em sonhos eu poderia pedir ilustração mais fiel às minhas reflexões! –*). Mediando esses dois extremos que se tocam, tivemos ainda, nesta semana:
1. a reunião em que o p-MDB repactuou suas disputas internas com a decisão de negar a Dilma tudo o que tiraria o país desse inferno, mas que deverá mais adiante ser concedido para a glória “salvadora” de um governo Temer, “demonstrando-se”, assim, que a culpada exclusiva do desgoverno era mesmo Dilma, inflando as certezas dos idiotas, que em seu júbilo estarão cegos para os sofrimentos do povo pobre;
2. o rebaixamento da nota econômica do Brasil, por uma dessas agências internacionais que avaliavam como boa a situação daqueles que quebraram o mundo em 2008 (a esse respeito, o comportamento de certos “analistas” tem sido repulsivo, especialmente à luz do que escreveram naquela altura);
3. a formalização, pela PF, de que não há provas formais de envolvimento do Lula na Lava Jato (incautos acham que essa notícia da PF foi contra Lula, caindo no despiste da recomendação de que ele precisaria ser ouvido…, recomendação que o desgasta, é verdade, mas traz, a contrapelo, a absolvição dele!); e, finalmente,
4. a ida desse desgastado e aliviado Lula para a oposição, se antecipando lá da Argentina a um governo que pode sair do “novo” bloco de poder sugerido pelo pouco imaginativo FHC, se Dilma cair.

Diante desse “acerto” geral e de suas consequências para 2018, Dilma se tornou irrelevante e sua queda quase que só depende de um pretexto jurídico, para o qual Hélio Bicudo forneceu o amparo da sua autoridade, num rompimento cabal com o lulopetismo, rompimento este cujos prós e contras Bicudo ruminou por longos vinte e dois anos… — ninguém pode dizer que esta não tenha sido uma decisão maturada, não é não? **. Voltemos às duas crises.

A ideia de que a “crise” política decorre da crise econômica, de que a segunda explica a primeira, teve aceitação fácil por duas razões: primeiro, porque um certo marxismo de manual se tornou a ferramenta mental básica dos leitores de jornal, digam-se eles de esquerda, ou não; segundo, porque o desmanche do pacto do Real se impõe, de fato, como desarranjo para o sistema político que o operava. Não obstante essa derrocada do pacto — em torno do qual os condôminos PT e PSDB se digladiavam (sem motivo outro senão a mera e simples disputa pelos rentáveis postos de poder) — implique um desarranjo na ordem política profissional que nele se sustentava, não há razão para derivarmos dela, da derrocada, a “crise” política em que os profissionais e seus analistas pretendem nos fazer acreditar que o país submergiu. É que o motor da “crise” fajuta é a Lava Jato, não a economia. Não fosse a Lava Jato, nem os tão condenados erros de Dilma seriam tão condenados, nem a “calamitosa” situação econômica seria tão calamitosa aos olhos de quem faz o alarido do fim do mundo. Tudo se arranjaria de modo a procrastinar as consequências políticas da situação econômica adversa, numa fuga para a frente em que os mesmos atores profissionais de sempre buscariam ganhar tempo para mais um acerto como aquele que o Real instituiu e ao qual o lulopetismo aderiu formalmente em 2002. Em outras palavras, não fosse a Lava Jato, a erosão do pacto do Real não ficaria tão clara como ficou e os atores comprometidos politicamente com a manutenção da nossa desigualdade (governo e oposição) teriam tempo para engendrar, com calma, um outro arranjo, uma vez que a sociedade brasileira, embora pareça muito engajada, está inerme, pois desprovida de vetor político que lhe permita sair da crise com um viés transformador, traída e embrulhada que foi pela política dos profissionais e de líderes que aspiram chegar lá.

A ação liderada pelo juiz Sergio Moro se impôs como uma variável não controlada e colocou o sistema político profissional em polvorosa, ao mesmo tempo em que forneceu a munição apropriada (e merecida) para o abate oportunista (sempre o é) do lulopetismo, condômino incômodo, que não sabia se comportar na piscina e insistia em ocupar as áreas de festa e, ainda por cima, com churrasco e pagode… Em outras palavras: com a Lava Jato, não só o PSDB, na oposição, viu a oportunidade de suplantar o PT, como também os chefes do p-MDB (Renans e Temers), na situação, fiéis da balança no pacto que “polarizava” PT e PSDB, se viram apanhados num fogo cruzado, e precisaram de tempo para resolver o melhor a fazer diante da junção adversa de estarem na condição de governo num momento em que seria melhor estar na oposição e, por isso mesmo, tendo de enfrentar uma dissidência interna (Cunha), que viu antes deles a oportunidade que se abrira. A solução foi ganhar tempo, e esse tempo foi o martírio remanchado da frágil e incapaz Dilma, para o qual foram mobilizadas multidões religiosas de inocentes úteis, convidadas a inundaram ruas e praças do país para mais uma realização exemplar do rito sacrificial de que o mito primordial de Abraão se fez feixe: o que não falta é gente implacável, seja nas ruas, seja nas redes sociais. E tudo para cortar a cabeça errada!

Em síntese, o martírio de Dilma teve duas manobras e um lançaço final: primeiro, atribuiu-se a ela a crise econômica; segundo, negou-se a ela todos os instrumentos para combater essa mesma crise, operação na qual se transformou o Orçamento da União em peça econômica, quando ele é, e sempre foi, a expressão contábil de um arranjo político. Quando Dilma, acertadamente, pediu a CPMF para fechar o rombo, negaram; em seguida, quando ela escancarou a patranha enviando ao Congresso um orçamento com déficit, foi imediatamente acusada de se recusar a governar, quando são eles que a tem impedido de fazê-lo! Emparedada, recebeu o lançaço final, na forma de dois recados enviados por Lula desde o outro lado do rio da Prata: primeiro, ele sacramentou o abandono da “defesa” do ajuste de Dilma (ao qual de início apoiava porque ainda apostava suas chances de 2018 numa recuperação econômica sob Dilma) e voltou a envergar a casaca surrada de defensor dos pobres; segundo, acalmou o establishiment ao indicar que sua ida às ruas será para ganhar força para 2018, e não para desestabilizar o “novo” governo do condomínio e, muito menos, para pôr em risco a hegemonia (ou seja, Lula mostrou que não vai abandonar o bloco de poder ao qual aderiu em 2002: o bloco é o mesmo, apenas muda, talvez momentaneamente, o protagonista de turno).

Sem Lula, sem o PT, sem os empresários, sem discernimento para entender onde está metida, sem laços com o eleitorado e cheia de pedras técnicas pelo caminho, onde Dilma encontrará apoio para prosseguir? E a que, e a quem, serviria essa continuação, uma vez que seu governo já acaba de ser totalmente sarneyzado e, nem assim, o p-MDB se satisfez, pois seu racha parece requerer um passo adicional?

E ainda haverá quem atribuirá a queda de Dilma ao “colapso” da economia, supostamente provocado por ela… A incapacidade dela não teria forças para tanto.

Notas:

– * Em artigo que enviei a amigos e publiquei, em 2009, no site do chamado Movimento Marina Silva (é, leitor, a vida de quem tem esperanças é dura — mas advirto que logo adiante rompi com os auto-intitulados coordenadores do site, por escrito e publicamente), no tal artigo, entre outras coisas, eu disse que:

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

O fato de que, seis anos depois, o erro que engoliu Lula fique estampado nessa ida majestática de Temer à terra onde Putin ainda reina soberano, e reina pelas razões que sumariei no parágrafo citado acima e, ainda por cima, a despeito de a Rússia estar há tempos na mesma condição precária de “grau de investimento” para a qual o Brasil sob Dilma acaba de ser rebaixado; são aspectos que desenham uma ilustração tão irônica quanto precisa do que foi antevisto, reunindo à materialização do desarranjo anunciado o que há de fajutice nela.

– ** Não entendeu? Explico: Hélio Bicudo foi figura central na comissão de ética do PT que, em 1993, examinou as denúncias de corrupção feitas contra Lula pelo digno e corajoso Paulo de Tarso Venceslau, então secretário na prefeitura petista de São José dos Campos-SP. Naquela altura, ficou claro para qualquer um que não tivesse nascido ontem que o caso Lubeca, de 1989, não fora isolado. Não obstante o incrível depoimento de Lula à comissão (por si mesmo uma peça muuuiiito instrutiva), e as evidências de que Paulo de Tarso não mentia, o denunciante acabou expulso do PT, numa decisão política ao arrepio das evidências “jurídicas” a que chegara a comissão, onde também estava assentado o hoje ministro Eduardo Cardozo, o mesmo que havia se indisposto com Lula no caso Lubeca, pois Cardozo era secretário da prefeita Erundina, em 1989, quando ela barrou aquela maracutaia. Pois bem, assim como em 1993 Hélio Bicudo se aquietou na conveniência política e ficou no PT mesmo atropelado como jurisconsulto e diante de uma injustiça flagrante, tendo até sido candidato pelo partido depois que estava mais do que claro que o PT se transformara numa máquina de tomar poder para fazer dinheiro (sem participação de Bicudo nos malfeitos, fique bem claro), também agora ele adere à conveniência política do “fora Dilma”, que se dá ao arrepio da técnica jurídica, pois não há, até aqui, nenhuma evidência de que a presidente tenha cometido crime.

– Fica o Registro:

— Eduardo Cunha está numa situação difícil, da qual depende, em algum grau, a sorte de Dilma: se ele tocar o impeachment na Câmara, abrindo caminho para um governo Temer, o novo presidente poderá usar seu poder para esmaga-lo, valendo-se, é claro, da Lava Jato. Por outro lado, se Cunha embarreirar o impeachment para segurar a fúria de Temer contra si, corre o risco de contrariar  seus parceiros de profissão, parte deles ansiando por mais acesso ao butim fornecido pelo executivo. De modo que a sarneyzação do governo Dilma pode pender para realavancar Cunha, mas sem trair completamente Temer, virando ela própria o fiel da balança da disputa interna do p-MDB. É um cenário pouco provável, mas não impossível, dada a desmoralização de PSDB e PT. Seja como for, a essa altura já não há vantagem política na permanência de Dilma para quem se mantém na luta contra a desigualdade — vamos assistir ao desenrolar dos acontecimentos que, assim, serão, de fato, meros acontecimentos.

MUITO BARULHO POR NADA — FALÁCIAS

Carlos Novaes, 27 de outubro de 2014

 

É raro que a explicação para o resultado de uma eleição caiba tão bem na frase “fulano ganhou porque teve mais votos”, pois a diferença entre Dilma e Aécio foi de meros 3,459963 milhão de votos, em cerca de 113 milhões de votantes. Não obstante, não faltam nos jornais de hoje, bem como nos maiores portais de Internet, explicações de entendidos para a vitória de Dilma e/ou a derrota de Aécio, quando qualquer pessoa ajuizada enxerga a impertinência de se abordar o resultado segundo vitorioso  e/ou derrotado. Afinal, se irrisórios 1,729983 eleitores tivessem deixado Dilma para sufragar Aécio, teria sido ele o vencedor, margem que desautoriza qualquer “análise” segundo os parâmetros mais conhecidos e cobre de ridículo autores de elucubrações empoadas, notadamente as que tem por base a noção de “classe”.

Não há que falar em vitória ou derrota segundo “classe” se os dois contendores receberam votações significativas de todo o espectro da pirâmide, mormente nos estados em que o eleitor vive em grandes cidades, é mais escolarizado e tem emprego formal, ou seja, vive como assalariado numa inserção de classe urbana atravessada pela controvérsia da informação. Alguém só pode dizer o disparate de que Dilma ganhou graças à classe tal, ou que Aécio perdeu porque não seduziu aquela outra, se passar por cima do fato de que a outra metade da mesma classe teve comportamento que o mesmo observador tem de ver como oposto ao da primeira metade… Explicações de corte regional tampouco fazem sentido, pois mesmo ali onde houve diferença grande em favor de Dilma, a variável que explica não é propriamente a localização geográfica do eleitor, mas a presença da assistência social direta do governo, que gera vínculos propriamente governistas — ou seja, se Aécio tivesse ganho e continuasse essa assistência social, dentro de quatro anos ele disputaria a reeleição com vantagem sobre o adversário nessas mesmas regiões.

Sequer a polarização boboca de “continuidade” versus “mudança” explica o resultado, pois há muita gente que votou em Aécio porque acreditou que ele continuaria os programas sociais e as obras de infra-estrutura em andamento; assim como Dilma recebeu votos de quem acreditou que ela vai fazer mudanças na direção em que os mudancistas fariam, como por exemplo a diminuição da carga tributária ou a relação mais estreita com os outros entes federativos para melhorar isso ou aquilo. Denúncias de corrupção tampouco podem sustentar explicações, pois a vitória coube justamente à candidatura atingida mais diretamente pelos escândalos mais recentes, ainda que, ao fim e ao cabo, nem mesmo a hipótese de que o resultado seria outro se a eleição se desse não no dia 26 passado, mas no próximo dia 30, pode ser afastada com convicção. Em suma, o resultado tem ares de um jogo de dados contra o relógio.

Mas se o resultado numérico apertado não oferece material para sua própria explicação, essa falta de explicação precisa ser decifrada; e o que a decifra explica também os altos e baixos de uma campanha aparentemente vertiginosa: a semelhança entre as duas candidaturas. Elas criaram falsas divisões, abismos de superfície, para, ao final, empatarem o jogo, apartando meio-a-meio o eleitorado, precisamente porque são vetores paralelos equivalentes de um mesmo projeto, o projeto de ser governo para ocupar os postos de mando e, de posse deles, defender os próprios interesses e, aos trancos e barrancos, tocar o que resta do pacto gradualista conservador instituído pelo Real.

Os eleitores foram apartados, não polarizados — e é por isso que em duas semanas ninguém mais vai se importar com o resultado, sendo outra grande bobagem toda essa conversa na mídia em torno da ideia de “unir um país cindido” — o que nem seria desejável, aliás. Não houve cisão real nessa rixa em que o que não foi fumaça revelar-se-á espuma, ainda que não se deva desconsiderar os ressentimentos permanentes, lastro antigo das raivas e antipatias que usando a eleição como pretexto trouxeram à luz aquilo que ficava intramuros e agora aflora nas redes sociais. A internet construiu uma nuvem de neo-intimidade que tem permitido ver as pessoas por dentro…exposição que, felizmente, vai encorajando-as a exibir-se nas ruas quase como são. Aliás, esse estado de coisas permite esclarecer outra falácia, a das “amizades rompidas”, pois elas se romperam não pela opção por Dilma ou Aécio, mas pelos motivos e pelas formas em que se deram essas escolhas: houve gente que descobriu que a pessoa amiga era outra… o que é outra maneira de iluminar a falta de diferença entre as duas candidaturas.

Tudo somado, Dilma continua presidente para governar um Brasil igualzinho ao Brasil de antes. Ela terá com o Congresso dos representantes profissionais as mesmas dificuldades que Aécio teria, sendo que até os articuladores dessas dificuldades serão os mesmos que azucrinaram, azucrinam e azucrinarão a vida de quem lhes pareça vantajoso azucrinar: essa é a razão de ser da vida política deles — e assim será enquanto nós não pusermos fim à representação como profissão. É para esconder as marcas nas cartas desse baralho sovado que a esperteza de alguns e a ignorância de muitos inundam a mídia com a falácia da Reforma Política.

Neste BLOG há vários posts em que eu explico que uma reforma política não será boa se: a maioria dos parlamentares de moto próprio concordar com ela (espontaneamente eles só instituirão regras novas que não os prejudiquem); se as virtudes que ela almeja dependerem do comportamento virtuoso dos políticos profissionais; se o que ela pretender corrigir for a conduta do eleitor (como é o caso de todas as propostas de mudança no modelo eleitoral para escolha de representantes — o nosso modelo de lista aberta, com voto individual e de legenda, é ótimo, o que não presta é a rotinização pela reeleição do representante); se eles arrancarem mais dinheiro público para si (com o chamado financiamento público de campanhas); se eles instituírem mandatos de representação ainda mais longos para si mesmos (o que os deixará mais distantes da sociedade); se eles embolarem todas as eleições na mesma data (aumentando a dificuldade de ajuizamento partilhado/conversado do que está em jogo e facilitando a vida dos marketeiros).

Enfim, quase nada aconteceu e abre-se um novo período de falácias e empulhações que só dará vez a uma real e necessária divisão na sociedade brasileira quando as ruas voltarem a se agitar — desde que os manifestantes tenham aprendido com os erros das agitações anteriores. Pois é.

 

NOTAS

Eduardo Cunha, um político profissional objetivo, diz que o PMDB não trocará convicções por cargos. Tá certo, as convicções deles SÃO os cargos! Seria como trocar seis por meia dúzia…

Há quem tenha votado para livrar a Fazenda do Armínio Fraga, mas se a Dilma nomear para o cargo um presidente do Bradesco ou assemelhado…

A primeira prova de que nada aconteceu – o Lobão já declarou que aquela história de ir embora do Brasil não é bem assim…

 

 

IGUALMENTE COMPROMETIDOS

Carlos Novaes, 25 de outubro de 2014

Tão certo como no fim haverá um vencedor, toda eleição também tem uma espécie de estrada real para a vitória. Mas é cada vez mais raro que o vencedor seja aquele que percorreu essa estrada. Vitórias eleitorais são cada vez mais resultado de uma marcha pelas trilhas manjadas do gosto médio. Só que esse gosto médio não está no eleitor de antemão, como se fosse ele o medíocre por definição. Não. O eleitor é empurrado ao gosto médio pelas campanhas, que não vão além daquele cardápio básico que não ultrapassa os limites do que os políticos, cada vez mais avessos ao risco, julgam rentável.  Dilma e Aécio não ficaram parecidos no final; eles são iguais desde sempre. Supostas “análises” enfatizam uma presumida tendência do eleitor ao centro para explicar a mesmice que, não obstante, querem acreditar que não existe, razão esquizofrênica ignorante do fato simples de que não há exercício de gosto alternativo possível àquele a quem se ofereceu apenas sal e açúcar: a única opção é fazer o soro da sobrevivência, com as variações se restringindo à dosagem de um e outro dos dois limitados ingredientes.

Mesmo sendo o último evento da campanha, o debate de ontem na Globo permitiu que se enxergasse essa assimetria entre demanda da sociedade e oferta dos políticos. Tomemos como exemplo a pergunta da economista, que entende estar desempregada em razão de uma barreira imposta pelo mercado às pessoas maduras. Dilma e Aécio pareceram não ter ouvido a pergunta, pois ambos usaram a angústia da economista desempregada para falar ou de cursos do SENAI (a eleitora tem curso superior!), ou da necessidade de o país crescer (como se a economista não soubesse). Em suma, ela pedia um projeto que enfrentasse a questão de uma alternativa para os mais velhos trabalharem, se dizendo preparada para isso e, por isso mesmo, apontando uma incongruência no mercado de trabalho, que, ao mesmo tempo, reclama de falta de mão-de-obra qualificada e dispensa mão-de-obra qualificada. Naturalmente, os cursinhos de marketing intensivos das campanhas não permitem ter resposta para uma “novidade” dessas e, então, o que se viu foi candidata e candidato exibindo a reunião de falta de sensibilidade com limitação de repertório.

A estrada real para a vitória nessa eleição provavelmente esteve desenhada pela aspiração popular por uma transformação, mas faltou quem a propusesse. Prisioneiros do cabo de guerra do pacto incrementalista conservador instituído pelo Real, Dilma e Aécio não tinham sequer como elevar os olhos da corda a que se agarram para, então, buscar outros caminhos: ambos pregaram a mudança, mas um prometendo fazer exatamente o que o outro afiançava que faria.

Já Marina fez como o caminhante noturno de Schopenhauer: tomando por um rio caudaloso a estrada clara que divisou à sua frente, evitou-a escrupulosamente, contente por vez ou outra no curso da noite divisá-la ao longe, assegurando-se de que ia segura, enquanto ao evitá-la não fazia mais do que distanciar-se do próprio passado, regozijando-se por seguir o caminho lamacento em que lentamente escorregou para a irrelevância. Foi uma grande perda, com um legado danosamente compatível, que é essa nefasta reforma contra a mudança, pela qual a burocracia da representação profissional se assenhoreia ainda mais do mando político: prorrogação de mandatos para alcançar uma coincidência de calendário eleitoral com eleições somente a cada cindo longos anos — difícil imaginar algo mais perverso como resultado de junho de 2013. Colocar-se contra essa proposta vai acabar dando ao PT alguma bandeira para empunhar.

Vença quem vencer, nenhum de nós poderá dizer que não foi bem informado sobre a presidente ou o presidente que teremos: arrastará atrás de si esquemas de corrupção pesada,  continuará o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e a recuperação “responsável” do valor do salário mínimo, contrapartidas da não menos continuísta política de assegurar aos rentistas a intocabilidade dos seus patrimônios e do modelo que assegura a sua multiplicação, e sem nada alterar no projeto crescimentista que estimula o endividamento familiar para o consumo de bens fabricados como se os recursos do planeta não fossem finitos, e celebra um agronegócio baseado na depredação ambiental pelo desmatamento e no uso intensivo de pesticidas e agrotóxicos. Ou seja, a desigualdade e o caráter insustentável do esquemão vão seguir firmes, tendo como pano de fundo a ideia de que o sucesso, individual (por certo), depende fundamentalmente ou da bem-aventurança do berço ou do exercício obstinado da falta de escrúpulos — quando não de ambos. Prisioneiras dessa carapaça de interesses, as energias da nossa gente continuarão a ser gastas na mera reprodução de uma vida sofrida ou sofrível em nossas cidades tristes, condenada a inventar alguma alegria no simples fato de deixar para trás mais uma eleição em que as propagandas eleitorais permitiram ver parte do muito que poderia ser feito não fosse o que é desviado para satisfazer aos interesses imediatos e estratégicos de quem pagou a produção das belas imagens.

6,5% ou 3% ?

A INDECISOS E A ENRAIVECIDOS

Carlos Novaes, 22 de outubro de 2014

Há dois sentimentos fundamentais nesta eleição presidencial, a raiva e a indecisão. Ainda que por caminhos diferentes, eles tem a mesma origem: a notável semelhança entre as duas propostas finalistas. Por um lado, para a minoria dos mais judiciosos que ainda não se definiram por votar branco ou nulo, a semelhança entre Dilma e Aécio não poderia deixar de gerar indecisão. Por outro lado, essa mesma semelhança gera raiva numerosa por três razões: primeiro, as pessoas estão frustradas porque queriam mudança e sabem que não a terão; segundo, e por isso mesmo, porque elas se vêem demandadas a fundamentar (pelo menos para si mesmas) uma escolha entre opções tão semelhantes e, assim, terceiro, porque a fundamentação remeteria à descoberta de que não há muito onde se agarrar, o que exigiria o trabalhão de repensar tudo e acabar ficando… indeciso. Resultado: é mais fácil agarrar-se a interesses imediatos ou a antipatias e preconceitos epidérmicos, fazendo de tudo dínamo para a raiva, que vem disfarçada num engajamento aparentemente aguerrido — parece com 1989, mas não é. Naquela altura havia a disputa de dois projetos, pois a energia liberada na rebeldia eleitoral de 1974 havia se esgotado e o país estava em busca de uma alternativa para o problemão da época, a inflação, havendo em cena uma força política com ânimo transformador ainda não totalmente domesticado pela desigualdade, o PT.

Como já argumentei amplamente aqui, esse período de busca se encerrou em 1994, com o realinhamento político-eleitoral induzido pelo sucesso do Plano Real, cujas energias, passados outros vinte anos e depois de terem devorado o próprio lulopetismo, estão, por sua vez, esgotadas. Não por acaso, neste segundo turno de 2014 o mapa eleitoral das preferências em Dilma guarda mais semelhanças com o de Collor do que com o de Lula daquele segundo turno de 1989; enquanto Aécio tem suas preferências mais acentuadas ali onde Lula também tinha as suas. Em outras palavras, Dilma tem mais o voto de quem quer conservar, enquanto Aécio tem mais o voto de quem quer mudar, pois estamos de volta ao governismo versus mudancismo, já que dessa vez não se apresentou nenhuma alternativa transformadora. Em outras palavras, 1989 foi a abertura de uma disputa entre conservação e transformação, disputa essa que foi resolvida em 1994 com a derrota da transformação em nome não do continuísmo, mas da mudança (com FHC), mudança que por sua vez se traduziu num pacto conservador incrementalista ao qual os antigos transformadores aderiram com sucesso em 2002 (Lula e sua Carta aos brasileiros), e ao qual burocraticamente ainda se aferram não porque seja uma boa alternativa para o país, mas porque é uma tábua de salvação para eles mesmos, aderidos que estão a um sistema político falido.

Os desafios para o país já não estão simbolizados na inflação, mas no sistema de representação política e no modelo de desenvolvimento. Mas os candidatos não chegam sequer a enxergar os desafios, que dirá oferecer uma alternativa e, assim, é nesse estado de coisas que a história parece ter entrado em suspensão nesse empate entre Dilma e Aécio, cabendo ao eleitor judicioso a tarefa hercúlea de encontrar diferença entre eles que justifique o voto. O debate da Record oferece algum material para esse escrutínio precisamente porque os contendores se deram conta de que a imensa maioria dos enraivecidos já se definiu — e em partes praticamente iguais para um e outro. Tendo deixado de alimentar raivas, os candidatos falaram de seu “projetos” e, então, apareceu um contraste que só pode ser encarado como diferença se deixarmos de lado todo o anacronismo que representa: a inflação.

Tal como os cônjuges de uma separação traumática se agarram na disputa ferrenha por um livro, um DVD ou um quadro, aos quais ninguém mais daria importância, e nem eles mesmos se, livres do recalque que induz à discórdia, se permitissem vislumbrar as possibilidades que a vida sempre oferece; tal como um casal assim infeliz, Dilma e Aécio encontraram na inflação (!), em torno da qual se definiu uma divergência primordial sanada com o recalque de 2002, o motivo para simular uma grande discórdia: enquanto ela exibe a confiança de que a inflação está sob controle, dentro da meta (o que não é mentira, mas tampouco é seguro, ainda que não central), ele insiste na fantasia de que o controle foi perdido e de que a “inflação está de volta, com as pessoas enchendo carrinhos em supermercado” (o que é puro embuste). Dilma, então, propõe que se mantenha o regime de metas atual, com desemprego de 5% e juros de 12%, o que é factível (desde que sobreviessem mudanças que ela provavelmente não fará), e Aécio propõe a meta de uma inflação de 3%, o que traz embutido um desemprego de 12% e juros por volta de 25%. Assim, mesmo ante as semelhanças entre os dois que já demonstrei aqui, um eleitor indeciso, ou a quem a raiva não toldou de todo a razão, pode fazer sua escolha colocando-se o problema de ou preferir arriscar um governo voltado a alcançar 3% de inflação ao custo de mais que dobrar desemprego e juros, ou aceitar os riscos de uma inflação de 6,5%, com desemprego e juros nos níveis de hoje.

Naturalmente, para tomar a decisão o eleitor deverá tentar antecipar os efeitos de espraiamento de uma situação e outra e, então, avaliar o seu bem-estar e o dos seus. Note que esse “seus” deverá ser definido pelo próprio eleitor: se mais egoísta, poderá considerar “seus” apenas cônjuge e filhos, por exemplo; se um pouco menos egoísta, poderá incluir entre os “seus” outros parentes ou até colegas de trabalho; e se muito altruísta, poderá encarar como “seus” todos aqueles que tem motivo para temer pelo próprio bem-estar material básico no dia de amanhã, grupo que pode incluir o próprio eleitor. Talvez uma boa trilha a tomar seja a que leva à verdade incontornável de que não existe almoço de graça e já há muita gente sem meios de comprar o almoço.

 

NOTAS

Revendo os debates tão diferentes e movimentados do UOL-SBT e da Record fica claro que: primeiro, os jornalistas não só não fazem falta, como é melhor sem eles; segundo, Aécio errou no UOL-SBT não tanto porque agrediu uma mulher, mas mais porque se conduziu como quem já ganhou e, terceiro, que pesquisas internas devem ter mostrado o problema, pois o tucano não perdeu oportunidade de na Record fazer petição de humildade ante a necessidade de ainda conquistar a preferência do eleitor. Essas variáveis comportamentais ganham peso especialmente quando não há diferenças claras de conteúdo.

Atenção para o que se passa no Rio – à frustração de mudança em cima pode corresponder, nesse eleitorado irrequieto, uma resolução por alguma mudança embaixo. Crivella pode deslocar Pezão.

Não há conteúdo plebiscitário na disputa entre Aécio e Dilma porque falta à disputa a marca dos plebiscitos: uma disjuntiva clara. O que o eleitor decide é qual o caminho menos ruim para tocar o que resta do Plano Real, não a implementação de um NOVO projeto.

A Folha de S.Paulo traz uma entrevista com ACM Neto, na qual ele adere à reforma política reacionária apresentada por Marina, que prevê coincidência de mandatos com eleições a cada cinco longos anos. Embora ainda moça, a ex-senadora já vai reunindo netinhos em torno da sua “nova política”: primeiro foi o neto de Irineu Bornhausen, depois o neto de Tancredo Neves e agora o neto de ACM.

Reproduzo entre aspas os últimos três parágrafos da coluna de hoje de Marcelo Coelho, na Folha de S.Paulo: “Voto nos dois. Acho que uma vitória de Aécio pode ter efeitos “amargos”, mas necessários, na macroeconomia, e tende a cercear a autocomplacência de um PT acostumado demais às práticas do poder. Acho que uma vitória de Dilma garante mais a expansão de iniciativas sociais, que não se resumem ao Bolsa Família.

Não voto em nenhum, se for para esperar controle real da corrupção, melhoria sensível na segurança ou na saúde pública. Todos sabem que, por mais que se tenha feito, falta muita coisa a fazer, e nenhum governo deixa de ter realizações ou omissões quanto a isso em seu currículo.

No resto, espero que todos os governos, próximos ou passados, municipais, estaduais ou federais, terminem as obras na Jacu-Pêssego. Caso já tenham terminado, sugiro que dupliquem as faixas então. É que vou ficando um bocado fisiológico também.”

O Bêbado e a Equilibrista

Carlos Novaes, 18 de outubro de 2014

 

Como já pude dizer em um (2009) ou outro (2014) post neste blog, PT e PSDB são duas vias eleitorais de um mesmo projeto, que vem se desdobrando desde 1994, quando o sucesso do plano Real consolidou um pacto incrementalista conservador como “saída” para o impasse em que então se encontrava o país, pacto este ao qual o lulopetismo explicitou sua adesão em 2002, com a obediente Carta aos brasileiros. Se, passados vinte anos, as duas forças ainda se digladiam com denodo é porque a desigualdade brasileira é de tal ordem que a arena política pôde se descolar dos sofrimentos do povo — a ação política organizada se tornou um método dos organizados para escapar a esses sofrimentos, não uma forma de luta contra o sofrimento intolerável enquanto tal: briga-se para estar lá, não para fazer isso ou aquilo, pois o fazer estaria dado, como se houvesse um diagnóstico único e uma receita não menos única. PT e PSDB são forças organizadas que atraem subforças não menos organizadas para ocupar o estado, sobretudo em proveito próprio. O resultado é que os muito ricos, que atendem pelo nome de “mercados”, donos do diagnóstico e da receita, sem deixar o exercício permanente de suas afinidades eletivas (daí, hoje, preferirem Aécio – mas “podem Dilmar”, ou “Marinar”, etc), vivem a situação confortável de ter à mão duas (e até três!) variantes para o exercício de seu domínio, concedendo que se ajude (com moderação, para não acostumá-los mal) os muito pobres a enfrentarem a mais básica das agruras que o ser humano partilha com qualquer forma de vida, a fome (a que ponto chegamos!). Por isso a estupidez inegável de quem quer encontrar na disputa atual um embate entre ricos e pobres. Não é, pois ricos e pobres são os pólos “satisfeitos” ou “atendidos” pelo modelo atual. Aliás, os sinais de esgotamento desse arranjo malsão entre “contrários” estão visíveis nas vias e enxovias urbanas em que nos atravancamos, em meio a sofrimentos cujo potencial de arregimentação política ficou visível nas manifestações de junho de 2013, ainda que elas não tenham apresentado um vetor claro.

Em outras palavras, ficou, permanece e permanecerá indecidido se a ida às ruas indicava um caminho sem volta ou significava uma advertência contornável. Ir às ruas é uma prática cujo sentido é dado por ela mesma. Seja como for, as manifestações colocaram na ordem do dia dessa disputa presidencial de 2014 a ideia de uma terceira via eleitoral que — por contraste (verdadeiro ou não) com as outras duas — sugerisse ao eleitor a possibilidade de um passo num sentido diferente. O trágico desaparecimento de Eduardo Campos introduziu um dado novo, pois alguém com a história de Marina Silva fazia pensar que se abria a possibilidade de que a terceira via eleitoral adquirisse o sentido de uma transformação. Mas como Marina entrou em cena com uma versão neoclássica do mesmo pacto, soldando reação com conservação, as esperanças foram fraudadas, o primeiro turno transcorreu como vimos e, agora, depois que o eleitor entendeu e descartou uma versão neófita especialmente ruim do arranjão, estamos mais uma vez entre as duas vias originais de um mesmo projeto inatual.

Dessa perspectiva, não há como negar nem que Marina conseguiu um lugarzinho no arranjo, ao esbagaçar no meio fio a perspectiva de uma terceira via, aderindo a Aécio (se ele vencer, ela haverá de ser ministra, levando os mais seus e repetindo o velho ciclo de organizar para se safar); nem cabe negar, eu dizia, que, em decorrência até do que precisou fazer consigo mesma para essa conquista pirrônica, Marina é feliz ao celebrar como equivalentes as cartas compromisso de Aécio e Lula. De fato, cada um a seu modo explicitou sua obediência ao plano comum, tendo ambos o cuidado de afagar o lado de onde poderiam advir desconfianças (afinal, infundadas):  Lula afiançou aos ricos que não alteraria os mecanismos de acumulação irrefreada e retenção ilimitada da riqueza (e cumpriu); Aécio garante aos muito pobres que não vai interromper o filete que lhes desce pela torneira (é crível, pois o PT “mostrou” que fica barato: basta dar sem mobilizar). Marina escolheu não o protagonismo de quem dá um passo adiante, mas a vanglória de ter sido a única que apoiou as duas cartas, o que orna com seu programa a um só tempo reacionário e conservador.

Esses são o papel e o barbante com que foram embrulhadas as diversificadas e complexas camadas médias, que mais adiante, talvez mais cedo do que se suponha, não poderão deixar de viver toda essa alienação como uma imensa frustração, sejam os mais pobres ou os menos pobres entre elas — haverá para todos: frustraram-se os transformadores, frustraram-se os mudancistas e frustram-se a cada dia eleitores de Dilma e Aécio, pois, se ignorarmos os boçais irrecuperáveis que há em cada “lado”, muito cedo a imensa maioria dos que se dizem partidários desse ou daquele não poderá fugir da constatação de que fez papel de boba nessa pantomima patética.

Marx, retocando Hegel, sugeriu que a história, quando se dá duas vezes, apresenta-se na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa. Mas para isso é necessário que, afinal, a história se dê. Quando ela entra em transe, quando o fluxo fica como que em suspenso, o que se tem em cena aberta é a tragédia encenada já como farsa, um ato que ao misturar choro e riso pode levar a platéia participante do espetáculo (nesse teatro em que os bancos sequestraram a agenda e os agentes da cultura) a constatar que é hora de chorar do que ri e de rir do que chora, embalo no qual ela pode reconfigurar a memória de seus sofrimentos intoleráveis e, então, resolver fazer história.

 

Resposta à Pergunta de um amigo:

Pergunta: – Novaes, afinal o que está acontecendo?

Resposta:

O que está acontecendo é mais ou menos o seguinte, suponho eu:
1. Como o pacto conservador gradualista supõe não mexer em cima e atender minimamente lá embaixo, Aécio aparece mesmo como uma versão do Lula – daí que seu documento se parece mesmo com a Carta do Lula : são versões de um MESMO projeto. Essa é a moldura em que se move a preferência do eleitor, tenha ele consciência dela ou não. Logo, a questão é escolher o melhor para fazer a mesma coisa, como o “conteúdo” das campanhas e dos debates deixa ver e martela diariamente – como não poderia deixar de ser, pois a moldura para os candidatos é a mesma que constrange o juízo do eleitor. A isso se chamava antigamente “ideologia dominante”.
1.1. Aécio não está mentindo quando diz que vai continuar o BF e o MCMV – sai barato;
2. Dilma se aferrou à defesa dos grandes números desses seus programas sociais – isso é uma armadilha porque:
2.1. ela só fala disso e, assim, na maior parte do tempo não fala com o miolão da “pirâmide”, que é pobre, mas não tão pobre a ponto de ser assistido pelo MCMV ou pelo BF — ou seja, Dilma não está falando com um mundão de gente;
2.2. os não assistidos ficam à espera de uma alternativa e, aí, Aécio surfa sem precisar dizer muito – basta ser a mudança;
3. Vai ser difícil derrotar o Aécio, mas não é impossível, pois a máquina tem muita força na hora H.
Um abraço.

PAÍS EMPATADO, NÃO DIVIDIDO

Carlos Novaes, 16 de outubro de 2014

 

Os debates realizados pela BAND e pelo UOL-SBT entre Dilma e Aécio mostraram os dois empenhados em questionar a credibilidade um do outro, não em contrastar propostas ou, muito menos, projetos para o país. É “mentiroso e mentirosa” prá cá; “desinformada e desinformado” prá lá, e tudo se passa como se houvesse um rol indiscutível tanto de problemas como de idéias para resolvê-los, cabendo ao eleitor não a tarefa de ajudar a pensar um outro país, mas apenas decidir pelo nome mais adequado para conduzir um estado de coisas que estaria dado e é encarado por ambos da mesma maneira.

Note leitor que não estou dizendo que eles não fizeram propostas. Sim, eles as fizeram, e são as mesmas faz vinte anos! Eles divergem apenas em dois aspectos, divergências que nascem do fato de que fingem acreditar no que querem que você acredite, isto é, que as forças que representam são alternativa real uma à outra. Primeiro, não conseguem se entender sobre o que um deve ao outro no legado comum, quando está óbvio que desde 1994 o país assiste a implantação de um mesmo projeto: o pacto incrementalista conservador iniciado com o Real, que já discuti aqui, no qual estão incluídas todas as políticas sociais compensatórias de que ambos falam, bem como todo o silêncio comum sobre os imensos ganhos que se continua a garantir aos muito ricos  — pólos de uma mistificação que deixa de fora a terrível situação urbana, delegada a prefeitos e governadores a quem o modelo mistificador sonega os recursos que permitiriam (se eles o quisessem…) enfrentar os problemas que as camadas médias partilham com os mais pobres, embora sem enxergar neles o único aliado com que elas poderiam contar.

Segundo, Aécio e Dilma brigam mesmo é na opinião que tem sobre qual dos dois é o mais indicado para continuar a tocar esse projeto comum. Por isso, o Bolsa Família de uma não passa de desdobramento das políticas do outro (“nasceu comigo”, diz um; “mas eu fiz um montão”, diz a outra); o combate à inflação do primeiro foi mais vistoso do que o da outra (“a minha era de 960%”; “ah, mas a minha vem sem desemprego grandão”);  o BNDES de um haverá de ser mais transparente do que o da outra (o que difere é a concepção da vitrine, não a política); o currículo e a carga horária das escolas técnicas de um são melhores do que os da outra, que, aliás, teria apenas copiado programas estaduais do primeiro [discutir a escolha de adaptar (mal) nossa juventude às exigências do capital, nem pensar]. Agora, o mais emblemático da mesmice é que o governo Lula de um é igualzinho ao governo Lula da outra, sendo que Aécio se apresenta, então, como um continuador mais confiável do que Dilma para o legado Lula! Enfim, a coisa toda é tão parelha que cada um joga sobre o outro a lama que ambos merecem: para a Petrobras de uma, há o Metrô do outro; para a Abreu Lima de uma, há o Sivan do outro;  para o porto em Cuba de uma há os ônibus para Cuba do outro; cabendo a ambos a glória mútua do respectivo Mensalão. Eles empatam e o Brasil segue empatado.

Nessa ordem de idéias, não faz nenhum sentido encarar os 51% de Aécio e os 49% de Dilma como evidência de que o país está dividido. Mais tolo ainda é dizer que o vencedor governará um país dividido. Dividido ele estaria se esses números refletissem a adesão a dois projetos, a duas visões de Brasil, a duas maneiras diferentes de mobilizar a memória em prol de um desenho alternativo de futuro. Não há nada em jogo senão o síndico e, por isso, depois da eleição cada um de nós voltará à rotina da qual não chegou a sair porque não foi chamado a nenhuma tarefa nova. Os números das pesquisas retratam não uma polarização, mas a ausência dela. Como não há nada grande e firme obrigando a uma escolha que realmente mobilize corações e mentes — limitação que frustra a ânsia por mudança partilhada pela imensa maioria (75%!!) –, as pessoas que não foram diretamente beneficiadas em sua miséria justificam sua escolha dando vazão a motivações epidérmicas, simpatias ou raivas pessoais, preconceitos geográficos ou de condição social (onde há quem pretenda ver luta de classes!), empregando, quando muito, raciocínios parciais truncados, voltados não a ajuizar a realidade de modo escrupuloso, mas a justificar para si mesmos uma opção que, no fundo, reconhecem não cobrir sua própria vontade de dizer e fazer diferente. Dilma e Aécio dividem igualmente a frustração de 95% dos brasileiros. Os outros 5% vão muito bem, obrigado, pois seus interesses foram defendidos pelas três principais candidaturas.

Oportuno observar que as pesquisas mais recentes trazem exatamente os mesmos números (51 X 49) dos levantamentos realizados na entrada do segundo turno. Ou seja, as campanhas de TV, os apoios recebidos e o debate não alteraram em nada o cenário, uma vez que a ausência de uma verdadeira alternativa no primeiro turno ensejou a que o segundo, desde logo, fosse apenas e tão somente o resultado inercial do que se passou no primeiro, vale dizer, ao eleitor não foi necessário fazer nenhum esforço para escolha nova. Não é por outra razão que os eleitores que foram de Marina no primeiro turno fizeram a sua escolha sem precisar conhecer os termos com que a candidata enfeitaria o apoio a Aécio que de antemão anunciara, no melhor estilo “velha política” (não obstante o enorme escrúpulo de dizer ao seu partido, a Rede, que o faria em termos pessoais – Ah, então tá!), uma operação cujo desenho anedótico não poderá ficar de fora da próxima edição do febeapá1. Para que o empate fique ainda mais claro, o DataFolha mostra que para cada eleitor que acolhe a indicação feita por Marina (não obstante não tenha precisado dela para se decidir), há um outro que repudia candidato apoiado por ela, isto é, tudo somado, no final da operação o apoio de Marina é irrelevante, irrelevância que é o resultado do que a candidata (des)construiu nessa campanha, como já pude discutir ampla e fundamentadamente aqui (ou aqui, aqui, aqui), e uma outra maneira de apresentar a frustração ante a ausência de um projeto de transformação, cuja oportunidade eleitoral foi um cavalo que ao passar encilhado nos deixou num empate2 que Chico Mendes repudiaria.

1 – acrônimo de Festival de Besteiras que Assola este País — publicação dos anos 1960, na qual Sergio Porto fazia jornalismo ferino inócuo contra a política convencional.

2 –  prática de luta dos seringueiros na defesa de suas terras contra ruralistas poderosos. Vale notar a sabedoria triste do nome “empate”: em razão da enorme assimetria entre as forças envolvidas, o máximo que se poderia alcançar ao risco da própria morte era um empate. Nossa tarefa é reunir forças para sair disso.

 

NEM TUDO SÃO CINZAS

Carlos Novaes, 07 de outubro de 2014

 

Pondo lenha amiga na fogueira das vaidades inofensivas entre Rio e SP, assinalo que vem delas os dois resultados eleitorais mais formidáveis para quem está farto do menu cartesiano que nos obriga a escolher entre a corrupção evidente, a violenta ordem dos moralistas de vitrine e os projetos retilíneos que não levam a lugar nenhum. A diferença entre as duas capitais em que nossa gente faz, em cada uma à sua maneira, a síntese do país, é que enquanto em São Paulo haja a aspiração elitista incubada de ser New York, o Rio parece mais coeso na inclinação de não ser senão ele mesmo, ainda que vez ou outra apareça um Lacerda ou um Eike encontrando paspalhos a lhes dar ouvidos para projetos de impor contornos de Miami à Cidade Maravilhosa.

Não vá o leitor imaginar que na comparação anterior pretenda eu diminuir SP. Longe de mim. Se faço a comparação naqueles termos é para antecipar que o exemplo alvissareiro vindo de SP nesta eleição é ainda mais radical do que o do Rio, ou não…? Afinal, se em Piratininga as contradições são vividas de maneira mais aguda, talvez porque não haja a amplidão dissipadora do mar, tinha de ser de lá, do solo bandeirante, que mais uma vez saísse em direção a Brasília (eca!) um Tiririca turbinado por mais de um milhão de votos, os votos de uma resistência mais do que debochada, e é o alcance desse mais que tem escapado à crônica convencional em torno do fenômeno, que está para além de ser apenas um palhaço a ilustrar a palhaçada brasiliense.

Convido o leitor a assistir pelo menos parte deste vídeo aqui, que traz uma performance do Tiririca clássico, ainda sem as cotas de baixeza e banalidade que o mercado humorístico sempre acaba por impor. Veja esse nosso impagável semelhante em conhecido programa de entrevistas a se mostrar tão fora de esquadro quanto a gente brasileira. A primeira coisa a notar é que a figura nordestina transpira saúde e vitalidade. Mas o detalhe sardônico é que esse vigor físico está contido em estado de potência desconfortável, retesado no que sugere uma urgência miccional, compondo uma metáfora ultra refinada da tensão permanente em que vivemos, especialmente quando em SP. Note que não estou me referindo à tensão da violência, em parte inventada pelo alarido da imprensa para fazer medo a toda gente. Não. Estou chamando a atenção para aquela tensão que nasce da aplicação unilateral e malsã da nossa energia vital, desperdício cujo alcance Tiririca catapulta, porque a ela associa uma cabeça de coruja que, ao se fazer de abestada, a um só tempo ironiza a ave noturna de Minerva e provoca em nós o riso iluminador e nervoso em torno do quanto de sem-sentido há dentro da expectativa pelo sentido que em vão buscamos ali —  o efeito é maravilhoso, e não há quem não o partilhe e sinta, especialmente quem não se ocupa de explicá-lo, como eu estou tolamente tentando fazer aqui.

Mas eu insisto. Observe que Tiririca faz uma pseudo encenação do contraste batido entre vigor físico e cérebro de ameba, e digo pseudo porque a ameba é falsa. A aguda inteligência intuitiva do personagem está em que a real e efetiva ausência de sentido se dá precisamente ali onde ela não se completa, porque cada um dos que a assiste sente-se duplamente impelido a socorrê-la: de um lado, rindo, e, de outro, não deixando de registrar que no fiapo de busca de sentido em que nos agarramos está toda a possibilidade de uma outra vida, uma outra realidade, com que então o riso explode numa gargalhada conjunta contra nós mesmos e contra todo o absurdo da existência organizada em que vivemos, qua organizada. Tiririca dá mais no que pensar do que toda a filosofia da USP — e não digo isso para menoscabar o sério e profícuo esforço uspiano, mas para dar ideia do quão sensíveis, e mesmo sábios, foram aqueles que reconduziram esse nosso semelhante aos salões do Congresso. Parabéns SP! Salve Tiririca!

Mas o Rio não ficou atrás e, de certa forma, foi mais longe, pois escolheu o Senado para aprontar. Observe leitor que ao passo que em SP a ausência de válvulas de escape fez com que o apronte se desse na linha do escracho; no Rio, a mesma vontade de aprontar se fez conduzir com a leveza serena dos velhos sambas. Quem assistiu à propaganda eleitoral no Rio teve um exemplo raro do contraste entre o Brasil presumido dos doutores e a ginga libertadora, ainda que problemática, dos diferenciados. Quanto mais César Maia se esforçava para advertir a nós, os néscios, da enorme responsabilidade que é escolher um Senador da República, mais Romário percorria as ruas do Rio como quem faz uma visita ao estádio em que um dia foi feliz. Enquanto Maia mobilizou todo o arsenal disponível da razão convencional para se mostrar conhecedor do estado e da sua metrópole, na ilusão de que o eleitor pudesse levar a sério o vínculo que o doutor pretendeu vender entre a sua eleição e a realização dos seus  alegados propósitos; o baixinho se apresentava como alguém do pedaço, que conhecia não os problemas, mas a sua gente, que trazia não exatamente soluções bem pensadas sobre como o Rio se dar bem na disputa federativa, mas antes chamava a atenção para a dimensão humana da nossa miséria comum.

Candidato da desordem disfarçada em ordem que infelicita o Rio, o ex-prefeito assistiu impotente Romário ultrapassar sua gravidade emprestada com o convite a uma ordem aberta à invenção, sem a violência da disciplina própria dos campos de confinamento, embora fantasiada de pacificação. Vai lá, Romário! Valeu Rio!

Tiririca no picadeiro, sem palhaçada; Romário em campo, sem concentração. Isso pode dar samba, o que não deixa de ser uma deixa de (re)começo.

QUANDO A MEMÓRIA MAIS ENTRAVA DO QUE INFORMA O FLUXO

Carlos Novaes, 06 de outubro de 2014

 

Neste segundo turno teremos de vencer mais um trecho da mesma trilha que vimos abrindo e, por isso, não se trata de uma nova eleição. Tanto à maioria de nós, para quem tratar-se-á de repetir a opção já registrada na urna, como aos que não se sentiram contemplados no resultado do primeiro turno, e se virem impelidos a uma outra escolha, num como noutro caso, a memória do primeiro trecho trará não apenas candidatos já conhecidos, mas a mesma mobília temática de que nos ocupamos por todo o caminho. Se a memória eleitoral se impõe de uma eleição para outra mesmo nos pleitos para os legislativos, como já argumentei aqui, mais imediatamente nítida ela se põe para o voto de quem escolhe uma alternativa para a presidência da República entre dois turnos. Infelizmente, porém, neste segundo turno, em que não chega a haver uma disputa de projetos, nossa memória não será desafiada a novos arranjos e, assim, já não há qualquer possibilidade de um fluxo novo, na forma de uma transformação.

Atendendo a pedidos, este texto é uma tentativa de explicar melhor o entendimento acima. Embora vá aqui a despretensiosa contribuição de um blogueiro, não posso deixar de registrar meu reconhecimento ao que pude ler do prof. Fábio Wanderley Reis, autor da interpretação mais fecunda que conheço sobre a relação entre percepção popular e preferência eleitoral no Brasil. Prudente e oportuno acrescentar, porém, que nem vejo as linhas que se seguem como uma aplicação da visada teórica de Reis – não são; nem me acho entre aqueles que estão de acordo com as mais recentes opiniões do professor, como, por exemplo, as expressadas em artigo publicado na véspera desse primeiro turno na página três da Folha de S. Paulo, onde Reis, em derivação só aparentemente necessária da sua teoria, ao passo de negar a necessidade de os candidatos apresentarem programas de governo, parece se render à existência implausível de um suposto lulismo como fenômeno duradouro com força explicativa para alguma coisa relevante no comportamento eleitoral do brasileiro. Mesmo que programas de governo sejam, em geral, peças de vitrine com pouca ou mesmo nenhuma correspondência com o estoque, eles são sinalizadores úteis, ainda que não se deva deixar de reconhecer a importância do ajuizamento não letrado: por exemplo, a mim pouco importou se Marina, uma vez eleita, iria ou não levar adiante sua estapafúrdia reforma política de coincidência eleitoral com mandatos de cinco anos; o que importou foi descobrir que ela não sabia do que estava falando, e num tema que era central para uma candidatura que alardeava uma “nova política”. Naturalmente, essa foi uma verificação que só foi possível para quem sabe ler, mas, afinal, programas não são escritos para quem não o sabe, não sendo de desprezar, porém, nem os avanços havidos na escolarização do brasileiro médio nos últimos 40 anos, nem a interação entre os que sabem e os que não sabem ler. Quanto ao lulismo, espero que as linhas que se seguem deixem mais claro o que eu já disse aqui. Entremos na matéria.

A memória é uma teia da qual o EU é a aranha, e cuja plasticidade nem ao passado deixa em paz. É dela mesma, de seus próprios rearranjos, que saem não só os grandes intervalos de continuidade, mas também os momentos de alteração profunda no comportamento eleitoral, sempre possíveis, mas raros, como a experiência está sempre a nos mostrar. A oportunidade para grandes mudanças nasce do sofrimento. Se ele é vivido como insuportável, temos a revolução, pois diante do insuportável não há escolhas entre caminhos, pois a via unilateral da ação direta contra o mal se impõe em fluxo puro. Se intolerável, o sofrimento dá lugar a alguma escolha, no âmbito da qual poderá haver ou não uma transformação, que dependerá fundamentalmente da existência de vetores organizados propondo a ação transformadora. A grande diferença entre o insuportável e o intolerável, portanto, é que enquanto no primeiro a ação revolucionária se impõe sem precisar de proponentes, já que dispensa memória; no segundo, a transformação requer a ação da memória na forma de uma ou mais propostas que convidem a um caminho em fluxo novo, mas partindo do trecho já vencido na estrada que se quer deixar para trás. Até onde posso enxergar, nós estamos vivendo um período propício a um raro momento desse tipo, em que a efervescência eleitoral pode levar a um sólido realinhamento em favor da mudança, mas ainda não se organizou proponente à altura e a possibilidade de transformação vai sendo desperdiçada, ora porque se está aquém dela, reagindo à mudança; ora porque se está além dela, pregando uma revolução.

Nos últimos 40 anos tivemos apenas dois outros momentos como este, em que houve um realinhamento eleitoral com potencial transformador: em 1974 e em 1989-1994. No primeiro, sofrendo o intolerável ajuste do primeiro choque do petróleo, ocorrido em 1973, nosso povo deu tudo que pôde dentro dos limites estreitos do que lhe foi oferecido pelos políticos e o que lhe vedava a ditadura, e surpreendeu ao conferir uma vitória eleitoral esmagadora à oposição da época, dando ao MDB nada menos do que 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, explicitando que o regime paisano-militar estava ferido de morte. Embora não pudesse alcançar uma transformação, esse realinhamento eleitoral espontâneo levou, entre outros desdobramentos, às vívidas eleições de 1978, onde FHC concorreu pela primeira vez ao Senado, e com o apoio de Lula, então um jovem e promissor sindicalista do ABC; e à conquista da Anistia, em agosto de 1979. Ainda no evoluir desse fecundo veio do movimento eleitoral de 1974, desencadearam-se forças novas, que vieram à tona medindo-se entre si e com as forças do atraso, embalo no qual se deu a criação de sindicatos, centrais sindicais e toda sorte de organizações da sociedade civil, com destaque para os novos partidos, dentre eles o PSDB e, principalmente, o PT, amalgama de carisma com estrutura burocrática nacional que já explorei aqui há mais de vinte anos, cabendo ao leitor avaliar a acuidade com que então apontei o esclerosamento precoce dessa formidável invenção política.

Na mesma ordem de desdobramentos, houve a campanha pelas diretas-já, em 1984, cuja derrota comprimiu a energia que vinha ganhando voltagem desde 1974, empurrando todo o conjunto para o estuário dessa ebulição, que foi o processo constituinte, saído da eleição de 1986, na qual o PMDB, sucessor do MDB, beneficiado pelo plano cruzado, que reavivou a memória de reconhecimento do partido como a ferramenta dos “interesses do povo”, obteve uma segunda vitória esmagadora, ainda no bojo do realinhamento eleitoral havido em 1974. Promulgada a Constituição de 1988, filha temporã desse legado de 74, no ano seguinte houve a campanha presidencial de 1989. Em razão da ruinosa ambição tacanha de Sarney, que obtivera um quinto ano de mandato, a eleição presidencial de 1989 correu solteira, sem conexão alguma com eleições para qualquer outro cargo. Essa circunstância levou o pleito a um certo desengate do legado de 74, uma vez que os candidatos a presidente não foram amarrados às, ou não puderam contar com, estruturas de campanha que a disputa pelos cargos intermediários põe em campo, o que contribuiu muito para que os dois finalistas fossem Collor e Lula: o primeiro porque, tendo recebido apoio prévio de poderosos grupos de comunicação, já era bastante conhecido do eleitorado e largou em vantagem, podendo se dar ao luxo de chegar por cima; o segundo porque era o único a dispor de uma estrutura nacional, naquela altura ainda não dependente do interesseiro jogo eleitoral miúdo para ser mobilizada a trabalhar, e de graça — um quadro que tive oportunidade de explorar aqui. Para o que nos interessa neste texto, um dos resultados mais importantes dessas circunstâncias foi que Lula, tendo passado ao segundo turno com apenas pouco mais de 16% dos votos, teve franqueado a si um eleitorado de setenta milhões de eleitores, responsabilidade que ele acabou por não suportar mas que, além de ter deixado uma memória valiosa, indicou, e isso talvez seja o mais importante, que o legado de 1974 havia se esgotado e um novo realinhamento estava a se impor, havendo que disputar se de direção conservadora ou transformadora, ou seja, se preso à memória contra o fluxo ou se voltado à reconfiguração da memória em favor do fluxo.

Como se sabe, naquele segundo turno, os donos do poder, manejando o controle dos grotões e apoiados no medo de camadas médias conservadoras, se saíram vencedores com Collor, um improviso tão ruim que nem a eles serviu de modo duradouro, mas que, no vácuo que a todos desafiava, se prestou a impingir uma derrota aos transformadores, naquela eleição representados por Lula, Brizola e, de um modo bem diferente, mas não menos ruptural, Covas. Voluntarioso no trato e voluntarista na ação política, Collor logo perdeu apoio popular com o malogro de mais um desastrado pacote anti-inflação, seguido da perda de sustentação parlamentar, pois ao desgaste com setores do capital descontentes com suas políticas vieram se somar evidências de corrupção que já não encontravam muita gente disposta a esconder. Sobreveio o impeachment e inaugurou-se outro período de incertezas em que a inflação sem freio há quase duas décadas, que havia devorado meia dúzia de pacotes econômicos de estabilização, articulava em alto grau o sofrimento intolerável da vez, já nessa altura ameaçando a própria ordem em que se davam os negócios dos de cima. Ou seja, a inflação havia adquirido um caráter simbólico e já representava muito mais do que uma corrida de preços — é com esse tamanho que ela deve ser lida quando mencionada neste texto.

Como camarão que dorme a água leva, e nossa classe dominante nunca foi de dormir no ponto, foi em torno do combate à inflação que se iniciou, em 1993, a preparação de uma resposta conservadora ao vetor transformador que tomava impulso na cada dia mais competitiva candidatura presidencial de Lula, que como desdobramento da votação obtida no segundo turno de 1989, chegou a ter mais de 40% nas pesquisas eleitorais no início de 1994. Essa dianteira era vivida como um desenlace quase inercial do período, pois o sofrimento popular era intolerável e o PT canalizava toda a negação da ordem malsã instalada, uma vez que, além de simbolizar a oportunidade perdida em 89, havia se recusado a participar das variantes de acomodação oferecidas antes e depois daquele pleito — a inflação empurrava a um realinhamento e Lula aparecia como o protagonista natural desse processo, que convidava à transformação precisamente porque permitia articular em alto grau a tensão entre memória e fluxo.

Alarmados com cenário tão desfavorável, os senhores do dinheiro foram buscar nas fronteiras do outro lado pistas para o caminho da salvação — chegara a hora de Fernando Henrique Cardoso, investidura cuja análise fiz a quente, em 1994, num artigo enviado à Folha de São Paulo, que não o publicou, mas que agora pode ser lido aqui.

Naquela altura, vinte anos depois que o povo instilara na dinâmica política a seiva para a qual a ditadura paisano-militar não tinha antídoto, o êxito econômico e político do Real viria a arrastar o eleitorado a mais uma mudança radical de preferências que, ao desfavorecer Lula, tomou a direção oposta à transformação e ainda orientado pela mudança deu a FHC uma vitória em primeiro turno contra os transformadores, que não tínhamos sabido avaliar a extensão e a profundidade do impacto benéfico do controvertido plano de estabilização, especialmente sobre os estratos mais sofridos da população. Ao contrário de nós, que julgávamos ter a fórmula da saída, nossos adversários tiveram a humildade de aprender com seus próprios erros, e ao invés de recorrer a mais um pacote para contornar a ira popular, elaboraram um plano que embrulhou nosso povo num engajamento limitado, é certo, mas muito superior à adesão ao papel de “fiscal do Sarney” (iniciativa ridícula, mas que permitiu enxergar o quanto havia na população de disposição represada ao engajamento no trato da coisa pública em momentos de crise); e muito superior, eu dizia, pelo engajamento cognitivo que requereu de cada um para que fizesse a correspondência entre os preços dos produtos e as tabelas de referência-URV, que emanavam diariamente do governo, numa rica significação da interação simbólica entre o estado e o povo, interação essa que se dava, sem que fosse preciso hostilizar ninguém, de maneira direta e sem o automatismo da vida cotidiana fundada no hábito, pois vinha articulada à contagem detida de nada menos que o dinheiro, a sempre escassa mercadoria universal. Àquela altura, estava acima das nossas forças desmanchar o arranjo.

Ao conseguir inverter a direção do realinhamento em curso, os tucanos derrotaram Lula já no primeiro turno, êxito que se repetiu também em 1998, mesmo sob condições bem mais adversas, pois havia um cenário eleitoral menos amigável, para dizer o mínimo. Enfim, o eleitorado fizera um novo realinhamento de largo curso e dirigido sua preferência para a força política que o aliviara de uma carga intolerável. Ciente do que estava em jogo, ainda que não com toda a clareza que o tempo sempre proporciona, o sociólogo na presidência instaurou um período de pactuação em que, sem deixar de favorecer aos de cima, instou o Estado sob seu comando a olhar pelos mais pobres, colocando uma ou outra estaca adicional ao plano Real, na forma de programas sociais compensatórios, ainda que sem enfrentar a desigualdade. Enfim, passados 20 anos havíamos mais uma vez dado início a um realinhamento eleitoral, cujos protagonistas não por acaso eram a ala menos conservadora do partido que se beneficiara do realinhamento anterior: o PSDB, como se sabe, saiu do (P)MDB, partido que só mais adiante iria se ajustar ao curso do novo realinhamento ocorrido pela ação dos seus dissidentes. A essa altura da narrativa é indispensável registrar que se o plano cruzado tivesse dado certo e logrado debelar a inflação, a acachapante vitória do PMDB nas eleições de 1986 teria re-alavancado o realinhamento eleitoral de 1974 e muito provavelmente Sarney teria tentado já então incluir na Constituição o dispositivo da reeleição para presidente. O fato de o candidato do PMDB à presidência em 1989, o notável e emblemático Ulisses Guimarães, ter obtido menos de 5% dos votos foi mais uma indicação de que o malogro do cruzado selara o fim do realinhamento de 1974.

Depois de marchas e contramarchas, a força transformadora burocratizada e oligarquizada digeriu as derrotas sofridas na forma de um aprendizado que, infelizmente, incluiu elementos de capitulação, sobrevindo recuos diante de compromissos centrais à transformação. O lulopetismo entendeu corretamente que estava além das suas forças mover a seu favor a chave dos trilhos do realinhamento eleitoral operado pelo Real. Porém, ao invés de buscar entender o fenômeno para melhor se dirigir aos de baixo e com eles articular um vetor de ação política, o que implicaria adiar sine die um desfecho eleitoral favorável, mas, em troca, manteria em perspectiva a opção da transformação, ao invés de perseverar, eu dizia, o lulopetismo decidiu por realinhar a si mesmo na direção de concessões aos de cima, ajustando-se de maneira quase clássica ao adverso realinhamento eleitoral havido. O resultado publicitário foi a Carta aos brasileiros e a escolha de José Alencar para vice de Lula, num arranjo conservador que abriu alas à vitória de Lula em 2002.

Recapitulando, sem poder escapar da agenda governista que havia sido imposta pelo Real oito anos antes, nas eleições de 2002 o lulopetismo se rendeu ao pacto conservador incrementalista em curso desde 1994, apenas se apresentando como quem poderia fazê-lo melhor. Romper o continuísmo governista foi possível porque uma crise internacional, combinada a dificuldades fiscais engendradas pela própria dinâmica do Real, havia complicado o equilíbrio frágil do arranjo de FHC, o pai do Real, programa que promovera um realinhamento eleitoral nas camadas médias de tal ordem que o Lula que em 1989 já havia conquistado pouco menos de 50% dos votos para presidente contra Collor, e no início do ano eleitoral de 1994 chegara a ter 43% das preferências, depois de se contrapor ao Real viu seu eleitorado, realinhado na direção contrária, abandoná-lo. Em suma, em 2002 o realinhamento eleitoral de 1994 trocou de governo, mas sem mudar de sentido e tampouco de direção, impondo uma lógica que balizou todo o período Lula, seja nas medidas ortodoxas de contenção de gastos do primeiro mandato, na manutenção de políticas sociais compensatórias sem desafiar a desigualdade, na manutenção do regime de metas de inflação; ou ainda no continuísmo de que são exemplo a troca de dívida externa por dívida interna, a flexibilização do monopólio da Petrobrás sobre o petróleo, a capitalização do BNDES em favor de grandes grupos econômicos, o lugar central que o PMDB adquire aos poucos na sustentação do governo, a manutenção de uma partição federativa das receitas tributárias que nada tem de federativa, etc; enumeração de escolhas que não quer dizer que o autor considere todas erradas.

Uma vez na presidência, o lulopetismo se mostrou um confiável e competente gestor do pacto conservador, cujo protagonismo arrebatara aos tucanos e, beneficiado por uma situação econômica internacional favorável, pôde obedecer ao realinhamento do Real aprofundando o pacto nas duas direções de seu vetor principal: prá cima, os ricos nunca ganharam tanto dinheiro; prá baixo, aos pobres nunca haviam sido destinados tantos benefícios, não sendo necessário dizer qual dos dois pólos se dava melhor. Espremida entre os dois, a classe média assistiu à degradação da vida urbana em que penosamente sobrevive na forma de mais violência, transporte caótico, falta de saneamento, etc, pois, afinal, alguém tinha de pagar a conta de um combate à pobreza que não só não mexe no dinheiro já acumulado pelos de cima, como, pior, tampouco altera a ordem econômica no sentido de liberar as energias retidas nos mecanismos que engendram e protegem um modelo de acumulação perversa. Assim, em razão do ajuste do lulopetismo aos trilhos do realinhamento proposto e obtido pelo Real, na reeleição de 2006 Lula trocou de eleitorado ou, por outra, o eleitorado trocou de candidato, mas não de preferência, isto é, o ex-metalúrgico ganhou os mais pobres e perdeu parte das camadas médias, inversão que alguns analistas tomaram por um novo realinhamento eleitoral, quando quem se ajustou foi o lulopetismo, não o eleitor.

Nos parágrafos numerados a seguir julgo esclarecer que os dois governos de Lula se deram sob obediência ao realinhamento eleitoral havido em 1994 e que, portanto, não houve nenhum realinhamento eleitoral sob Lula, o que torna implausível, ademais, o surgimento do presumido lulismo que corresponderia a esse novo realinhamento que não existiu:

1. – o eleitorado mais pobre continua onde sempre esteve, ou seja, apóia o governo que lhe favorece. Antes preferira FHC e Serra (pois em 2002, apesar de perder a eleição, Serra venceu Lula entre os mais pobres, que estavam alinhados com o Real e o governo FHC). Depois, em 2006, os mais pobres continuaram governistas e, por isso, migraram para Lula e o reconduziram, pois ele vinha sendo o presidente que os beneficiava nos exatos termos do pacto estabelecido em 1994. Ademais,

2. – os setores médios tampouco apresentaram qualquer realinhamento significativo na era Lula: a parcela deles à esquerda, minoritária, que antes da capitulação pragmática apoiava o lulopetismo, não concordou com a adesão ao pacto conservador e ficou onde sempre estivera, afastando-se de Lula ou emprestando-lhe apoio contrariado (daí a força inicial de Marina, que ela própria não entendeu); outra parcela, mais pragmática, que Lula havia arrebatado aos tucanos em 2002 com o ajuste conservador dele próprio, foi perdida em 2006 porque Lula, assim como FHC, não havia contemplado as suas expectativas materiais, ou seja, mais uma vez, esse pessoal ficou com a agenda que sempre tivera: havia deixado os tucanos porque eles não corresponderam, e adotado o Lula em 2002 — em 2006, mais uma vez decepcionados, deixaram Lula, mas conservaram sua própria agenda; uma terceira parcela dos setores médios, que já se alinhava com os tucanos, mas não apoiava as políticas de FHC em favor dos pobres (apenas as engolia), não viu razão para apoiar Lula, cuja agenda contra a pobreza era mais visível, e também ficou onde sempre estivera, até por achar que o que vai para os pobres deixa de vir para melhorar a situação urbana, que egoisticamente lhe interessa. Como não poderia deixar de ser, estes setores estão cegos para a necessidade de ir buscar os recursos mais encima, na bolsa dos rentistas, ação redistributiva que o tal pacto conservador veda e, por isso, dá à classe média em geral, progressista ou não, a impressão, de certo modo real, de que o socorro aos pobres se faz às suas custas, sem prejuízo de que há aspectos ideológicos repelentes orientando o que há aqui de raiva aos pobres.

Em suma, tanto quanto os pobres, os setores médios não apresentaram realinhamento eleitoral algum depois de 1994, ainda que quase todos tenham, em algum momento, trocado de candidato. Foi o lulopetismo que se realinhou e, em torno disso, todo o sistema girou. Logo, a longevidade do sucesso eleitoral dessa obediência neo-conservadora do lulopetismo aos termos da lógica incrementalista imposta em 1994 estará ameaçada se:

1. mais uma vez um cenário econômico internacional desfavorável trouxer problemas ao pacto conservador. Os sinais de deterioração são claros e decorrem também dai as dificuldades de Dilma de reter apoios — Marina cresceu por essa via, mas seu inconsistente projeto reacionário logo afastou os mais informados;

2. os setores populares pretenderem ir adiante do que o pacto conservador permite. Daí a acomodação burocrática do PT, que não mobiliza os pobres a quem ajuda — as pesquisas mostraram que até mesmo no Nordeste houve um ensaio de redirecionamento de apoio eleitoral nesta eleição de 2014, como se viu no desempenho inicial de Marina lá. Ou seja, mesmo ali não há lulismo, há governismo não inteiramente satisfeito;

3. parte dos setores médios não reacionários passe a reivindicar com mais força o fim da corrupção e a imposição de alguma perda aos muito ricos, em benefício da melhoria da vida urbana degradada. Evidentemente, por variadas que tenham sido suas motivações, foi justamente isso que se deu nas manifestações de junho de 2013: um claro sinal do esgotamento do pacto incrementalista e do realinhamento eleitoral que o acompanha, exatamente ali onde está seu tendão de Aquiles, as contradições do Brasil urbanizado refletidas desde a desigualdade. Foi aqui que Marina encontrou o combustível de arranque de sua subida vertiginosa inicial, que deu chabu pelo reacionarismo de suas propostas principais, em tudo contrárias a qualquer que tenha sido o espírito das ruas em 2013;

4. surgir uma alternativa transformadora viável, entendendo por viável uma proposta que, orientada pela sustentabilidade, privilegie os pobres, se centre em demandas urbanas, se contraponha à bandalheira política de forma crível e, muito importante, não busque enfrentar a todos os setores do capital (essa a limitação básica do PSOL e de toda a autointitulada esquerda) – um bom adversário seriam os rentistas, e/ou os ruralistas (Marina poderia ter sido essa alternativa, mas tomou o bonde errado e foi cair justamente no colo dos banqueiros e ruralistas, os Bornhausens da vida. Já Eduardo Jorge preferiu o lugar da consciência crítica que a todo tempo anuncia sua própria inviabilidade).

Como os muito pobres estão, e estarão, onde sempre estiveram (apoiam o governo que entendam que lhes favorece, e o abandonam se passam a entender que ele os prejudica, movimento este sempre mais difícil de fazerem porque o pouco que recebem sempre lhes parece uma dádiva), como os mais pobres são assim conservadores, o lulopetismo os mantém sob rédea curta e se apresenta como o máximo a que eles poderiam aspirar, explorando a coleira da gratidão. São esses pobres cheios de gratidão que podem ser ditos lulistas no sentido convencional, mas, para serem banalmente lulistas (ou seja, gostarem de Lula), eles não precisaram se realinhar eleitoralmente, Lula é que se realinhou para, como governante do pacto conservador gradualista, chegar até eles desde cima, na figura do benfeitor. Que tudo isso ganhou potência em razão da origem popular do ex-metalúrgico talentoso não resta dúvida, até porque os temores anteriores estavam, também, ligados a uma insuficiência de auto-estima dos mais pobres, quadro que já estava em mudança, do qual Lula se beneficiou, mas também ajudou a aprofundar com seu notável desempenho — reconfigurações que, aliás, mostram algo da limitação das análises baseadas na noção de “reconhecimento”, pois o que há é um crescente reforço da experiência do espelhamento entre iguais, não do reconhecimento vertical entre diferentes.

Mas nenhum desses aspectos de ordem simbólica justifica a confusão conceitual reinante. Afinal, se um realinhamento eleitoral digno desse nome, como os que tivemos em 1974 e em 1989-1994, se dá em torno de uma agenda, é de supor que os eleitores “realinhados” abandonem um governante que não corresponda a ela e se fixem numa oposição em que identifiquem a defesa dessa mesma agenda a que se apegaram. Se é assim, mesmo que tivesse havido um realinhamento eleitoral em 2006, não faria sentido chamá-lo de lulismo, pois mais adiante poderíamos ter a circunstância bizarra de ver o lulismo abandonando Lula (se ele viesse, por qualquer motivo, a “trair” a tal agenda fundante) e passando a apoiar um PSDB, um PSOL ou qualquer outro em que viesse a identificar um defensor da referida agenda. Aliás, seria nesses termos equivocados que, talvez, tivéssemos de descrever este segundo turno, pois parte do lulismo/governismo descontente pode passar a apoiar Aécio, troca de preferência por candidato que em nada contrariaria o realinhamento de 1994, como suponho já ter deixado claro. A confusão decorre, naturalmente, de que não se quer reconhecer as semelhanças siamesas entre o lulopetismo e os tucanos, e, por isso mesmo, da fixação de alguns na ideia de que Lula é um marco, em reverência ao qual teríamos uma tão anacrônica quanto implausível inclinação cesarista dos pobres (em paralelo com o Napoleão III do sacrossanto 18 Brumário, esquecendo-se, entre outros detalhes, de que estamos no Brasil urbano do século XXI, integrado pela TV e onde não houve revolução), inconsistência teórica que vem combinada com a certeza íntima de que o compromisso do ex-metalúrgico com os muito pobres seria alguma coisa como “inabalável”, já agora esquecendo-se o caráter propício da conjuntura internacional que todo mundo que tem juízo reconhece ter sido central para o “fenômeno”, e com o qual nem sempre se poderá contar.

Assim, faz 20 anos que os tucanos promoveram sem o saber um realinhamento eleitoral cujo protagonismo eles perderam por incompetência, mas não só, deixando que o recém-convertido lulopetismo passasse a hegemonizar o processo, agora em vias de esgotamento. O Real foi o marco do realinhamento eleitoral em vigor que orienta o pacto conservador gradualista ao qual um lulopetismo apressado de chegar ao poder escolheu se submeter, e cuja memória, inexplicavelmente abandonada pelos tucanos, Aécio vem buscando recuperar, ao que parece com não poucas chances de êxito (vamos ver como se comportam neste segundo turno os PMDBsss que saem das urnas do primeiro turno, os quais, vitoriosos ou não, já não dependem de ninguém).

Se Dilma ganhar em 2014, como vai ficando pouco provável, será menos por seus méritos e mais porque, ou Aécio não conseguiu enfeitar o programa comum com algum apelo democratista do tipo “vamos fazer juntos, tal como fizemos o Real”, ou terá sido pela razão que já conhecemos: o fato de que não apareceu nenhuma alternativa eleitoral com um projeto crível para superar os impasses do pacto conservador vigente, projeto novo que não poderá sugerir qualquer ameaça às conquistas alcançadas. Naturalmente, uma alternativa com essa ambição não pode se apresentar nem como confiável ao setor financeiro (esse personagem Lula já encarnou), nem segundo um modelo revolucionarista, sob pena de ficar relegada ao papel de propagandista de um programa que não pode deixar de ser encarado como inviável. Essa alternativa haverá de surgir do coração das lutas urbanas ecologicamente orientadas contra a desigualdade e para a liberdade. Por enquanto, vamos permanecer nessa inglória porfia de convés, numa caravela que só não ganha alto mar porque tem o oceano por lastro.

CARISMA, MUDANÇA E CONSERVAÇÃO

Carlos Novaes, ABRIL de 1994

 

APRESENTAÇÃO — 6 de outubro de 2014

O texto a seguir foi escrito pelo autor há mais de 20 anos e enviado à Folha de S. Paulo, que não o publicou. Sua circulação ficou restrita ao CEBRAP, onde o autor trabalhava na época, e a cópias impressas enviadas a alguns amigos. Publicado agora neste blog, ele me ajuda a deixar mais claro o apanhado histórico sumário que faço neste outro texto aqui, que é atual, de hoje.

Na altura em que o texto abaixo foi escrito, Lula era o líder disparado nas pesquisas, mas havia uma fragilidade óbvia na candidatura, fragilidade que era reforçada pela luta interna do PT, que levara uma ala da Articulação, corrente interna então majoritária no partido, a simular esquerdismo (até hoje é assim!) para assumir a direção partidária com apoio da ultra-esquerda petista, o que resultou num arranjo eleitoralmente contraproducente, pois o problema de Lula não era o de hoje, depois que ele se rendeu ao pacto conservador que FHC justamente logrou por de pé depois da vitória naquela eleição de 1994. Não. Naquela época Lula ainda aparecia como um reformista prá valer e, assim, tinha dificuldades para ultrapassar certas barreiras à mudança no Brasil, como, de fato, acabou por então não conseguir e, depois, por desistir. O texto abaixo reproduz exatamente o que escrevi, a quente, como resposta a um artigo de José Arthur Giannotti, que defendia a candidatura de FHC.

 CARISMA, MUDANÇA E CONSERVAÇÃO

No processo de impeachment, na CPI do Orçamento e no malogro da Revisão Constitucional se deram sinais eloquentes de que os padrões estruturais da política brasileira se alteram em benefício do avanço político dos progressistas e aguçando as dificuldades vividas pelos conservadores para traduzirem no plano da representação político-institucional a hegemonia que conservam na ordem social geral. A CPI mostrou, de um lado, que os progressistas tem capacidade de iniciativa valendo-se dos mecanismos legados pelo processo constituinte e, de outro, que embora os conservadores possam resistir protegendo indivíduos, já não podem preservar práticas institucionais anacrônicas. Na mesma linha, a Revisão mostrou conservadores sem capacidade de iniciativa coletiva e progressistas com capacidade de opor resistência institucionalmente eficaz. Em suma, desde a Constituinte se pode observar que a trama interna das nossas instituições funciona segundo uma estratégia sem estrategista, mas de sentido inequívoco: um patamar superior de gestão e coordenação da coisa pública. Condutas recentes do Ministério Público, do Judiciário e da Receita Federal oferecem evidências adicionais desse processo.

Esses episódios mostram o funcionamento da gramática política de que fala Giannotti em artigo publicado na Folha (caderno Mais!, 10/04/94). Embora de sentido nem sempre evidente, o jogo da representação vai progressivamente consolidando práticas institucionais que seriam impossíveis se a representação fosse o decalque dos interesses presentes na sociedade. A CPI do orçamento exibe isso à perfeição: embora os culpados mais notórios venham escapulindo de reproches mais duros — visto que a gramática não suportaria cortes muito fundos, pois ela é um jogo de políticos entre políticos –, tão cedo não se terá um orçamento emendado daquela maneira. No caso da revisão constitucional, só o delírio poderia presumir que ela gorou em função dos vetos da ortodoxia do PT, que pretendeu grandes mobilizações de massa e não realizou nenhuma. A revisão não foi adiante porque a complexidade de articulação dos interesses que a patrocinavam no Legislativo não encontrou denominador comum e esbarrou na ação intra muros dos que a ela se opunham.

O Brasil de 1994 assiste, estampado na disputa presidencial, ao esgotamento do modo de operar do sistema político que já  em 1989 claudicara. Ainda que se conserve uma opinião pública política eminentemente populista — isto é, que desdenha partidos e outras formas de mediação representativa e dê preferência à atuação de líderes fortes –, o sentido dessa percepção populista da política se inverteu. A diferença está em que pela primeira vez quem mobiliza as esperanças do fundo do tacho não é o candidato do capital, mas o candidato das forças progressistas das grandes cidades. Trata-se de uma solda inédita na política brasileira: o candidato que dialoga com as expectativas neo-messiânicas do grosso da população é produto (e agente) da modernização institucional engendrada no país nos últimos vinte anos.

A desorientação provocada por esse novo modo de apresentação da polarização política brasileira explica tanto a atarantada busca de um anti-Lula pelos conservadores, quanto o frasismo pseudo-radical da ortodoxia presente na direção do PT. No primeiro caso, o problema não estava exatamente na falta de um nome. Buscou-se em vão a peça de um jogo que já não pode ser jogado porque falta o tabuleiro. Habituado a uma receita infalível, o campo conservador se viu desprovido de um ingrediente fundamental, o carisma. Ao lado do poder do dinheiro, o carisma permitia o controle dos mecanismos fisiológicos de reposição diuturna do sistema político. Na ausência dele, perdido para o outro lado, buscou-se, depois de muitas cabeçadas, precisamente trazer desse outro lado a compensação: a respeitabilidade (e a modernidade) das mediações negociadas. Daí a intermediação entre Fernando Henrique Cardoso e as forças conservadoras, via PFL.

No caso do frasismo petista, a vantagem de Lula nas pesquisas vinha sendo festejada não como o resultado ainda frágil de um contínuo processo de transformações, mas como a possibilidade de uma ruptura completa com a ordem institucional que, afinal, garante a disputa. Essas expectativas desprezam três coisas fundamentais: 1. o carisma de Lula tem uma dimensão populista, embora não seja ele um populista; 2. a presença do petismo na esfera institucional faz do PT expressão importante dessa ordem que se quer transformar; 3. por essas e outras razões, um almejado governo Lula não é o limiar da superação do capitalismo.

O carisma de Lula é um fenômeno social cuja imensa complexidade só posso indicar. Há  nele um traço muito nítido: é um carisma que se expandiu através de mediações e de instituições. O magnetismo da liderança de Lula cresceu alimentando-se da dinâmica virtuosa da modernização política do país e jamais dependeu de formas diretas de marketing operadas em aparições de mídia, salvo aquelas que derivam do próprio fato de ele ter estado no centro dos acontecimentos mais importantes de nossa vida política recente. Os contingentes esfarrapados que acorrem às caravanas de Lula não estão sendo manipulados por alguém que simula o empenho pela mudança a serviço de uma ordem cuja conservação secretamente urde. Não estão tendo suas fantasias aumentadas com promessas absurdas. A ilusão não vem por ai. A ilusão aparece na ausência de medida para calibrar as expectativas da mudança almejada. A marca do carisma de Lula não é a conservação, mas a incerteza.

Como o conservadorismo não conta com o carisma populista, recorre a um tipo de negociação que ganha a descompromissada forma da conversa. Fernando Henrique tem dado a impressão de que negocia, quando na verdade abafa o horror a um projeto reformista que ameaça um modelo de gestão da riqueza tão confortável quanto injusto. Nossas elites só irão negociar quando o Estado estiver sob a coordenação inédita de forças hostis ao seu desfrute de mando político combinado com poderio econômico. Essa é a condição da negociação, pois negociar implica fazer um movimento na direção de quem tem poder para agir diferente. E é só por isso que Giannotti tem razão ao dizer que para governar Lula terá de ir para a direita. Mas se é assim, o apego de Fernando Henrique à coerência não oferece garantia correspondente do outro lado, como pretende Giannotti ao igualar indevidamente em força um movimento objetivo, próprio dos constrangimentos da representação, e um movimento subjetivo, que mesmo um Goethe não poderia garantir. Uma vez na presidência, a coerência não é dada pelas veleidades subjetivas do titular, por mais intelectualmente fundamentadas que sejam, mas pela tessitura social e política que consubstanciou a investidura no cargo, configurada em uma gramática política que se não é o decalque dos interesses, tampouco conforma uma arena isolada da dimensão substantiva da atividade dos interessados.

A disposição — ou a percepção da necessidade — de negociar que Lula exibe junto com setores hoje minoritários na direção do PT, simbolizados por Erundina, Genoíno e Mercadante, que são amplamente majoritários na sociedade civil petista, não é  acompanhada pela maioria ortodoxa da direção do partido. A incerteza embutida no sucesso de Lula atinge os frasistas do PT em justaposição à maneira como intranquiliza o capital: imagina-se que ela significa uma revolução, subestimando-se os elementos de continuidade que a constrangem, para bem e para mal. Como quer que seja, Lula e seus aliados internos sabem que o que está  em jogo não é a continuidade da ordem do capital no país, mas o seu padrão de gestão pública. Não estamos vivendo uma Revolução, evento que destrói as mediações institucionais conhecidas, altera vertiginosamente as identidades coletivas, desarranja o processo de produção e desestrutura a auto-imagem dos indivíduos. O Brasil vive uma agudíssima crise política, acompanhada de forte turbulência institucional, mas não há crise de hegemonia. Nenhuma força política relevante questiona, por exemplo, a existência ou a disposição atual dos três poderes da República; o princípio da propriedade privada não está em cheque; a busca do lucro não perdeu legitimidade etc.

As forças que instrumentalizam no PT os resíduos confusos de uma ideologia inatual tornaram-se maioria beneficiando-se também do populismo presente no carisma de Lula, que jamais disputou abertamente esta ou aquela opinião nos debates internos. Vivendo a ilusão de ser a expressão depurada da luta interna do PT, Lula não fez caso de que a máquina do partido vinha sendo engessada por uma oligarquia avessa aos compromissos que sua inserção na política brasileira impõe. O risco mais dramático dessa omissão, cujos danos foram reforçados pelo elitismo de outras lideranças petistas, que subestimaram o poder intrigante dos mercadores ideológicos, é o descredenciamento do PT como instituição de mediação entre Lula e os interlocutores do centro.  A continuidade da trajetória virtuosa do PT na sociedade brasileira requer que o partido multiplique a capacidade de negociação do candidato. Mas para isso é necessário que os mandarins da máquina petista percebam que o sonho de escapar do segundo turno não pode velar a existência do terceiro: a formação de um governo viável, o que inclui o centro.

À medida que, apesar de tudo, Lula avança, a direção do PT vai ficando para trás. Se o candidato for bem-sucedido apesar da direção do partido, o risco é o reforço da dimensão populista do seu carisma. Ao não se apresentar como complemento à expansão do magnetismo do candidato, essa direção mostra não se dar conta de que quanto mais eleitores se voltam para Lula, mais aumenta a superfície de contato dele com a cultura política com que ele está em permanente tensão. Naturalmente não é o caso de rejeitar esses votos, mas é indispensável levar em conta as expectativas desmedidas que uma tal adesão gera. Mas como a aposta de fundo é numa ruptura, essa efervescência é vista como benfazeja, negligenciando-se a matriz populista que também a alimenta. Na “participação popular” idealizada no programa petista, em si mesma positiva, o exercício da cidadania é imaginado como se fosse uma grande aspiração latente nas massas, porém represada, bastando criar os canais para que o fluxo jorre. Não é assim. As pessoas terão que descobrir a cidadania, aprender a interessar-se pela coisa pública, e isso requer tempo, muito tempo. Além disso, e a partir disso, imagina-se uma polarização política cujo grau de enfrentamento é muito alto se considerarmos a disposição conservadora do eleitorado. Ainda que a maioria dele visse em Lula, já no primeiro turno (como sonhavam alguns), a materialização de suas expectativas de mudança, não é provável que o voto indicasse, na maioria dos casos, mais do que a escolha daquele que vai resolver para o povo os seus problemas.

Parte da militância dirigente do PT ainda está prisioneira da velha ideia de que o objetivo da luta popular é destruir o Estado burguês, como se o receituário válido para outros tempos, quando a presença organizada dos trabalhadores era irrisória na sociedade burguesa, não tivesse se mostrado inadequado diante dos novos arranjos verificados com o advento das franquias democráticas. É dessa dificuldade da direção do PT para valorizar as mediações institucionais que Giannotti parte para indigitar como anacrônica a “participação popular” prevista no Programa de Governo do PT. Documento que reúne contribuições de origens as mais diferentes (e opostas), esse programa abriga parágrafos que se desmentem. Por isso, discordo igualmente do professor Paul Singer que, em artigo publicado também na Folha (caderno Mais!: 17/04/94), contrapõe aos argumentos unilaterais de Giannotti frases do Programa em que se valoriza a representação institucional. O PT não é nem só o que Singer elogia, nem só o que Giannotti critica. Documentos partidários não legislam sobre a prática do partido; é a prática que confere sentido aos documentos. Por isso mesmo, ainda está  em disputa o sentido final das passagens que ambos citaram.

Sejamos materialistas. Do final dos anos 70 para cá  petistas de todos os matizes, ao lado de outras forças democráticas, realizaram uma grande obra institucional, exercendo sua vocação para construir novas instituições. Formaram associações populares e associações sindicais, multiplicaram o sindicalismo rural, construíram a mais importante central sindical do país, deram passos importantes para estruturar uma central de Movimentos Populares e ergueram um partido político digno de se chamar assim. Além disso, somaram esforços para a consolidação de outras formas de ação coletiva não clandestina, como o Movimento Negro, o Movimento das Mulheres e a União Nacional das Nações Indígenas, e participaram com sucesso de muitos movimentos institucionais com dimensão de massas, sendo as Diretas e o impeachment os maiores exemplos. Tudo somado, não há como fundamentar a idéia surrada de que Lula simboliza uma utopia. Pode haver proposta que melhor articule realismo e criatividade do que as Câmaras Setoriais?

As críticas que se tem feito ao PT omitem esse lado essencial da sua trajetória, tomam a nuvem por Juno. A fragilidade numérica e a estreiteza teórica da maioria dirigente atual não pode rivalizar com a riqueza dessa história. Além disso, essa maioria não conta sequer com unidade ideológica. Pelo contrário, ultimamente nomes proeminentes tem gasto boa parte do seu tempo buscando a fórmula que lhes permita compor com Lula sem caírem em descrédito diante daqueles que os conduziram à direção exatamente porque defendiam posições “duras”. Reveses recentes destes grupos — como na derrota de sua proposta de moratória da dívida externa e na tentativa malograda de excluir parágrafos que davam ao programa de governo do PT um caráter reformista — deixam claro que a realidade vai agindo sobre o partido de modo a devolvê-lo ao leito de avanços trilhado até bem recentemente por uma militância ciente de que a inspiração inicial do PT foi a inventividade política a serviço da ampliação da cidadania dos trabalhadores. Sua motivação prática tem sido a de construir, não a de destruir. Seu dia-a-dia tem sido lutar por novos direitos, por instituições renovadas e por novas instituições. O PT é bom nisso e sabe que é por aí que o partido tem dado certo. O perfil de um governo Lula resultará  dessa intuição construtiva ditada pela prática.

A aposta que se faz aqui, portanto, não depende da coerência subjetiva de um intelectual respeitável que recebe o apoio preliminar dos conservadores, mas das forças sociais que dão carne ao partido e ao sucesso do candidato que ponteia as pesquisas. Defina-se como se definir o lado conservador, Lula é o candidato da mudança, ainda mais nitidamente do que em 1989. Quem votou em Lula daquela vez teria que motivos para deixar de fazê-lo hoje?  Afinal, em que o Lula de 94 está  aquém do de 89? Já no ano passado ele fora mais longe em conversas com outros setores do que o fez nos 40 dias que mediaram os dois turnos de 89. O PT daquela época era muito mais impermeável às exigências do exercício compartilhado do poder do que hoje, quando conta com número maior de quadros com experiência na administração pública. A solução encontrada para o caso Bisol mostrou Lula com capacidade de comando, sustentando como novo vice um nome não simpático à ortodoxia petista, embora sem a rapidez que só o autoritarismo permitiria.

A despeito da maioria atual na direção do partido, a ação negociadora de Lula e a disposição dos parlamentares e prefeitos petistas de jogarem o jogo da representação — como quando derrotaram a direção no embate da Revisão constitucional, ou como fez a prefeita Luiza Erundina ao não aceitar o dirigismo destes mesmos setores — permitem antecipar para um almejado governo com Lula na presidência da República um período de reformas profundas, baseado na negociação e reforçando a democracia. Propostas que provoquem disputas mais acirradas poderão ser levadas à consulta popular, empregando-se mecanismos democráticos como o plebiscito e o referendo. Se, aos olhos do leitor, a incerteza que permanece não se legitima como condição da própria democracia, que ele não a tema mais do que as certezas que o outro lado oferece.

NENHUMA ESPERANÇA

Carlos Novaes, 4 de outubro de 2014

 

Chegamos ao fim do primeiro turno sem que nenhum candidato nos tenha oferecido uma perspectiva de transformação, embora o esgotamento do modelo atual esteja claro e reclame um caminho novo. O impasse é nítido, especialmente se levarmos em conta que a situação econômica internacional não voltará tão cedo a nos franquear as vias de fluxo favorável que a crise interrompeu, e que foram aproveitadas pelos governos para dobrar a aposta no arranjo incrementalista conservador: oportunidades sem óbice ao enriquecimento dos de cima, estímulo ao consumo sem lastro das camadas médias, com diminuição da pobreza dos que continuam muito lá embaixo, equação que não permite enfrentar nem a desigualdade, nem suas consequências, pois para isso seria necessário se contrapor aos interesses dos muito ricos que nada produzem.

Quando falo de desigualdade tenho em mente a disparidade de renda que premia com o supérfluo do supérfluo uma minoria e condena metade da população à pobreza; quando falo em suas consequências penso sobretudo naqueles que não sendo pobres nem ricos, se vêem condenados a pagar os custos da permanência da desigualdade na forma de uma vida urbana infeliz, que é vivida desorientadoramente como se fosse um caos, quando é o resultado mais do que inteligível e quantificável de uma conta que não pode fechar: sem uma ordem econômica que impeça o luxo e o desperdício dos de cima e libere energia para o resto da pirâmide, não há como diminuir a desigualdade, ali onde ela é adversa aos pobres, sem ao mesmo tempo sonegar recursos para enfrentar as dificuldades vividas pelas camadas médias ali onde essas dificuldades são tarefas propriamente públicas e refletem outra face da mesma desigualdade: transporte humano, saneamento, infra-estrutura logística, etc. Por isso mesmo, a desigualdade não cai e, ainda por cima, a diminuição da pobreza é encarada por boa parte das camadas médias urbanas como algo que se faz às suas custas, no que não deixam de ter razão, embora o reproche deva ser remetido na direção oposta àquela para onde elas alienadamente orientam a sua raiva (contra os pobres).

O modelo em que estamos é tão atrasado que ao invés de enfrentar o “caos” urbano através de políticas públicas, os governos que o implementam largaram o espaço público como terra de ninguém e meteram-se na vida privada das camadas médias, estimulando-as a comprar automóveis e bens de consumo onerosos, conduzindo-as a um endividamento tolo, contraproducente e socialmente ruinoso; tolo porque, através de uma ideologia decadente, mimetiza o consumo ostentatório dos muito ricos, que lhes servem de espelho circense na outra ponta do espectro malsão; contraproducente porque esse endividamento precoce compromete o progresso dessas mesmas famílias; e socialmente ruinoso porque não convida essas camadas menos imersas na ignorância a enfrentarem junto com o poder público os graves entraves propriamente públicos à melhoria da sua qualidade de vida, sofrimento que carro novo nenhum vai permitir deixar para trás — aliás, muito pelo contrário, como os engarrafamentos deixam claro.

De um lado, as pesquisas que acabam de ser publicadas refletem a preferência do eleitor nessas horas finais que o separam da urna; de outro, o último debate entre os candidatos à presidência da República refletiu os candidatos ao final da trajetória que percorreram. Não por acaso, há grande correspondência entre as imagens, pois o desempenho dos candidatos provocou no eleitorado uma reação que corresponde ao impasse descrito mais acima e que, do ponto de vista propriamente eleitoral, pode ser resumido segundo duas limitações: primeiro, o eleitor vem há muito prisioneiro de um realismo rebaixado, onde a palavra de ordem é tolerar o sofrimento para conservar o pouco que foi obtido na batidinha mixa de um incrementalismo que não desafia a ordem estabelecida; segundo, nenhuma das candidaturas ofereceu uma alternativa a essa situação, seja porque postulam tão somente a condição de protagonistas desse pacto conservador, como é o caso de Dilma, Aécio e Marina, seja porque não foram capazes de dialogar com a insegurança do eleitor ao mesmo tempo em que propunham a mudança, como é o caso de Luciana Genro e Eduardo Jorge, cada um a seu modo, como veremos a seguir.

Dilma, 40%, 40%, 44% – a candidata aparece solidamente instalada num patamar que parece ser o seu máximo, o que corresponde inteiramente ao seu desempenho no debate: aparou com destreza amestrada os golpes sofridos precisamente porque eles não passaram disso, golpes, troca de chumbo. Nenhum de seus adversários a confrontou com o óbvio: as perdas e os riscos da absoluta ausência de imaginação dessa sua insistência em conservar um modelo cujas evidências de fadiga não podem ser escondidas. Mas como seus principais dois adversários querem apenas lhe tirar o lugar, estão impedidos de mostrar que não há lugar a ocupar, o desafio é convidar a sociedade para um outro lugar. Foi precisamente a condição de alvo que deu a Dilma a oportunidade de plantar-se e rebater com o binômio do fiz e vou fazer mais. A condição de alvo foi conveniente porque Dilma não fez um governo aquém dos de Lula por ser menos capaz do que ele, mas porque o modelo conservador, que vem de muito antes, já não pode conviver com as contradições que se acumulam, seja na esfera dos assuntos e equipamentos públicos, seja na vida privada, especialmente quando os astros internacionais já não se alinham de um modo favorável. Mas para ir além de Dilma, deixando o alvo para trás, seria necessário criticar o modelo e atacar sua fragilidade central: a intocabilidade dos interesses dos muito ricos improdutivos. Ninguém se habilitou e, então, ela chega ao segundo turno para, com novas imagens, repetir tudo de novo e tentar convencer mais alguns de que o mais seguro é não trocar a gerente e continuar marchando no pátio.

Aécio, 19%, 21%, 26% – Determinado a recuperar para os tucanos o posto de protagonista do modelo que viu escapar para as mãos do lulopetismo, Aécio fez na campanha e no último debate o que seus antecessores deixaram de fazer: disputou um legado que também é seu, ainda que sem explorar seu veio mais fecundo, isto é, a dimensão propriamente política do Real, que mais do que somente um plano de estabilização da moeda, foi, e é, um método conservador de pactuação política negociada, através do qual se debelou a inflação, matriz de grande sofrimento para os setores populares, ao mesmo tempo em que se deu estabilidade a um arranjo de partição da riqueza que não alterou o fluxo dela para cima. Cegos para as possibilidades de encenação que esse modelo ofereceu para dar verossimilhança ilusória a um, digamos assim, Real da saúde, um Real da educação, etc, os tucanos desperdiçaram potência combatendo defeitos supostamente socialistas que os governos petistas jamais tiveram, continuidade que são dos próprios governos tucanos anteriores. A recuperação de Aécio nas pesquisas, contra-face da queda final de Marina, mostra que na ausência de uma proposta transformadora a disputa foi gradualmente voltando ao trilho inicial, movimento que restaura a disjuntiva improdutiva e fajuta, que opõe PT e PSDB como se eles não fossem manifestações políticas de um mesmo projeto de manutenção da ordem. Se Aécio for mesmo ao segundo turno, suas chances não serão pequenas, pois como vimos no seu desempenho no último debate, ele está a altura de canalizar em favor da sua postulação de ser o próximo gerente as insatisfações com o modelo, que a ignorância de muitos dos eleitores aporrinhados debita indevidamente na conta da governança da gerente de plantão, alvo que convenientemente escamoteia desordem mais profunda.

Marina, 30%, 27%, 24% – O desempenho de Marina no debate foi a tradução da desorientação que marcou a sua campanha: em marcante contraste com Aécio, as câmeras a captaram atrapalhada, imprecisa, sem rumo. Não poderia ser diferente para quem se deixou arrastar para uma condição de postulação em que só poderia figurar como neófita: a gerência retrógrada de um projeto conservador que, até onde se soubesse, nunca fora seu. Ficou nítido que brigavam dentro dela duas forças: a da floresta, que chamava aos compromissos originais; e a da conversão recente, que impõe os constrangimentos do que há de imexível (esse é o termo) em nossa ordem conservadora. No confronto com Luciana Genro, foi triste ver Marina rogando por uma semelhança programática que quem leu os dois programas não seria capaz de encontrar; na esgrima com Dilma e Aécio, foi frustrante vê-la ora se limitar a um toma-lá-dá-cá atrapalhado de mensalões ou subalternos corruptos (e, como em 2010, sem dar resposta à altura); ora deixar de descortinar uma orientação nova para o enfrentamento da desigualdade ou para projetos como o pré-sal ou fontes de energia renovável. Marina gastou o seu tempo repetindo-se, refugiando-se em atender exata e literalmente às perguntas que lhe foram feitas, não aproveitando, nem criando, nenhum gancho para, afinal, dizer a que veio. Se não for ao segundo turno, como é o mais provável, Marina estará colhendo o resultado tóxico das sementes daninhas que plantou com financiamento e adubo dos reacionários; se lá chegar, irá enfrentar Dilma em condição ainda pior do que a de Aécio, pois enquanto ele reivindica retomar a condução de um projeto de pactuação conservadora que também é seu, Marina se apresenta como um retrocesso, de que dão exemplo propostas como a que neutraliza o que ainda inibe a avidez dos de cima (independência legal do Banco Central), ou a que aumenta a desenvoltura danosa do sistema político (mandatos de cinco anos, com unificação do calendário eleitoral).

Luciana Genro – 1% – O desempenho de Luciana no último debate foi o melhor que ela poderia fazer no âmbito daquelas limitações que ela escolheu por si mesma, e daquelas que lhe impõe o próprio projeto: de um lado, encarou como tarefa enfrentar aos adversários, não aquilo que eles representam, desperdiçando parte da potência de sua valentia lúcida; de outro, refugiou-se em temas de direitos humanos, uma vez que, assim como o enfrentamento da espinhosa questão da desigualdade exige um projeto para combatê-la, também a nossa crise de representação requer mais do que uma alteração no modo de apresentar candidatos ou apelos vagos a uma participação cidadã, cujo anseio está longe de ter sido demonstrado, equívoco que ela partilha com Marina. As cordas de um projeto revolucionário inatual já não estão propriamente a amarrar Luciana, mas elas retém nossa guerreira num emaranhado do qual ela ainda não logrou livrar-se, estando, assim, liberta, mas impedida de ganhar o mar alto que uma proposta transformadora requer. O principal limitador ao êxito eleitoral de Luciana (êxito, não vitória, o que já seria pedir demais) está na visão geral traduzida em seu programa de governo: não se faz ali distinções de grau entre os adversários responsáveis pela ordem reinante, o que permitiria pensar em alianças contra esse ou aquele setor. Luciana, embora sem arrastar a mesma cadeia conceitual, atravessou a eleição olhando o cenário do mesmo ponto de vista que Zé Maria e Rui Pimenta partilham: o combate não é ao incrementalismo conservador, mas à própria ordem do capital. Não sabem a diferença entre sofrimento intolerável e sofrimento insuportável.

Eduardo Jorge, 1% – O último debate nos trouxe mais uma vez a atitude boa-praça e o espírito aberto de Eduardo Jorge, características simpáticas que são também o calcanhar de Aquiles do nosso sereno combatente, afinal, para a imensa maioria de nós, o exercício do poder requer algum ímpeto de enfrentamento, pois, em política, mesmo o chamado consenso é algo que se constrói contra alguém. Embora, assim como Luciana, tenha tratado de temas da maior importância, Eduardo sempre o fez da perspectiva de quem está pregando, não daquela de quem está se propondo a partir para a ação. Provavelmente em razão de uma impertinente certeza íntima de que não passaria ao segundo turno, o candidato jamais deixou de transmitir um certo alheamento, impressão reforçada por muitos dos seus programas eleitorais, em que aparecia num arremedo de repórter de causas nobres, mas periféricas. A relação entre sua visão de mundo sofisticada e o exercício da presidência da República jamais se desenhou. A modéstia de Eduardo, aliada ao seu detalhismo, o impediu de enxergar e, sobretudo, de sentir, que a seriedade e a atualidade das questões para as quais ele procurou chamar a atenção do eleitor são tão estruturais na busca de uma saída para a encrenca em que estamos metidos, que não havia motivo algum para ele afastar por completo a possibilidade de ir adiante na disputa – se tempo de TV fosse determinante, Marina não teria ido até lá de onde acabou por ter de voltar.

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Com este post completo 49 dias e 23 textos acompanhando a disputa. Busquei tratar com justiça aos candidatos, partidos e forças políticas de que me ocupei, progredindo como o viajante noturno que abre caminho imerso na escuridão, ciente dos perigos impostos pelos limites estreitos em que se move, ladeado que vai das exigências da objetividade e das armadilhas de suas próprias preferências. Gosto de supor que ao avançar tive sucesso tanto em evitar a prédica, sempre indesejável, sem afetar neutralidade que não almejo; quanto em refrear toda indignação bem antes de vê-la revestir-se do sempre detestável moralismo. Jogo jogado, e amanhã teremos luz plena sobre o resultado do primeiro trecho vencido. Declaro todo o meu reconhecimento àqueles que, em conversas pessoais, ou por telefone, e-mail, e no próprio Blog, me honraram com suas observações sobre aquilo que fui propondo à discussão.

MARINA DESCONSTRUIU A SI MESMA

 Carlos Novaes, 27 de setembro de 2014

 

Em post anterior, falei da fragilidade cada vez mais evidente de Marina, a se equilibrar (mal) entre duas frentes de ataque. Mas, se a fragilidade eleitoral dela ia ficando evidente, não enxerguei com suficiente clareza, então, que as motivações que poderiam levar o eleitor a abandoná-la eram mais sólidas do que uma aceitação pura e simples do impacto do ataque adversário, frequentemente muito baixo. Não, o eleitor não sucumbiu aos ataques, e pensar que sim é subestimá-lo.

Dito isto, é necessário avaliar a nova pesquisa DataFolha, que vai adiante do que a mais recente pesquisa IBOPE já mostrara: Dilma se recupera, enquanto Marina desaba e Aécio não altera a sua situação.

Os números novos mostram uma situação nova: eu subestimei a força da motivação para a transformação, não obstante eu a defenda. Ou seja, subestimei o eleitor…  Os eleitores que Marina tinha ganho e que a estão abandonando haviam identificado nela uma mudança adiante, mas se decepcionaram e recuaram para Dilma (movimento cuja possibilidade indiquei, mas não com a ênfase com que aconteceu). O que permite essa conclusão é o fato de Aécio ter ficado praticamente estagnado nesse ambiente turbulento: identificado como titular de uma proposta reacionária, ele não se beneficia da queda de Marina, quando ela perde eleitores que queriam ir adiante. Em outras palavras, o eleitor que oscilou namorou com a transformação, mas viu que se enganara e voltou à mudança tão limitadamente incremental quanto cheia de mazelas que o petismo representa.

Embora tenha, em vários posts, insistido que havia lugar propriamente eleitoral para a opinião transformadora, não enxerguei o quão decisiva ela iria se mostrar. Foi essa “prudência” que me cegou para a hipótese que se mostrou forte: grande parte dos eleitores que robusteceram a terceira via o fizeram não apenas para fugir da polarização PT-PSDB, mas para ultrapassá-la, potencial de mudança que eu já identificara em texto de 2009, e que se mostrou forte mesmo com Marina não empunhando claramente bandeiras transformadoras. Enquanto o eleitor que agora foge dela apostava no passado de Marina, eu ia constatando, junto com ele, que o passado não condizia em nada com as propostas e revisões de si mesma que ela apresentou, mas, nesse processo, subestimei a atualidade e a potência da minha própria teoria sobre a viabilidade de uma terceira via.

Quem acompanha este BLOG vê que quem desconstruiu Marina não foi exatamente o João Santana, mas a própria Marina, quando disse que nunca foi contra transgênicos; quando não mostrou a mais que sabida importância decisiva, ainda que relativa, do petróleo do pré-sal, inclusive para gestar fontes alternativas de energia; quando apresentou uma proposta de reforma política reacionária, que é o contrário de uma “nova política”; quando propôs uma mudança não menos reacionária no status do Banco Central como órgão do Estado; quando recuo da revisão da Lei da Anistia; quando tratou a desigualdade como problema a ser enfrentado apenas com políticas sociais compensatórias, sem a inclusão da matéria tributária; quando se calou quando o vice ruralista declarou que ninguém governa sem o PMDB e ainda propôs atenuar a bandeira do desmatamento zero; quando recuou na criminalização da homofobia; quando defendeu aliados atuais controvertidos invocando de maneira impertinente e injusta a figura incontrastável de Chico Mendes. Precisa mais? Bem, pois a propaganda e o discurso da candidata ofereceram: vêm reagindo aos ataques com apelos emocionais, quando se sabe que a fase da motivação emocional para o voto já ficou para trás — o eleitor quer alternativa.

Esse horrendo conjunto de descaracterizações pode não ter sido percebido em todo o seu alcance pelo eleitor que agora deixa Marina, mas certamente ensejou que o tiroteio adversário encontrasse lastro na opinião pública, pois deu repertório, e constitui a paisagem de escombros que serve de pano de fundo, às conversas dos transformadores enquanto tal, que não são legiões, mas parecem ter se tornado mais decisivos do que se havia antecipado para essa eleição. Ponto prá nós.

Marina vem perdendo os eleitores que queriam ir adiante, mas não haviam sucumbido ao anti-petismo histérico, e estéril. Desapontados com ela, voltam ao caminho que teriam preferido evitar. Resta saber agora se Marina também não perderá, num passo seguinte, os eleitores anti-petistas que ganhou de Aécio. Se isso acontecer, ela poderá ficar fora do segundo turno porque terá acontecido o que eu disse em post anterior, o mesmo que mencionei na abertura deste texto:

Ou seja, com suas propostas reacionárias e continuístas Marina se colocou de maneira perigosamente contraproducente no centro de um fogo cruzado: enquanto se combatem mutuamente, as campanhas de PT e PSDB dão também combate a Marina, cada uma dizendo o quanto ela se parece com o outro – Aécio diz que Dilma é um presente ruim que precisa ser deixado para trás e Dilma diz que Aécio é um passado que já foi ultrapassado e não se pode permitir voltar, embrulho no qual Marina vai sendo remetida ao endereço da inconsistência e, com isso, enseja a que os eleitores que atraiu de cada um dos dois lados refluam para o tronco de origem. (grifo de hoje).

A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO

(tentativa de resposta à pergunta de um amigo sobre o valor da troca pela troca, quando o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas disponíveis)

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2014

 

Permitam-me começar com uma pequena história que, não por coincidência, dá colorido cotidiano à pergunta mencionada acima. Há poucos dias, ouvi do sempre combativo e comunicativo jornaleiro da banca que frequento (todos nós conhecemos um, o que em si já daria uma crônica…), a observação enfática de que “moço, a única coisa que a gente pode fazer é trocar; trocar um pelo outro, tirá um, e buta o outro; é só!”. Note, leitor, que nosso inconformado personagem está dizendo mais do que pretende a teoria democrática refinada, segundo a qual a democracia vale não porque ela nos possibilite fazer a escolha do que nos parece melhor, mas antes porque ela nos permite remover o que nos parece ruim — não, dizia eu, o nosso semelhante da esquina vai além: com seu musical sotaque baiano ele nos diz que, como os políticos, um pelo outro, são todos igualmente ruins, só o que nos resta é trocar, jogando assim alguma areia na rotina deles, para, num misto de aspiração e vingança, quem sabe, obter casualmente alguma conquista do fato de as engrenagens deles terem lá as suas encrencas.

Depois de assistir a essa acabrunhante campanha eleitoral, imagino que só os muito implicados no processo, seja por interesse, seja por ideologia, ainda possam reunir forças para contestar o nosso amigo. Mas, se não há convicção para corrigi-lo, há por certo motivação para discutir a questão, a ver se chegamos a um patamar menos macegoso, de onde, talvez, possamos divisar alternativa. Seguindo a pista dada por nosso teórico (e não há ironia aqui), comecemos por observar que a base da democracia é mesmo a ideia de troca: assim como o mercado valoriza o fluxo da troca das mercadorias, das quais o jornal diário é uma das formas manufaturadas mais fugazes, o regime político que corresponde ao mercado se funda, e afunda, no fluxo que troca gestores e representantes, ainda que, em tese, o gestor seja menos volátil do que o representante. Digo menos volátil porque, entendendo a ação política institucional como uma tensão entre memória e fluxo (uma tensão entre o que se conserva e o que se muda), sou levado a ver que quem está no exercício de um mandato executivo está mais comprometido com a memória do que um representante legislativo, uma vez que este, mais que aquele, deve responder mais prontamente ao fluxo da dinâmica social, às mudanças de preferências, humores, valores e interesses que toda sociedade aberta exibe. Em outras palavras, enquanto, em tese, repito, o executivo lida com as rotinas do fazer, e sempre herde algo que estava a ser feito, o legislador se dedica a um ouvir e a um dizer, estando sempre mais colado à possibilidade da mudança. Sendo didático ao nível da deselegância, o que quero dizer é que uma ponte em construção carrega uma memória que não pode ser ignorada pelo gestor sucessor no executivo, enquanto que a aspiração pela criminalização da homofobia deriva de um fluxo de mudança que tem de poder encontrar representante no plano legislativo.

Nessa ordem de idéias, há algo de muito errado num sistema político que empurre à mudança no plano executivo e crie dificuldades à mudança no plano legislativo. Não obstante, é exatamente dessa forma perversa que funcionam esses poderes, aqui no Brasil e na maior parte do chamado mundo democrático ocidental. E eles funcionam assim porque, embora danosa ao bem estar das sociedades, essa ordem é ideal para a rentável vida em estufa que a chamada classe política criou para si mesma: a possibilidade de reeleição infinita nos legislativos (fonte da profissionalização danosa, que degrada todo o sistema político), mantendo as cobiçadas cadeiras do executivo (cobiçadas por serem ordenadoras de despesas, além de bem menos numerosas) sempre submetidas à ciranda entre eles (fonte do fôlego curto do planejamento, da ausência de visão de longo prazo). Aliás, é à preservação dessa ordem malsã, nessa ou naquela versão, que se prestam as propostas de voto em lista, coincidência de calendário eleitoral com mandatos de cinco anos(!), sistema distrital, financiamento público de campanhas eleitorais, fim da reeleição para o executivo, adoção do parlamentarismo, cláusulas de barreira, sendo comum a todas o silêncio sobre a aberração que é o sujeito poder se perpetuar mandato após mandato nos legislativos.

Retomemos a tensão memória-fluxo. Ao permitir a reeleição dos representantes legislativos, a legislação eleitoral dá ênfase na memória ali onde o eleitor deveria ser estimulado a escolher diante do fluxo e, em contrapartida, ao empurrar o executivo à mudança ela impõe o fluxo ali onde o eleitor poderia valorizar a memória. No primeiro arranjo, o eleitor é desobrigado de pensar em mudança justamente ao escolher o seu representante, que, em tese, está se propondo a ficar no lugar dele, e mais, exatamente ali onde é mais difícil fiscalizar a ação do político. Ou seja, protegido pela pouca visibilidade dos cargos legislativos e favorecido pela inércia que caracteriza a espécie humana, o mal representante que tenha aprendido as manhas da condição de político profissional pode se perpetuar no poder sem jamais representar coisa alguma senão os próprios interesses. É nesse apego aos próprios interesses que repousa a memória indevida, ali onde deveria predominar o fluxo: o político profissional cria rotinas (ou seja, memórias hostis à mudança) para, a um só tempo, se perpetuar no poder e beneficiar aqueles que o financiam. Multiplicada em larga escala, essa prática política arrasta as instâncias de representação (Congresso, Assembléias estaduais e Câmaras municipais) ao conservadorismo, a se constituírem em verdadeiras casamatas contra a mudança, quando elas deveriam ser o estuário do que de mudança há na sociedade — ao contrário do que dizem os incautos, nossos legislativos não são “um retrato” da nossa sociedade precisamente porque eles são mais conservadores do que ela, empenhados que estão em conservar memórias que ela já ultrapassou em seu fluxo permanente, ainda que, às vezes, o fluxo se dê na forma de marés, quando a sociedade entende que precisa recuperar memória indevidamente deixada para trás, movimento no qual o recuperado não deixa de trazer elementos do que foi vivido depois — quem volta para buscar refaz o caminho e altera o buscado, pois a memória é plástica.

Por outro lado, no segundo arranjo, quando proíbe qualquer reeleição no executivo, a legislação impede o eleitor de poder escolher entre a memória e o fluxo exatamente ali onde poderia fazer sentido conservar (em razão da própria dinâmica do fazer), e logo numa atividade em que ele tem mais elementos para avaliar o desempenho do gestor, cuja ação está, por definição, referida a todos e não a uma parte dos eleitores, como é o caso de um representante. Bem mais visível do que a ação de representar, o fazer do gestor se presta ao escrutínio do eleitor em geral e, assim, trata-se de contradição flagrante que, na escolha para a recondução ou não de um gestor (executivo), se sonegue ao eleitor a confiança que se deposita nele para a escolha do representante (legislativo), função esta para a qual é muito menos provável que ele tenha informação para (e queira) exercer uma judicação detida. Em outras palavras, para acabar com a reeleição para o executivo se diz que nela o eleitor é manipulado; mas não se diz de manipulação do mesmíssimo eleitor quando se trata da reeleição infinita para o legislativo, cargo para o qual é muito mais fácil iludir o eleitor, escondendo malfeitos.

Na realidade, e como não poderia deixar de ser, é bem o contrário do que se diz: as realizações ou erros de um prefeito, por exemplo, deixam uma memória (acabada ou em andamento), que oferece elementos ao eleitor para decidir entre a conservação e a mudança, sendo de coibir apenas a reeleição salteada que, aliás, tem permitido fazer do governo de São Paulo um poleiro de tucanos, precisamente porque essa reeleição infinita disfarçada permite a cristalização de rotinas (memórias) profissionais para a obtenção de blocos seguidos de mandatos de gestão. Em contrapartida, ao acabar com a reeleição para o legislativo, estaríamos levando o eleitor a escolher desatado das rotinas e da inércia, tornando as instituições de representação muito mais ligadas no fluxo, muito mais abertas a representar a mudança havida na sociedade, livrando-as da memória nefasta cristalizada no jogo de interesses e vantagens que, pela sua própria natureza corrupta, não se dá sob os olhos do eleitor, por mais vigilante que ele seja. Se é certo que sociedades mudam devagar, e é, mais uma razão para que nem se possa desperdiçar de recolher, nas instâncias de representação, toda mudança havida nelas; nem negligenciar o fato de que elas parecem mudar ainda mais devagar do que realmente mudam porque suas instâncias de representação se apresentam indevidamente agarradas ao que ficou para trás.

Naturalmente, é certo que mesmo assim haverá negociatas, mas não creio que se possa dizer que um modelo sem reeleição legislativa é mais propício à bandalheira do que o atual. Quanto aos “bons” representantes que serão perdidos, duas palavras: primeiro, a ideia de que eles são bons em si mesmos já é, em si, conservadora, pois bom é o representante atado ao fluxo, isto é, a virtude não está nele, mas na própria “coisa” representada; segundo, e por isso mesmo, se aquilo que ele, o bom, representa, conserva sua força na sociedade, ela se encarregará de encontrar um sucessor capaz de dizer de novo, e com eficácia, o que precisa ser dito nas instâncias que foram libertas da memória dos interesses aquadrilhados. Nesse último caso, isto é, quando a sociedade por assim dizer reconduz a “coisa” representada, o que haverá de se dar na maior parte do tempo, mas com outro representante, tem-se a memória virtuosa, que garante a continuidade do que é bom segundo o que é visto como propício ao fluxo social: vozes novas dizem a “mesma coisa” de modo diferente, o que, em si, significa alcançar o ideal de ter o fluxo dentro da memória, e vice-versa — até porque, memória sem fluxo seria imobilismo e fluxo sem memória seria delírio, situações nas quais a política é impossível.

Essa valorização invertida da memória e do fluxo na ação política institucional encontra desenho próprio em cada país, sendo mais nociva ali onde a desigualdade é grande, simplesmente porque quanto maior a desigualdade, mais embrutecida se encontra a maioria, uma vez que está prisioneira da luta brava pela sobrevivência, situação duplamente propícia à autonomia da ação política que a dinâmica das reeleições legislativas já favorece (autonomia entendida como desligamento da realidade material em que labuta o povo): de um lado, a penúria material não deixa tempo para o auto-aperfeiçoamento, consumindo na luta frequentemente inglória por uma vida melhor toda a energia disponível, nada restando para a ilustração, que é o vestíbulo da contestação; segundo, escapar individualmente das consequências da desigualdade torna-se um aprendizado de primeira hora a todo aquele que, apesar de tudo, levanta a cabeça, situação que desvirtua todo esforço de ação coletiva bem sucedida dos de baixo, pois eles logo descobrem as vantagens que podem auferir para si mesmos do fato de terem se juntado para lutarem pelo bem comum — eis o terreno propício à cooptação, que é um mecanismo muito eficaz para mudar fluxo (movimento) virtuoso em memória (burocracia) viciosa (foi aí que o PT naufragou) .

Se o resultado da soma das reeleições infinitas com a desigualdade configura um quadro especialmente propício a arranjos de estufa, dentro da qual os profissionais da política abandonam diferenças programáticas a que, de resto, jamais foram apegados, em favor dos negócios que a proximidade parlamentar proporciona (partilham o butim da memória, em lugar de responderem às demandas do fluxo), se é assim, dizia eu, então não há dificuldade para entender porque num país continental e populoso como o Brasil se encontra, a um só tempo, uma das ordens políticas mais corruptas e uma das sociedades mais desiguais do mundo. Ao invés de ser um retrato da nossa sociedade, nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa desigualdade, mais exatamente daquela face dela que é capaz de se fazer traduzir em força política, vale dizer, a nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa elite, não do nosso povo, que infelizmente ainda não encontrou um caminho para tirar forças da desigualdade a que está submetido sem ter de assistir logo adiante a degradação de seus próprios líderes. Naturalmente, não chega a ser um caminho incluir os mártires populares da luta contra a desigualdade entre os membros da elite contra a qual essa mesma luta tem sido feita, como fez Marina no Jornal Nacional, onde invocou a memória do incontrastável Chico Mendes (cujo compromisso com os de baixo lhe custou a própria vida) para defender alguém cuja disposição de ajudar os pobres acaba ali onde se constata que os pobres só serão menos pobres se os muito ricos forem desapetrechados dos instrumentos que lhes permitem amealhar tanta riqueza.

Feito esse apanhado geral, vejamos a troca pela troca no Brasil das eleições de 2014, para o legislativo e para o executivo. Como já defendi em outro lugar, e em razão mesmo da argumentação exposta acima, entendo que o melhor seria o povo brasileiro promover uma troca geral nos legislativos, votando apenas em quem jamais desfrutou (esse é o termo) de qualquer mandato parlamentar. Não vejo como uma aposta no fluxo virtuoso, que escangalharia mecanismos de reprodução de poder há muito estabelecidos e, por si mesma, geraria aprendizados novos a serem aplicados em uma próxima eleição, aprendizados esses que acabariam por levar a trocas cada vez mais informadas no futuro, não vejo como essa opção poderia trazer mais dano à nossa vida em comum do que o apego aos portadores de uma memória cujas rotinas só podem nos trazer mais do que sempre tivemos.

No caso dos executivos, se o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas existentes, a troca pela troca deve ser encarada como uma opção de ordem prática de caráter circunstancial, e não geral. Ou seja, há que se examinar caso e caso, escrutinar as memórias em questão e, então, definir com base no princípio de que se deve escolher o menos pior. Um critério para definir o menos pior pode ser antecipar a magnitude da pressão que a sociedade teria de fazer para lograr que o gestor atuasse na direção que parece mais adequada ao observador. Se ainda assim a dúvida persistir, e se houver certeza de que uma troca não vai nos colocar ainda mais longe do que almejamos, talvez o melhor seja fazer como recomendou nosso amigo jornaleiro, ainda que sem nenhum sentimento de vingança: trocar só para obrigá-los a se mexerem e, quem sabe, colher algum resultado positivo inesperado — nas palavras do amigo que me fez a pergunta “quebrar alguns vícios [memória] e criar a necessidade de reinventar [fluxo] os equilíbrios e acordos políticos”.

Evidentemente, as coisas se complicam se o observador incluir no cálculo a expectativa de provocar uma revolta, quando então talvez fizesse sentido escolher o pior. Como sou de opinião que revoluções são o colapso da política, eventos de fluxo desataviado que devem ser apoiados justamente porque são um sofrimento adicional ali onde o sofrimento se tornou insuportável e, por isso mesmo, entenda que uma revolução é uma desorganização da memória de tal envergadura e profundidade que não pode ser provocada (do contrário não seria revolução, mas mera troca de uma memória falida por uma outra, pré-fabricada — quem o tentou gerou monstros), esta opção de escolher o pior para arriscar alcançar o melhor está descartada para mim, até porque ninguém pode garantir que a pior memória vá desabrochar num fluxo alvissareiro.

PROGRAMA DE MARINA NÃO ENFRENTA A DESIGUALDADE

Carlos Novaes, 23 de setembro de 2014

É lugar-comum tecnicamente estabelecido que o Brasil está entre os países mais desiguais do mundo, isto é, em nossa sociedade a concentração da renda em favor dos mais ricos é muito acentuada. Um estudo que acaba de ser publicado traz evidências novas, desanimadoras e desafiadoras sobre essa situação: são novas porque resultam do exame detalhado das declarações de renda individual entregues à Receita Federal, indo além das estimativas feitas com base em pesquisas domiciliares;  são desanimadoras porque indicam que “é provável que a queda da desigualdade nesse período [2006-2012], identificada nas pesquisas domiciliares, não tenha ocorrido ou tenha sido muito inferior ao que é comumente medido”; e desafiadoras porque não podem deixar de impor sentimento de tarefa a quem está voltado para uma sociedade menos desigual.

Portanto, nenhum projeto de transformação da vida brasileira orientado para a justiça social pode deixar de trazer propostas para enfrentar o problema da desigualdade. Outrossim, numa ordem social em que os 5% mais ricos ficam com praticamente metade da renda total, como mostra o estudo mencionado e cuja íntegra pode ser obtida aqui, quem almeja uma transformação não pode enfrentar o problema com base na dicotomia “incluído-excluído”, uma vez que uma concentração de riqueza dessa monta numa sociedade populosa e complexa como a brasileira só pode resultar de um modo interessadamente desfavorável de inclusão da grande maioria, não da sua “exclusão”. Essa inclusão subalterna está contraposta à inclusão da minoria muito rica, e a ela serve. As vantagens auferidas por esta são simétricas às penas desnecessárias que infelicitam aquela, sendo que as medidas adotadas para corrigir o problema tem se limitado a fazer rearranjos entre os de baixo, como se a desigualdade relevante fosse a que se registra entre eles — não é à toa que o incremento é mínimo ou quase nenhum.

Por matizados que sejam os de baixo, não há “excluídos”, pois todos tem seu papel e dão sua contribuição para que os muito ricos do Brasil vivam uma vida cujos luxo e desperdício dependem do esforço e da penúria dos demais. Em outras palavras, não há um Brasil que funciona, para onde deveríamos transferir os “excluídos”, que estariam num Brasil que não funciona (a Belíndia dos tucanos), pois o funcionamento favorável ao conforto perdulário dos de cima seria impossível sem a vida sofrida dos de baixo, de que ele depende; o que há é um Brasil arranjado para funcionar de modo a que uma pequena minoria fique com o grosso da riqueza produzida pela maioria, arranjo esse no qual todos estão incluídos, o que muda é o papel que cada um desempenha na peça.

O programa de governo de Marina fala em combater a “exclusão” e menciona a desigualdade 36 vezes, sendo 17 no singular e 19 no plural, plural esse que já não ajuda a agarrar o problema, pois vem diluído em vários capítulos do programa de governo. Sob o título enfrentar o fato de que a desigualdade atrasa o desenvolvimento e o crescimento da economia” — título que, ao engatar o combate à desigualdade na engrenagem produtiva da mesma desigualdade, irá se revelar um aceno contemporizador aos de cima –, o programa declara que

“A coligação Unidos pelo Brasil considera a construção de uma sociedade mais justa como tarefa essencial ao país. Por isso, é natural que incorpore em seus compromissos econômicos alguns objetivos claros de melhoria na distribuição de renda que deverão pautar todas as suas ações ao longo do governo.” (grifos meus)

A preocupação com a suscetibilidade dos ricos fica clara se compararmos as linhas acima com uma redação que dissesse o que interessa de maneira enxuta e direta:

“A coligação Unidos pelo Brasil considera a construção de uma sociedade mais justa tarefa essencial. Por isso, incorpora em seus compromissos econômicos o objetivo claro de melhorar a distribuição de renda, objetivo que deverá pautar todas as ações do governo.”

Àquela redação melindrosa corresponde a ausência de qualquer medida econômica voltada a “melhorar a distribuição de renda”, desafio que é evitado todo o tempo, como nesse parágrafo, síntese do serpentear escamoteador que caracteriza o programa de governo da coligação do PSB nessa matéria:

“Políticas sociais normalmente melhoram a distribuição de renda. A expansão de programas como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada elevam os ganhos dos mais pobres e, consequentemente, ajudam a repartir melhor a riqueza. A maior parte dos programas de inclusão social, quando gera resultados sensíveis, tende a resultar em um pouco mais de equidade. Os programas de habitação popular, de melhorias na educação e mesmo de saúde pública também têm impacto relevante. Ou seja, os objetivos da distribuição de renda, ao longo de nosso governo, deverão estar presentes em diversas políticas sociais.” (grifos meus)

O sinuoso parágrafo acima é um primor de tergiversação, pois logo depois de insinuar que a elevação de ganhos dos mais pobres tem como resultado corriqueiro melhoria na distribuição de renda — um raciocínio manhoso, pois sabe-se que ao sabor da “normalidade” o incremento é residual, não sendo raro que a distribuição de renda piore mesmo quando aumentam os ganhos dos mais pobres –, temos uma sucessão lépida de frases que contornam uma característica básica da nossa ordem socioeconômica: a concentração de renda convive muito bem com (e até agradece) políticas assistenciais e/ou compensatórias. Assim, depois de anunciar “compromissos econômicos” no combate à desigualdade gerada pela má distribuição da renda, o programa escorrega para “diversas políticas sociais” que não implicam combate algum à mesma concentração de renda. A vaguidão do palavrório é de tal ordem que no final se fala em “objetivos da distribuição de renda”, quando ela, a tal distribuição, é que era o objetivo inicial, acerca do qual se silenciou.

Dai por diante, sentindo-se liberado de dar maiores explicações, o programa vai falar em desigualdade regional, desigualdade educacional, desigualdade urbano-rural, desigualdade homem-mulher, desigualdade federativa, desigualdade étnica, etc numa profusão de “desigualdades” que não deveriam ter sua importância empregada como biombo encobridor do aspecto central do problema: a concentração da renda. Mas é isso o que ocorre, pois não há uma única proposta destinada a desarmar o dispositivo central dessa desigualdade: a ordem garantidora da acumulação infinita de riqueza, que nada cobra aos muito ricos por estarem muito ricos. Quando solicitada a dar explicações sobre sua “reforma tributária”, Marina deixou de fora qualquer alteração substancial no Imposto de Renda, rejeitou a taxação às grandes fortunas e não tratou de qualquer alteração no direito de herança.

Na mesma linha, o aumento de gastos que será exigido pelas suas boas propostas para a educação e a saúde não vem acompanhado de nenhuma fonte nova de receita, tudo sendo colocado na conta de uma gestão mais eficaz dos recursos existentes, o que não deixa de ser curioso quando se tem em mente que a candidata censura sua principal adversária por se limitar a uma visão “gerencial” dos problemas, por oposição à sua, que seria “estratégica”…Deixo ao leitor decidir pela gerente preferida para a nossa desigualdade.

Lido com a atenção que a história de Marina inspira, o programa de governo que ela defende mostra-se uma proposta conservadora no tratamento à desigualdade, pois não há nele uma única alternativa ao status quo: trata-se de uma adesão ao modelo de políticas sociais compensatórias que tangeu o PT a uma acomodação oportunista aos ganhos político-eleitorais arrancados aos de baixo e às vantagens que advém de ter caído nas boas-graças dos de cima. Essa perversa conexão de gratidões cruzadas é o benefício recolhido por quem abre mão de enfrentar a tão daninha quanto inaceitável desigualdade brasileira: os muito pobres ficam gratos em razão do cálculo ditado pela coleira da necessidade; e os muito ricos agradecem porque calculam o quão necessária tornou-se-lhes nossa esquerda de coleira.

A candidatura de Marina não enfrenta o fato de que medidas compensatórias nunca vão passar disso mesmo, compensação, pois não transformam a ordem que gera a injustiça. E se é verdade que elas não devem ser repudiadas, pois o sofrimento é grande, não é menos verdade que elas não podem servir para encobrir o fato de que os estratos populares intermediários, que não são alvo dessas medidas compensatórias, não deixam de também seguir vítimas da desigualdade (arcando, inclusive, com as consequências dos custos de boa parte dos arranjos em favor dos mais pobres), uma vez que a concentração de renda nas mãos dos de cima não apenas limita a renda daqueles, mas, sobretudo, sonega a todo o sistema uma energia que, se liberada da reserva improdutiva desses muito ricos, colocaria a todos os demais em situação superior de produção e consumo, meta que reúne o máximo e o mínimo que se pode exigir de uma candidatura que se queira a um só tempo eleitoralmente competitiva e transformadora. Enfim, medidas para liberar essa energia é que indicariam um convite à transformação, e é uma pena constatar que não há indício disso no conservador programa social de Marina, que vem se juntar ao que de reacionário ela propõe em política.

 

[OBS.- Não comentei porque não assisti ao debate presidencial promovido pela CNBB. Só o que pude ver depois foi o trecho em que Luciana Genro mostra parte do que há de perverso na convergência PT-PSDB, numa fala notável pelo que exibiu de valentia, poder de síntese, pertinência e eloquência, encurralando Aécio. Como disse uma amiga minha, “perdeu, playboy!”]

PENSANDO MELHOR…

Carlos Novaes, 18 de setembro de 2014

 

Em post anterior afirmei que “o fato de Marina ter resistido a tudo isso mostra que sua candidatura já atingiu uma solidez de preferência que só pode crescer”. Embora tivesse em mente o primeiro turno, pois vejo que os problemas não deixarão de aparecer no frente-a-frente igualitário do segundo turno, reconheço que mesmo para o primeiro turno essa minha afirmação foi uma precipitação. Embora seja difícil, Aécio pode se beneficiar já no primeiro turno do que há de reacionário no programa de governo de Marina, e não apenas porque esse reacionarismo diminuiu muito a disposição de voto nela por parte dos transformadores.

Marina propõe uma terceira via que não se empenharia em sepultar PT e PSDB, mas sim a dar sentido novo ao que enxerga de virtuoso nessas duas forças, libertando-as não só do que há de atraso nelas, mas também daqueles em que elas se apoiam para combater uma à outra. Essa é uma pretensão sofisticada, cuja fundamentação não é fácil de apresentar, pois exige que o eleitor descontente separe o joio do trigo em meio à palha esvoaçante do celeiro eleitoral e, mais, que veja qualidades em opções com as quais ele não tem exatamente boa vontade. No mínimo, uma terceira via proposta nesses termos tem de chegar ao eleitor como uma alternativa de mudança para adiante, sendo mortal para ela qualquer uma de duas leituras: uma volta ao passado (em que não há “progresso”) ; ou mais do mesmo (em que não há “mudança”).

Ao propor a autonomia legal do Banco Central, a prorrogação de mandatos para chegar a um calendário eleitoral unificado em mandatos de cinco longos anos e a continuidade de políticas sociais compensatórias como forma de combater muito incrementalmente uma desigualdade inaceitável, que pede ações politicamente mais drásticas, Marina deu elementos não apenas para que os transformadores duvidem do potencial transformador da sua terceira via como também para que seus adversários desconstruam essa mesma terceira via: Dilma pode, com razão, dizer que Marina propõe uma volta ao passado e Aécio pode, com não menos razão, dizer que Marina significa mais do mesmo. Volta ao passado porque, por exemplo, mandatos coincidentes de cinco anos remetem às invencionices do período ditatorial e são o oposto de uma “nova política”, e mais do mesmo porque o petismo difuso de Marina não pode ser convincentemente negado sem que ela rompa com o acomodatício incrementalismo conservador do PT diante da desigualdade.

Ou seja, com suas propostas reacionárias e continuístas Marina se colocou de maneira perigosamente contraproducente no centro de um fogo cruzado: enquanto se combatem mutuamente, as campanhas de PT e PSDB dão também combate a Marina, cada uma dizendo o quanto ela se parece com o outro – Aécio diz que Dilma é um presente ruim que precisa ser deixado para trás e Dilma diz que Aécio é um passado que já foi ultrapassado e não se pode permitir voltar, embrulho no qual Marina vai sendo remetida ao endereço da inconsistência e, com isso, enseja a que os eleitores que atraiu de cada um dos dois lados refluam para o tronco de origem. Num cenário assim, seu vice ruralista não ajuda muito quando declara que “ninguém governa sem o PMDB” (!) ou quando acena aos seus pares com uma revisão da bandeira do desmatamento zero, o que já é descaracterizar a própria identidade política da candidata.

A única maneira de Marina aparecer inequivocamente como um vetor virtuoso dessa porfia inglória seria apresentar um programa de governo que a pusesse adiante de ambos. Não foi o que ela fez e, assim, não dialogou como devia, e podia, com o hemisfério racional do eleitor, o que a deixa na dependência de escolhas emocionais, que não costumam prevalecer em fim de campanha. Como o lugar estrutural para uma terceira via está muito consolidado, o mais provável é que dê tempo de transpor com êxito o primeiro turno, mas no segundo…

 

MARINA COMO ELA É, e COMO PODE SER

Carlos Novaes, 16 de setembro de 2014

(logo abaixo há um outro post de hoje)

A peça de propaganda eleitoral veiculada esta noite no horário eleitoral pela campanha de Marina é mais contundente do que aquela em que Duda Mendonça entrevistou Lula sobre a morte da esposa e do filho por falta de atendimento médico – e o é não porque o sofrimento de Marina seja maior, mas porque o sofrimento dela foi colhido a quente, de improviso, e está diretamente ligado à uma baixeza eleitoral da campanha adversária, que dá sinais de ter perdido a noção dos limites que mesmo uma campanha eleitoral vivida como de vida ou morte tem de respeitar. Nesse cenário, o testemunho pungente de Marina não atinge apenas a quem, como ela, já passou fome, mas também àqueles que jamais tendo passado por privação assim não deixam de receber como uma agressão ao seu sentimento de justiça a ação adversária falsa sobre ponto tão nevrálgico da injusta ordem social brasileira.

A nova pesquisa IBOPE que acaba de ser divulgada mostra que Dilma não retirou benefícios para si da artilharia contra Marina, possibilidade que antecipei aqui e  aqui – quem foi beneficiado foi Aécio, cuja pequena recuperação deve ser observada sem preocupação, entretanto, até porque muito provavelmente tem fortes elementos de sua ação desesperada em Minas Gerais, onde vem perdendo a eleição.

O fato de Marina ter resistido à campanha de mentiras que vem sofrendo não apenas, nem sobretudo, no horário eleitoral, mas na boataria intensa que as instituições controladas pelo petismo tem feito por todo o país, mobilizando a estrutura sindical e de ONGs para ecoarem a baixaria produzida em cima (conjunto no qual o ato ridículo em “defesa” do pré-sal, com a presença do Lula e mais meia dúzia de gatos pingados, é o exemplo mais escabroso); o fato de Marina ter resistido a tudo isso mostra que sua candidatura já atingiu uma solidez de preferência que só pode crescer.

A equivocada proposta de autonomia do Banco Central começa a receber detalhamentos que se não são suficientes para torná-la aceitável, certamente ajudam a nos fazer crer que o sentido final do vetor Marina está em disputa e que mesmo a tal autonomia não será implementada, se o for, segundo um credo liberal, escangalhado com a inclusão da variável emprego combinada a um regime de metas de inflação. Resta ver se a campanha de Marina vai esperar a crítica adversária para rever a proposta inaceitável de prorrogação de mandatos para uma coincidência eleitoral que prevê eleições apenas a cada cinco anos.

 

DataFolha, IBOPE e temas conexos

Carlos Novaes, 12 de setembro de 2014

1. As novas pesquisas DataFolha e IBOPE configuram tendência de queda de Marina e subida de Dilma?

Não. Embora tenha recebido divulgação mais recente, a nova pesquisa IBOPE foi realizada entre 5 e 8 de setembro e, portanto, retrata situação anterior àquela que o DataFolha encontrou quando foi a campo, em 8 e 9 de setembro. Além de mais recentes, os números do DataFolha foram encontrados em pesquisa tecnicamente mais robusta, com mais de 10 mil entrevistados, contra pouco mais de 2 mil do IBOPE. Em suma, o IBOPE captou de modo impreciso situação anterior à que o DataFolha encontrou e, assim, o que temos de mais recente é uma situação estável de Dilma e Marina empatadas no primeiro e no segundo turnos.

2.  A estagnação de Marina resulta dos ataques feitos a ela por Dilma e Aécio?

Depois de um crescimento vertiginoso, que retratou o quanto era artificial a ausência de Marina como candidata a presidente, a adesão de eleitores novos depende do que ela tenha a oferecer a quem exige mais informação para mudar de posição. As interrogações tem de ser respondidas pelas propostas da candidata e, simultaneamente, pelo choque dessas propostas com as opiniões que o eleitor já tem e o tiroteio dos adversários. As informações estão sendo oferecidas no que a mídia divulga, no vale-tudo da propaganda eleitoral e, em menor medida, pelo acesso ao próprio programa de governo da candidata. Toda essa carga propriamente temática é muito recente e o mais provável é que ainda não tenha surtido efeito algum. Entretanto, sem pesquisas específicas e num intervalo de tempo tão curto, não é possível afirmar nada nesse terreno. É uma precipitação enxergar nos números novos um acerto da estratégia baixa do PT – o tiro pode ter saído pela culatra e provocar um crescimento de Marina. Mais adiante, saberemos.

3. Aécio ainda pode chegar ao segundo turno?

É quase impossível, pois Dilma e Marina estão muito firmes como os dois pólos da disputa. Para Dilma despencar a ponto de ceder a vaga a Aécio seria necessário encontrar uma relação muito clara dela com os desmandos na Petrobrás, por exemplo – e isso não parece plausível, pelo que apareceu até aqui. Por outro lado, Marina despencar é tão improvável quanto encontrar algo devastadoramente negativo para a reputação política dela. Dilma conta com o eleitorado governista e petista, e Marina chegou onde chegou pelo seu passado e por simbolizar a mudança num quadro em que os adversários estão fortemente marcados pela ideia de oferecer mais do mesmo. São situações que Aécio não pode mudar. A essa altura, os tucanos mais experientes já estão de olho em como negociar o apoio a Marina no segundo turno, e o mais assanhado deve ser o Serra, pois o compromisso eleitoral de Marina de ficar só quatro anos reacende nele a esperança de disputar em 2018, depois de ter sido ministro… Aliás, ambições presidenciais fazem com que uma vitória de Aécio não interesse nem a Alckmin nem a Serra.

4. Marina unificaria o PSDB nesse apoio a ela caso chegue ao segundo turno?

Impossível saber. Na sabatina do Globo, publicada hoje, Marina faz uma dura crítica ao governador Alckmin. O detalhe é digno de nota porque Alckmin está muito bem nas pesquisas e Marina ocupa o primeiro lugar em SP, vale dizer, há uma grande coincidência de eleitores entre eles. Ao demarcar com Alckmin nessa altura da campanha, Marina está dando um sinal corajoso sobre a  distância que quer manter do mais destacado político conservador do país. Talvez a ida de Marina para o segundo turno e, depois, uma eventual vitória, venham a arrastar o PSDB para uma escolha muito clara: uma opção de centro, livrando-se de sua ala mais conservadora, liderada por Alckmin, ou persistir nessa unidade pragmática que obriga tucanos progressistas a assistirem, calados, a atuação da PM que o governador de SP encoraja, simbolizada no seu inesquecível: “quem não reagiu, tá vivo”.

5. Nesse caso, pode-se dar como certo que o PT irá para a oposição a um eventual governo Marina?

Aquilo que muitos chamaram indevidamente de “aparelhismo” do PT foi apenas a consequência natural do resultado eleitoral, que levou ao poder uma força que nunca o havia ocupado e que chegava a ele com um dispositivo burocrático nacional preparado precisamente para ocupar o poder. O PT ocupou os cargos que o povo lhe conferiu e se esses cargos à disposição do vencedor são demasiado numerosos é outra discussão. Se Marina vencer, chegará ao poder sem um dispositivo partidário desse tipo e, assim, terá de fazer como fizeram todos antes de Lula: arregimentar muita gente fora dos partidos que a apoiam. Ora, a mim parece muito difícil que o ordem burocrática petista atual possa se dar ao luxo de se conduzir com Marina como o fez com Itamar Franco, quando recusou participação e isolou nomes como o de Luiza Erundina, que aceitou um ministério à revelia do partido. Naquela altura, o PT precisou apenas fazer o cálculo dos benefícios políticos de ficar de fora, pois sua escolha não iria desempregar ninguém. Agora, quando há tantas bocas a alimentar, ficar de fora impõe um custo tremendo. Além disso, como Marina insiste em ficar apenas quatro anos, Lula pode vir a sonhar em fazer de um governo Marina um mandato neo-petista tampão, que sirva de banho-maria para o tal lulismo. Ou seja, nessa matéria as coisas estão mais em aberto do que a eleição em si.

6. Então faz sentido Marina dizer que quer governar com PT e PSDB?

Para mim sempre fez sentido. O problema, agora, é a direção dessa alternativa. O custo da polarização de PT e PSDB é termos de aturar em posições de mando os remanescentes da ditadura que os dois lados tem de arregimentar para vencer um ao outro na disputa contraproducente: PMDB, DEM, Maluf e outros. Em tese, friso, em tese, a vantagem da dissolução dessa polarização por Marina é que, talvez, pudéssemos nos livrar do entulho autoritário e ver um governo federal dirigido pelas principais forças da redemocratização, o que, na impossibilidade de uma transformação, seria um ganho, mesmo com todas as suas limitações. Mas para isso seria necessário uma Marina resolutamente transformadora, força que seria modificada para um “progressismo” pelos aliados, mas ainda seria menos desanimadora do que a situação atual. Minha reticência está, hoje, no peso simbólico de Marina ter abandonado posições que defendia há até bem pouco tempo (revisão da lei de anistia, recusa aos transgênicos), no fato de ela ter adotado receitas ultra-liberais coerentes com aquele abandono simbólico, como a tal autonomia legal do Banco Central, no tratamento aguado que dá ao combate à desigualdade em seu programa de governo e ainda, e sobretudo, no fato de ela defender como a “reforma das reformas” uma reforma política inapelavelmente reacionária, como já esmiucei aqui. Com essas sinalizações conservadoras e essa reforma política reacionária, Marina vai deixando de ser um dínamo transformador e entrega (todos!) os pontos antes da hora. Nessa batida, ela vai se candidatar a repetir não o governo Itamar, mas o governo Sarney. Nesse caso, teríamos o fim da polarização PT-PSDB pelo pior caminho: ela teria ficado irrelevante porque o stablishment encontrou arranjo melhor.

Uma REFORMA POLÍTICA r e a c i o n á r i a

Carlos Novaes, 09 de setembro de 2014

Não é segredo que a sociedade brasileira quer mudança. Quando se pensa exclusivamente na política ali onde ela está sujeita ao voto do cidadão, a insatisfação é generalizada, embora o poder executivo se saia melhor do que o legislativo. Se olharmos para os números das pesquisas que avaliam presidente, governadores e prefeitos ao longo dos últimos anos veremos que a gestão da coisa pública é sopesada com critério pelo eleitor, pois o quadro varia muito, havendo tanto repúdio quanto exemplos positivos, em todas as instâncias executivas do sistema federativo. Do lado dos legislativos não há variação porque a repelência pela nossa representação é justificadamente absoluta: eles construíram um mundo à parte, baseado em suas próprias afinidades com as rotinas do poder e do dinheiro, afinidades que intensificam relações corporativas recíprocas ali onde seria de esperar divergência programática, situação que lhes permite receberem os votos para ficarem de costas para nós, paradoxo que tem sido apropriadamente descrito como uma crise de representação.

Os remédios para essa crise de representação são quase tão numerosos quanto os médicos que se apresentam à urgência, e já fiz em outros textos o escrutínio de algumas das propostas de reforma política que nos tem sido oferecidas, como pode ser lido aqui. Mas uma coisa é certa: uma crise de representação não pode ser enfrentada com remédios que aumentem a distância entre eleitor e eleito, pois medidas assim tornariam ainda mais confortável a vida dos nossos representantes infiéis, que são infiéis não só porque querem, mas também porque encontram mecanismos propícios para sê-lo.

Aparentemente afinado com esse cenário de crise e busca de alternativas, o Programa de Governo de Marina dá precedência ao tema da reforma política sobre todos os outros quando defende logo em seu primeiro capítulo que

“não basta substituir a representação pela participação simplesmente; trata-se de procurar uma articulação nova e profunda entre as duas coisas. Uma das causas profundas da crise de valores é a reprodução da velha política.[…] O primeiro passo de uma reforma implica exigir comportamento republicano de todos os agentes políticos e dos demais ocupantes de cargos públicos. […].Para deflagrar o processo de reforma política, vamos sugerir medidas iniciais que levarão à reconfiguração integral do sistema político e eleitoral do país. […]. A política precisa absorver a mensagem de reconectar eleitos e eleitores. […].Os canais existentes devem ser fortalecidos, mas novos instrumentos precisam ser desenvolvidos, mediante o uso de tecnologias da informação e comunicação, para que o cidadão participe mais ativamente das decisões.”

No que diz respeito à representação, parece claro que a candidata pretende “articulá-la” com a “participação” e “reconectar eleitos e eleitores”. Entretanto, quando conseguimos transpor o palavrório enfadonho do programa, encontramos propostas que renegam o que os autores alegavam pretender e, pior, são em tudo contrárias ao que queremos:

Coincidência geral das eleições  e mandatos de cinco anos: além de prorrogar mandatos de uns e outros, atropelando escolhas anteriores do eleitor, essa proposta é o oposto de mais participação e responsabilização: ela mais que dobra, estende de dois para cinco anos(!),  o tempo em que o voto do eleitor não pode interferir no andamento da representação (legislativo) e da gestão (executivo), ou seja, protege o sistema político dos juízos da sociedade, quando parecia pretender o contrário. A adoção de mandatos de cinco anos é mais do que nossos políticos corruptos poderiam sonhar, e desafio qualquer um a demonstrar como essa medida aproxima eleitor e eleito. Para glória dos marketeiros e mistificadores de plantão, a coincidência geral de mandatos engessa numa mesma campanha eleitoral o diversificado temário de todos os níveis e instâncias do sistema político cujos cargos são providos pelo voto popular, pondo dificuldades adicionais ao escrutínio do eleitor acerca da realidade, mas facilitando enormemente o trabalho de quem se dedica à fantasia.

Trata-se da proposta mais reacionária que poderia ser concebida, porque é uma reforma contra a mudança: dá a uma representação política repudiada a oportunidade confortável de aumentar sua autonomia em relação aos eleitores numa circunstância em que a base da crise é a autonomia já demasiado confortável de que desfrutam “nossos” representantes.

Fim da reeleição para os executivos: ao invés de propor o fim da reeleição salteada, que tem levado grupos políticos a se eternizarem no poder, como no governo de São Paulo colonizado pelos tucanos, Marina propõe dar cabo da reeleição como tal, duvidando do juízo do mesmo eleitor a quem diz querer dar mais participação… Não há nenhuma evidência de que mandatos de quatro anos com uma, e apenas uma, reeleição sejam um dano à boa gestão da coisa pública. Pelo contrário: em instâncias de gestão, em que não há propriamente representação, não há mal no eleitor poder reconduzir uma vez um governante bem avaliado, desde que ele seja impedido de disputar o mesmo cargo mais adiante. A reeleição no executivo pode ser benéfica porque na gestão da coisa pública os elementos de continuidade se sobrepõem aos elementos de mudança: diferentemente do representar o cidadão, em que as mudanças na sociedade devem ser mais prontamente traduzidas, o gerir a coisa pública é tarefa que arrasta memórias mais duráveis, pois são escolas em construção, rotinas de atendimento médico em implantação, investimentos em infraestrutura em andamento, etc.

Ou seja, pela natureza da atividade, na gestão há menos necessidade de supor ou decalcar a mudança no humor das ruas, como é mister na representação. Ademais, como o titular do executivo tem visibilidade sempre maior do que a do legislativo, seguir e avaliar o desempenho de um prefeito, por exemplo, é sempre menos trabalhoso do que vigiar um vereador, circunstância que torna menos inercial a recondução na gestão do que na representação. Um parlamentar nocivo é muito mais facilmente reeleito do que um gestor incompetente – até porque, além de menos visível, o parlamentar sempre pode ir pedir votos em outra freguesia. A reeleição que tem que acabar é a do legislativo, mas sobre essa transformação necessária o programa de Marina nada diz. Enfim, o fim da reeleição para gestores é uma proposta reacionária, pois não só não propõe mudar a representação (embora simule reconhecer sua crise), como reforça o modelo político defendido pelos políticos profissionais dessa mesma representação legislativa em crise, que almejam mais rotatividade nos cargos de gestão porque aspiram ver esses cargos mais livres para a ciranda das cadeiras que ambicionam.

Em outras palavras, quando juntamos coincidência geral de mandatos de cinco anos com o fim da reeleição para o executivo vemos o desenho de uma alteração especialmente reacionária, pois ela reage ao pouco que conquistamos nos últimos anos e consagra os interesses dos profissionais da representação nefasta: dá a eles mais tempo, mais cargos e mais recursos para o toma-lá-dá-cá que fundamenta sua existência.

Se Marina vier a ser eleita, não haverá nenhuma surpresa quando ela conseguir maioria legislativa absoluta para aprovar essas barbaridades, que configurarão não a mãe de todas as reformas, mas a pá de cal em qualquer transformação e a pedra fundamental para uma base parlamentar voltada a outros retrocessos, como a autonomia legal do Banco Central. Naturalmente, se a oportunidade nefasta se apresentar, as velhas raposas irão facilitar o caminho para o que lhes interessa enfeitando a prorrogação/extensão dos seus mandatos e o fim da benéfica possibilidade de reeleição com a embromação conhecida sobre mecanismos complementares de “participação tecnológica”, tudo com o beneplácito dos bancos.

Um sistema eleitoral em que os candidatos mais votados são os eleitos –  ou seja, o projeto de Marina quer acabar com o voto de legenda, regra eleitoral valiosa que nosso sistema eleitoral acertadamente adotou para fazer a combinação entre o voto em indivíduos e o voto nos partidos. É justamente essa combinação que torna impertinente e supérfluo qualquer outro modelo chamado de lista, como quer o PT, pois pelo nosso excelente modelo eleitoral o eleitor pode escolher entre o candidato individual e o programa partidário. Se nossos partidos não são programáticos, o remédio não está em retirar do eleitor a liberdade de votar neles (voto que ele tem dado com comedimento acertado).

Prudente registrar que a redação da proposta é tão econômica em detalhes que não dá para saber se não estaria embutida aí, além do fim do voto de legenda, uma porta secreta para a adoção de algum dos modelos do chamado voto distrital, no qual uma eleição majoritária permite ao mais votado levar tudo, sacrificando a representação das minorias e/ou do voto de opinião, que geralmente não são delimitáveis em distritos territoriais. Se for isso, teremos o pior dos mundos: eleições majoritárias gerais a cada cinco longos anos, com o massacre das minorias.

Permitir a inscrição de candidaturas avulsas – havendo exigências prévias de alguma representatividade, como o programa de Marina já ressalta, as candidaturas avulsas são um ganho para a riqueza da representação, e até para ajudarem a forçar os partidos à mudança. Mas salta aos olhos que essa proposta adequada de diversificação contraria as outras quatro, discutidas acima.

Propor mecanismos de transparência nas doações para campanhas eleitorais – bem, uma proposta vaga assim não permite avaliação. Mas vale à pena ressaltar a covardia do programa nesse ponto, pois esse é um dos temas centrais da nossa crise de representação. Certamente a vaguidão decorre de que não há unidade dentro da coligação sobre o tema, o que torna alarmante a clareza das primeiras propostas, pois é sinal de que a coligação está unida na reação.

Para além das propostas desastrosas, a reforma política do programa de Marina apresenta equívocos que o palavrório não esconde.

Primeiro equívoco: ao constatar o óbvio, que a maioria da sociedade quer mudar nossa dinâmica política, o programa faz a correspondência errada entre querer mudar e querer participar. Não há evidência dessa suposta demanda reprimida por participação. Pelo contrário, as manifestações do ano passado mostraram quão poucos somos os que nos dispomos a participar e quão efêmero é esse nosso impulso. A demanda é por uma representação que responda aos representados, e essa correspondência não será alcançada nem pelas propostas de Marina, como vimos, nem pelo rogo aos políticos para que tenham vergonha na cara, ou pelo apelo para que venham fazer política cotidiana, sem remuneração, cidadãos cuja luta pela vida não deixa tempo sequer para ajudar o filho com as tarefas da escola.

Segundo equívoco: a essas ideias aduladoras de participação, o programa junta a proposta “muderna” (claro) de consultas diretas com base em recursos tecnológicos, como se consulta fosse o mesmo que a participação propalada (outra falácia). Mesmo que fossem a mesma coisa, consultas são eventos esporádicos não porque falte tecnologia para realizá-las, mas sobretudo porque uma consulta política numa democracia requer duas preliminares: que os perguntados conheçam o tema em questão e  que os perguntadores tenham legitimidade para fazer a pergunta, situação ótima rara de alcançar, cheia de meandros cabeludos. Em outras palavras, não cabe tratar a tecnologia como a solução para a “participação”, pois as complicações da consulta popular são muito anteriores ao ritual da consulta propriamente dito – não foi por outra razão que surgiu a representação, que significa “estar no lugar de”.

Um sistema de consulta direta empregado amiúde trará mais mistificação do que exibe a pior das representações: os perguntadores de plantão irão dirigir a “participação” via consulta, com todas as implicações da sociedade do espetáculo, que será chamada a votar em meio ao lufa-lufa diário, em verdadeiras gincanas de opinião. E se, pelo contrário, as consultas não forem amiúde (como é mais provável que ocorra), os profissionais da política continuarão a tomar a maioria das decisões, agora protegidos por mandatos de cinco anos.

Assim como os ruralistas aproveitaram a demanda efetiva por aperfeiçoamento do Código Florestal para acertar e aprovar intra muros uma reação à proteção ambiental no Brasil, a reforma de Marina permite aos profissionais da traficância política instrumentalizar a demanda por mudança numa proposta de reforma política que é o oposto da mudança.

O FIM DO QUE NUNCA EXISTIU – o lulismo

Carlos Novaes, 7 de setembro de 2014

Não faz muito tempo que, com o brilho fátuo dos pseudo conceitos, um espectro emergiu da manjedoura da nossa estrebaria acadêmica: o lulismo. Protegido pela benevolência amiga dos mais velhos, poupado pela covardia corporativa de comensais contemporâneos e louvado pela adulação carreirista dos discípulos, esse gasparzinho da crítica camarada enfunou-se, e rapidamente se espraiou pelas redações do jornalismo político. Pairando desajeitado sobre as eleições municipais de 2012, ele imaginou ver confirmação da sua existência na vitória de Fernando Haddad para prefeito de São Paulo, ainda que para lograr essa encarnação tenha precisado comportar-se como um zumbi: aboliu a memória eleitoral da mais populosa cidade do país.

Qualquer um que tenha se debruçado sobre a história eleitoral da cidade desde que as eleições diretas foram reintroduzidas, em 1988, quando Luiza Erundina se saiu vitoriosa, sabe que a periferia tem preferido o PT (padrão que pode mudar nesta eleição de 2014) e as áreas centrais votam ora à direita, ora ao centro. Uma camada endinheirada e mais escolarizada das áreas centrais da cidade também pode votar PT em pleitos municipais, desde que diante da combinação de duas circunstâncias: o candidato anti-PT seja inaceitável e o candidato do PT ilumine essa inaceitabilidade com um perfil social em que aquela camada se reconheça. Foi assim que depois da adoção dos dois turnos o PT venceu a disputa para a prefeitura de SP duas vezes: a primeira com Marta Suplicy, em 2000, e a segunda com Haddad, em 2012.

Como a primeira dessas duas vitórias em tudo assemelhadas se deu dois anos antes de Lula chegar à presidência em 2002 (quando, embora tenha ganho a eleição, Lula perdeu para o candidato de FHC entre os pobres assistidos pelo governo federal), pretender creditar a um suposto lulismo a vitória de Haddad é tomar um lulismo por outro. O lulismo que operou em favor de Haddad foi a força de Lula dentro do PT, adquirida depois que ele escapou do mensalão enquanto viu queimar ali o único quadro que fazia o contraponto ao seu mando carismático sobre a burocracia partidária, o Zé Dirceu. Tendo imposto Haddad como candidato, o lulismo de partido concluiu sua tarefa – o resto foi feito pelo petismo e pelo eleitorado paulistano, que assim como entendeu o esgotamento de Maluf em 2000, constatou o de Serra em 2012, em ambos os casos favorecendo a candidatura petista de perfil conciliador, sem que haja dados que justifiquem dizer que nesse último pleito teria havido um “realinhamento” eleitoral na cidade.

Mas o espectro não se dá por achado e volta a ulular em 2014, agora buscando refúgio num suposto núcleo duro do lulismo, massa densa de pobres assistidos por programas sociais federais que, depois de exibir um tão inédito quanto fantasioso realinhamento de preferências, apresentaria, agora, uma inclinação especial por “candidatos lulistas”, sintagma já de si esquisito, pois não sabemos se estes tais candidatos são “lulistas” porque Lula os apóia, se porque eles se dizem “lulistas”, ou porque defendem o que seria identificado pelo eleitor como um ideário “lulista” , ou ainda porque se poderia defini-los como “lulistas” segundo um bem assentado conceito de lulismo –– provavelmente é um pouco de cada coisa… Seja como for, o tal realinhamento definido como lulismo seria a explicação para os mais pobres preferirem Dilma.

Permitam-me transigir com o implausível apenas no intuito de melhor demonstrar sua imperspicuidade: esqueçamos que o que explica o voto dos mais pobres em Dilma é não esse fenômeno recentíssimo, o lulismo, mas o velho de séculos governismo. Esqueçamos isso e aceitemos a tese novidadeira — que, diga-se de passagem, já vem sendo aliviada de suas pretensões explicativas, escolhendo acomodar-se numa fenomenologia eleitoral de baixa intensidade –, esqueçamos o velho para observar o que se passa com os dois candidatos mais vistosa e inapelavelmente lulistas desta eleição: Alexandre Padilha, em SP; e Lindenbergh Faria, no Rio.

Se houvesse um lulismo realinhando preferências do eleitor mais pobre, Padilha e Lindenbergh deveriam estar colhendo esse realinhamento, e não estão. O que as pesquisas de intenção de voto vem mostrando é, a um só tempo, novo e velho: velho porque mostram em pleno vigor a gratidão e o conservadorismo governista dos pobres, que votam preferencialmente em Dilma nesses estados; e novo porque esses mesmos pobres, vivendo nos dois mais dinâmicos estados da federação, muito mais informados do que no passado, embora não tenham deixado de ser gratos e conservadores, não deixam de perceber que não há razão para misturar as coisas e atinam que seria indevido transferir seus sentimentos governistas federais para os lulistas estaduais — superam, assim, a confusão desinformada que seria necessária para seguirem um não menos confuso lulismo, que nunca existiu, e preferem votar em candidatos a governador segundo critérios que não tem relação direta com os tais programas federais de assistência e renda e, muito menos, se guiam por hemisférios liberais e não-liberais no cenáculo eleitoral (aqui as coisas já tomam contornos de delírio).

Lula, que acreditou na lenda do lulismo, parece estar colhendo o resultado das escolhas reais que fez e sobre as quais tive oportunidade de escrever na virada de 2008 para 2009, quando ele se fixava em Dilma como sua candidata à sucessão de 2010:

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

O nível está baixo

Carlos Novaes, 7 de setembro de 2014

Para quem luta por uma transformação da política brasileira, a candidatura de Marina tem problemas sérios. Mas eles não estão ali onde jornalistas e adversários estão batendo, como numa suposta semelhança com Collor e Jânio. Por isso, antes de continuar a apresentar, em textos ulteriores, a crítica que venho fazendo ao que julgo reacionário no programa de governo da candidata, vou apresentar meu ponto de vista sobre aquilo que tem sido objeto do alarido da mídia.

A CRENÇA

Respondendo a um questionário das filhas, em mais um dos jogos em que se divertia a viver com elas os afetos familiares, Marx disse que o mais tolerável dos defeitos humanos é a credulidade, não obstante deplorasse religião e, ainda mais, a pregação. Certa auto-intitulada esquerda marxista brasileira embaralhou os três termos para pregar censuras descabidas a Marina, como se a condição de crente necessariamente a transformasse numa militante política movida a religião, obstinada em fazer do palácio do planalto púlpito de pregação para uma governança obscurantista.

Para mim, deus ou Deus é uma superstição tolerável como outra qualquer. Uma superstição pode se tornar um problema político quando ganha contornos de religião, especialmente quando os religiosos se organizam em igreja e passam a pretender judicar, com menos ou mais ênfase, sobre os não supersticiosos e/ou sobre os que preferem outras superstições. O estado laico não é o estado em que não há supersticiosos no comando. Laico é o estado em cujo comando os supersticiosos não atuam de modo religioso e, mais ainda, como igreja. Se o governante reza ou consulta textos que supõe sagrados antes de tomar decisões, dá provas de superstição, não de religiosidade fora do lugar ou de obediência extravagante, impertinências que só se configurariam se, por exemplo, praticasse cultos em palácio ou fizesse da igreja instância recursal para decisões de governo.

Se o supersticioso que postula governar é membro de uma religião e segue os preceitos de igreja inspirada nela, é justo que sua prática política e suas propostas de governo sejam examinadas por todo aquele que entenda haver risco em sua eleição. Pois bem, embora o recuo de Marina nos direitos dos LGBTs tenha importância como sinal de alerta do que poderá ser seu comportamento na presidência diante de pressões religiosas, não é menos importante reconhecer que sua prática política e seu programa de governo oferecem garantias explícitas de que esse será um terreno favorável à luta, e não à retirada, caso ela ganhe o governo, pois seu programa consagra direitos e conquistas que contrariaram, e contrariam, essas mesmas forças religiosas – textualmente:

“Não podemos mais permitir que os direitos humanos e a dignidade das minorias sexuais continuem sendo violados em nome do preconceito. O direito de vivenciar a sexualidade e o direito às oportunidades devem ser garantidos a todos, indistintamente.” (grifo meu).

” Como nos processos de adoção interessa o bem-estar da criança que será adotada, dar tratamento igual aos casais adotantes, com todas as exigências e cuidados iguais para ambas as modalidades de união, homo ou heterossexual.”

“Incluir o combate ao bullying, à homofobia e ao preconceito no Plano Nacional de Educação”.

“A violência que chega ao assassinato, vitima muitos dos membros dos grupos LGBT. Dados oficiais indicam que, entre 2011 e 2012, os crimes contra esse grupo aumentaram em 11% em nosso país. Outros sofrem tanto preconceito que abandonam a escola e abrem mão de toda a oportunidade que a educação pode dar, o que também, de certa forma, corresponde a uma expressão simbólica de morte.”

Em suma, que os riscos oferecidos pela filiação de Marina à sua igreja, que são reais, não colham  antecipadamente na esfera pública política o prêmio pelo obscurantismo que encerram, em razão de os progressistas terem desertado de um terreno favorável à luta por menos obscurantismo nessa mesma esfera.

 O PRÉ-SAL

Ninguém medianamente informado pode deixar de reconhecer que a civilização do petróleo tem dois problemas centrais: primeiro, vai acabar quando acabar o petróleo e, segundo, pode acabar antes do petróleo, se continuar a fazer um mal uso dele. Com isso em mente, as reservas do pré-sal devem ser recebidas como uma conquista e um desafio: são uma conquista porque oferecem aos brasileiros recursos valiosos na luta por uma vida melhor na civilização do petróleo; são um desafio porque reclamam aos brasileiros que encontrem um emprego mais inteligente para esse petróleo do que alterar para pior a matriz energética de seu país e as condições ambientais do planeta – estamos desafiados a investir parte dos recursos do pré-sal na busca e invenção de fontes mais limpas de energia, que nos ajudem, inclusive, a achar o caminho para uma civilização pós-petróleo. É isso que Marina propõe e é sobretudo nisso que ela é superior aos adversários, que já demonstraram não compreender a encrenca em que a humanidade está metida e o papel central que o Brasil pode jogar na busca da solução.

Dessa perspectiva, a patriotada petista em torno do pré-sal é obscurantista e desonesta. Obscurantista porque apresenta uma devoção religiosa ao bezerro negro, guiando-se por cálculos que não superam uma geração (como é próprio da avidez petista); desonesta porque orientada pela devoção ao poder passa por cima de verdade que deveria reconhecer: Marina propõe um desenvolvimento sustentável que não negligencia e, muito menos, ignora, a importância da riqueza perigosa do pré-sal (se bem que a candidata não venha primando pela coragem de defender pontos de vista mais complexos sobre esse e outros temas eleitoralmente delicados – se mais uma vez Marina vir escapar a oportunidade, terá sido principalmente por isso, ainda que não se possa negligenciar o peso que tem a perda de contingentes de transformadores, inconformados com o reacionarismo de certas propostas).

As reações de Aécio sobre o atual caso Petrobrás até podem enganar os desinformados sobre os acertos entre o PT e o PSDB quando diante de CPIs embaraçosas. Leia a seguir trecho sobre o pré-sal extraído de um texto que escrevi em 2009 e cuja íntegra pode ser encontrada aqui.

“É provável que a era Lula (nela incluída a oposição) não venha a oferecer emblema mais acabado de seu ocaso inventivo, do que o estardalhaço patrioteiro em torno do Pré-sal, verdadeira apoteose da campanha varguista de há 50 anos, O Petróleo é Nosso, num tempo em que os esforços da ciência internacional estão voltados não para a extração de combustível de origem fóssil (por mais complicada e rentável que se apresente a monótona tarefa), mas para a produção de energias de origem renovável que ajudem a conter a mudança climática oriunda fundamentalmente da emissão de carbono. Se O Petróleo é Nosso, Nosso CO2 é de Todos. Embora o petróleo venha a ter lugar central num projeto que busque um novo modelo de desenvolvimento — pois temos de tirar proveito do nosso atraso relativo –, não será o caso nem de celebrá-lo cegamente em suas aplicações como combustível, nem de deixar de incluir nos custos e benefícios da sua extração garantias e projetos de orientação socioambiental que permitam, no longo prazo, a transição eficaz do modelo do ouro negro para a economia verde.

Para completar o quadro acabrunhador, e como não poderia deixar de ser, a auto-intitulada oposição não se peja de gastar suas energias a bramir sua revolta contra o uso eleitoral do Pré-sal. Faz sentido: se o projeto é o mesmo, tudo que se pode fazer é espernear contra os benefícios eleitorais que advém para o realizador de turno de mais uma conquista do projeto comum, da qual, por um “azar do destino”, se está momentaneamente apartado e, portanto, impedido de comemorar.

Essa escolha do PSDB é muito ilustrativa de suas limitações de formulação acerca do que realmente interessa, pois despreza o fato de que a Petrobrás é o exemplo mais acabado dessa longa jornada do crescimentismo, agora hegemonizado pelo trabalhadorismo: uma empresa petrolífera de economia mista sob controle estatal em que pela primeira vez na história desse país o poder empresarial e o poder sindical se sobrepõem, situação cujos resultados mais pestilentos ainda estão por vir à tona.”

CESSNA, PLÁGIO E DECALQUE

Depois da tentativa esdrúxula de apresentar como prova da “velha política” Marina ter declarado que não sabia da situação patrimonial (não a contratual) do avião cuja queda matou quem contratara o serviço, como se o não saber, nesse caso, fosse a mesma coisa que tentar se eximir de responsabilidade diante de denúncias que envolvessem prática sua, ou ação levada a cabo em seu benefício; depois disso, apareceu contra Marina a acusação de ter plagiado em seu programa de governo propostas políticas de domínio público, amplamente conhecidas, como se fosse possível que ela aspirasse enganar alguém de modo tão pueril. Mais adiante, quando todo absurdo já parecia ultrapassado, apareceu a “acusação” de que Marina plagiara a si mesma, copiando em seu programa de governo, vejam só a perfídia, declaração sua de 2010…Que ignorantes ou interessados desqualificados façam isso, vá lá, mas é deplorável que denúncias desse tipo encontrem guarida em meios respeitáveis pela audiência de que desfrutam, e no texto de gente que se passa por séria, ou na boca de quem aspira ser levado a sério.

IBOPE E OUTROS TEMAS

Carlos Novaes, 03 de setembro de 2014

1. A nova pesquisa IBOPE mostra reação de Dilma?

Não. Essa pesquisa mostra que a situação divulgada pelo DataFolha em 29 último segue inalterada. Os números são os mesmos, se considerarmos as margens de erro, e eles mostram, como já vimos, a alteração havida no comportamento dos eleitores que não tinham preferência por Dilma, ou seja, que estavam em outras posições e deslocaram sua preferência para Marina. A candidata do PSB não avançou nesses míseros cinco dias que separam as duas pesquisas, o que indica o óbvio: o eleitor que não mudou de preferência exigirá mais informação para mudar, se vier a mudar.

2. Os números novos são resultado dos ataques do horário eleitoral a Marina?

Esses ataques não podem ser os responsáveis por Marina não ter crescido nesse intervalo de cinco dias, e por duas razões: primeiro, não houve tempo hábil entre estímulo e resposta; segundo, dificilmente o eleitor que já não vota em Dilma responderá positivamente a uma mensagem tão agressiva partindo dela – o mais provável é que ele venha a ficar ainda mais contra Dilma, prestando atenção benévola em Marina. Ou seja, Marina pode até crescer.

3. Muitos vem apontando semelhanças entre Marina, Jânio e Collor. Isso faz sentido?

Jânio e Collor foram figuras de ascensão política meteórica enquanto criaturas solitárias, sem laços com dinâmicas institucionais e, ainda mais, sem laços com uma causa, ambos vociferando contra uma hipotética ordem maléfica reinante, sem oferecer parâmetros propriamente racionais para o voto. Marina não apresenta NENHUMA dessas características. Marina tem uma sólida reputação pública, construída com trabalho em equipe, defendendo causas que vem sendo acompanhadas publicamente há décadas. Foi parlamentar partidariamente disciplinada e ministra de Estado eficaz e sensata, sem que se possa apontar qualquer comportamento imprevisível ou contraditório em sua atuação. Não há, portanto, base para essa comparação, que só parece verosímil a quem teme a mudança por temer mudança. Os problemas da candidatura dela são outros.

4. A falta de apoio de um partido grande, somada ao fato de que os grandes partidos estão contra ela, não são carências que vão impedi-la de governar?

Não. Essas circunstâncias vão pôr dificuldades, mas não vão impedir. E mais: consideradas em si mesmas, essas dificuldades que antevemos deveriam ser prova das virtualidades positivas de um governo Marina, se considerarmos que ela não é nenhum Collor ou Jânio. Ou seja, não dá para fazer o discurso da mudança, ou a crítica à nossa representação parlamentar lamentável e, ao mesmo tempo, ver como problema o fato de que essa representação inadequada vai ser desafiada por um poder executivo voltado à mudança. Afinal, o que queremos: um governo que mude ou um governo que se acerte com esse parlamento que não nos representa? Se Marina fosse um Jânio ou um Collor, sem lastro prévio, haveria razão para que o temor dos riscos viesse a inibir o voto dos mais responsáveis, mas considerando o passado da candidata, os riscos não estão aí.

5. E onde estão os riscos?

Os riscos estão nos vínculos da candidata (não na falta deles), nas propostas claras da candidata (não no caráter nebuloso delas). Marina recuou no tema dos homossexuais por pressão institucional da sua igreja. Se o recuo tivesse se restringido à ampliação dos direitos civis deles, teria sido péssimo, mas não seria desastroso porque os mais benevolentes, entre os quais não me incluo, ainda poderiam dizer que ela recuara por razões de consciência pessoal. Mas não foi “só” isso. Marina recuou ali onde se abrigam os agressores aos direitos dos homossexuais. Ou seja, mais do que recuar diante da necessidade de ampliar o respeito à diferença, ela escolheu negar instrumentos adicionais para conter e punir agressores de quem é diferente.

Marina adotou a meta de conceder autonomia  legal ao Banco Central, privando o Executivo de um dos braços de regulação da política econômica. A crise da Europa deixou à vista de todos a desgraça dessa autonomia para a Grécia, Espanha, Portugal, etc. Ela, que prega mais Estado nas políticas sociais, com excelentes propostas no lado da entrega do balcão, escolhe amputar um braço indispensável para implementar a base econômica dessas propostas, num liberalismo de alto risco. Definitivamente, ela não sabe o que diz, aqui.

Marina também nada diz sobre o problema tributário ali onde ele é realmente assunto relevante quando se pensa no combate à desigualdade: como fazer a acumulação de riqueza ser contida? Ela repete o discurso vazio do PT em prol de políticas sociais, vazio porque não enfrentou o problema da riqueza (o Lula se ufana de que em seu período os ricos ganharam dinheiro como nunca), limitação que já mostrou, na prática, que o partido segue os liberais ali onde eles pregam o direito à acumulação infinita. Marina vem se mostrando por demais influenciável pela companhia de gente muito rica e de seus “pensadores” de estimação. São pessoas de cujas boas intenções sociais não podemos duvidar, mas que estão tão impedidas de pensar um governo de combate à desigualdade quanto os atuais parlamentares estão impedidos de pensar regras eleitorais que ameacem as rotinas com que reproduzem seus êxitos. Marina parece não ter entendido que quando se põe as raposas para cuidar do galinheiro o único benefício a que se pode aspirar é assistir as raposas brigarem quando as galinhas escassearem.

Um debate esclarecedor

Carlos Novaes, 01 de setembro de 2014

Ao se ocuparem de temas relevantes e não fugirem do embate, os candidatos a presidente da República fizeram um debate esclarecedor no SBT, que permitiu ver suas qualidades e debilidades e cuja dinâmica de confrontos refletiu o clima das ruas e os resultados das pesquisas mais recentes: Marina e Dilma como protagonistas, vindo depois os demais. Ruim para Aécio, que afetando serenidade na hora errada (a situação mudou) ficou no lugar de quem já não conta na disputa e não apresentou uma estratégia adequada de atuação: esgrimiu com Dilma de modo convencional, sendo eficazmente desmentido por ela no que se refere aos investimentos federais em MG; e tentou desqualificar Marina com o surrado e desacreditado discurso conservador da experiência e da segurança, que foi dissolvido pela postura direta e clara da candidata do PSB.

A pressão decorrente do êxito parece ter feito bem a Marina, que se saiu muito melhor hoje do que no debate anterior: deixou mais claras suas propostas, se mostrou ágil e combativa, indo sempre ao ponto — falou para o eleitor/telespectador e foi quem se saiu melhor no debate. Ao assumir a ideia de regulamentar em lei a chamada autonomia do Banco Central, do modo como o fez, enfatizando que trata-se mesmo de retirar do presidente da República o poder para interferir na política monetária sob a gerência da instituição, Marina explicitou um viés conservador de sua candidatura, ofereceu garantia cabal aos interesses dos agentes financeiros e deu a senha programática para que os tucanos e o DEM adiram à sua campanha. Uma lástima. Esse passo na direção conservadora não chegou a ser compensado por nenhuma ideia ou proposta arrojada de transformação, pois mesmo Dilma tendo aberto a discussão da origem dos recursos para os gastos sociais prometidos por Marina, ela nada disse sobre desigualdade, distribuição de renda, justiça tributária (já não digo progressividade…), combate à sonegação e cobrança aos grandes devedores de tributos – nada. Ao enfrentar a questão da geração de energia saiu-se melhor do que Dilma porque a presidenta está nas cordas nesse tema, seja pela visão tacanha de seu governo, seja pela situação da Petrobrás, seja pelo pouco que fez no cargo numa área em que seus áulicos supunham que ela brilharia – mas Marina não foi além do feijão-com-arroz genérico, embora tenha feito um esclarecimento correto sobre a exploração do pré-sal.

Dilma parecia perdida, irritada, nervosa. Mais olhou para papéis do que para a câmera, e chegou a confessar “nervosismo” com o debate. A presidenta deu sinais claros de que a grande pressão a que está submetida impôs seus efeitos: apresentou raciocínios desconexos, disse frases um tanto a esmo, gesticulou de modo inconformado e fez muita cara feia, tudo acompanhado de números que, a essa altura, só os mais motivados por ela ainda querem ouvir – foi incapaz de apresentar um rumo novo, impedida que se vê de criticar a si mesma, limitação que Marina voltou a explorar de modo oportuno.

Eduardo Jorge, com o senso de justiça que o caracteriza, se saiu bem, mas errou ao repisar a ênfase nos temas que o haviam distinguido do debate anterior – não levou em conta que aquela chancela recebida requeria não insistir na centralidade do problema das drogas e do aborto, mas mostrar-se capaz de tratar dos outros temas da campanha. A despeito de ter ficado devendo uma maior abertura temática, porém, o candidato do PV saiu-se muito bem quando explicitou uma proposta de enfrentamento dos grandes interesses financeiros, retomando o tema antigo, mas sempre relevante, de que os encargos que todos assumimos quando o governo se empenha na proteção aos interesses dos banqueiros geram obstáculos ao desenvolvimento, o que inclui entre os prejudicados a indústria e o comércio.

Luciana Genro, considerando que ela não tem em mente se eleger presidente, se saiu muito bem, foi a melhor depois de Marina. Com clareza e objetividade combativa ela fez críticas pertinentes ao status quo, apontou de maneira parcialmente acertada as limitações de Marina, combateu o neo-conservadorismo de Dilma e o reacionarismo de Aécio e, se não chegou a apresentar propostas, ofereceu bandeiras de luta afinadas com o entendimento simplório que tem dos desafios do nosso tempo, pautando-se pelo combate ao “sistema” e, claro, segundo o que entende por luta de classes.

O Pastor Everaldo revelou-se um despreparado candidato monotemático, pregando a convertidos de maneira repetitiva, que sugere decoreba de opiniões que deveria dominar, dada a predileção que tem por elas. Sem sequer variar frases ou vocabulário, voltou a insistir em sua visão bíblica dos problemas contemporâneos, sendo que dessa vez juntou a família com a segurança para nos falar de “maridos a quem os bandidos não deixam sair de casa para trabalhar”, esquecido, coitado, que mais de 50% da população economicamente ativa do Brasil, a PEA, é composta por mulheres.

Levi Fidelix, injustiçado por um jornalista inconsequente, protagonizou um momento de dignidade, até por ter explicitado sua indignação de modo desabrido, que atrapalhou seu desempenho, mas deu estatura ao papel que vem procurando desempenhar na eleição. A pergunta foi uma ofensa porque não houve NADA até aqui que sugira que a candidatura de Fidelix esteja a serviço de alguém senão dele mesmo, de sua vontade de se fazer ouvir. Se a contribuição dele é pequena, e é, não é decente nem sugere coragem tratá-lo como se ele não merecesse o respeito que toda pessoa merece.

 

 

 

PT PAGA O PREÇO PELA SUA ACOMODAÇÃO CONSERVADORA

Carlos Novaes, 30 de agosto de 2014

Em texto de 2008, e em várias manifestações nos últimos anos, inclusive na TV, tive oportunidade de apontar que ao se acomodar aos ganhos eleitorais por ter realizado políticas sociais que aliviaram os sofrimentos da vida dos brasileiros mais pobres, o PT deixava escapar o potencial desse segmento para integrar como sujeito uma transformação política no Brasil. Naquela altura, quando a opção de Lula por Dilma ainda suscitava controvérsia, eu perguntava e dizia o seguinte:

“Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.

Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.”

Pois bem, esse cidadão insatisfeito num novo patamar pode ser encontrado hoje entre os mais pobres e, sobretudo, na chamada nova classe C. Eles foram beneficiados pelos governos petistas, mas nem por isso estão impedidos de sonhar e de pensar, como a acomodação do PT poderia fazer acreditar. Como irão se conduzir esses segmentos nesta eleição de 2014?

Para responder a essa pergunta, voltemos um pouquinho no tempo. Análises orientadas pelas preferências de seus defensores viram na adesão dos mais pobres a Lula o surgimento de um lulismo, o que teria caracterizado um inédito realinhamento desse eleitorado. Um exame minimamente mais cuidadoso dos dados disponíveis mostra, porém, que as vitórias de Lula em 2002 e em 2006, assim como a de Dilma em 2010, não registraram realinhamento nenhum, sendo risível a insistência no “acerto” dessa abordagem ainda hoje: em 2002, embora tenha vencido a eleição, Lula perdeu para Serra entre os mais pobres beneficiados pelas políticas sociais de FHC; em 2006, já presidente, Lula venceu Alckmin nesse mesmo segmento e em 2010 Dilma, candidata do presidente, superou Serra aí. Ou seja, não houve realinhamento nenhum, pois os mais pobres continuaram, como sempre haviam feito, a votar no candidato do governo, num misto de gratidão e segurança: uma conduta conservadora – especialmente no Nordeste, onde a presença de dispositivos autônomos de construção da opinião pública tem presença residual.

A pesquisa DataFolha publicada hoje ajuda a enxergar que o tal lulismo nunca se configurou, sendo impertinente falar de “parte cativa da base lulista”, pois se os eleitores de até 2 salários mínimos de renda são cativos de alguma força, o são da força tentacular do governo que os beneficia, no caso, o governo Dilma, como antes o foram de FHC. A parte dos pobres que agora se desloca desse comportamento, indicada pelo DataFolha como a de renda entre 2 a 5 salários mínimos, está se conduzindo como seria de esperar daqueles que se libertam dos sofrimentos mais básicos e começam a levantar a cabeça, como indiquei naquele trecho do artigo de 2008 citado acima. Como o PT se acomodou à certeza insensata de que tinha aí um curral, batizado de lulismo, amarga agora a constatação de que suas últimas esperanças residem nas áreas mais atrasadas e pobres do Brasil, tal como o fizeram os coronéis de antanho. Não é por outra razão que na mesma pesquisa DataFolha o Nordeste aparece como refúgio de Dilma, única região populosa onde ela ainda aparece à frente de Marina, que por sua vez já a alcança e supera nas regiões Sul e Sudeste, onde é forte a presença de população escolarizada.

Em suma, Marina já decolou faz dias precisamente porque foi identificada como a alternativa transformadora por parte desses segmentos que sacodem a canga da necessidade, e será um erro se os dois candidatos conservadores passarem a atacá-la, especialmente se no ataque insistirem na sua presumida experiência contra uma suposta inexperiência dela. Só um erro da própria Marina pode arrefecer seu ímpeto para superar a etapa do primeiro turno. Havendo, como ainda é de supor que haja, um segundo turno, é que um combate mais cerrado com ela poderá funcionar, o qual não poderá deixar de ser visto pelo eleitor informado como um esforço contra a mudança.

MARINA PODE LEVAR NO PRIMEIRO TURNO?

Carlos Novaes, 30 de agosto de 2014

A julgar pelas informações ralas do que se passa nas campanhas de Dilma e Aécio, as reações dos concorrentes do status quo à crescente preferência do eleitor por Marina poderão ajudá-la a crescer ainda mais: ambos parecem pretender demover o eleitor da intenção de voto em Marina invocando a falta de experiência dela e enaltecendo a própria experiência – erro duplo: a vitória e o desempenho não desastroso de Lula na presidência, para dizer o mínimo, já soterraram essa ideia de que governar é coisa complicadíssima, reservada a seres especiais; e o aprendizado do eleitorado de que as mazelas da vida política brasileira (em gestão e representação) estão atados precisamente ao altíssimo profissionalismo de nossos políticos, já tornou problema, não credencial, a autopropaganda de uma presumida expertise.

Como não houve alteração na preferência por Dilma, e Aécio caiu de forma acentuada, fica claro que Marina vai concentrando em si, a passos largos, o eleitor que quer mudança: depois de avançar sobre eleitores que ainda não tinham candidato, Marina começa a trazer para si os eleitores de Aécio e de outros candidatos de oposição, pois Eduardo Jorge e Zé Maria não pontuaram e o Pastor Everaldo perdeu boa parte da atração que exercia sobre o eleitor evangélico. Em outras palavras, o comportamento do eleitor não dá sinal algum de que esteja havendo um fenômeno desordenado, irracional, emocional ou surpreendente; pelo contrário, no âmbito das informações disponíveis, o eleitor vai construindo uma alternativa para si que está desenhada pelo menos desde 2009, com o fim da era Lula: uma cunha para abrir o status quo, cindindo o clinche  improdutivo que o caracteriza, símbolo que é do que há de inaceitável e infértil na política brasileira, isto é, a polarização fajuta entre PT e PSDB.

A questão agora é saber o que vai acontecer com o eleitor que até aqui manifestou preferência por Dilma. Há uma parte dele que é “petista”, no sentido de que está convencida, com essa ou aquela intensidade, de que por tudo (os mais gratos, porque mais pobres ou muito ricos), ou apesar de tudo (os mais ideológicos ou burocraticamente concernidos) o melhor para o país ainda é o caminho proposto pelo PT – esses não irão abandonar Dilma, ou, em parte, só a abandonarão diante de um vetor pela mudança que desmoralize Dilma como liderança do projeto a que se apegaram. Lula vai ter papel importante aqui: se ele ficar firme com Dilma mesmo diante de sinais claros de derrota, ela se aguenta; mas se ele entender que precisa se proteger da derrota e tirar o pé, ela certamente perderá para Marina parte desse “petismo” que acabo de descrever. Nesse último caso, Lula já poderia estar a calcular a posição a adotar, junto com seu PT (o partido pode rachar), diante de um provável governo Marina.

Quanto ao eleitorado de Dilma não imantado pelo petismo, que está com ela pelo pendor governista, os muito ricos não terão dificuldade para trocar a preferência segundo o que lhes indique o oportunismo, e os muito pobres irão, em parte, ficar com ela até o fim, seja por segurança, seja por gratidão, e, em parte, podem deixa-la pela força de arrasto que advirá da mudança de posição do eleitor petista descrito acima, notadamente aquele que se decepcionou com a liderança de Dilma. Talvez, repito, talvez, essa decepção já esteja em curso nas camadas médias, o que explicaria que a avaliação do governo melhora, mas isso não se reflete na preferência do eleitor por Dilma.

Para avançar mais, Marina vai precisar de um maior engajamento entusiasmado do eleitor. Esse engajamento poderá vir de dois vetores principais: do eleitor mudancista a quem o volume da onda Marina convide a surfar, e do eleitor transformador (minoritário, mas importante), a quem a proposta da terceira via venha a convencer. A julgar pelas últimas notícias, Marina vai avançar ainda mais entre os mudancistas. Quanto aos transformadores, entre os quais me incluo, só uma leitura mais detida do seu programa de governo, que ainda não consegui fazer, poderá desviar do pessimismo que começa a se instalar.

Tudo somado, embora já não seja estapafúrdio imaginar uma vitória de Marina no primeiro turno, o mais provável ainda é que Marina precise de um segundo turno para vencer, coisa que poderá fazer mesmo sem os transformadores: somos poucos e não haveremos de cansar de ver as forças do dinheiro desviarem até mesmo o curso daqueles rios subterrâneos cujo ímpeto e sentido vínhamos julgando necessários. Perseveremos.

MARINA E DILMA EMPATADAS EM PRIMEIRO LUGAR

Carlos Novaes, 29 de agosto de 2014

(Aqui um video sobre a terceira via)

Acaba de ser divulgada mais uma pesquisa DataFolha. Marina aparece empatada com Dilma na primeira posição, ambas com 34%; Aécio tem 15%. Além de ter se distanciado ainda mais do terceiro colocado, Marina já aparece dez pontos à frente de Dilma na simulação de segundo turno: 50% a 40%.

Esses números novos tornam mais provável o que já se dizia em post anterior sobre pesquisa do IBOPE: a segunda vaga no segundo turno tende a ser disputada por Dilma e Aécio que, por isso, deverão intensificar o tiroteio recíproco nas próximas semanas, pois a consistência eleitoral e a velocidade em que se dá o crescimento de Marina, já isolada em primeiro lugar em São Paulo, deveria levar à conclusão de que ela já não pode ser alcançada pela artilharia de primeiro turno.

Esperemos por mais detalhes dos números da pesquisa.

MARINA NO JORNAL NACIONAL

Carlos Novaes, 27 de agosto de 2014

(veja o video com minha análise do debate na BAND aqui)

A entrevista de Marina ao Jornal Nacional que acaba de ir ao ar não foi esclarecedora por duas razões: os entrevistadores, mais uma vez, limitaram sua atuação ao papel improdutivo de quem pretende nocautear o entrevistado, e a entrevistada se deixou limitar pela bitola estreita dos questionamentos, acreditando que devia explicações aos jornalistas e não esclarecimentos ao telespectador-eleitor. A imagem geral foi de impertinência.

A impertinência de Bonner e Poeta fica clara quando nos damos conta de que QUALQUER resposta de Marina seria insuficiente para eles, que não se contentariam com menos do que a capitulação irremediável da candidata. Ora, uma entrevista armada desse jeito não pode oferecer nada mais do que frustração para quem assiste, pois quem deveria proporcionar o desenrolar do jogo assumiu a postura de concluí-lo. Os apresentadores do Jornal Nacional esqueceram que seu papel não é dar a última palavra, mas proporcionar elementos para que o eleitor o faça.

Marina foi impertinente porque não soube se desvencilhar das amarras, aceitou empacar em falsos problemas e, pior, buscando refúgio na reputação de sua trajetória, que não estava em questão. O caso do avião é totalmente artificial e secundário, e ela deveria ter matado a questão separando com clareza as condições de contratação das condições de propriedade do veículo – não faz nenhum sentido culpar alguém por ter alugado um taxi cujo documento de propriedade foi fraudado, ou cujo IPVA não foi pago. O caso do “quem conhece não vota” teria sido ultrapassado com a apresentação de uma única evidência: Marina ficou em terceiro no Acre porque havia deixado o conforto do partido que criara, o vitorioso PT local, justamente para propor o novo. Por isso, deixou de contar com toda uma rede vencedora de apoio, escolhendo o caminho pedregoso de redirecioná-la, contrapondo-se a ela.

O caso do Beto Albuquerque é uma dificuldade real e Marina está pagando o preço de nem sempre discernir o que é convivência com o diferente e acomodação contraproducente com o inaceitável: já foi assim no PV, em 2009 – deu no que deu, uma vez que não entendo os celebrados “quase 20 milhões” de votos como uma vitória, o potencial era para muito mais, já naquela altura. Não obstante os problemas de ter alguém como esse politicão convencional como vice sejam reais, Marina poderia ter se saído melhor na resposta ao Jornal Nacional se estivesse mais pronta/disposta para apresentar conteúdos objetivos de seu projeto para onde governar o Brasil, pois conteúdos claros teriam permitido apresentar o solo firme, se ele existe, que sustenta essa aliança entre diferentes. Mas não. Mesmo nas considerações finais escolheu a vaguidão.

Moral da história: diante de uma tentativa obtusa de atingir a credibilidade da candidatura em temas que lhe são caros, a saber, a ideia de uma nova política e a concatenação de diferenças, Marina deixou escapar mais uma oportunidade de dizer a que veio e se refugiou na credibilidade de um passado que ninguém informado e honestamente motivado pode negar, mas que é insuficiente quando se tem em mente a disputa presidencial.

MARINA ISOLADA EM SEGUNDO LUGAR

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2014

Pesquisa IBOPE encomendada pela Globo e divulgada hoje mostra Marina com 29%, contra Dilma com 34% e Aécio com 19%. Esses números não surpreendem a ninguém que venha acompanhando a disputa presidencial de 2014. Quem acompanha este blog e os videos que tenho postado no YouTube tem recebido informação que ajuda na interpretação dos fatos que esses números retratam: em sua busca para dotar de racionalidade a disputa presidencial, o eleitor reconhece um eixo em Marina, a primeira sombra a sair do armário. Marina está consolidada como terceira via e, agora, trata-se de saber duas coisas: o sentido dessa terceira via (se conservador ou transformador) e suas possibilidades de vitória. Tratarei disso em videos e textos que estão em produção e já antecipo que enfrentarei a questão conservação ou transformação segundo aspectos comportamentais, econômicos, sociais e políticos, com destaque para temas como corrupção, homosexualidade, religião, representação, desigualdade e desenvolvimento.

Aécio, se fizer uma interpretação conservadora dos números novos, concluirá que seu único caminho no debate desta noite, na BAND, é se expor a uma esgrima com Marina, encarando o embate com ela como uma oportunidade de reverter seu escorregão para o terceiro lugar. Se fizer uma interpretação mais arrojada, porém, entenderá que seu primeiro desafio não é Marina, mas Dilma. A onda da terceira via, que julgo estar apenas em seu início, vai dar mais acento ao envelhecimento da política convencional brasileira e, se for assim, quem vai ter dificuldades para estar no segundo turno é Dilma, que representa, queira ou não, o status quo. Dessa perspectiva, é um erro subestimar Marina (mais uma vez?!!) e concluir que uma das vagas no segundo turno já é de Dilma. Nada disso: talvez o que venha a ficar claro em mais alguns dias seja a possibilidade de que a disputa pela segunda vaga no segundo turno se dará entre Dilma e Aécio, configuração de que os cenários de segundo turno dão pistas, pois Marina já vence Dilma e a disputa Dilma x Aécio está mais apertada.

O debate desta noite trará a primeira aparição por inteiro de Marina: cabeça, tronco e membros. Sobretudo cabeça, pois o que temos visto são entrevistas de “conselheiros” e “assessores”, cada um falando de suas próprias preferências e, em alguns casos, dando de barato questões das mais cabeludas e, para cúmulo, aceitando especular sobre funções que poderão desempenhar num hipotético futuro governo…  Vamos ver o que a própria Marina tem a dizer.

Fico por aqui, pois para falar mais será necessário esperar a divulgação de mais dados da pesquisa IBOPE e, claro, o debate da BAND.

NOTAS CURTAS – 1, 19/08/2014

Carlos Novaes, 20 de agosto de 2014

Apresento abaixo avaliações de programas eleitorais centradas em aspectos mais formais. Mais adiante, quando houver material acumulado, incluirei análise mais detida do conteúdo.

PSB –  O partido fez uma homenagem correta à memória de Eduardo Campos, invocando o passado recente para dar corpo à emoção do presente, com uma tão discreta quanto adequada referência ao futuro, sem nenhum apelo eleitoreiro. Marina, adequadamente, não apareceu. Muito bom.

PSDB – O programa de estréia de Aécio no horário nobre noturno foi um desastre. Embora com a ideiazinha interessante de mostrar o candidato junto ao eleitor, recorrendo à filmagem da recepção de seu discurso em diferentes telas, o efeito almejado acabou por se perder porque o candidato pouco olhou para o eleitor, isto é, para a câmera. A maior parte do tempo ele fitava o horizonte, talvez para parecer “estadista”, “visonário” ou lá o que seja. O detalhe é que essa escolha contraria a imagem de “conversador próximno” que o candidato vinha buscando construir até aqui. No primeiro programa ficou estampado que o conceito da campanha de Aécio não está claro para seus realizadores.

A esses ruídos vieram somar-se a edição repleta de cortes improdutivos, onde a pança e as mãos do candidato ajudavam a embaralhar a recepção a um discurso já de si embaralhado, dificultando a retenção do que quer que seja. Para piorar, o vetor político que deve orientar a campanha não foi apresentado às claras, em mais uma tibieza conceitual que contrasta com a ideia de liderança: Aécio, acertadamente, pretende deixar o período Lula fora do embate com Dilma, mas fez isso pela metade e, portanto, sem clareza e sem coragem. Se é para adotar essa linha, que seja por inteiro, invocano os êxitos que enxerga no período FHC, reconhecendo que apesar dos muitos erros que vê (e pode nomear) no período Lula, ele foi bom para o Brasil, para então deixar claro porque, na sua opinião, Dilma malbaratou o legado recebido – mas não, ficou num nhe nhe nhem indireto, sem pegada.

O primeiro programa de Aécio foi confuso e não gerou memória: depois de assisti-lo, mesmo o simpatizante não teria o que reproduzir. O toque fajuto ficou por conta do colírio aplicado nos olhos de todos os participantes, por certo para simular o brilho de uma emoção que, definitivamente, o discurso não teria como suscitar.

PT – Se Aécio pouco encarou o eleitor, Dilma não o fez em momento nenhum. Tudo se passou como se ela precisasse ser apresentada de forma indireta. Foi uma chancela surpreendente, mas realista, à evidência de que ela não possui luz própria, mesmo depois de ocupar a presidência por quatro anos. Para piorar as coisas, ficou a cargo de um Lula carrancudo encarar o eleitor, com o que se insiste contraproducentemente na relação assimétrica criador-criatura.

Possuindo o maior intervalo de tempo, a campanha o desperdicou com uma entrevista artificial, entremeada com um clip fraquinho e um jornalismo fajuto, onde até uma inverossímel Dilma dona-de-casa-como-qualquer-outra  foi improvisada – constrangedor.

O enquadramento de Lula com dentes arreganhados só não foi pior do que o conteúdo da sua saudação à memória de Eduardo Campos, uma apropriação claramente eleitoreira: uma presumida relação pai-filho com o político desaparecido (que não a pode contestar), e um sequestro no mínimo deselegante das últimas palavras do morto sobre o futuro, matéria de que trata a eleição e sobre a qual Eduardo tinha, por definição, uma concepção alternativa, outra, apartada da defendida pela candidata que Lula apóia.

PSC –  O candidato pastor apresentou seu trivial menu conservador de forma não menos trivial.

PSOL – Levando em conta as limitações materiais e de tempo, Luciana Genro cumpriu o papel esperado, embora com base num texto desleixado, sem conceito, onde o pouco tempo disponível permitiu até mesmo a inclusão de um chavão inócuo, quando não prejudicial: “conto com você” (e no primeiro dia!) – francamente.

PV – A rica e sólida biografia política do candidato Eduardo Jorge foi mal apresentada, com textos diferentes em audio e video impondo tarefa dupla ao eleitor e, no caso dos textos em video, as cores impuseram entraves intransponíveis à leitura. Muito ruim.

PESQUISA DataFolha

 Carlos Novaes, 18 de agosto de 2014

Como esperado, o primeiro levantamento eleitoral depois da morte de Eduardo Campos mostra Marina em segundo lugar. Realizada a quente, a pesquisa DataFolha não capta a totalidade do fenômeno que pode estar em curso, mas mostra aspectos importantes: Marina virou opção para parte daqueles que vinham se refugiando no voto nulo ou branco, ou estavam indecisos; Marina bate Dilma em cenário nacional de segundo turno e Marina amplia a vantagem nas regiões metropolitanas e nos municípios com mais de 500 mil eleitores. Ou seja, Marina sensibiliza o eleitor mais exigente e mais submetido à diversidade de opinião e informação que o frenesi das grandes conurbações proporciona – o que vai permitindo afastar a interpretação de que essa seria uma reação basicamente emocional (é bem o contrário: a emoção atingiu a todos, mas quem se inclina primeiro na direção de Marina é o eleitor mais informado, que quer mudança, sem prejuízo de estar “emocionado”).

No caso do cenário de segundo turno em seu conjunto, temos um parâmetro para avaliar tanto o teto de Dilma, que não é animador, quanto o potencial de Marina, que não poderia ser mais auspicioso, pois aqui se incluem eleitores de todo o país, vale dizer, a onda de impacto vai se espraiando e desde logo a opção Marina sensibiliza o eleitor que não opta por Dilma, embora tenha outro candidato no primeiro turno. Em outras palavras, o resultado da simulação de segundo turno mostra Marina como uma alternativa para a maioria dos eleitores. Marina alcançou e ultrapassou de chofre a dimensão emocional da campanha – o desafio para ela está na dimensão racional da eleição, nas propostas que vai apresentar, e no como vai apresenta-las.

O refugo de Aécio diante da mudança é um erro monumental e, se se tornar marcha à ré, irá sacramentar sua candidatura como a opção conservadora da eleição, afastando-o do diálogo predominante sobre a necessidade da mudança que vai adiante. O desafio para Aécio é escapar da imagem de que é o candidato que quer retroceder. Ele precisa descobrir que embora o sentimento do medo seja conexo ao tema da Segurança e esteja disseminado na sociedade, a discussão de uma alternativa de gestão para um país que quer mudança não pode se apoiar naquele sentimento – a “segurança” está além do medo. Em suma, não dá para falar de coragem para mudar e, ao mesmo tempo, invocar o medo para não mudar tanto…raciocínio que vale também para a campanha de Dilma, que prega “mais mudança”.

MARINA COMO TERCEIRA VIA

Carlos Novaes, agosto de 2014

A próximo DataFolha vai indicar o termos em que se dará a nova largada da corrida presidencial. Esperemos por ele, mas é de supor que Marina vai aparecer bem colocada, como sempre esteve. Mas avancemos um pouco, pois não será surpresa se ela aparecer com pontos acima do patamar anterior, e isso não apenas, nem principalmente, porque se conduziu nos últimos dias afinada com a dimensão afetiva que preside as circunstâncias.

A recusa irracional de Lula em ser candidato, que já discuti em artigo anterior, e o malogro da candidatura de Marina pela Rede, haviam imposto ao enorme contingente de eleitores frustrados a tarefa de buscar uma alternativa, ainda que não tornasse presente para eles a necessidade de uma terceira via. As circunstâncias criadas com a morte de Eduardo Campos parecem indicar que Marina passou a representar não só a terceira via, mas a própria necessidade dela.

A motivação eleitoral do eleitor para o voto tem duas fases: a primeira, mais fraca, se dá nos meses iniciais da campanha, quando o eleitor ainda não está compartilhando suas preferências (ele responde às pesquisas com base num repertório muito restrito de motivações pessoais); a segunda fase, a da motivação forte, se dá quando o eleitor conversa sobre a eleição, quando a preferência é testada no embate com a opinião do outro (e esse outro são aqueles com quem o eleitor partilha sua inserção no mundo). Essa virada de motivação é sempre um grande desafio para os candidatos, pois ela pode implicar também uma mudança na intenção de voto, isto é, um candidato preferido na primeira fase pode deixar de sê-lo na fase forte. Daí a localização temporal e a importância do horário eleitoral, quando cada campanha busca a sintonia com o eleitor no período em que ele passa a se interessar coletivamente pelo pleito.

O desaparecimento brutal de Eduardo Campos antecipou a troca da motivação eleitoral porque trouxe a eleição para a conversa cotidiana, no trabalho, no ponto de ônibus, na escola, à mesa. É essa conversa que engendra a formação coletiva da preferência, pois ela arranca o eleitor das suas motivações epidérmicas e as substitui por motivações propriamente públicas. No ritmo frenético que os acontecimentos recentes impõem, o eleitor está sendo levado a construir suas razões coletivas de voto sob forte impacto emocional, ao invés da transição suave que costuma se dar ao longo do decisivo mês de setembro. Assim, a tragédia também antecipou o horário eleitoral, mesmo que seu início oficial seja adiado. Essas novidades podem beneficiar Marina de um modo duradouro porque a ampla e detalhada cobertura da mídia, juntando lágrimas a gráficos, obrigando todos a elogiar a vítima, arrastou o eleitor a reunir razão e emoção sob a sensação acachapante de que descobriu uma alternativa ao mesmo tempo em que a perdeu: a queda do Cessna envelheceu a política brasileira, fez caducar esse rame rame PTxPSDB,  e o eleitor descobre a necessidade de uma terceira via ao mesmo tempo em que é levado a olhar para Marina, conjunção que dá potência e primazia à sua condição de alternativa.

Nessa ordem de idéias, não haverá motico para surpresa se sob o empuxo da determinação do eleitor de empurrar todo o sitema de volta à racionalidade vier a sair do armário uma outra candidatura, que tem estado artificialmente na sombra – cujo êxito, a essa altura, é bem duvidoso, pois Lula pode ser parte do que envelheceu nos últimos dias. Salvo erros dela própria, que, como já vimos, nunca podem ser descartados, a opção por Marina tem todas as condições para  vir a ser o desfecho natural desse cadinho de represamento, negação e perda na busca de saídas para o sufuco.

MARINA PODE GANHAR

Carlos Novaes

agosto de 2014

O projeto do PSB era Eduardo Campos, sem plano B. Todavia, o censo de realidade, a habilidade e a generosidade de Campos não permitiram que o tamanho político de Marina deixasse de receber a iluminação devida e, por isso, no curso dos últimos meses, a imagem que se projetou no pano de fundo da paisagem eleitoral foi a de uma dupla, ainda que protagonizada por ele. Assim, ante o desaparecimento brutal de Campos, Marina está na posição em que sempre esteve: mais do que vice, ela sempre foi uma alternativa. Essa solução se impõe antes de qualquer cálculo ou estratégia política, ela resulta da própria situação, da própria realidade, e é assim que ela aflora na cabeça de todos. Fossem outras as circunstâncias, os recalcitrantes da cúpula do PSB seriam motivo de escárnio por não enxergarem o óbvio: o PSB não tem escolha, a alternativa é Marina. As escolhas só se colocam à partir desse ponto de largada, vale dizer, o embate entre o virtuoso e o vicioso da política, especialmente da política eleitoral, não poderá condicionar a opção Marina, só tendo lugar uma vez que se tenha reconhecido esse marco incontornável.

O apoio dos adultos da família de Eduardo Campos tem peso – e eles favorecem Marina. Tem peso em razão do lugar que, felizmente, os afetos ainda desempenham na política; e favorecem Marina não para garantir-lhe a vaga, mas para que ela possa exercer com proveito público a condição de cabeça de chapa, que já é sua, num arranjo de forças e interesses políticos que não foi armado sob a sua liderança. Contra Marina estão aqueles que, adversários entre si, vêem o PSB como instrumento de interesses que só podem se realizar em condição subalterna, como linha auxiliar de um dos dois blocos de força em que a política brasileira se divide improdutivamente: PT e PSDB. Manda-chuvas nacionais do PSB preferem alinhamento com o PT; em São Paulo e Minas há quem se arrume melhor com o PSDB. Eles não enxergam o que Eduardo Campos viu com clareza: além de esgotada até mesmo como ferramenta fisiológica, uma política de acomodação como a que caracteriza o paquiderme PMDB não permitiria construir nada além do mesmo.

O apoio dos que querem transformação será decisivo – mas só favorecerá Marina se ela não se deixar amarrar pelas idéias velhas, se ela não aceitar a escolha entre dilemas superados, e se ela demonstrar ter entendido que a dimensão espiritual das preferências humanas é ela mesma uma preferência. O problema não é esquerda ou direita; a escolha não está entre estado ou mercado; o bem não está senão nas relações que pudermos estabelecer entre nós mesmos na ação política. O problema é a desigualdade; a escolha é entre política e negócio; o bem está em relações políticas que só podem ser alcançadas se as amarras da representação profissional forem rompidas.

Mais ainda do que em 2010, Marina pode despertar uma onda pela transformação. Marina pode ganhar – até mesmo se o instinto de preservação do PT vier a empurrá-lo para uma troca atabalhoada na cabeça da chapa.

PT E PMDB PREFEREM LULA

Carlos Novaes, maio de 2014

Construído como uma burocracia nacional, o PT jamais se engatou na lógica política federativa, razão pela qual, para exercer o mando conquistado por cima, requer o apoio de um PMDB, cujo desengate de uma dinâmica propriamente nacional se reflete na habilidade com que faz o jogo miúdo (das coisas graúdas) no legislativo, nas instâncias locais e nos estados, uma herança do período em que as limitações da ditadura no plano eleitoral levaram à “seleção natural” de atores e métodos aptos a esse jogo em que se ganha avançando por polegadas. Com as sucessivas eleições livres, essa junção pelo que falta a cada um encontra um de seus limites na aspiração de lideranças locais eleitoralmente bem sucedidas do PT pela conquista dos postos eleitorais mais altos em seus estados (o que arrastaria também ao sucesso nos legislativos e nas prefeituras) e na pressão correlata da base e de setores intermediários da pirâmide do PMDB pela construção de um projeto nacional, pois já enxergaram que a falta dele vem comprometendo o êxito no plano infra-nacional, ainda que se prestando ao conforto de seus “líderes”.

O PT está em vantagem nesse jogo não apenas porque é quem, ao final, fica com a caneta na mão, mas sobretudo porque sua máquina burocrática estabeleceu uma tradição de obediência ao “projeto nacional” que logra submeter seus recalcitrantes – com força decrescente, é verdade. Os mandatários do PMDB derivam seu poder do quanto conseguem distribuir para os apetites regionais da fatia de poder que alcançam exercer no consórcio nacional, combinada com a contenção do avanço estadual do PT, braços de uma pinça crescentemente desfavorável.

Salta aos olhos a fragilidade de uma candidatura Dilma como resposta a esse estado de coisas, especialmente quando todos acreditam que uma candidatura Lula está ao alcance da mão. Do ponto de vista do PT, o entusiasmo com a volta de Lula seria a única maneira de tirar suas candidaturas estaduais combalidas do marasmo a que estarão condenadas num cenário em que se oferecerá mais do mesmo; da perspectiva do PMDB, Lula é visto como um pragmático mais aberto ao toma lá da cá – como Eduardo Cunha deixou claro ao se dizer saudoso dele -, pragmatismo cuja generosidade compensaria, para a cúpula, o avanço estadual do PT, ainda que a conta não vá fechar no futuro — mas quanto ao porvir vale para os oligarcas do PMDB o que disse no passado um partner seu na ditadura: “no futuro estaremos todos mortos”.

Pendurando de outro modo os mesmos dados, Dilma não pode dar impulso às candidaturas estaduais do PT porque não é uma liderança eleitoral (seus votos jamais foram seus) e tampouco pode receber delas um entusiasmo local que não suscita (inclusive, mas não apenas, porque agora é vista como aquela que está ocupando um lugar em que Lula deveria estar) – ou seja, esses dois lados do petismo funcionam como lastro desfavorável recíproco; pelo lado do PMDB, o descontentamento com a inabilidade dela na condução dos seus pleitos é evidente há anos, insuficiência que não é senão uma tradução de suas fragilidades propriamente políticas, resumidas no fato de não saber a grande diferença em política entre mandar (gerência das coisas) e conduzir (distribuição de papéis), jogo em que, mais uma vez, Lula é um mestre.

O que falta então para que, afinal, se dê a candidatura presidencial de Lula em 2014? Que ele cumpra o compromisso assumido marotamente com Dilma no recente Encontro Nacional do PT e a faça a primeira a saber que ele decidiu ser o candidato. Pode não acontecer? Pode, mas é muito improvável que o disparate prevaleça em situação em que o óbvio está tão claro para os agentes que contam e é vivido como demanda por 64% dos simpatizantes da marca PT. Se prevalecer, esse disparate terá saído de uma escolha pessoal que só poderá ser vista como irracional e, então, abrir-se-á uma janela para que o eleitor enxergue outra alternativa, redistribuindo os custos pelo esforço novo para dotar o processo de racionalidade, que não poderá ser apontada por aquele que só pode ser visto pelos interessados como o irracional de plantão.

O DESESPERO DE DILMA

Carlos Novaes, abril de 2014

Alguém já disse que a história se dá por assim dizer duas vezes, na primeira como tragédia, na segunda como farsa.  A farsa da junção heterodoxa de um Vargas paranaense com a Petrobrás do “pré sal é nosso” jogou Dilma no chão e escancarou à vista de todos a realidade da candidatura Lula a presidente em 2014. Os números desfavoráveis nas pesquisas são indicação ainda fraca das dificuldades que estão por vir, pois, por grande que ainda seja o contingente dos que apoiam Dilma, mesmo em meio deles já há um clima de “obrigado, mas já deu”, muito semelhante, como fenômeno entre simpatizantes, àquele que orientou a saída de Thatcher do governo inglês.

Lula vem pregando seus preguinhos no sarrafo da volta faz anos. A entrevista dada lá em Portugal foi bastante clara: distanciou-se uma vez mais dos indivíduos malfeitores, mas recusou a dimensão partidária do malfeito, numa acrobacia esperta típica: sinaliza sua condição de líder comprometido com o PT, afagando a militância burocratizada, mas reiterando a vigência de uma lei antiga do mundo petista: tudo é permitido, o êxito legitima, mas quem se inviabiliza fica sozinho. Se, diante dos figurões envolvidos no mensalão a burocracia não fez valer como devia essa lei, ele próprio, como líder máximo, não deixou de rezar por ela, deixando o juízo final para a história, a quem caberá absolver a todos.

Para quem há tempos entende como inevitável o “volta Lula” estava claro que fosse qual fosse o cenário deste primeiro semestre Lula teria de se mexer se quisesse mesmo voltar à condição de candidato presidencial. E ele tem se mexido, mas com cautela maior do que a esperada, e por duas razões: o cenário desfavorável faz pensar que teria engolido a ele próprio, e Dilma se mostra mais obstinada do que seria de se prever, tendo chegado já ao limite da fragilidade e do desespero quando vem a público mandar recado a Lula sobre a “lealdade” dele para com ela ou para dizer que será candidata mesmo sem apoio da base aliada  – coitada.

E coitada porque ou Dilma não será mesmo candidata, tendo que se contentar com a dignidade postiça da desculpa de última hora de não misturar o exercício do governo com a busca por êxito eleitoral para si; ou será candidata se Lula entender que não há caminho para a vitória, ou que o risco de ele próprio perder é muito alto, abandonando-a ao sacrifício. Este último caso é possível, mas menos provável porque o anúncio da volta de Lula despertaria um entusiasmo que tenderia a superar o que há de artificial, de fabricação adversária, na crise que envolve o petismo, relançando as possibilidades de vitória e, portanto, as condições de rearranjar de modo mais favorável a chamada base aliada e, até, quem sabe, de ampliá-la com um Eduardo Campos na vice. Vamos ver por que caminhos se dará a volta como farsa, pois a tragédia Getúlio já protagonizou.

FHC e Gleisi – há polêmica nisso?

Carlos Novaes, março de 2014

Além da clareza com que exibem suas próprias limitações para a análise da situação política, não há nada que se aproveite nos artigos de Fernando Henrique Cardoso e Gleisi Hoffmann em exibição no UOL. Em seu disparate e em sua nota cômica comuns, os artigos servem de aperitivo salobro aos pratos indigestos que nos serão servidos à farta nessa campanha eleitoral de 2014.

O ponto alto é o disparate comum entre as duas forças que os articulistas representam: a ideia de que possam haver “questões fundamentais” a unir a “nossa nação”. O que é fundamental desune, sempre, precisamente por ser fundamental, e não há nada mais transformador do que a busca e o empenho pelo que é fundamental.

Ao darem as costas a verdade política tão básica em favor do conforto propiciado pelo convencionalismo (atitude típica de quem “já chegou lá”), essas duas figuras emblemáticas do velho  expressam como meta o que o Brasil precisa deixar para trás: a busca de um modelo em que todos ganham, sempre que por ganhar se entenda manter inalterada ou melhorar a própria condição na pirâmide da riqueza e do mando, qualquer que seja a posição ocupada nela: como se sabe há tempos, alguém tem de perder. Mas como pretender tal descortino de um ex-presidente da República que chegou ao posto precisamente porque, sem ter se comprometido com a feição transformadora da política, se credenciou (pelo que escreveu e fez), entre os que teriam de perder, como “referencial de equilíbrio e estabilidade do debate nacional”? E o que esperar de uma aspirante à presidência da mesma República (Gleisi é inábil a ponto de sempre deixar evidente que vem vociferando sobretudo para se credenciar junto aos seus, sonhando em preencher o vácuo geracional do PT) que serve a um governo que se julga imune à fúria das ruas porque não a mereceria “depois de tanto ter feito por essa gente” e tem, como chefe a quem teme, ninguém menos que Lula, que se jacta de que sob seu mando os banqueiros ganharam dinheiro como nunca — embora ele próprio tenha chegado à presidência como símbolo (suposto, diga-se) de uma transformação tão necessária quanto mal representada por ele?

A nota cômica é o modo como ambos cospem e continuam a comer no prato cuspido: ele porque pretende levar o leitor a ter esperanças numa “classe política” de que se serviu e que, só agora, reconhece como o sustentáculo fisiológico do estado de coisas malsão que se quer superar; ela porque depois de apontar a cusparada do pseudo adversário, completa o “raciocínio” cuspindo ela mesma, para em seguida assumir ares solenes na defesa do Congresso, mostrando-se afetada com o  “achincalhe” ao prato duplamente cuspido em que continua comendo. Porta dos Fundos ficou no chinelo.

MARINA JÁ PRECISA CORRIGIR O CURSO

Carlos Novaes, 09 de outubro de 2013

Até o TSE negar injustamente o registro partidário à sua Rede, a ex-senadora Marina Silva parecia se conduzir na cena política segundo três balizas: um presumido partido programático inovador, uma candidatura presidencial para 2014 e a possibilidade de desempenhar o papel de força contraposta à falsa polarização PSDBxPT.

Ante a decisão desfavorável do tribunal, Marina se filiou ao PSB e, com isso, deu a impressão inicial de que o fazia para perseverar no caminho que sugeria já trilhar: mantinha o projeto da Rede, sem manchá-lo com o oportunismo pragmático de uma candidatura presidencial improvisada em algum partido nanico de aluguel, e viabilizava, com sua participação, uma força eleitoral que pelo menos desde 2009 tem uma avenida aberta no cenário político brasileiro: uma alternativa ao projeto já esgotado em que o PT e o PSDB se engalfinham numa porfia vã pela autoria regressa.

Movimentações mais recentes, porém, deixam no ar que as escolhas podem ser outras – e nada boas. Ao desmobilizar os esforços que permitiriam concluir a legalização da Rede o mais rápido possível e ao cobrir com a tensão das evasivas a condição de cabeça de chapa de Eduardo Campos, Marina dá indicações de que não enxerga o contraste entre os grandes sonhos que motiva com os gestos largos que descortina e as resultantes apequenadas em que sempre acaba por se enredar.

Se a Rede era para ela mais do que mero instrumento para uma candidatura presidencial, se tinha na Rede um partido programático voltado para a inovação política, nada seria mais urgente do que concluir a sua legalização visando engajá-lo, desde o início e enquanto coletivo, nas discussões e deliberações acerca das escolhas a serem feitas para as eleições de 2014. Se a ida para o PSB se deu para fortalecer a construção de uma alternativa, e não foi mais uma jogada típica dos que pensam que política é como nuvem, então Marina deveria deixar claro que aceitou o revés advindo de suas próprias escolhas erradas e proclamar desde já a condição de Eduardo Campos como cabeça de chapa, deixando a posição de vice para ser apreciada coletivamente pela Rede, já como partido legal, no transcurso do primeiro semestre de 2014, período em que seus companheiros redistas teriam a oportunidade democrática de dar desenho programático final à sua escolha inicial, que fora individual porque (vá lá) premida pelas circunstâncias.

Mas não. Marina trata a energia da Rede como uma rapadura a ser levada debaixo do braço para ser roída no momento em que ela e quem ela ouve apreciarem oportuno. Começam a parecer quase propositais os becos sem saída em que a ex-senadora se mete, estreitos na medida de justificar decisões em petit comitê. Nada justifica que mais uma vez se desarrume um arranjo coletivo, que só voltará a ser mobilizado para os salamaleques pseudo-democráticos que já vão virando rotina em sua trajetória. Quanto à filiação ao PSB, Marina dá sinais de encará-la como ainda uma oportunidade de ser candidata a presidente no ano que vem, sem dar mostras de entender que ou Eduardo Campos será candidato a presidente pelo partido que controla, ou simplesmente trocará essa alternativa por outra, que, seja qual for, impedirá o PSB de ter candidatura própria à presidência em 2014. Numa situação assim, faria ainda mais sentido contar com a chamada Rede como um partido ativo, conjunto que daria robustez seja a uma candidatura de Eduardo, seja à fixação de uma imagem de autonomia e independência para ela e os seus, mormente no caso de ter de se distanciar programaticamente (vá lá) do pernambucano.

Em suma, Marina não deveria tratar a Rede como se fosse um Costa Concórdia a ser abandonado nas areias do TSE para ser desencalhado só um ano depois – correndo o risco de descobri-lo irrecuperável; nem sugerir que poderá submeter o timoneiro do PSB a uma derrota que ela não deu conta de aplicar sequer no caricato líder de araque do PV. Resta esperar que ela atenda aos apelos de “volte ao barco”, retenha o que resta de seus melhores marinheiros e, juntos, o conduzam ao mar alto a que ele parecia orientado, tendo a lealdade de em seu velejar para transpor a arrebentação não criar marolas inúteis contra quem lhe cedeu combustível e a quem, com acerto ou não, acenou para indicar navegação no mesmo rumo.

MARINA FEZ O MELHOR, NAS CIRCUNSTÂNCIAS

Carlos Novaes, 6 de outubro de 2013

Ao anunciar filiação ao PSB, robustecendo a candidatura de Eduardo Campos e abrindo a possibilidade de ser a candidata a vice-presidente na chapa do pernambucano, a ex-senadora Marina Silva deu seu único passo político realmente acertado desde a entrada no PV, em julho de 2009, ocasião em que filiou-se aos verdes com o compromisso de primeiro mudar o partido e, só depois, ser candidata a presidente. Naquela altura, em mais uma das suas demonstrações de pragmatismo confuso, ela logo abandonou o projeto de mudar o PV e entrou de cabeça numa campanha que só quem sempre subestimou o lugar da acreana na disputa pôde receber como “vitória” seu desfecho nos propalados “quase 20 milhões” de votos. Não fossem os muitíssimos erros cometidos, ela poderia ter realizado todo o seu potencial e disputado o segundo turno naquela eleição.

O acerto de Marina dessa vez está em ter aceito a consequência obvia da situação em que se meteu e para a qual arrastou os que se submetem ao estilo de mando político ventríloquo centralizado que ela parece protagonizar. Deixando de lado a inacreditável demora entre a já de si tardia saída do PV e o lançamento à água da proposta do novo partido, a qual foi a responsável pelo injusto malogro nas areias do TSE, Marina e quem ela ouve estavam atados a três estais: um presumido inovador projeto partidário programático, uma candidatura presidencial dela própria e o diagnóstico de que a nociva, e falsa, polarização PTxPSDB precisa ser desconstruída. A única maneira de manter os três cabos esticados seria ter a Rede legalizada para as eleições de 2014. Excluída essa possibilidade, era necessário decidir que perna(s) sacrificar, tendo em mente o menor dano político na opinião pública, vale dizer, escolher a alternativa mais coerente com a prática e o discurso exibidos publicamente até aqui.

O que parecia o caminho natural para muitos dos seus seguidores teria resultado no maior erro, ou seja, insistir na candidatura presidencial. Depois de ter protagonizado essa épica empreitada atabalhoada da chamada Rede, com tudo que se pregou de inovador, programático, ético, etc, filiar-se a outro partido apenas para ser candidata escancararia de saída um pragmatismo que em 2009 ficara velado pelos acenos iniciais de “ressignificar” o PV. Descartar essa alternativa era a única maneira de buscar preservar os outros dois compromissos, pois uma candidatura por partido nanico e gelatinoso (incluído aí o PPS, esse pacman que até anteontem, literalmente, estava à espera de José Serra!) comprometeria o projeto da Rede e não daria contribuição para o fim da polarização falsa, uma vez que ela própria, a candidatura, seria falsa. Optar pela dedicação exclusiva ao projeto de construir o novo partido seria uma escolha aceitável, mas pouco contribuiria para o fim do clinch PSDBxPT e, ademais, deixaria Marina sem lugar direto na eleição presidencial de 2014.

Nessa ordem de idéias, entrar na candidatura presidencial de Eduardo Campos com um embarque no partido dele e preservando o projeto de construção do seu próprio partido foi a melhor jogada, nas circunstâncias, mesmo que ao fazê-la Marina esteja, involuntariamente, encorpando o praticamente inevitável “volta Lula” – e de duas maneiras: ao tornar a candidatura de Campos viável, ela ajuda Lula a “entender” que só ele pode salvar a continuidade do projeto petista e abre caminho para que Campos venha a realizar seu verdadeiro sonho: ser o vice de Lula, pois só o ex-presidente tem cacife para garantir ao PMDB que nada será perdido se eles forem desalojados da vice para o bem dos negócios comuns: há muitos ministérios.

Se as coisas se passarem assim, Marina não ficará de todo mal, mas também não ficará bem, pois entrar em cartaz no papel de “Ciro Gomes” nunca é exatamente promessa de sucesso de bilheteria.