Arquivo da categoria: A “CRISE” E A CRISE

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 4 DE 6

A ritualização da ira

Carlos Novaes, 27 de abril de 2016

Nos três artigos anteriores desta série tentei mostrar, entre outras coisas, que o impeachment de Dilma reproduz o modus operandi imposto à política brasileira pela ditadura paisano-militar (nas circunstâncias atuais, esse legado nefasto se aproveita do cadáver do lulopetismo, morto, como vimos, justamente porque desistiu de enfrentar a desigualdade, que é o fundamento do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita). Esse modus operandi pode ser resumido assim: um Legislativo hegemonizado por agrupamentos desprovidos de qualquer projeto de desenvolvimento e consolidação democrática para o país, sempre que vê ameaçado o status quo em que foi treinado a obter e preservar vantagens para si, passa a criar, em forma de “crise”, dificuldades para o Executivo, de modo a simular sintonia com a sociedade insatisfeita e, sobretudo, dissipar a energia transformadora emitida pelos segmentos mobilizados dela, que estão justamente a ameaçar a manutenção desse status quo.

Dizendo o mesmo de outro modo, ao contrário do que temos sido levados a acreditar, quando olhada de mais longe a dinâmica da política brasileira dos últimos 50 anos deixa ver poucas variações: sob ditadura ou sob democracia, o Legislativo, onde os mandões, depois de se acomodarem às práticas de dispositivo paisano da ditadura, se habituaram a não ter projeto para o país e fizeram da expertise adquirida naquela acomodação um instrumento para a defesa da ordem desigual que é favorável a si; um Legislativo assim degradado, eu dizia, se opõe ao Executivo, a quem as responsabilidades inerentes às funções exercidas — e, sob democracia, também em razão das expectativas geradas para obter o voto — obrigam a apresentar, e a pôr em prática, algum projeto que leve o país a esta ou àquela mudança, o que sempre implica incerteza incômoda para os cardeais do Congresso (ao contrário do que se pensa, e do que seria de almejar numa democracia consolidada, no Brasil o Legislativo está ainda mais agarrado a rotinas do que o Executivo, pois atua segundo práticas paisanas que transitaram eleitoralmente da ditadura para a democracia).

Sob um arranjo desses, e numa sociedade encharcada de demandas insatisfeitas como a nossa, qualquer dificuldade institucional mais séria para a reprodução da ordem (uma Lava Jato, por exemplo), ou diante de mobilização direta da sociedade que sofre as consequências dessa mesma desigualdade (um panelaço contra a carestia como o de 1976; ou as manifestações contra a tarifa de transportes em 2103), o Executivo estará sempre vulnerável para que se faça nele o desenho do alvo – para bem e para mal. Se as coisas se complicam, as forças que hegemonizam as práticas autoritárias paisanas logo começam a preparar o bote, que pode acabar em desengate: primeiro, passam a cobrar mais caro pelo apoio do Legislativo à chamada governabilidade (como fizeram com o Figueiredo da Anistia, com o Sarney da ressaca do cruzado, com o FHC da emenda da reeleição e com o Lula do mensalão, salvaguardadas as diferenças de objetivos, claro, e as margens havidas para a chantagem em cada caso); segundo, se o ardil não funciona e as coisas pioram, isolam o Executivo na condição de mal a vencer, tangendo contra ele a insatisfação popular, distraindo-a da conclusão de que o mal a superar engloba todo o sistema político garantidor da desigualdade – foi assim com o Figueiredo da fase final da transição “lenta, gradual e segura”, foi assim com Collor e está a ser assim com Dilma (naturalmente, para isolar o essencial estou a deixar de lado as diferenças do que se pôs em jogo em cada caso).

Longe de mim atribuir o desfecho comum para esses estados de coisas a uma conspiração, afinal, esse desenho final é resultado, dentre outros fatores, tanto de inúmeras conspirações inconclusivas rivais entre si, quanto de entrechoques havidos na sociedade mesma em cada um dos momentos históricos respectivos. Também estou longe de não valorizar as diferenças marcantes entre estar submetido ao dispositivo paisano da representação congressual sob gestão ditatorial (no caso, militar) ou sob gestão democrática: a eleição presidencial direta trouxe óbvias diferenças para melhor. Menos óbvio, porém, é o que há de continuidade entre democracia e ditadura, e é essa continuidade que estou a apontar, de modo a nos permitir explorar o potencial emancipatório da atual crise brasileira, cujo desatamento depende da lucidez e da disposição de luta que tenhamos para encarar o problema central: o Legislativo. Vejamos, nas linhas a seguir, como ele tem obtido sucesso e, em seguida, no próximo post, exploremos as falsas soluções (sempre mais prováveis), deixando para o post final a discussão de um possível caminho de superação.

Embora com dificuldades crescentes, essa operação do dispositivo paisano via Legislativo tem se realizado com êxito porque, de um lado, a despeito de insatisfeita, a sociedade brasileira é preguiçosamente conservadora, o que a leva a evitar desfecho cabal para suas inquietações, isto é, está sempre na torcida íntima para que “os políticos se entendam” (o que robustece o que deveria ser vencido) e, de outro lado, o dispositivo paisano se sai bem também porque o dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM, jamais deixou de ser mobilizado para lembrar ao nosso povo os custos do engajamento na luta contra a ordem, como Alckmin fez contra os manifestantes de junho de 2013 e, mais recentemente, contra as mobilizações dos adolescentes secundaristas.

Mas as dificuldades para repetir a pantomima com êxito têm aumentado, já que as contradições postas pela desigualdade não param de crescer e a ordem política moldada à imagem e semelhança da desigualdade não pára de se desmoralizar. E ela se desmoraliza porque não há roubalheira que chegue para contentar a todos os agentes políticos que aderiram ao esquemão – não há parceria Público-Privada que absorva todos os agrupamentos voltados a ganhar com, e a driblar a, desigualdade quando todo mundo (de Odebrecht a Paulinho da Força, de Aécio a Cunha) já descobriu o caminho das pedras – a disputa eleitoral adquiriu contornos de uma luta de morte.

Daí a Lava Jato ter encontrado tanto material criminal, o que, por sua vez, levou todo o sistema político a se mobilizar para contê-la ou dela tirar vantagem. Provida de dois braços, o da primeira instância, no Paraná, e o da última instância, no Supremo, no decorrer da luta a Lava Jato teve sua inevitável ênfase no PT (inevitável porque quando tudo começou o partido já ocupava o centro do poder político federal há 12 anos) empurrada para uma unilateralidade que, até aqui, na prática, dirigiu apenas contra o lulopetismo uma corrupção que diz respeito a todo o sistema político. Embora a equipe do Paraná estivesse impedida por lei de investigar pessoas com fôro privilegiado, certas escolhas de Moro não deixam dúvidas sobre os objetivos políticos de decisões suas contra Lula. Ou seja, no andamento das disputas em torno da Lava Jato, mesmo a primeira instância passou a oferecer evidências do caráter unilateral das suas escolhas. Caso bem diferente é o da esfera federal, protagonizada pelo STF, pois ali a unilateralidade tem sido total: salvo no caso de Cunha, nada vai adiante contra políticos graúdos fora do PT.

O Paraná foi unilateral em sua celeridade; o Supremo vai sendo unilateral na sua morosidade – ambos dão exemplo do exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do nosso Estado de Direito Autoritário: o primeiro ofereceu material que serviu ao incitamento da sociedade; o segundo digere o material num ritmo que serve à dissuasão dela – entre uma escolha e outra, o impeachment. Combinadas com a maioria facciosa improvisada no Legislativo, essas práticas do Judiciário conferem a todo o conjunto um ar de encenação sacrificial onde a vítima é o Executivo, contra quem se fez a ritualização da ira da sociedade.

Mas ainda é possível que essa crise não desemboque num novo acordão contra a mudança, pois ao longo dos últimos anos, e especialmente no curso dos últimos meses, a sociedade tem mostrado ganhos de consciência sobre o que está em jogo. O contraste entre as práticas facciosas descritas acima e esses ganhos de consciência apareceu na forma da estupefação, que uniu a todos, qualquer que fosse o lado a que se tenha deixado arrastar nessa disputa. Por um momento nos esquecemos da crise, de Dilma, do PT, de Temer, de Lula ou da corrupção e nos concentramos na realidade: a conduta efetiva, indubitável, ali, na nossa frente, dessa corja liderada por Cunha, que nos “representa”. Tal como num programa de auditório em que as aberrações saíram de controle e a realidade da violência cotidiana se deixa ver, também naquele domingo nosso parlamento se viu desnudo em sua violência e cinismo, diante de um país perplexo.

A força da realidade se impôs a todo o alarido da mídia, a todas as análises mistificadoras, e pudemos ver, ao vivo e em cores, de que material é feita a representação legislativa que nossa negligência permitiu entronizar-se. A ninguém escapou o imenso fosso, talvez tão grande quanto o da desigualdade, entre a importância que fora dada ao impeachment ao longo de 16 meses de luta e aquela encenação decisória dele: a performance coerente dos atores fez aflorar a pequenez do melodrama que levara as ruas a se dividirem improdutivamente entre vilões e mocinhos, e nos deixou em vias de enxergar a extensão da tragédia.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 3 DE 6

O lulopetismo como cadáver

Carlos Novaes, 25 de abril de 2016

Para quem enxerga a desigualdade como o problema central a entravar a consolidação da democracia e o desenvolvimento do Brasil, o lulopetismo vagueia insepulto não é de hoje, pois ele só chegou à presidência da República depois de ter abandonado a luta contra a desigualdade, tornando-se sócio do bloco de poder articulado pelo Real justamente em torno do pacto de que os ricos não podem perder e os pobres só podem melhorar em uma de duas circunstâncias: quando todos ganham, ou quando se pode impor perdas às camadas médias para que os pobres ganhem. Ora, se os ricos nada devolvem do até aqui acumulado, e se logram manter as engrenagens de concentração de renda e riqueza que lhes permite essa acumulação, não se altera o modelo concentrador e se continua a sonegar a todo o sistema uma energia que ganha formas improdutivas, como o entesouramento, o desperdício ou o luxo. Nas raras oportunidades em que é possível fazer políticas para que todos ganhem não há luta contra a desigualdade porque não há empenho para estreitar o fosso que separa ricos e pobres e os arrancos para adiante terão sempre o desenho do voo do jacu; já quando as camadas médias perdem para que os pobres ganhem não há luta contra a desigualdade, mas mero remanejamento dos sofrimentos entre os não-ricos, sem alteração da estrutura que gera e organiza esses sofrimentos.

O período de poder do lulopetismo foi caracterizado pela obediência à clausula pétrea do pacto (a de que os ricos não podem perder) e, em decorrência disso, pelo deslocamento descendente de uma para outra das cláusulas subsidiárias dele, conforme as oportunidades do cenário internacional passaram de propícias a adversas: sob Lula, como o cenário internacional era favorável, depois de um ajuste ortodoxo inicial, os ricos “ganharam dinheiro como nunca antes” e o resto da pirâmide social melhorou junto, com grande ênfase nos ganhos dos muito pobres (ganhos estes erroneamente vistos como queda da desigualdade); sob Dilma, num primeiro momento, mantiveram-se os ganhos dos ricos, enquanto as camadas médias tiveram sua qualidade de vida diminuída para que os pobres não sofressem todo o impacto dos ventos estrangeiros, que se haviam feito desfavoráveis; num segundo momento, diminuíram os ganhos dos ricos, enquanto as camadas médias passavam a dividir perdas com os pobres; finalmente, em sua fase terminal, o governo Dilma levou à estagnação os ganhos dos ricos, acompanhada do sucateamento da qualidade de vida das camadas médias (via deterioração dos equipamentos e serviços públicos) e da regressão dos ganhos que os mais pobres julgavam ter incorporado, mas que revelaram toda a sua insustentabilidade, conjunto que não decorre senão da obediência ao pacto que o havia enjambrado, combinada com uma gestão incompetente dos desdobramentos fiscais adversos. Não foi à toa, portanto, que o PT perdeu apoio nas camadas médias que lhe eram favoráveis e enfureceu aqueles segmentos dela que já lhe eram hostis.

O que fez do lulopetismo insepulto um Judas a ser malhado em procissão, impedindo-o de continuar a ter sucesso fingindo vivo o compromisso há muito abandonado com a luta contra a desigualdade, foram os sofrimentos acima e os desdobramentos da operação Lava Jato – sem ela, a farsa “reformista” do lulopetismo ainda poderia lhe permitir empurrar os problemas com a barriga. Finalmente ficou claro, porém, que o PT, tanto quanto o resto do sistema político, vinha operando com base na corrupção. A corrupção resulta da determinação dos de cima em manter a desigualdade como estrutura de proveitos (reforçando-a nos acertos corruptos em que o mercado combina previamente os ganhos de cada um dos supostos concorrentes em torno de contratos fraudulentos com o Estado), e se espraia no impulso dos de baixo para escapar dos efeitos negativos da desigualdade (evitando os custos de enfrentá-la).

Ou seja, diante de um Estado faccioso, saído de uma sociedade extremamente desigual, os de baixo tem na corrupção um dispositivo para driblar perdas; os de cima promovem a corrupção para assegurar ganhos  — no dia-a-dia de uma tal sociedade, há uns que incorrem na corrupção por pequenas benesses, que podem ser obtidas de forma individual (escapar a uma multa de trânsito) ou coletiva (tirar vantagem do exercício de mandato sindical); enquanto outros articulam pela corrupção grandes fraudes, que darão tão mais certo quanto melhor combinarem, via contratos fraudulentos entre o Estado e o mercado, o ganho individual dos operadores com as conquistas coletivas ilícitas das organizações envolvidas (lucro para as empresas; poder e dinheiro para os partidos e seus mandatários — campanhas são financiadas com parte desses dinheiros).

O que preparou o lulopetismo para o abandono da luta contra a desigualdade foi sua adesão à corrupção, tanto como método para alcançar o poder, quanto meio de os envolvidos ganharem dinheiro, práticas que passaram a dar forma ao PT desde a conquista das primeiras prefeituras, vistas como unidades de negócios. A primeira evidência pública de que esse realismo nocivo se instalara no cerne do partido é o embate havido, já em 1989, entre o governo honesto de Luiza Erundina na prefeitura do município de São Paulo e a primeira campanha de Lula à presidência da República, no famoso caso Lubeca, quando se pretendeu obter daquela empresa dinheiro para a campanha presidencial em troca de contrapartidas saídas de contratos na prefeitura, operação que a prefeita Erundina, uma vez informada, barrou. Tempos depois, no curso das chamadas “Caravanas” para a campanha presidencial de 1994, mais uma vez veio à luz o que havia de obscuro nas práticas do PT, dessa vez na prefeitura de São José dos Campos, quando o então secretário da fazenda municipal, Paulo de Tarso Vencesllau, não aceitou e trouxe a público manobras em torno do dinheiro público e o mercado das consultorias, o que lhe custou o cargo e, em seguida, a expulsão do PT. Mais adiante, às vésperas de alcançar a tão perseguida vitória presidencial, em 2002, esse realismo nocivo exibiu sua face macabra no episódio da morte do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, mesmo que se acredite, como é plausível, que os líderes do PT não tiveram vinculação com o assassinato, que se deu, não obstante, em circunstâncias de disputas de dinheiro e poder empresarial (o mercado do transporte urbano intra-municipal) de que maiorais do PT não podem se pretender isentos.

Tendo sucumbido à corrupção, o PT tornou-se parceiro dos muito ricos e, assim, não tinha como perseverar na luta contra a desigualdade, enveredando pelas práticas que desviam de seus objetivos iniciais quase todo agrupamento de ação coletiva que os de baixo logram reunir para enfrentar situações de desigualdade extrema, como tratei, por exemplo, aqui e aqui. Para esconder sua condição de cadáver, o lulopetismo apostou suas fichas na polarização com os tucanos e, para dar verossimilhança à farsa, diante de qualquer dificuldade mais séria voltava a empunhar bandeiras que, abandonadas há tempos, já não sabe sequer fazer tremular: essa incongruência recebeu forma de símbolo terminal nos fraudulentos discursos proferidos por Lula no âmago dessa crise – deu vergonha ouvi-lo.

Os tucanos, por sua vez, para esconder a ilegitimidade de sua pressa de voltar ao poder, apresentam-se como defensores de uma democracia supostamente consolidada contra um “esquerdismo” petista que sabem tão de araque quanto seu social-liberalismo, ao mesmo tempo em que ficam a oscilar entre o uso de ora um, ora outro dos dispositivos mais violentos legados pela ditadura paisano-militar ao Estado de Direito, indo de rasgar a Constituição (como nesse golpe paisano contra o mandato de Dilma) ao emprego violento das PMs sob seu comando (como faz Alckmin em SP, afeiçoado que é deste legado propriamente militar da ditadura).

Na verdade, o PT tomou do PSDB o protagonismo do pacto que os tucanos haviam posto de pé e, diante da ruína inexorável desse pacto (afinal, a desigualdade brasileira é insustentável) sob circunstâncias em que uma sociedade contraproducentemente conservadora ainda não engendrou uma alternativa para ir adiante, ambas as forças fazem uma da outra o espantalho a combater, enquanto acabam por abrir caminho para o p-MDB, que está sempre a andar para trás, embora tenha o cuidado esperto de deixar pegadas como se estivesse avançando: isso é que é a vanguarda da ruína.

A funcionalidade do lulopetismo como cadáver está em depois de ter se prestado a legitimar o Estado de Direito Autoritário que garante a desigualdade, acabar por servir de fantasma à desmoralização das bandeiras políticas voltadas a superá-lo, fragilizando-as ante a um anti-comunismo boçal: isso é que é a ruína da vanguarda.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 2 DE 6

Impeachment: um golpe paisano para, mais uma vez, fugir à mudança

Carlos Novaes, 24 de abril de 2016

A transição “lenta, gradual e segura” permitiu que a ditadura paisano-militar transmitisse ao Estado de Direito que a sucedeu práticas e dispositivos que formam um acervo indispensável à manutenção do seu maior legado: a desigualdade. O principal dispositivo militar deste acervo é a Polícia Militar-PM, como já discuti aqui; o principal dispositivo paisano é o p-MDB, partido que se acomodou ao papel para o qual foi criado há 50 anos: manipular a política miúda para garantir a ordem desigual que permite negócios graúdos, como discuti detalhadamente em outra série, de quatro artigos, iniciada aqui. Se fizermos uma retrospectiva da prática desses dois dispositivos no curso dos últimos quarenta anos, isto é, entre 1976 (ano de início dos grandes levantes contra a carestia) e 2016 (ano das grandes mobilizações contra a corrupção), veremos que tanto o legado militar quanto o legado paisano da ditadura tem atuado, antes como depois do fim dela, de forma violenta e eficaz contra os interesses da maioria de uma sociedade que continua a almejar mudanças. Sob a democracia, o dispositivo militar é manejado pelos governadores, que fazem um notório uso repressivo da PM; o dispositivo paisano está encarnado nas práticas hegemônicas das nossas casas legislativas, apoiadas, claro, na expertise do p-MDB, tudo agravado pelo fato de que a PM passou tanto a ocupar cadeiras de representação legislativa, quanto a exercer atividades de gestão governamental. O conjunto vem de longe e anuncia um tempo medonho, se a sociedade continuar a não agir diante do que vê.

O legado da Ditadura paisano-militar

Nossa transição da ditadura para a democracia marcou a sociedade brasileira com um contraste que se impõe até hoje: a sociedade se mobiliza para obter o máximo, e o resultado alcançado é sempre o mínimo. Saímos à rua por uma Anistia ampla, geral e irrestrita e o Congresso aprovou uma anistia que serviu de biombo para torturadores; voltamos às ruas por Diretas-Já, mas o Congresso não aprovou a emenda Constitucional que restabeleceria de pronto a eleição direta para a presidência da República. Depois disso, o p-MDB preferiu Tancredo a Ulisses na disputa do Colégio Eleitoral, mais uma vez obrigando a sociedade que queria a mudança a se contentar com uma saída palatável à ditadura que se queria derrubar. As circunstâncias e o alarido midiático em torno da doença e morte de Tancredo levaram a sociedade que lutava por mudanças não apenas a viver como risco imenso a perda do arranjo ultra-conservador que se fizera em torno do notável político mineiro, mas, sobretudo, a agarrar com esperança a até então impensável investidura de Sarney na presidência da República, que, não obstante, logo adiante, reivindicou e obteve do Congresso, liderado pelo p-MDB, a mudança constitucional que lhe deu um quinto ano de mandato, postergando em mais um ano as eleições diretas para presidente que a sociedade tanto reclamava. Ora, o sistema político construído pela dinâmica eleitoral preservada pela ditadura, no qual se contrapunham a ARENA e o p-MDB, foi fundamental para que a história tivesse tido esse desenho, isto é, a facção de profissionais da política treinados no respeito às limitações impostas pela ditadura aprendeu a defender seus próprios interesses em meio à turbulência social e, claro, não queria que as mudanças que saíssem da redemocratização viessem a ameaçar suas conquistas.

Mesmo narrado de modo esquemático como acima, não é difícil perceber que esse período que vai de 1976 até 1989 pode ser analisado como uma longa domesticação, na qual a sociedade foi levada a absorver como uma vicária “vitória parcial” cada uma das derrotas fundamentais que lhe foram infligidas. E pior: como naquela altura se combatia a ditadura militar, isto é, como ainda não tínhamos clareza de que o inimigo era uma ditadura paisano-militar, as derrotas sofridas foram colocadas apenas na conta dos militares e, assim, ficou encoberto o fato de que em cada uma delas atuara firmemente contra nós o dispositivo paisano da ditadura.

Embora tenha sido uma eleição “solteira”, na qual as máquinas partidárias convencionais não foram ativadas para buscar mandatos legislativos, circunstância que facilitou as coisas para Collor e para Lula, não devemos subestimar o papel que aquelas traições jogaram na escolha desses dois finalistas na eleição presidencial de 1989: ainda que por razões bem diferentes, nem Collor nem Lula podiam ser associados àquelas derrotas que nos foram impingidas, não sendo à toa que nenhum dos dois era, então, próximo do p-MDB. Em outras palavras, quando chegou a hora de finalmente votar para presidente da República, o eleitorado fez escolhas em que contrapôs duas alternativas de mudança no segundo turno (e com Brizola em terceiro), evitando premiar os candidatos dos partidos campeões da transição “lenta, gradual e segura”: o p-MDB, o PSDB (saído do p-MDB), o PDS e o PFL (ambos saídos da ARENA).

Tomada em seu conjunto, a ordem de fatos exposta acima põe a seguinte questão: com o fim do arbítrio militar e a volta das eleições diretas para a presidência da República, ao exercício rotineiro da política eleitoral e da ação legislativas que nos foi legado pela ditadura (o seu dispositivo paisano que herdamos como representação) passou a se contrapor o vetor de novidades saído da eleição direta para o Executivo (a gestão, cujo acesso nos era negado e para a qual o p-MDB jamais tivera de se preparar com projeto próprio). Em outras palavras, contra um Congresso viciado em lucrativas rotinas acomodatícias se passou a eleger um presidente empurrado à mudança pelo voto direto. Olhada desse modo, a disputa entre o Legislativo e o Executivo nos leva a ver mais semelhanças do que diferenças nos processos de impeachment de Collor e Dilma: como quer que sejam diferentes as situações criminais de um e de outro, ambos foram vítimas de maiorias políticas facciosas, que viram no presidente o alvo ideal para onde desviar a fúria popular contra o sistema político que a todos infelicita.

Em outras palavras, em mais uma operação para evitar mudança que o atinja, o legado paisano da ditadura desvia a mobilização da sociedade para o Executivo, a gestão, (tal como fez com os militares – neste caso com êxito que beneficiou a todos nós), quando o problema, agora ainda mais do que antes, está na representação. Ainda dizendo o mesmo, mas de um outro modo: o impeachment de Dilma foi o golpe que um sistema político podre enjambrou para conter a Lava Jato ao mesmo tempo em que sacia a opinião pública com a unilateralidade da ação de um Judiciário faccioso. Ou seja, em mais um exercício exitoso do método velho de quarenta anos, mais uma vez o legado paisano da ditadura leva a sociedade a se contentar com o mínimo depois de ela ter ido às ruas reclamando o máximo, desfecho para o qual ela contribuiu ao se dividir de um modo contraproducente.

A reinstituição do voto para presidente esbarrou na muralha das práticas eleitorais e institucionais que se haviam azeitado no transcurso de toda a ditadura paisano-militar, isto é, o dispositivo paisano da ditadura seguiu inalterado e tornou-se o cerne autoritário do nosso Estado de Direito. A maneira como os políticos profissionais “resolvem” nossas “crises” e crises não oferece indício de consolidação democrática, mas a confirmação das práticas institucionais facciosas que impedem essa almejada consolidação e escancaram que nossa democracia eleitoral vem sendo exercida em conexão com um autêntico Estado de Direito Autoritário. Em outras palavras, é uma ilusão considerar democrático o nosso Estado de Direito. Vamos ao cadáver.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 1 DE 6

Desigualdade e Estado de Direito

Carlos Novaes, 24 de abril de 2016

Introdução

A democracia é um arranjo muito delicado, que dificilmente apresenta consolidação na forma de um Estado de Direito realmente democrático. São minoria os países que alcançaram essa forma (embora haja muito sufrágio universal pelo mundo) e, mesmo neles, as ameaças à democracia são crescentes em razão dos problemas postos pela desigualdade, cuja tendência tem sido crescer, e pela crise da representação profissional. Numa democracia como a do Brasil, país em que, como desde sempre, a ordem social e política está fundada na aberrante desigualdade sócio-econômica que hoje contrasta, acentuadamente, na renda e na riqueza, eleitores virtualmente iguais entre si, o arranjo democrático da disputa pelo poder através do sufrágio direto universal mostra todas as suas limitações, pois fica claro que se o livre e igual direito de voto é necessário, está longe de ser elemento suficiente para que um país alcance a consolidação da democracia.

É que em situações de desigualdade extrema, o livre exercício da opinião eleitoral do cidadão esbarra na muralha intransponível das rotinas eleitorais do Estado fundado na desigualdade. Em outras palavras, a todo fluxo à mudança vindo da sociedade através do voto se opõe a resistência à mudança própria das rotinas que se fizeram norma em Estados capturados pelas elites que são o pólo beneficiado pela desigualdade. Há uma oposição que contrapõe, de um lado, na sociedade, o exercício do voto livre direto individual (dínamo gerador do inesperado, da surpresa, da mudança) e, de outro, no Estado, a captura neutralizadora dos efeitos desse exercício livre pela forma institucional eleitoral (casamata de rotinas em que se defendem contra a mudança aqueles que sentem seus privilégios ameaçados).

Não é à toa que no Brasil, país de desigualdade extrema, mesmo que não se tenha generalizado a compreensão da contraposição acima, se tornou senso comum a ideia acertada, mas vaga, de que para consolidar a democracia precisamos enfrentar a desigualdade. Por ser vaga, a ideia se presta a toda sorte de mistificação e, por isso mesmo, a sociedade brasileira se deixou aturdir pelo embate improdutivo entre um fantasma e uma ilusão nessa hora turbulenta em que estamos a fazer escolhas políticas e institucionais definidoras do nosso futuro – o fantasma é um certo “socialismo”, a ilusão é um certo “Estado de Direito”, e as escolhas que nos desafiam dizem respeito, justamente, à consolidação da democracia na perspectiva do enfrentamento da desigualdade.

Assim como não há fantasma sem o defunto que o precedeu, também não há ilusão sem o arremedo de realidade que lhe deu origem: a divisão improdutiva que empurrou gente tolamente apaixonada às ruas se dá entre o cadáver do lulopetismo e um ilusório Estado de Direito que, revestido da democracia eleitoral, conserva um legado da ditadura paisano-militar. Não é à toa, portanto, que a essa divisão corresponda o embate eleitoral entre o PT e o PSDB, no qual ambos escondem, sob uma polarização fajuta, o fato de perseguirem os mesmos objetivos; com os tucanos se pavoneando defensores de um Estado de Direito supostamente democrático contra um não menos presumido pendor petista pelo socialismo. Como todo esse arranjo é uma falácia, o resultado mais recente dessa porfia vã foi mais um “triunfo” obsceno do p-MDB, precisamente o partido que se fez o braço paisano da nossa transição “lenta, gradual e segura” da ditadura paisano-militar para uma democracia eleitoral sob um Estado de Direito em que nos debatemos a defender (ou a simular) respeito pela ordem que nos faz cativos. A aberração do conjunto nos foi exibida no plenário da Câmara dos Deputados no último domingo, 17 de abril.

Nas linhas a seguir e nos demais posts desta série vou tentar esclarecer os parágrafos acima.

Desigualdade e Estado de Direito

Para quem enxerga  a desigualdade como o problema central a entravar a consolidação da democracia e o desenvolvimento do Brasil, o nosso chamado Estado de Direito não é democrático, uma vez que suas instituições se prestam menos à consolidação da democracia entre nós, e mais ao exercício faccioso dos poderes institucionais. Nossa democracia se apresenta como um ritual eleitoral que, praticado pela sociedade no exercício pleno, é verdade, do direito de voto livre e universal, não transpõe, porém, a barreira do manejo faccioso dos poderes institucionais do Estado, manejo este feito às nossas costa e do qual só vez ou outra sentimos diretamente os efeitos políticos mais nefastos (daí, também, o espanto com o espetáculo do domingo passado).

Como já foi dito aqui, enquanto a violência sempre emana do exercício da força, por mais tênue ou indireto que este arbítrio se mostre; a política sempre emana da busca da persuasão, por mais incisivo ou ríspido que este diálogo se dê. O Estado de Direito é a convivência tensa, disputada, sob rito eleitoral baseado no sufrágio universal, entre a violência e a política. Quando nessa tensão o predomínio é da política, com a violência, quando muito, se fazendo presente de modo esporádico e sem êxito, temos o Estado de Direito Democrático. Quando essa disputa se dá em desfavor da política e sob o predomínio da violência, temos o Estado de Direito Autoritário. Uma democracia em processo de consolidação é aquela que ainda não conseguiu alcançar a forma de Estado de Direito Democrático, vale dizer, é aquela que ainda luta para minimizar o emprego da violência, em favor do exercício da política. Em suma, uma democracia só pode ser dita consolidada quando elevou seu Estado de Direito de autoritário para democrático. Fora do Estado de Direito, nas ditaduras, não há propriamente tensão ou disputa, mesmo quando há alguma eleição, pois a política é apenas um sobrevivente mutilado sob a interdição intransponível da violência. Já quando a violência é absoluta, temos o totalitarismo, onde não há política. As maiores violências contra um Estado de Direito vigente são, no plano jurídico, o desrespeito à Constituição e, no plano político-administrativo, o exercício faccioso dos poderes institucionais. É o tamanho de cada uma dessas duas maiores violências que oferece meios para se classificar o Estado de Direito como democrático ou como autoritário.

Não obstante a vigência do sufrágio universal, a desigualdade brasileira persiste em razão do exercício faccioso dos poderes institucionais que ela permite e que a ela favorecem, pois a desigualdade fez, e conserva, a facção dos ricos distorcidamente poderosa no plano institucional, contra as camadas médias e os pobres, o que também leva ao predomínio do Estado sobre a sociedade, com desdobramentos político-administrativos conhecidos em desfavor dos de baixo: corrupção, violência policial, descaso social, milícias etc – e os obstáculos à consolidação da democracia crescem à medida que facções populares conseguem aliviar seus sofrimentos tirando algum proveito dessas mazelas, situação que as faz cúmplices das forças hostis aos seus interesses. Vigente desde sempre, esse exercício faccioso ganhou reforço com a transição “lenta, gradual e segura” da ditadura paisano-militar para o Estado de Direito, precisamente porque a ditadura logrou transferir para ele dispositivos que, sob o manto virtuoso da democracia eleitoral, permitem assegurar a manutenção da desigualdade.

A crise de representação que estamos vivendo é a evidência cabal da degeneração desse exercício faccioso dos poderes institucionais no plano propriamente político. Ao trazer à luz o conluio entre os políticos profissionais e os ricos (o chamado mercado), a Lava Jato (por unilaterais que sejam suas motivações, ou como quer que se tenham distorcido seus objetivos), escancarou uma das práticas institucionais facciosas mais nocivas, a corrupção, que quase todo mundo sempre soube existir e que está na raiz da não-consolidação da nossa democracia. Não por outra razão, a corrupção envolve os três maiores partidos (PT, PSDB e p-MDB) e um número nada pequeno de partidos satélites. Por isso mesmo, nenhum desses partidos está empenhado em aprofundar a Lava Jato, havendo apenas disputas em torno da unilateralidade dela, como já discuti aqui e aqui.

Diante desse desmoronamento do sistema político corrupto que estrutura nosso Estado de Direito, os políticos de carreira vem tentando inventar uma saída para si mesmos, começando por jogar a crise de representação do colo do Executivo, responsável pela gestão, situação desesperada que os arrastou a mais uma violência contra o Estado de Direito: o desrespeito à Constituição, na forma deste processo de impeachment da presidente da República – o vale-tudo resultante só torna mais claro o caráter não-consolidado da nossa democracia, a condição autoritária do nosso Estado de Direito. Um processo de impeachment não se torna legal apenas porque a Constituição o prevê, pois precisa obedecer às exigências que ela impôs à caracterização do crime, que, assim, justificaria a sua admissibilidade. Qualquer pessoa orientada pelo desejo de consolidar a nossa democracia, isto é, que pretenda contribuir para que o Brasil alcance um Estado de Direito Democrático, deve, num primeiro passo, saber separar o jurídico do político, para, num segundo passo, poder reunir os dois aspectos de um modo instrutivo, operação que permite enxergar toda a ilegitimidade desse processo de impeachment, como explorei recentemente aqui e aqui.

Não é, portanto, só uma ironia que o p-MDB colha a sua vitória fazendo do PT e de Lula símbolos da corrupção e da incompetência na gestão da coisa pública. Essa reviravolta virou do avesso o coração do nosso sistema político podre, que sacrificou o sócio mais recente de modo a conservar a desigualdade e todas as tradições a ela conexas, que vêm de longe, como veremos a seguir.

IMPEACHMENT COMO GOLPE – 2 de 2

Carlos Novaes, 13 de abril de 2016 — (23:00 h)

No artigo imediatamente anterior, vimos que na discussão dos motivos invocados para o impeachment do presidente da República deve-se levar em conta aspectos jurídicos e aspectos políticos, não sendo por outra razão que o Judiciário-judicação (STF) e o Legislativo-representação (Congresso) são parte do rito democrático exigido para a discussão e a decisão acerca do eventual afastamento do titular do poder Executivo-gestão. Não obstante esse almejado equilíbrio institucional entre os três poderes, pelo qual a Constituição obriga à obediência recíproca entre o político e o jurídico, como a tramitação do processo se dá no Congresso, casa da política na qual se tomam as decisões pertinentes finais, toda proposta de impeachment de presidente da República assume um sentido predominantemente político. Em uma democracia consolidada esse rito politizado não traria problemas institucionais, pois seria o próprio exercício da democracia.

Numa democracia não-consolidada como a brasileira, porém, o sentido predominantemente político do impeachment se tornou a senha para um vale-tudo Congressual que atesta de modo cabal que não vivemos sob um Estado de Direito Democrático – tudo se passa como se política fosse sinônimo de vontade arbitrária da maioria (não foi à toa, aliás, que já no clássico O Federalista, em seu capítulo X, Madison se ocupou de conceituar a maioria facciosa, que é a perversão da ideia de maioria democrática — e, em nosso caso, tudo é ainda pior, pois não se trata sequer de uma maioria facciosa orgânica, mas de um verdadeiro ajuntamento faccioso majoritário). O vale-tudo mencionado aparece seja na peça processual propriamente dita — pois, como dito no artigo anterior, nem na inicial de Bicudo e Reale, nem no parecer do relator se nota qualquer fundamentação jurídico-política digna desse nome para sustentar seu desejo de impeachment —, seja nas ações dos políticos que, para cúmulo, nos oferecem uma batalha aberta entre a presidente e seu vice, como se um embate desses não fosse a própria negação da presumida maturidade democrática do país.

Nessa batalha que opõe traidores a fariseus temos o vale-tudo configurado, de um lado, nas negociatas promovidas pela presidente que busca preservar seu mandato com métodos inteiramente coerentes com a forma nociva com que o exerceu até aqui; e, de outro lado, na desenvoltura do vice, duplamente escandalosa, pois ele não apenas se tornou protagonista aguerrido na defesa de seus próprios interesses sucessórios, como o faz promovendo a mesma feira que condenou à corrupção e à ineficácia o governo que compartilhou com sua companheira de chapa – nesse aspecto, quando relembramos a conduta decente do vice Itamar Franco quando do impeachment de Collor, temos que ir além de Marx e concluir que, no Brasil, a história se repete não exatamente como farsa, mas como pornochanchada.

Essa politização deformada como vale-tudo atingiu também o Judiciário, pois agora podemos concluir que, a depender dos juízes (ou seja, se não atuarmos na rua), a unilateralidade da Lava Jato se tornou irreversível. Essa unilateralidade, que já discuti aqui e em outros textos deste blog, chegou a tal ponto que tornou-se ela mesma uma variante política espúria de todo o processo. Aos vazamentos seletivos de Moro, alguns deles em momentos calculadamente cruciais, juntaram-se escolhas do Supremo que permitiram o avanço dos inimigos da Constituição, reforçando os aspectos autoritários do nosso Estado de Direito. Além de não terem prosperado as investigações contra os políticos que vão se fazendo vitoriosos nesse golpe contra a Constituição, a interdição da posse de Lula no ministério, seguida da não-decisão sobre a constitucionalidade de sua nomeação para a Casa Civil, fizeram dos juízes do Supremo cúmplices do ataque contra a Constituição: eles deixaram no limbo matéria constitucional da maior relevância para o momento político do país apenas para manietar o governo na luta contra seus opositores. Ou seja, os juízes do STF privaram a sociedade de uma orientação jurídica crucial porque preferiram os resultados políticos da solerte escolha facciosa que fizeram: que a não-investidura de Lula exercesse todo o seu efeito danoso contra Dilma. Que Estado de Direito é este? Tentarei dar resposta a esta pergunta na série de artigos que se iniciará no próximo post.

“CONSENSO” QUE NÃO PREOCUPA — CHEGA DOS MESMOS!

Carlos Novaes, 06 de abril de 2016

Enquanto o desmoronamento do pacto de Real avançava e os sinais da crise de representação em que estamos mergulhados ficavam mais e mais evidentes, o sistema político que não nos representa (até porque moldado segundo a exigência de manter a desigualdade) corria atrás do prejuízo buscando saídas tão fajutas quanto ele próprio. Depois de submeterem o país a mais de um ano de “crise”dos políticos como se fosse uma crise política, agravando uma crise econômica real que expôs e deu potência danosa aos erros do governo; depois de ensaiarem várias deformações políticas como se fossem reformas saneadoras (voto em lista, financiamento de campanha com dinheiro público, voto distrital e cláusula de barreira); depois de enjambrarem um governo do p-MDB com Dilma; depois de atirarem ao léu a tese natimorta do parlamentarismo e, sua irmã gêmea, a do semi-presidencialismo; depois de inventarem o FlaxFlu de uma tentativa de impeachment sem amparo na Constituição; depois dessas tentativas de, mais uma vez, empurrarem com a barriga um sistema podre goela abaixo do eleitorado, os políticos profissionais, ou, pelo menos, os mais espertos, parecem ter alcançado que a situação está além de uma solução entre eles e requer alguma repactuação com o eleitor.

Nos últimos dias vão aparecendo sinais em quase todas as tribos de que a consulta via voto popular é o único meio de se depurar uma saída. Em outras palavras, protagonistas do sistema político posto em xeque pela Lava Jato já não se vêem capazes de operar remendos salvadores e, a contragosto, se descobrem empurrados pelas circunstâncias a testar suas forças na “seleção natural” da disputa eleitoral (salve-se quem puder). Talvez o sinal mais eloquente de que a crise política de uma democracia eleitoral chegou ao seu ápice seja o fato de a maioria dos agentes importantes imersos nela concordarem em voltar a tentar a sorte recorrendo ao eleitorado – afinal, fora disso, só um golpe de força com amparo militar ou uma insurreição popular. Nessas circunstâncias, em que os vetores da crise convergem de forma tão aguda, não chegam a surpreender as dificuldades de solda interna no p-MDB: como partido pendular no dualismo entre PT e PSDB que, introduzido pelo pacto do Real, articula o jogo institucional da nossa “polarizada” representação fajuta, uma cisão prá valer no p-MDB será o último e mais importante sinal partidário de que o estado de coisas já não tem sustentação. Que essa cisão do p-MDB se apresente como possibilidade em razão de cálculos mal feitos orientados por ambições de poder que, ao ofenderem seu frágil equilíbrio interno, contrariam a própria razão de ser do partido, ou seja, que a cisão do p-MDB venha a ser dar de maneira tão auto-contraditória, é apenas mais uma evidência de o quanto a crise desse arranjo político-institucional podre se aprofundou e das possibilidades políticas abertas por ela à sociedade brasileira.

Temer, deixando de lado o aprendizado de cinco décadas de que o p-MDB não comporta mando interno incontrastável, deixou-se obnubilar na aventura proposta por Eduardo Cunha, justamente o único personagem da “crise” que, engolido pela própria esperteza, naquela altura já não tinha como safar-se das consequências punitivas de suas escolhas e só poderia apostar na ampliação de danos – este seu embate inglório com o STF em torno do impeachment de Temer é a confirmação terminal dessa lógica. Eduardo Cunha parece não ter ainda percebido que sua queda é o único resultado certo de toda essa confusão repleta de método.

Uma eleição numa hora dessas significa invocar um método soberano de solução da confusão, e soberano por duas razões: primeiro, porque chama a sociedade de volta à ação, via eleitorado; segundo, e por isso mesmo, porque impõe que todos (a continuidade, a mudança e a transformação) meçam forças no único plano realmente decisivo: a opinião pública política. É por isso que não vejo sentido algum em passar a desconfiar dessa solução só porque podemos antecipar as intensões de continuidade que animam muitos dos que a ela vão aderindo. Pouco importarão as intensões dos trânsfugas e dos acomodatícios se os transformadores souberem o que fazer! Para nós, não interessam nem uma eleição presidencial solteira (iríamos reeditar as circunstâncias nefastas da eleição presidencial de 1989, já discutidas aqui), nem uma eleição geral (o que nos levaria à indesejável coincidência geral de mandatos, que também discuti aqui, além de trazer ao pleito os cargos de governador e deputado estadual, inflando de modo improdutivo o enfrentamento do problema da legitimidade do nosso sistema político). Não. O que precisamos é de uma eleição para presidente, senador e deputados federais que nos permita levar o mais longe possível as consequências político-institucionais da Lava Jato: transformar a representação e a gestão de modo a criar condições políticas menos hostis à luta contra a desigualdade. Em outras palavras, como a tarefa última que realmente importa é o enfrentamento da desigualdade, como o nosso sistema político está armado de modo a preservá-la, e como uma revolução não está no horizonte (e nem é o caso pretender provocá-la), os transformadores devemos concentrar nossos esforços na transformação das instituições políticas, condição necessária para a transformação sócio-econômica, como já pude dizer aqui, aqui e em outros textos deste blog.

Fica o Registro:

1 – A Islândia pôde debelar uma possível “crise” antes mesmo que ela se instalasse porque: primeiro, é um dos países menos desiguais do mundo; segundo, o país tem uma população do tamanho de Petrópolis, na serra do Rio, espalhada por um território do tamanho de São Gabriel da Cachoeira, no Pará; terceiro, e até pelas razões anteriores, conta  com uma sociedade mobilizada, que deixou para trás a grave crise de 2008 precisamente porque foi capaz de varrer o arranjo político anterior (quer concordemos ou não com as escolhas feitas).

2 – A sustentação oral de José Eduardo Cardozo para a defesa de Dilma na comissão de impeachment da Câmara foi irretocável, inclusive porque não visou convencer aos deputados, mas esclarecer a opinião pública que ainda está aberta a pensar quando recebe argumentos fundamentados. É uma pena que defesa tão eficaz da Constituição tenha que ter sido feita em favor de um governo tão danoso ao país. Mas, por outro lado, é a própria robustez da Constituição que sairá engrandecida desse episódio, pois terá resistido mesmo quando se fez majoritário o alarido para rasgá-la em razão de uma governança desastrosa, que só as urnas podem corrigir.

3 – Se o STF somar às decisões recentes sobre Temer e sobre as gravações das conversas privadas de Lula a decisão de permitir a posse do ex-presidente na Casa Civil da presidência da República, teremos mais um conjunto de sinais a indicar que o jogo de pressões a que o sistema está submetido começa a pender para uma saída da crise que envolva diretamente a população, como vim tentando explorar em mais de um dos posts mais recentes deste blog. Naturalmente, como explorei aqui, a investidura de Lula também poderá levar a uma saída de acomodação sem eleição, que, no entanto, será tão mais difícil quanto mais formos capazes de ir às ruas de maneira unificada, pedindo eleições federais junto com as municipais.

DERROTAR O ENTULHO DO p-MDB PARA NOS GOVERNAR COM RESTOS DA ARENA?!!

A culminância da transição “lenta, gradual e segura”

Carlos Novaes, 03 de abril de 2016

 

As conexões aventadas entre a morte do ex-prefeito Celso Daniel e o dinheiro corrupto das empreiteiras cúmplices dos políticos no roubo à Petrobrás acabam de trazer de volta à cena do crime figuras como OAS, Silvinho e Ronan Pinto. Diante de tudo o que até aqui já sabemos, essas conexões não são implausíveis, mas também ainda não foram confirmadas. Entretanto, o alarido da mídia, tão silente diante das conexões que vão além do lulopetismo, já dá a coisa como certa e a máquina da embromação continua seu trabalho a todo vapor: quanto mais queimado o lulopetismo mais espessa se faz a cortina de fumaça sobre todos os outros implicados na corrupção, e mais se prepara a catarse enganadora que virá com a posse de Temer depois de um eventual impeachment de Dilma.

Observemos de perto: embora iniciada na primeira instância do Judiciário, a Lava Jato já chegou faz tempo ao Supremo Tribunal Federal-STF, para onde foram, e têm sido, envidas as evidências colhidas contra políticos com mandato. Não obstante, as iniciativas novas do juiz Sergio Moro ainda continuem a roubar a cena, pois a Lava Jato não anda no STF. Por que as denúncias que envolvem, por exemplo, Aécio, Renan e Temer não geram investigações eficazes como as que nutrem Moro, mesmo o STF dispondo de mais recursos do que a primeira instância paranaense? Por que o grosso da mídia convencional se contenta com tão pouco, a despeito do que Delcídio e Cerveró já confessaram? Por que a investigação sobre o caixa2 da dupla Dilma-Temer não anda no TSE? A que destino levará o Supremo a Lava Jato com esse empenho em se certificar de que não houve coação às confissões de empreiteiros para Moro, especialmente se considerarmos que dizer-se coagido diante de uma instância superior leniente pode — sem anular os resultados políticos já alcançados — melar tecnicamente o processo? O Supremo é fôro privilegiado ou fôro (dos) privilegiados? Neste segundo caso, a Lava Jato terá servido apenas para eliminar o lulopetismo, salvando-se tudo o mais na Disneylândia da corrupção em que se divertem, faz décadas, e às nossas custas, políticos e empresários.

Um desfecho como este será a realização da unilateralidade da Lava Jato e a sociedade brasileira indignada terá feito papel de trouxa: um escândalo de corrupção que envolve todo o sistema político terá sido posto exclusivamente na conta do lulopetismo e, assim, nós pagaremos o pato para continuarmos a ser “representados” e “governados” pelos mesmos agentes corruptos de sempre. Para impedir um desfecho como este, precisamos ir às ruas. O problema é chegar às ruas e dar de cara com os restos do lulopetismo, que tão recentemente se lembrou de suas velhas bandeiras. E pior: está a desfraldá-las para ajudar Dilma a salvar seu mandato sensibilizando Malufs, Kassabs e companhia, com os quais terá de governar, então. Ou seja, todo o engajamento da auto-intitulada esquerda para salvar o mandato presidencial em que está agarrada depende de abrir espaço no governo para aqueles que sempre foram apontados por ela mesma como a besta-fera a combater!

Tanto o comportamento do STF, em palácio, quanto o da auto-intitulada esquerda, nas ruas, devem ser encarados como aspectos do mesmo mal: a autonomia da política em relação ao mundo real, onde estamos a maioria de nós.  De um lado, com a nossa inércia eleitoral quando se trata de fazer escolhas para o Legislativo, vimos, há décadas, elegendo delegatários, não representantes: nós votamos com negligência e eles autonomamente nos dão as costas. Além de terem conquistado fôro especial para si, esses delegatários negociam com o gestor da vez a escolha disputada dos juízes para o STF, instância do Judiciário que, política por força da lei, vem sendo moldada ao gosto da sua freguesia, os políticos corruptos: são laços difíceis de desatar, leitor. De outro lado, com a nossa inércia mental quando se trata de fazer escolhas para a mudança, vimos, há décadas, depositando esperanças em organizações que se especializaram em tirar proveito, para seus eternos dirigentes, da simulação da luta contra a desigualdade. Aboletados em seus postos, esses dirigentes criaram pra si um mundo não menos à parte de nós do que o dos políticos, e só recorrem às ruas quando entendem que é nelas que estão as possibilidades de continuação do seu joguinho: são práticas difíceis de combater, leitor.

A rua precisa ganhar um sentido novo, de pressão máxima ao palácio. Na conjuntura atual, nada é mais oportuno e adequado do que reivindicar eleições para a presidência da República e para o Congresso ainda neste ano de 2016, junto com a escolha de prefeitos e vereadores. Diante da desmoralização do Executivo e do Legislativo federais, deixemos ao eleitor decidir o futuro imediato — e ele o fará tendo ainda frescos os fatos trazidos à luz pela Lava Jato. Com essa medida, passaríamos a ter as eleições municipais e nacionais juntas, de quatro em quatro anos, permanecendo intercaladas as eleições para governador e deputados estaduais, que ficariam para 2018, como já previsto no calendário em curso. Contra uma providência simples como essa vão aparecer toda sorte de argumentos, brandidos pelos mesmos que defendem saídas, estas sim, inteiramente ineficazes e/ou artificiais, tais como o impeachment e o parlamentarismo. Invencionices como essas se destinam tão-somente a deixar a decisão sobre a situação política para os próprios políticos nela implicados, mais uma vez evitando o caminho óbvio, a consulta eleitoral ao povo. Vejamos:

– O impeachment de Dilma.  Não há, no processo em curso, nenhuma evidência de crime contra a presidente. O que há é um espalhafato que faz convergir contra Dilma todo o sofrimento que a crise tem trazido. Se aprovado o impedimento, tomaria posse um vice da República sem qualquer legitimidade (pois o afastamento da titular terá sido um golpe), e sem qualquer credibilidade (pois o vice tem sido vice em tudo o que de condenável se imputa a Dilma e, ademais, está implicado nos desmandos que vem sendo apurados). O impeachment, se aprovado, nos levaria a uma sucessão sem povo, o que é inaceitável numa situação destas. Por outro lado, uma vez derrotado o impeachment na Câmara, tampouco teremos uma solução para o país, seja porque Dilma já não reúne condições de governar, seja porque um governo dela, por organizado que fosse, não poderia ir além do loteamento de sempre, dessa vez reunindo minorias de triste memória, o que nos levaria a situação ainda pior.

– O parlamentarismo. Mesmo depois de recusado em dois plebiscitos por larga maioria de eleitores, esse continua a ser o sonho das elites deste Congresso corrupto, pois daria a elas o céu sem que precisassem morrer: a gestão do orçamento público viria para dentro do próprio parlamento, deste parlamento, sem ser mais necessário negociar com um presidente da República eleito diretamente pelo povo. Tudo se passa como se os problemas para obter a coalizão entre o Legislativo e o Executivo fosse uma decorrência de eles estarem separados, quando, na verdade, esses problemas existem precisamente porque eles operam segundo a mesma lógica: com base na reeleição infinita para o Legislativo instalaram-se rotinas voltadas a exercer o poder para fazer dinheiro. Em que o parlamentarismo alteraria essas rotinas na direção de mais eficiência e menos corrupção?

A hora é essa: ampliando o que já foi dito aqui, ocupemos as ruas em desobediência civil até que se convoquem eleições diretas para Presidente, Senador, Deputado Federal, Prefeito e Vereador em 2016. Chega dos mesmos!

Fica o Registro:

Este artigo já estava escrito quando, agora há pouco, li no UOL o editorial da Folha de S. Paulo de hoje, em que o jornal propôs a renúncia de Dilma, apelando para que Temer fizesse o mesmo, tudo no intuito de que “o poder retornasse logo ao povo” e não sem assinalar, como já fiz aqui, a necessidade de Eduardo Cunha ser afastado da linha de sucessão, uma vez que o país jamais aceitaria essa figura incontroversa na presidência da República. Entendo que o jornal foi até onde poderia ir. Dilma já respondeu ao editorial dizendo que não renunciará. Cabe a nós, em desobediência civil, irmos à rua exigir novas eleições para os cargos eletivos federais ainda este ano, junto com os municipais, inaugurando-se um novo calendário eleitoral para o país.

PANORAMA VISTO DO MEIO DA RUA

Carlos Novaes, 31 de março de 2016

Aquilo que estamos vivendo como uma crise sem precedentes não tem causas tão novas assim. A sensação de ineditismo, mais emocional do que real, é uma decorrência da articulação, aqui e agora, de três vetores: primeiro, a erosão estrutural do pacto do real, com tudo que a ela se associa de mais visível pelo lado econômico (erros na gestão governamental, cenário internacional desfavorável e incompetência da presidente); segundo, a crise de representação política, com tudo que a ela se associa de mais óbvio pelo lado político (dificuldades de “coalizão” no bloco de poder, inépcia da presidente e  fratura da solda entre a sociedade e as instituições propriamente políticas); terceiro, um desarranjo na engrenagem, velha de décadas, da articulação espúria entre os interesses dos políticos e os dos grandes atores do chamado Mercado, com tudo o que de mais notório o Judiciário tem feito no combate à corrupção (o Mensalão, a Lava Jato, a Zelotes e os casos do Metrô, do Rodoanel e da Merenda Escolar em São Paulo).

Não por acaso, a cada um dos três vetores dessa crise corresponde um dos três poderes da República (Executivo-gestão; Legislativo-representação e Judiciário-judicação): a crise só  ganhou a magnitude que está à vista de todos porque engolfou, sob desarmonia, os três poderes que a República pretende que sejam harmônicos. É uma crise estrutural. E é por ser estrutural que ela nem pode ser acomodada na forma dessa “crise” política fajuta que continua a ser encenada pelos políticos profissionais (cuja prática institucional está na raiz dela); nem encontrará solução com o mero jogo formal entre as instituições, uma vez que elas mesmas, as instituições, são formas cujas práticas nefastas estão em xeque. Ou seja, essa crise só poderá ser resolvida de modo duradouro se a sociedade se empenhar em remover das instituições políticas os profissionais corruptos responsáveis pelas práticas institucionais nefastas.

A pantomima política dos corruptos em busca de uma saída para si mesmos nos consumiu todo o ano de 2015 e este início de 2016, procrastinação que turbinou o vetor econômico da crise. Mesmo tendo sido bem sucedidos em desviar a energia da ira social para a porfia inglória em torno do impeachment de Dilma, os políticos que manejam nossas principais instituições (no executivo e no legislativo) não conseguiram re-estabilizar o bloco de poder em que encenaram o papel de adversários eleitorais até aqui: mesmo tendo entregue o governo ao p-MDB, o lulopetismo não conseguiu fôlego novo que lhe permitisse enfrentar o garrote da Lava Jato; mesmo tendo encurralado Dilma, a autointitulada oposição não logrou mais do que criar as condições para somar a si o mesmo p-MDB que não deu conta de salvar o oponente. Ou seja, tudo o que nos custaram em energia, atraso e sofrimento os últimos 15 meses de crise foi gasto para fazer o p-MDB mudar de lado! E pior: não de modo a permitir que nos livrássemos dele, atirando-o no monturo dos inservíveis, mas de modo a dar sobrevida a esse representante acabado do entulho autoritário que nos infelicita. Dilma, se cair, terá servido de Collor-expiatório para que as instituições permaneçam controladas com total continuidade – justamente a continuidade que nos cumpre desbaratar, e que Cunha, na presidência da Câmara, simboliza como ninguém. Ao mudar de lado o p-MDB tenta, mais uma vez, aparecer como alternativa para o impasse que ele mesmo ajudou a criar, como se um giro no duplo-6 alterasse o futuro desse dominó político construído para manter a desigualdade.

O fato de essa manobra ter hoje possibilidades menores de êxito não pode ser creditado nem a um suposto “amadurecimento” da sociedade brasileira (seja lá o que isso for), nem, muito menos, a uma não menos fantasiosa “consolidação” da nossa democracia — o que se consolidou no Brasil pós-ditadura paisano-militar foi a corrupção. Prova disso é a outra “alternativa” institucional que está no proscênio desse teatro do absurdo: o lulopetismo só salvará Dilma do impeachment se, somado a partidos satélites nutridos na mesma estufa de aberrações que nos trouxe até aqui, soldar na Câmara uma coalizão minoritária de pelo menos 172 deputados, pertencentes a partidos tão ou mais comprometidos na Lava Jato do que o PT ou o p-MDB. Ou seja, a polarização fajuta entre o PT e o PSDB levou a que a política institucional brasileira girasse em torno do parafuso sem rosca que é o p-MDB, cujas escolhas determinavam a cada um dos contendores a quem se alinhar e o que fazer, sempre segundo cálculos inconfessáveis em torno de poder e dinheiro — é esse arranjo que está ameaçado de naufrágio, pois as ambições de Temer podem ter levado o p-MDB a um erro que nos será benéfico, ainda que não seja uma solução.

Em qualquer ordem democrática, uma sociedade em crise tem o dever-direito de se manifestar, de votar e de recorrer ao Judiciário. Diante desse impasse nos dois poderes institucionais da República providos pelo voto (o Legislativo e o Executivo), e considerando que ainda não se abriu uma alternativa para que possamos votar segundo nossa repulsa ao que se passa, o que nos resta enquanto sociedade é exercer na rua o direito-dever de manifestação e pressionar o Judiciário para que atue orientado pela consolidação da democracia, vale dizer, para a superação do impasse atual na perspectiva de práticas institucionais realmente novas. Dessa perspectiva, ganha força a investigação sobre possível financiamento ilegítimo da chapa Dilma-Temer, cujo afastamento da presidência pelo TSE nos permitiria o uso da ferramenta do voto em circunstância em que a Lava Jato seria mais e mais empurrada a abandonar sua unilateralidade. Por menos opções que venhamos a ter na hora de exercer novamente o direito de voto para a presidência da República, esse conjunto catastrófico de circunstâncias poderá servir para que se abra uma nova fase de construção de alternativas políticas para a sociedade brasileira que, de qualquer modo, vai precisar de muitos anos para consolidar uma democracia que seja mais do que um ritual de liberdade eleitoral.

Fica o Registro:

Ofuscada pela crise nacional, a disputa interna do PSDB em torno da candidatura a prefeito de São Paulo não vem recebendo a atenção que merece. Os métodos empenhados por Geraldo Alckmin em favor da vitória de ninguém menos que João Dória, e o comportamento do ungido depois da vitória (que se anuncia de Pirro), deixam bem claro de que lado joga o governador de S. Paulo nessa hora crucial da vida política brasileira.

 

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 6 — Entrevista com Delfim Netto na Folha de hoje

Carlos Novaes, 27 de março de 2016

Folha – O governo Dilma acabou?

Delfim Netto – É difícil dizer que acabou, porque isso depende do resultado do impeachment. Acredito que a situação tem piorado muito. Em condições normais de pressão e temperatura, a nomeação do Lula teria ajudado muito o governo. Ele é habilidoso, é negociador, tem controle sobre o PT -o principal adversário da Dilma desde a nomeação do Levy [Joaquim Levy, ministro da Fazenda em 2015] foi o PT.

O programa do PT é contrário ao programa do Levy, do Nelson [Barbosa, atual ministro da Fazenda] e, na minha opinião, é absolutamente impróprio para o momento que estamos vivendo. Essa foi uma das maiores dificuldades dela, que também teve uma enorme inabilidade no tratamento com o PMDB. Ela conseguiu afastar o PMDB, tentou dividi-lo. Ou seja, o governo nunca entendeu que só uma ação muito forte no Congresso conseguiria mudar o sistema e as perspectivas de futuro.

Não adianta insistir. A sociedade hoje não crê que o governo tenha condições de administrar o país. Estamos numa situação delicada.

Folha – O governo Dilma acabou?

Novaes – Todo exercício de mando político que se pretenda democrático tem de se dar sob a forma de “coalizão”, não sendo diferente no caso dos regimes presidencialistas. Ou seja, o “presidencialismo de coalizão” não é nenhuma singularidade brasileira. Ora, por isso mesmo, um presidente só preside quando “coaliza”. Assim, como já vimos aqui, o governo Dilma acabou lá atrás, quando ela foi obrigada pelas circunstâncias a entregar ao p-MDB o papel de “coalizar”, ou seja, de criar as condições congressuais para o exercício de presidir a República – em suma, ali ficou claro que ela já não podia presidi-la efetivamente.

Ora, como p-MDB é um partido que, por si mesmo, já se organiza como uma coalizão e, por isso, tem equilíbrio interno muito delicado, ter recebido a função de “coalizar” o governo da República acirrou sua luta interna. As facções não diretamente contempladas com os novos poderes se viram ameaçadas em seus privilégios pelo novo arranjo e, assim, a um governo já instável se somou a instabilidade interna do partido para o qual a presidente se tinha voltado no fito de obter alguma estabilidade… As chances de dar certo eram, mesmo, pequenas. Foi justamente o malogro de transferir ao p-MDB o papel de “coalizar” que levou Dilma a tentar uma nova transferência, dessa vez para Lula.

Não adianta fugir, a sociedade em algum momento vai ter de se dar conta de que precisa se livrar do p-MDB, esse verdadeiro entulho autoritário; e do lulopetismo, que aderiu ao sistema político podre.

O melhor para o país agora seria uma saída da presidente?

Delfim – Ela precisaria reassumir seu protagonismo e aprovar no Congresso medidas estruturais que mudem o futuro do Brasil. A situação não é só grave no presente, o problema é que não há esperança para o futuro. Esse é o plano do Nelson [Barbosa], inclusive: cuidar do longo prazo para dar esperança aos investidores de que haverá volta do crescimento, e cuidar do curto prazo para não deteriorar muito mais a situação fiscal.

É preciso que as pessoas se convençam de que a reconquista da estabilidade está a vista. Você precisa dar à sociedade uma esperança de que o crescimento vai voltar.

Crescimento é um estado de espírito, só cresce quem acha que vai crescer, e isso se perdeu. Um dos problemas é que, no segundo mandato, a presidente não reconheceu que tinha errado e que a escolha do Levy era uma mudança completa de orientação.

O melhor para o país agora seria uma saída da presidente?

Novaes – Não. A saída de Dilma pode até dar um alívio de curto-prazo, pois vai satisfazer desejos mal-informados da maioria da opinião pública, mas logo em seguida teremos as evidências de que caímos num buraco ainda mais fundo, pois vamos viver a revanche do Centrão, agora com o álibi da “herança maldita” deixada por Dilma. Se houver impeachment, a sociedade vai sofrer porque se terá deixado levar por duas mentiras: primeiro, que o problema é Dilma; segundo, que há razões legais para o impedimento dela, como se as chamadas pedaladas fossem crime. O problema é o Congresso, onde há mais do que 300 picaretas profissionais; e a peça de abertura de processo de impeachment que tramita nesse Congresso não traz nenhuma evidência de crime da presidente. Tudo caminha na base do alarido da mídia.

[…].

Os erros foram da presidente e de seu governo?

Delfim – Acho que a presidente sempre foi a chefe da Casa Civil, a ministra da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, dos Transportes, do Bem-estar Social. Para o governo Dilma funcionar, o dia teria que ter 240 horas. Ela é compulsivamente detalhista e tem pouca confiança em seus auxiliares.

Novaes – O infortúnio para o Brasil é que ao desmoronamento do pacto do Real e à nossa crise de representação (escancarada pela Lava Jato) se somaram o autoritarismo e a incompetência de Dilma. O desarranjo do governo é resultado dessa soma. Dilma exerceu o poder aos berros e de forma centralizada porque não teve competência para exercer a função a que foi levada sem o treino prévio de uma vida pública baseada na transigência com quem pensa diferente dela.

Isso [a centralização] é incompatível com o bom exercício da Presidência?

Delfim – Torna tudo muito mais difícil, porque você está num sistema presidencialista de coalizão. O presidente tem que ‘presidencializar’ e ‘coalizar’.

Novaes – Essa centralização não foi, em si mesma, o grande problema. O problema é que Dilma transferiu ao p-MDB a função de “coalizar”, que é inerente ao “presidencializar”.

O senhor tem falado muito sobre o presidencialismo de coalizão.

Delfim – Visivelmente não funciona. Basta ver a história recente. Temos que caminhar para algo diferente, provavelmente para algum mecanismo de parlamentarismo. Mas isso exige uma mudança profunda do regime eleitoral.

Você precisa, na verdade, ter um sistema eleitoral em que haja regras de barreira, que não permita alianças de partidos no nível inferior, que seja distrital, porque o distrito é a forma mais interessante de melhorar a qualidade do político. O distrito exerce sobre o político um controle que as pessoas não percebem.

O senhor tem falado muito sobre o presidencialismo de coalizão.

Novaes – Ainda que apresente diferenças conforme o país, o presidencialismo sempre é de coalizão. O poder de “coalizar” é do presidente, que só preside se “coalizar” as forças de que dispõe. Nosso presidencialismo não funciona porque ele precisa “coalizar” um Congresso viciado em corrupção que não representa a sociedade. Nenhuma reforma eleitoral cosmética ou de regime de governo vai mudar isso. O parlamentarismo daria ainda mais poder a esse Congresso que aí está. O problema não são os pequenos partidos, são os grandes: num sistema corrupto como o nosso, um pequeno partido é um problema pequeno; um grande partido é um problema grande! Os pequenos partidos existem porque servem aos interesses dos grandes… Foram os grandes partidos que aprovaram a lei do fundo partidário, e votam os aumentos crescentes deste fundo. É o dinheiro do fundo partidário que leva à criação de partidos de negócio, pois, assim como o dinheiro da corrupção não se destina principalmente a campanhas, o dinheiro do fundo também não é gasto em política: ambos são desviados para enriquecimento privado ilícito. O voto distrital é um equívoco sobre o qual já falei extensamente aqui, sendo certo que ele permite aos caciques aumentar seu controle sobre os partidos, mas sem oferecer nenhuma ferramenta para o controle da sociedade sobre os caciques. O voto distrital nos levaria a um sistema político ainda mais fechado à mudança.

Por que é tão difícil adotar as reformas necessárias para o Brasil crescer de forma sustentada?

Delfim – Esse é um processo evolutivo. Cada eleição, à medida que é mais livre, vai empoderando o cidadão, mas o que empodera de verdade, é o grau de conhecimento, de educação, sua capacidade de enxergar um pouquinho mais longe.

As nações não nasceram perfeitas, é um processo quase biológico, uma seleção natural. O homem na história foi procurando alguma forma de administração que satisfizesse a três condições: a liberdade de iniciativa, relativa igualdade de oportunidade e eficiência produtiva.

O homem não nasceu para trabalhar, o homem nasceu para realizar sua humanidade. Então por que precisa de eficiência produtiva, que é do que os economistas cuidam? É para ter mais tempo para construir sua humanidade.

Por que é tão difícil adotar as reformas necessárias para o Brasil crescer de forma sustentada?

Novaes – É um processo de luta, onde quem quer mudar dispõe de muito menos recursos do que os recursos com que contam os que estão aferrados ao sistema corrupto. O fim “lento, gradual e seguro” (seguro para eles) da ditadura paisano-militar é uma prova cabal das dificuldades para mudar o Brasil. Tenho dito aqui que a questão central é a desigualdade. Para enfrentá-la precisamos ir além da igualdade de oportunidades, precisamos de limites aos mecanismos de concentração da riqueza socialmente produzida (e não há riqueza que não seja produto do labor social)

Alcançar uma diminuição da desigualdade requer muitas coisas, dentre elas o fim da ideia de que o homem não nasceu para trabalhar. Opor a nossa humanidade às exigências de fazer esforço vem desde Aristóteles, e é desse equívoco que nasceram todas as utopias da abundância sem esforço (cristianismo e marxismo inclusive), como se fosse desejável que robots nos substituíssem em toda atividade cansativa, como se fosse desejável realizar a quimera da separação mente-corpo. Lutar contra a desigualdade não é aspirar que ninguém faça esforço (o planeta não aguentaria!); mas alcançar um arranjo social sustentável onde o esforço indispensável seja melhor distribuído por todos os seres humanos, o que levaria a uma outra orientação da ciência já disponível, e daquela por criar.

O senhor vê sinais de que a sociedade e a classe política brasileira estão chegando a esse ponto de enxergar as mudanças necessárias?

Delfim – Sim, é visível. Vai avançando lentamente, mas avança. Mesmo o sistema distrital, está se construindo naturalmente.

O senhor vê sinais de que a sociedade e a classe política brasileira estão chegando a esse ponto de enxergar as mudanças necessárias?

Novaes – Não há convergência; há divergência. A sociedade e os políticos têm necessidades opostas e, assim, cada um vê de seu jeito as mudanças necessárias. Os políticos querem preservar o seu mundo; a sociedade quer outro mundo.  O sistema distrital é a solução dos políticos para eles mesmos: mais poder para controlar os seus pares e mais mando sobre a sociedade.

Que sinais o senhor vê disso [do sistema distrital]?

Delfim – Hoje grandes cidades do interior, já elegem seu próprio representante. É muito difícil o sujeito de Araraquara, buscar voto em Ribeirão Preto. Ou seja, as coisas começam a caminhar. O homem já acreditou no sacerdote, no rei, no presidente e foi avançando. Hoje todo mundo sabe que a sociedade razoável é aquela onde você progride, mas seu vizinho cresce junto.

Que sinais o senhor vê disso [do sistema distrital]?

Novaes – Hoje, como ontem, graças à reeleição infinita para o legislativo (o câncer que temos de extirpar), as grandes cidades do interior são redutos de políticos, mas só quem não estudou os detalhes do assunto supõe que essa prática velha constrói uma espécie de distrito eleitoral. Fiz simulações de distritos eleitorais em todo o Brasil e garanto que reduto não é distrito. Já expliquei isso em outro lugar, como mencionado acima.

Como as tensões da sociedade brasileira afetam a chance de a presidente Dilma continuar no cargo?

Delfim – A probabilidade diminuiu.

Novaes – Essas “tensões” “afetam” Dilma porque ela é um alvo frágil.

Que cenário o sr. vê?

Delfim – Hoje, quem me disser o que vai acontecer nos próximos 30 dias ou está mentindo ou está mal informado. Foi iniciado um processo no Congresso que termina com ela ficando ou saindo.

Novaes – Tudo vai depender da decisão sobre a nomeação de Lula para o ministério: se ela for confirmada pelo STF, as chances de Dilma aumentam (ainda que sejam, agora, depois das fitas, ainda mais remotas); se o Supremo impedir a posse de Lula na Casa Civil, Dilma estará condenada.

O que vai determinar o resultado?

Delfim – O que está acontecendo agora. É tão volátil o Congresso. A Câmara é de uma volatilidade enorme, ela varia de 50 votos para 350 com uma notícia. Hoje, você não tem controle sobre as notícias. Mas acho que a probabilidade do impeachment cresceu bastante, muito mais do que teria crescido se tivesse dado certo a nomeação do Lula.

Novaes – No curto-prazo, o modo como o Supremo entender seu papel na crise; no médio-prazo, a barganha no Congresso, no longo- prazo, a conduta das ruas.

A confiança foi abalada com a conversa vazada pela Polícia Federal?

Delfim – Podem dizer que a Dilma tentou proteger Lula, mas como vão saber? É uma questão de sentimento interno, você precisa provar que isso aconteceu. Mas o grampo deu um sentimento de que a atitude foi para proteger, e as coisas evoluíram muito depressa.

A sociedade inteira está estupefata diante dessas coisas. E você está judicializando toda a política.

A confiança foi abalada com a conversa vazada pela Polícia Federal?

Novaes – A divulgação desta conversa foi benéfica à sociedade brasileira e, em razão dela, é benéfico que o Supremo arbitre a questão. Por razões que esmiucei aqui e em outros posts, prefiro que o STF decida pela posse de Lula. Quero que a fúria da sociedade se volte contra o sistema político, não apenas contra o lulopetismo.

A política profissional brasileira foi parar nos tribunais porque ela é um caso de polícia e precisa ir para trás das grades.

Isso é ruim [a “judicialização” da política]?

Delfim – Há coisas que são fundamentais; o respeito ao STF (Supremo Tribunal Federal) é a garantia de todas as nossas liberdades. Um ministro do Supremo não tem passado, só futuro. É o respeito que ele tem da sociedade que decide seu futuro. Então vejo com preocupação essa ideia de que “ah, o Congresso não vale nada, o Executivo não vale nada”. Mas quem escolheu o Supremo? O Executivo e o Congresso. Como pode sair a pureza do que não vale nada? Há uma contradição nessas coisas.

Isso é ruim [a “judicialização” da política]?

Novaes – As instituições são formas que valem o que praticam. Nosso Congresso não vale nada, pois é uma forma que padece de um total desvio de função: ao invés de representar a sociedade, ele voltou-se para os próprios interesses e, pior, os defende com base principalmente na corrupção, que é o desvio do dinheiro da própria sociedade que deveria representar. Instituições têm uma dinâmica que nada tem que ver com a dinâmica da química, sendo descabido falar em pureza no caso delas.

O que fundamenta essas crenças?

Delfim – É assim que funciona. As pessoas têm dificuldade de superar suas próprias crenças e desejos.
Já experimentamos tudo e sabemos que nada funciona fora do regime democrático apoiado numa economia de mercado. Você tem 30 países no mundo razoavelmente civilizados e democráticos, todos usaram o mesmo processo. Quer dizer, não precisa ficar inventando, copia, copia bem feito, mais nada.

O que fundamenta essas crenças?

Novaes – A ilusão de que há uma ordem natural das coisas humanas, sujeitas a leis que só iniciados conhecem… Nós não só estamos longe de já termos “experimentado tudo”, como nossa imitação dos chamados países desenvolvidos nos levou a copiar formas que estão esgotadas mesmo lá. A reeleição infinita para o Legislativo é um defeito que partilhamos com todo o chamado mundo adiantando, e disso falei detalhadamente aqui, aqui e em outros posts deste blog.

Se a presidente sair, o impeachment é o caminho institucionalmente melhor?

Delfim – São questões pessoais. Eu sempre fui contra o impeachment, porque ele exige uma violação de função. Então, nunca me convenci de que as puras mutretas que se chamaram de “pedaladas”… Elas vêm desde dom João 6º.

Vai ter que provar no Congresso se realmente houve a violação de função.

Se a presidente sair, o impeachment é o caminho institucionalmente melhor?

Novaes – A pergunta não está clara. De toda maneira, sou, como sempre fui, contra o impeachment sem que haja prova de crime da presidente neste mandato. Agora, sou pela cassação da dupla Dilma-Temer se o TSE entender que houve crime eleitoral em 2014.

O grampo traz evidências mais graves do que as pedaladas?

Delfim – Mas teria que provar. O grampo é um indício, uma questão, digamos, psicológica. Só o Supremo pode decidir.

Novaes – Mesmo que se confirmem as delações e os grampos, o processo de impeachment que tramita no Congresso não fala deles. Está a se fazer tráfico indevido – e sem provas!

Essas ressalvas tiram legitimidade do processo de impeachment?

Delfim – Não, ele absolutamente é legítimo. Está no Congresso, na Constituição. Quando acontece uma violação de função. Mas tem que provar.

Novaes – Sim, é evidente que tiram, pois se está a instrumentalizar um preceito legal, o dispositivo do impeachment, para afastar uma presidente da qual não gostamos.

[…]

Muitos políticos podem ser implicados pelas investigações da Lava Jato. Isso não é um risco para um eventual governo de transição?

Delfim – São duas coisas completamente diferentes. A Lava Jato é um ponto de inflexão na história do Brasil. Tem inconvenientes instantâneos, mas vai mudar o comportamento da sociedade brasileira.  Vai gerar mudanças estruturais que, no futuro, irão acelerar o crescimento do país.

Muitos políticos podem ser implicados pelas investigações da Lava Jato. Isso não é um risco para um eventual governo de transição?

Novaes – A Lava Jato pôs em xeque todo o modo de operar do sistema político brasileiro, voltado a ganhar poder para fazer dinheiro através da corrupção que leva dinheiro da bolsa da viúva para os bolsos dos políticos e dos empresários envolvidos. Logo, precisamos de um governo que “transite” desse sistema para outro. Está claro que isso não será obtido nem com Dilma, nem com Temer, nem com Aécio. Só haverá mudanças estruturais se: primeiro, for quebrada a unilateralidade da Lava Jato; segundo, acabarmos com a reeleição infinita para o Legislativo, a mãe de todos os vícios.

Fica o Registro:

Para que a unilateralidade da Lava Jato seja quebrada, de fato, será necessário que, em face das informações dos últimos dias, as ruas sejam engrossadas pelos que não se reconhecem na polarização falsa até aqui havida, e que o Supremo abra contra os denunciados o devido processo legal.

316: UM BOM COMEÇO PARA UMA TERCEIRA VIA, NAS RUAS

Carlos Novaes, 24 de março de 2016

[Com um acréscimo em Fica o Registro, às 19:10]

 

A corrupção entre políticos e empresários, os primeiros agenciando o voto, e os segundos agenciando os interesses do chamado mercado, está tão disseminada, complexa e volumosa que a movimentação da propina de uma única empresa, a Odebrecht, exigiu desenvolver um software para gerenciar sua participação nesse sistema tantalizante de reunir poder para fazer dinheiro. Ora, empresa alguma se organiza com tanto capricho para fazer o que não quer, para tomar prejuízo: como já disse aqui, a corrupção não é uma maneira de as empresas poderem trabalhar, é uma forma de elas aumentarem seus lucros; a corrupção não é um meio para políticos pagarem campanhas eleitorais, é um modo de eles ficarem ricos a qualquer preço. O que leva empresas e políticos a se associarem na corrupção não é, portanto, o instinto de sobrevivência, é a ganância sem o freio dos escrúpulos. O fruto da corrupção não é um dinheiro que as empresas pagam aos políticos, ele é um dinheiro que empresas e políticos repartem depois de nos roubarem. Os custos crescentes das campanhas eleitorais não são causa da corrupção, são uma desculpa esfarrapada para ela – até porque, como deveriam saber todos os especialistas em leis de mercado, as campanhas são cada vez mais caras porque há cada vez mais dinheiro para elas. Em outras palavras, não se rouba cada vez mais para pagar campanhas eleitorais cada vez mais caras; pelo contrário: campanhas eleitorais são cada vez mais caras porque há cada vez mais dinheiro de corrupção para gastar nelas.

Segundo notícias de hoje na imprensa, o pouco que a Polícia Federal encontrou do software “higienizado” da Odebrecht permitiu elaborar uma lista com nada menos do que 316 (mais do que os 300 do Lula) nomes beneficiados pela distribuição institucionalizada de dinheiro do propinoduto, figurando entre eles políticos com papel central na dinâmica institucional brasileira nesse período de consolidação democrática: nossas instituições vem sendo geridas há anos, por vezes décadas, pelos mesmos nomes e pelas mesmas práticas. Sob a inércia e o desinteresse da sociedade brasileira, a reeleição infinita para o Legislativo levou a uma enorme estabilidade do que não presta: são sempre os mesmos nomes, com os métodos de sempre. Em nossa democracia, o que se consolidou foi a corrupção. Num cenário desses, em que todos os protagonistas graúdos da política eleitoral brasileira se igualam, fica cada vez mais impertinente escolher lado nessa polarização fajuta entre PSDB e PT, onde o segundo vem sendo demonizado não por ter ficado igual ao primeiro, mas porque um dia se disse o oposto dele – boa parte da fúria contra o lulopetismo se alimenta não do mal que ele fez, mas do bem que ele um dia simbolizou (daí também a indevida importância pública que deram ao linguajar empregado por Lula em suas conversas privadas).

Como já foi discutido em mais de um artigo neste Blog, a Lava Jato é o primeiro vetor relevante dirigido contra esse estado de coisas, mas seu potencial transformador está sendo dissipado por uma unilateralidade que precisa ser vencida. Enquanto os protagonistas da rua forem os contingentes polarizados segundo sejam pró ou contra o lulopetismo, cujo exercício mais recente da presidência da República deu causa ao início das investigações, a Lava Jato ficará limitada a instrumento desse cabo de guerra, produzindo muito calor, mas pouca energia para a mudança. Essa lista com 316 nomes oferece a primeira evidência real de que o problema é sistêmico e dá motivação nova para que a sociedade empurre a Lava Jato adiante, desvencilhando-se da arapuca do impeachment de Dilma, que foi armada por Cunha e, mais adiante, encampada por  Temer, que vê na saída da presidente uma oportunidade para assumir a presidência da República e fazer da vitória sobre o lulopetismo a válvula de escape para a pressão que ameaça todo o sistema político.

A tarefa para quem está interessado em explorar as possibilidades emancipatórias abertas pela Lava Jato é fazer das listas da Odebrecht a base material para levar a se moverem aqueles que, indignados, ainda não saíram às ruas porque não se identificam no FlaxFlu enganador entre o lulopetismo e o resto. Se não criarmos um terceiro vetor, seremos engolidos pela velha política, esteja Lula como primeiro-ministro ou no olho da rua. Se criarmos um vetor consistente no meio da rua, há uma chance de calarmos os supostos radicais que se hostilizam nos margens dela e, mais importante, atrairmos aqueles que estão na rua, mas em posição desconfortável, pois não se reconhecem na direção dada às manifestações. Temos de reunir quem não se identifica nem com a defesa do impeachment, nem tem compromisso com a permanência de Dilma. Não faz sentido defender o impeachment de Dilma porque até aqui ainda não apareceu prova de crime seu no exercício da presidência; não cabe defender sua permanência a qualquer preço porque já há evidências de que a chapa Dilma-Temer recebeu dinheiro de propina nas eleições de 2014, crime eleitoral que levaria não ao impeachment no Congresso, mas ao afastamento de ambos pelo TSE, e à convocação de novas eleições. Temos que fazer tudo o que pudermos para impedir que o país saia dessa crise com instituições políticas ainda piores do que essas que nos infelicitam.

 

19:10h – Fica o Registro:

1- A cegueira de Dilma já é conhecida de todos, mas a declaração dela de que não há como impedir a ida de Lula para o governo, num desafio infantil, contraproducente e desnecessário ao STF, que ainda vai decidir sobre a nomeação de Lula para a Casa Civil, mostra que ela não tem ideia da gravidade da situação, até porque, se Lula for preso, estará impedido de ir não só para o governo, mas a qualquer parte.

SÓ NA RUA O BRASIL CONSOLIDARÁ SUA DEMOCRACIA

Carlos Novaes, 20 de março de 2016 — 20:17

[com acréscimo em 21/03 – 12:17]

 

Tentando seguir o andamento vertiginoso da conjuntura política do país, e perseverando no esforço de dar conexão seriada aos seis artigos mais recentes deste blog (cuja leitura julgo indispensável para um bom entendimento das linhas a seguir), tento aqui isolar e discutir o que me parece ser o centro de gravidade da hora presente da política brasileira: a decisão a ser tomada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal-STF acerca da investidura de Lula como ministro da Casa Civil da presidência da República.

O STF terá de decidir sobre essa questão porque o ministro Gilmar Mendes — muito bem caracterizado como figura suspeita e parcial em artigo de hoje na Folha de S. Paulo — acolheu, dessa vez acertadamente (ainda que tenha se excedido na sua exposição de motivos – para não fazê-lo teria de não ser quem é), representação contra a nomeação dirigida à corte por partidos de oposição à presidente Dilma. Digo que a decisão do suspeito Mendes foi acertada porque depois da divulgação da conversa de Dilma com Lula não há, mesmo, condições de o ex-presidente ser empossado nas novas funções sem que o STF decida sobre a constitucionalidade do ato da presidente (mesmo que se possa questionar a divulgação da conversa — e, deixo claro: eu não questiono a divulgação desta conversa, pois entendo que ela foi necessária ao correto ajuizamento pelo público do que se passa no país), pois este ato diz respeito ao que é central ao desafio que está posto para o povo brasileiro e às suas instituições: a legitimidade constitucional do curso do governo em meio a investigações de corrupção que o comprometem e nas quais o nomeado é figura central. Nesse âmbito,a palavra do STF é fundamental, como bem caracterizou Oscar Vilhena Vieira em artigo também na Folha de hoje.

O desafio para o STF não é pequeno, e não o é precisamente porque a decisão não pode ser “apenas” legal, ou, dizendo de outro modo, porque não há decisão baseada exclusivamente na letra da lei. Não. Cada juiz do Supremo vai decidir sobre a posse de Lula segundo a combinação muito pessoal de quatro variáveis: a lei, a jurisprudência, seu douto entendimento pessoal e sua avaliação sobre as consequências político-institucionais dessa decisão para o país. No caso desta última variável, os juízes terão de levar em conta o que é melhor para a consolidação da democracia no Brasil, consolidação esta que os fatos agora vividos nos mostram estar ainda longe de ter sido alcançada.

Não sendo jurista, vou concentrar minha atenção na discussão desta quarta variável.

Nossa democracia ainda não se consolidou porque o jogo institucional em que essa almejada consolidação se assentaria se dá segundo um vício fundamental: ele está marcado por uma desigualdade social e econômica cuja manutenção requer uma assimetria muito acentuada no âmbito da representação eleitoral e do tratamento dos interesses dos cidadãos no plano institucional. Como a distância entre os poucos muito ricos e o restante da população é muito expressiva, os primeiros criaram para si canais de mando e de garantia de interesses que fazem da democracia antes um ritual eleitoral do que um modo de organização real do estado de direito. Por isso mesmo, não faz sentido defender que a solução da crise que hoje vivemos requer que o conflito saia das ruas para as instituições. Esse só seria o caso justamente se a democracia estivesse consolidada e a crise se desse em razão de ataques bandidos externos a instituições hígidas. Mas sabemos que nossas democracia não está consolidada exatamente porque somos capazes de enxergar que suas instituições são manipuladas ao sabor de grupos de interesse poderosos, atuando na articulação institucional das esferas do voto e do mercado. Ou seja, fortalecer nossas instituições tal como estão é remar contra a consolidação da democracia. Precisamos pressionar, também nas ruas (por que não?) pela transformação de nossas instituições e, assim, consolidarmos a democracia.

Vejamos a coisa por outro ângulo: a crise política que vivemos não é crise porque os políticos não se entendem e levaram o Judiciário a agir. Não. Essa é a definição da falsa “crise”. A crise verdadeira se dá porque eles não nos representam, e é por isso que estamos indignados. Nós não queremos que os políticos se entendam sobre como nos controlar — nós queremos representantes que nos representem. Mais uma vez, portanto, não se trata de consolidar as instituições no modo como elas estão sob a prática deles, mas de forjar práticas novas. Por isso, não podemos ter esperanças de que o Congresso vá nos oferecer uma saída verdadeira para a crise política. Eles vão, no máximo, arranjar uma saída para si mesmos e nos fazer engoli-la como uma saída para o país; e pior: soltando fogos midiáticos porque estaríamos consolidando a nossa democracia quando mais uma vez a estaremos moldando aos caprichos deles.

Para impedir esse desfecho precisamos romper a unilateralidade da Lava Jato, fazê-la desembuchar toda a lama que represa, pois o lulopetismo é apenas um vertedouro de controle, por mais caudaloso que se tenha mostrado. A era PT não inventou a corrupção, assim como não foi o PT que inventou a desigualdade e a representação fajuta. Tudo isso vem de longe e o PT apenas preferiu aderir a esse estado de coisas, ao invés da trabalheira de combate-lo.

Juntemos, agora, as quatro pontas: a decisão do STF sobre a posse de Lula, a crise política, a unilateralidade da Lava Jato e a consolidação da democracia.

Como já disse aqui, a posse de Lula no ministério é uma manobra institucional na tentativa de se safarem da “crise” e da crise, mas impedi-lo de assumir será uma violência institucional contra a consolidação da democracia. Se tomar essa decisão o STF estará decidindo a “crise” dos políticos, não a crise política, e pior: terá decidido em favor de um dos lados que hoje disputam o privilégio de exercer contra nós o mando governamental nessa democracia não-consolidada. Será o triunfo total do unilateralismo da Lava Jato, pois não dar posse a Lula indicará a decisão de derrubar Dilma, sendo apenas uma questão de tempo a separação dos dois eventos. Nesse caso, a Lava Jato será imediatamente sufocada, queira Moro ou não, e, assim, terá ficado no meio do caminho, teremos, mais uma vez, feito apenas metade do serviço, tal como no impeachment de Collor, que deu sobrevida até aqui a este sistema político, que naquela altura já estava podre.

A Lava jato prestou um grande serviço ao desbaratar a quadrilha incrustada no lulopetismo, mas se ficar nisso ela nada terá significado para a consolidação da democracia, pois sua unilateralidade receberá a chancela triunfal de forças tão ruins ou piores do que o lulopetismo, que agora já não terão sequer que se dar ao trabalho de lidar com um adversário eleitoral que usa os mesmos métodos. Com a posse de Lula em meio à controvérsia que ela própria suscitou o jogo permanece indecidido por mais algum tempo, tempo que teremos de empregar na busca de um caminho para resolver a crise em nosso favor, esclarecendo, organizando e pressionando na direção da ordem institucional que queremos para uma democracia consolidada.

Bem sei, como disse aqui, que Lula também vai operar para sufocar a Lava Jato. Mas a operação dele é, agora, mais difícil de dar certo, enquanto os seus adversários de mando, mas não de métodos, o farão mais rapidamente, em meio ao júbilo contraproducente que a derrubada unilateral do lulopetismo provocará. Em outras palavras, a posse de Lula, exatamente por se dar em meio a tantas e tão justificadas controvérsias, nos dá tempo de luta pela democracia que queremos consolidar. Sem Lula no ministério o outro lado passará a patrol sobre todos nós; com Lula servindo ao inepto governo Dilma a sociedade tem uma chance de tensionar a Lava Jato e passar a patrol sobre todos eles, sobre Lula inclusive. Enfim, não é hora de comemorar, nem chorar nada. Não é hora de dar as costas aos problemas. Nossas tarefas apenas começam: temos de nos livrar dos corruptos da Petrobrás e do Metrô, das urnas e de Furnas, de portos e de aeroportos. É na rua que vamos transformar nossas instituições e consolidar nossa democracia.

21/03 – Fica o Registro:

1- As censuras à condução dada por Moro ao caso das gravações com as conversas privadas de Lula feitas pelo ministro Teori Zavascki, a quem cabe conduzir no Supremo os casos da Lava Jato em que os acusados tem foro privilegiado, são um elemento para a formação da opinião interna acerca da constitucionalidade da posse de Lula como ministro da Casa Civil.

2- Como eu já disse aqui, se Lula virar ministro, mais do que o fôro privilegiado passa a ter o lugar de interlocutor privilegiado das tratativas entre os três poderes em busca de uma saída para o sistema político podre. Se a posse de Lula for negada pelo STF, Lula fica obrigado a atuar na rua para se salvar de Moro, alimentando a irracionalidade através da polarização falsa. Em outras palavras: Lula solto na rua é peça fora do bloco de poder; Lula ministro é uma via de solda para o bloco de poder. Ou seja, a decisão do Supremo acerca da posse de Lula é uma decisão entre duas alternativas: se der posse a Lula, o STF avoca para si a Lava Jato, trazendo Lula para a órbita institucional; se negar a posse a Lula, o STF estará decidindo deixar Lula na rua, e na chuva.

VILEZA DA GLOBO INCENDEIA CIRCO RIVAL E O VITIMIZA

Carlos Novaes, 19 de março de 2016 — 15:18

A Globo e seus satélites parecem determinados a explorar ao máximo a unilateralidade da Lava Jato (discuti essa unilateralidade nos três artigos imediatamente anteriores deste blog), no fito de manter a política brasileira dócil aos seus interesses, só que amputada do lulopetismo, braço político da corrupção que não presta vassalagem a ela (rebeldia que não basta para credenciá-lo). Desde a perseguição contra Brizola, que não era nenhum revolucionário, os proprietários da Globo vêm deixando claro que pretendem dispor de um poder político que não permita óbices aos seus desejos. Se a Globo fosse uma rede norte-americana e tivesse nos EUA o poder de fogo de que dispõe no Brasil, a lógica da sua atuação aqui nos leva a imaginar que lá os filhos de Roberto Marinho estariam não apenas alinhados com Donald Trump, como empenhados em banir da cena política o partido democrata.

Tal como na manipulação eleitoral de 1989, quando acirrou preconceitos contra Lula em favor de Collor, a Globo vem manipulando o vazamento imoral de escutas telefônicas legais com propósitos ilegítimos, expondo Lula e seus familiares de modo a incitar a execração pública contra eles, desviando a ira popular do objeto principal: o sistema político corrupto que a a Globo não prima por combater e do qual o lulopetismo é apenas a variante mais recente. Como na imensa maioria das conversas cujo vazamento agenciou não há prova da prática de ilegalidades, a Globo vem buscando canalizar contra os interlocutores dessas conversas privadas frustrações e ressentimentos públicos que sempre buscam válvulas de escape em situações de crise, e isso com base quase tão somente no linguajar empregado pelos interlocutores ao expressarem sua inconformidade com a situação a que foram conduzidos, diga-se passagem, por suas próprias escolhas.

Ao insistir em explorar como se fossem crimes políticos os palavrões que aparecem nas conversas pessoais de Lula com os seus, nas quais ele emitiu juízos desfavoráveis a um funcionamento institucional que também está em xeque nesta crise, a Globo distribui material para piadas dos boçais que integram seu circo ou nele se divertem, e dá repertório para que autoridades que não foram nominadas se pavoneiem numa gravidade institucional duvidosa no intuito, parece, de deitar mais combustível na lona rival. Em contrapartida, porém, esse circo também deixa clara a fragilidade jurídica do que dispõem contra o rival investigado, até o momento.

Se o jornalismo da Globo usasse contra o lulopetismo o que realmente interessa nesse escândalo, então já não poderia atingir apenas Lula, o PT e Dilma; teria de incluir o p-MDB, o PSDB e o DEM, nos quais, aliás, há inúmeros políticos que, além de suspeitos de corrupção, estão ligados a conglomerados estaduais de comunicação afiliados seus. A vileza do unilateralismo da Globo no que chama de cobertura desse momento da vida brasileira está além da repugnância e, por isso mesmo, passou, nas últimas horas, a nutrir um esclarecimento que não pretendeu.

É que, mesmo avessas ao lulopetismo, pessoas medianamente instruídas e afeiçoadas a algum senso de justiça repelem tentativas tão escancaradas de manipulação da sua opinião; e pessoas de extração popular estão mais e mais alertas contra a  desqualificação preconceituosa do seu modo de ser (do que, aliás, a virada popularesca das telenovelas da Globo dá testemunho). Por mais críticos que sejamos das escolhas políticas de Lula (e este blog não arreda pé dessa perspectiva crítica), não se pode negar sua ligação com a cultura popular brasileira, de que é o filho mais notável precisamente porque soube articular suas origens com o chamado mundo culto-endinheirado (para bem, e para mal) sem deixá-las para trás.

Ao publicar com tanto estardalhaço as conversas pessoais de Lula, a Globo mostra, sem o querer, a maestria com que ele se move entre as culturas que se contrastam na desigualdade da vida brasileira. Assim como qualquer pessoa minimamente educada, Lula emprega em conversas privadas um linguajar que sabe evitar nas suas manifestações públicas — e é só nesse âmbito público que sua maneira de falar nos diz respeito. Ao tentar desqualificar Lula pelo uso privado intenso de palavrões a Globo aviva em seu circo o alarido dos puritanos e dos hipócritas que sempre foram avessos ao que Lula simbolizava, mas também motiva a solidariedade ativa ao circo rival incendiado, pois não deixa indiferente todo aquele que partilha com ele a cultura popular e, por isso, não pode deixar de sentir como agressão contra si um estardalhaço tão anacrônico.

Fica o Registro:

1- A Polícia Federal e o Ministério Público do Paraná estão fora de controle, ou não têm o menor controle sobre o material legal que manipulam, pois a maioria (não todas) dessas gravações que estão alimentando o espalhafato da mídia jamais poderia ter vindo a público, seja porque inservível ao devido processo legal, seja porque inútil para o esclarecimento político do que se passa. O silêncio tumular de Moro sobre esses vazamentos torna cada dia menos crível sua justificativa de que conduzira Lula coercitivamente para evitar tumultos.

2- Tanto essa balbúrdia institucional, como o atropelo do devido processo legal que dela se favorece, mostram toda a impertinência de defender, numa hora dessas, que o fortalecimento institucional se faça pela transferência do poder das ruas para a dinâmica de palácio, como se a mobilização popular fosse indesejável e a rotina institucional atual não fosse anti-povo (mais detalhes aqui e aqui). Há que transformar as instituições, e uma transformação só se faz com pressão popular ativa. O problema é que embora as pessoas estejam nas ruas pelas razões certas, o fazem segundo as paixões de uma polarização contraproducente, como tenho tentado discutir em vários artigos deste blog.

3- A Globo está em busca de tornar o impeachment de Dilma irreversível, mas não há nenhum fato novo a informar legalmente o processo. O que há, mesmo, são evidências de crime eleitoral contra a chapa Dilma-Temer, o que levaria à cassação de ambos, não apenas ao impeachment de Dilma. Querem dar posse a Temer e, então, melar a Lava Jato, destino que Sergio Moro dá sinais crescentes de estar pronto a docemente aceitar. As ruas não podem arrefecer precisamente porque as instituições não merecem confiança e precisamos, unidos, arrancar delas não qualquer decisão, mas antes uma determinada saída institucional, a saber: eleições para presidente ainda este ano, junto com a eleição para prefeitos e vereadores, o que daria alguma solda ao sistema político enquanto o empurra à mudança — e isso o establishment (nele incluído o lulopetismo) quer evitar.

4- Embora a decisão de Gilmar Mendes de suspender a posse de Lula na Casa Civil se inscreva no quadro da disputa entre os que querem sufocar a Lava jato e os que querem valer-se dela para apenas tirar do poder o lulopetismo, o fato é que diante da conversa telefônica entre Lula e Dilma faz todo sentido exigir que o plenário do Supremo arbitre a questão constitucional que está em discussão.

SERGIO MORO CONVOCA SOCIEDADE À GUERRA CONTRA O SISTEMA POLÍTICO CORRUPTO

Carlos Novaes, 16 de março de 2016 – 22:10

Ao divulgar o telefonema de Dilma a Lula no qual a presidente da República explicita as motivações mais imediatas para a nomeação de Lula, o juiz Sergio Moro sai a campo aberto para defender politicamente as potencialidades transformadoras da Lava Jato, as quais explorei aqui. Moro percebeu que a nomeação de Lula daria fôlego ao sistema político que ele vem enfrentando quase sozinho, como tentei explorar em artigo desta tarde neste blog.

Lula, em gravação, mostra ter clareza de que sua nomeação destina-se a operar uma reação de todo o sistema podre que está em xeque e o faz em termos que corroboram inteiramente meu post analítico desta tarde — segundo Lula,

“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos um Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado. Somente nos últimos tempos é que o PT e o PCdoB começaram a acordar, e começaram a brigar. Nós temos um presidente da Câmara …( palavrão), um presidente do Senado … (palavrão). Não sei quantos parlamentares ameaçados. E fica todo mundo no compasso de que vai acontecer um milagre e vai todo mundo se salvar. Sinceramente, eu tô assustado com a República de Curitiba.”

Moro luta quase sozinho porque mesmo as autointituladas lideranças das manifestações de rua que dizem apoiar a Lava Jato o fazem de modo muito seletivo: não reclamam investigação para os crimes de PSDB e p-MDB e chegaram mesmo a poupar Eduardo Cunha quando lhes pareceu conveniente. Ou seja, não entendem que estão todos em “compasso de que vai acontecer um milagre e vai todo mundo se salvar” — a nomeação de Lula para primeiro-ministro é uma tentativa de operar esse milagre.

A ida espontânea para as ruas que ocorre nesta noite em várias capitais não pode ser subestimada. Trata-se de um termômetro para o grande potencial transformador que a Lava Jato tem, afinal, não houve tempo para que os esquemas de dinheiro e poder que vieram convocando as manifestações anteriores atuassem. Essas manifestações devem ser valorizadas como um vetor de pressão contra o sistema político e a favor da Lava Jato, vale dizer, elas são também uma forma de pressão contra a unilateralidade da ação de Moro, pois , agora, ele já não tem razões para malabarismos e passa a ter de enfrentar a todos os seus adversários ao mesmo tempo (veja no post desta tarde o item de minha análise dedicado ao unilateralismo da Lava Jato).

As pessoas estão fartas do cinismo imperante. Resta agora deixar claro que o cinismo não é uma particularidade do lulopetismo, muito pelo contrário: o lulopetismo o aprendeu da nossa velha política, à qual aderiu e na qual Aécios, Renans, Temers e Cunhas são mestres.

LULA, O PRIMEIRO-MINISTRO SONHADO PELOS TUCANOS

O feitiço se vira contra os feiticeiros, mas para salvá-los (diga o que disser FHC, o impoluto…)

Carlos Novaes, 16 de Março de 2016 — (15:45)

A ida de Lula para a Casa Civil da presidência da República com poderes para, além de fazer a articulação política com o Congresso, também alterar a política econômica do governo, ou seja, como um super ministro, significa a sua volta ao comando do país. Não deixa de ser irônico que seja mais uma vez Lula a tirar todas as consequências espalhafatosas de um projeto tucano vicário: Lula é o primeiro-ministro do semi-presidencialismo que dias atrás foi proposto pelo PSDB em sua incessante vontade de arremedar a França, cacoete que vem desde os tempos da academia uspiana.

Diga-se o que se disser de Lula, por mais defeitos que se lhe possam apontar, não há nele falta de coragem e de argúcia para explorar mesmo as menos propícias possibilidades de escape em situações difíceis. Foi assim em 2005, quando fez do mensalão a plataforma de lançamento do Lula incontrastável que a Lava Jato atingiu em pleno voo; e é assim agora, quando se lança num mergulho de flecha pois, mesmo com os recursos de navegação tão avariados, enxergou a única oportunidade de redenção realmente aberta: pode enquadrar Dilma e tentar salvar seu legado, o que implica, se conhecemos esse legado em toda a extensão do seu significado, estender a mão generosa a toda sorte de anjos caídos…

Que o leitor julgue, mas tenho como certo que Lula se decidiu pela ida ao ministério depois de ter ficado claro que Aécio vai passar a dividir com ele as honras da Lava Jato, pois as declarações de Delcídio requerem que se abra um processo contra o escorregadio tucano mineiro. Mas não pense, leitor, que eu estou indo na onda de supor que a decisão de Lula vem da disposição de lutar contra os tucanos, fazendo jus à polarização tola das ruas e da mídia convencional. Não. Os tucanos, mais uma vez, precisam de Lula, e desesperadamente. Lula vai para a articulação entre o Executivo e o Legislativo para salvar todo o sistema político do xeque em que foi colocado pela Lava Jato e, de quebra, oferecer uma saída confiável ao mercado, como não poderia deixar de ser. Lula volta ao planalto para dizer: “é assim que se faz, seus imbecis!”. Lula vai para o comando do país de modo a garantir que o Brasil continue a ser controlado por essa tralha que tão traiçoeiramente nos representa. Lula vira o primeiro-ministro que os tucanos sonharam ao preço de forçar o país a viver o pesadelo de uma tentativa desesperada de refazer a solda do Real. Nas linhas a seguir vou tentar explicar as afirmações acima. (Agora, se você é do tipo que acha meus artigos longos, leitor, faça o seguinte: não leia).

A crise política foi, finalmente, instalada

Confirmando desdobramento que tentei antecipar aqui e aqui, o encadeamento das denúncias de Nestor Cerveró e Delcídio Amaral arrastou o país a uma verdadeira crise política porque, com base nelas, a Lava Jato reuniu tanto evidências de crime envolvendo Dilma e a chapa Dilma-Temer, como achou a ponta do novelo tucano em Furnas. Essa crise política real é de superação complexa porque o nosso Congresso Nacional, instância na qual, em tese, se processam e superam as verdadeiras crises políticas, não tem legitimidade para enfrentar os desmandos do Executivo, e isso por duas razões principais: primeiro, porque seus principais líderes são líderes precisamente enquanto distribuem a seus pares poder e dinheiro obtidos de suas relações com operadores da corrupção concatenados com o Executivo; segundo, porque esse Legislativo federal veio desde o início da Lava Jato empenhado em produzir uma falsa “crise” política para precisamente encobrir a crise de representação que a ação comandada por Sergio Moro pôs a nu e feriu de morte, a saber: nossos representantes não nos representam, são antes delegados dos interesses dos grandes do “mercado” que, junto com eles, reúnem poder para fazer dinheiro na ciranda da desigualdade.

A “crise” política que os profissionais da política alimentaram no curso de 2015 para jogar no colo do Executivo toda a conta da corrupção, uma corrupção que, saída da desigualdade, está na raiz da ilegitimidade da representação deles, se voltou contra eles, se fazendo crise real, por três razões principais: primeiro, ao embaraçarem a ação do Executivo, deram tempo para que a Lava Jato acumulasse evidências não apenas contra a presidente, mas também contra eles mesmos; segundo, a fragilidade intrínseca de um Executivo sob Dilma, cuja capacidade defensiva contra a Lava Jato pôde ser embaraçada tão facilmente (ainda que com custos econômicos enormes para a sociedade brasileira), levou a cálculos precipitados sobre sua queda e, assim, ao afloramento sem controle das ambições conexas no p-MDB (embates entre Cunha, Renan e Temer) e no PSDB (disputas entre Aécio, Serra e Alckmin), com a correspondente dificuldade de concatenação da ação conjunta deles no Legislativo, o que deu ainda mais espaço, e tempo, para a ação do Judiciário, âmbito no qual a Lava Jato, apoiada no direito e na opinião pública, vem empurrando o STF a agir.

Ou seja, a crise (política e econômica) em que estamos mergulhados é, sobretudo, e antes de tudo, uma crise aguda do divórcio crônico entre os interesses do sistema político do país e os interesses da maioria da sociedade, que vem sendo ludibriada pelos políticos profissionais a fazer escolhas por um ou por outro dentre eles, quando, na verdade, nenhuma das forças políticas que se exibem no teatro de operações está a altura de oferecer uma alternativa. Exploremos as razões que nos levam a essa desorientação:

A desigualdade como problema político

Embora os números que atestam o caráter único da nossa desigualdade sejam conhecidos de toda gente e quase todo mundo fale contra essa mazela social e econômica, há pouca compreensão sobre o papel dela na nossa crise de representação política e nos males respectivos, com destaque para a corrupção. O desmanche do PT é apenas o mais vistoso exemplo do poder que a desigualdade tem de levar as organizações de ação coletiva surgidas para combatê-la a selecionarem como dirigentes justamente os militantes mais sensíveis à acomodação com ela. É que a pobreza é tão intensa e as dificuldades à ascensão individual se mostram tão intransponíveis, que todo grupo de pressão que se forma logo é chamado a ver as oportunidades de ganhos para si. É na peneira que separa os mais e os menos suscetíveis à acomodação que se dão as lutas internas iniciais. Em sociedades menos desiguais, as possibilidades de realização pessoal são maiores, e quem se interessa pela ação coletiva chega às organizações de reivindicação com seus problemas mais básicos já resolvidos, não sendo tão prementes as motivações do seu engajamento.

Os sindicatos brasileiros, sejam os ligados aos tucanos, sejam os ligados ao lulopetismo, são o melhor exemplo dessa distorção que tento agarrar nos estreitos limites deste artigo de blog, escrito sob as urgências do momento. A vida na máquina sindical é sempre muito menos cansativa e mais rendosa do que aquela que é imposta pela vida no trabalho. Além de escaparem à rigidez das relações de poder impostas aos seus representados pela estrutura empresarial, os sindicalistas gerem sem nenhuma fiscalização orçamentos não raro significativos, sem contar sequer com um arremedo de legislativo para fiscalizar o gasto do dinheiro à sua disposição – daí as disputas crescentemente violentas pelo controle da máquina sindical rentável, onde Executivo e Legislativo coincidem, em mais um arremedo de parlamentarismo.

No PT não foi diferente: Lula e José Dirceu foram os cabeças da seleção dos piores, numa prática que neutralizou pelo ostracismo, afastou por desencanto, ou enxotou com hostilidade, todos aqueles que se contrapuseram efetivamente aos seu métodos. O resultado foi uma máquina burocrática que, moldada por nulidades como Silvinhos, Delúbios, Vaccaris, Falcões, Okamotos e assemelhados, concentrou-se na prática de ganhar poder para fazer dinheiro. Esse apodrecimento precoce foi habilmente ocultado pelo manejo calculado de bandeiras embalsamadas caras aos agentes sociais sinceramente motivados à luta contra a desigualdade. Embora tenha sofrido um solavanco no mensalão, essa mentira serviu de barragem à mudança em todo o período Lula e, como não poderia deixar de ser, chegou sob pressão máxima no período Dilma, com os resultados desmoralizantes que conhecemos graças sobretudo à Lava Jato.

Uma desigualdade como a brasileira (ou a russa) engendra a corrupção precisamente porque impõe sofrimentos que atingem escalonadamente a imensa maioria da sociedade (como discuti aqui) e não podem deixar de gerar numerosa militância organizada contrária a eles; contingente no qual não chega a ser difícil selecionar interlocutores “confiáveis”, levados a se fazerem amigos da ordem desigual que de início combatiam (daí que na maioria das organizações haja tão pouca alternância, pois na imensa maioria delas se permite a danosa reeleição infinita – tal como no poder Legislativo…). Na outra ponta, setores empresariais apregoadores de supostas leis de mercado, mas altamente dependentes do dinheiro público, demonizam a ação estatal enquanto instalam propinodutos entre o estado e o mercado que garantem tanto o fim da concorrência que alegam defender, quanto a canalização privilegiada do poder de estado que simulam execrar. Assim, uma obra que custaria 100 alcança facilmente o preço final de 200, pois alegando os riscos de receber 150 para devolver ilegalmente 50 ao agente estatal corrupto, o empresário cria uma oportunidade para aumentar seus lucros em mais 50…

Em suma (1): nessa situação de crise aguda de mazelas crônicas, temos dificuldades de saber como pensar e proceder porque não vemos a relação entre a desigualdade, a corrupção, a crise de representação e a ideologia enganadora do livre mercado (livre apenas para quem perde). Eis o conjunto danoso agarrado pela Lava Jato e que pôs em xeque todo o sistema político brasileiro.

Desorientados, tendemos a escolher lado onde não há lado a escolher.

Uma polarização enganosa

Para além do envolvimento de ambos na corrupção, para além do que há de convergente entre eles nessa reestreia de Lula na praça dos Três poderes, a maior evidência da semelhança fundamental entre PT e PSDB aparece justamente no enfrentamento à desigualdade, que, como vimos, está na base da corrupção e da crise de representação que nos infelicitam. Por mais que se possa reconhecer as políticas sociais da era Lula e o que restou delas nos anos Dilma, o fato é que embora elas tenham minorado os efeitos da pobreza, muito pouco, e mesmo nada significaram na diminuição da desigualdade em si e, muito menos, na alteração da ordem social que gera e garante essa desigualdade, situação muito parecida com a era tucana de FHC. Ricos e pobres continuaram separados pelo mesmo abismo, ainda que todos tenham se deslocado na escala de ganhos. Nada é mais emblemático dessas limitações do que a declaração de Lula de que no seu governo pobres e ricos ganharam dinheiro como nunca antes.

A essa semelhança mais geral, que reflete o compromisso de ambos com o pacto do Real — os tucanos porque o instituíram e o o lulopetismo porque a ele aderiu em 2002, depois de ter cumprido a larga curva de capitulação a que foi levado pela ânsia por poder e dinheiro — se soma a mesma falta de imaginação no exercício do poder político eleitoral: ambos se rendem às exigências do p-MDB para a partilha do governo. Assim, embora adversários eleitorais, ambos governam segundo respeitem a cláusula pétrea do pacto: os ricos não podem perder e os pobres só melhoram se todos puderem melhorar, ou às custas da qualidade de vida das camadas médias. Já o papel do p-MDB como dobradiça, que deitou raízes há mais de cinquenta anos (como busquei explicar numa série de quatro artigos publicados aqui), deveria servir de mais uma evidência para o caráter fajuto da polarização entre PT e PSDB, já que ambos possuem não apenas uma face compatível com o entulho autoritário que sobreviveu ao fim da ditadura paisano-militar, como dele não podem prescindir quando chegam à presidência da República.

Como não poderia deixar de ser, esses três partidos e os outros que os satelizam estão envolvidos em práticas de corrupção, acusando-se uns aos outros diante do público, para efeitos do alarido da mídia, mas negociando diligentemente intra-muros, no intuito de a cada percalço entregar tão somente os esquemas mais manjados, como deram exemplos as inúmeras pizzas assadas nos últimos anos pelas CPIs instaladas no Congresso nacional, palco do jogo combinado de sempre, onde eles simulam nos representar para nos enganar e, claro, garantir a permanência do esquemão mais geral, que a Lava Jato colocou em xeque. Por isso a volta de Lula vai ser agarrada como uma possibilidade única de restauração do status quo.

Resumindo, os onipresentes e antigos esquemas de corrupção do p-MDB acoplam-se aos menos antigos esquemas do PSDB e aos recentes esquemas do PT conforme detenha a presidência da República este ou aquele destes dois últimos partidos. Diante disso, não fosse a estupidez humana tão conhecida, o engalfinhamento apaixonado nas ruas por hordas sinceras de um e outro lado (nos quais há quem queira ver luta de classes) seria de estarrecer o observador medianamente informado. A volta de Lula pode nos ajudar a ver tudo com clareza.

Em suma (2): para quem está interessado em que o Brasil dê um passo à frente, criando leis e políticas que diminuam significativamente a desigualdade, permitindo sufocar a corrupção e reinventar a representação, não faz sentido escolher entre o castigo ao PT ou ao PSDB, nem, muito menos, depositar esperanças no p-MDB. Temos de nos livrar dos três enquanto os três se agarram para se salvarem.

Desorientados, nos dividimos entre os que criticam Moro por perseguição seletiva ao PT, e aqueles que o apoiam por combater a corrupção simbolizada no PT, ignorando as mazelas de p-MDB e PSDB. Enquanto isso, o sistema parece ter encontrado a via de escape que buscava, mas sob a batuta de Lula, não contra ele.

A unilateralidade da ação da Lava Jato

Além da desigualdade e da polarização enganosa exploradas acima, também a unilateralidade da Lava Jato contra o lulopetismo ajudou a nos levar à desorientação. Em primeiro lugar, ao negligenciar as falcatruas de PSDB e p-MDB, Moro deu munição política à defesa dos corruptos; em segundo lugar, porque essa injustiça flagrante gerou insegurança nas pessoas de bem quanto ao que realmente a Lava Jato estava a almejar. Essa unilateralidade deriva, por certo, também de uma certa cultura conservadora, anti-petista por hábito, não por fundamento (se atinassem para os fundamentos saberiam que o PT é um aliado da ordem da desigualdade). É nesse conservadorismo que se tem agarrado os críticos modorrentos da Lava Jato: tendo servido a era Lula, “teorizam” as ilusões geradas por ela e tentam a qualquer custo salvar suas próprias biografias, como se houvesse muita gente interessada nelas. Não querem ver que o poder de fogo da Lava Jato se centra no lulopetismo porque é dele a presidência da República, foi sob ele que a corrupção na Petrobrás encontrou seu desenho mais recente, ainda que herdando operadores da presidência FHC, pois o p-MDB muda o presidente a que serve, mas não os tarimbados operadores de que lança mão.

Como quer que se pendurem as razões acima, porém, a razão principal da unilateralidade da Lava Jato está no fato de que a sociedade brasileira ainda não produziu uma força organizada capaz de oferecer uma alternativa política ao país. Sem alternativa de mudança em que se apoiar, a Lava Jato se vê na contingência de dosar os inimigos que faz, de se apoiar na confusão gerada pela luta entre forças igualmente comprometidas. Sem alternativa de mudança em que nos engajarmos, nos vemos a escolher entre o que está aí, e somos empurrados a tudo enxergar sob a ótica dessa escolha mal feita. O Judiciário se fez vetor da mudança porque o sistema político faliu, mas um poder sozinho não faz transformação, mormente se atuando convictamente apenas na primeira instância.

A hora é tão crucial para o país, e ela nos chega em momento tão pouco auspicioso, que foi necessário mais de um ano de “crise” política, “crise” essa que prolongou e tornou muito pior do que deveria ter sido essa crise econômica que nos leva à beira do colapso, para que o divórcio entre a sociedade e seu sistema político ficasse evidente: da perspectiva deles, dos políticos profissionais, a única saída é uma volta ao passado; da nossa perspectiva, da sociedade que transcende o mercado, a única saída é fazer dessa volta ao passado a evidência cabal de que não queremos saber deles.

Em suma (3): Lula chega a primeiro ministro não exatamente para conquistar imunidade para si, mas para conferir imunidade a todo um sistema. Lula chega a primeiro ministro não para se refugiar no Supremo Tribunal Federal, mas para fazer-se interlocutor-ponte entre os Três Poderes, na perspectiva de reintegrá-los ao jogo de poder que a Lava Jato escangalhou. Se der certo, é como se Lula passasse direto de Bettino Craxi a Berlusconi, o que não deixaria de ser uma depuração…

A desorientação tenderá a aumentar porque além das dificuldades já postas à compreensão da trama, Lula volta ao proscênio com a fama imerecida de campeão do combate à desigualdade. Foi para enfunar essa fama que ele  reivindicou a a condição de orientador da política econômica do governo. A Lava Jato viverá agora o seu dilema: ao abrir baterias contra Aécio, deixará de ser unilateral, mas ao preço de paradoxalmente estimular a convergência política do sistema político contra si. A sociedade brasileira precisa se reinventar não exatamente para apoiar a Lava Jato, mas para salvar a si mesma.

APOTEOSE MALSÃ

Carlos Novaes, 13 de março de 2016

 

O abismo entre o que o lulopetismo simbolizou e o que seus líderes entregaram é de tal ordem que não há nada a resgatar para as lutas vindouras contra a desigualdade, salvo o fato de que o lulopetismo passa a ser o exemplo mais acabado do que deve ser evitado nessa luta: sucumbir às oportunidades que a luta organizada contra a desigualdade abre aos seus líderes para contornarem em benefício próprio as agruras impostas por essa mesma desigualdade à maioria da população, cujos interesses eles supostamente representariam. O desmascaramento do apego dos líderes do lulopetismo ao dinheiro deu ocasião ao espraiamento da boçalidade conservadora do “outro lado” porque desmoralizou até mesmo a mera compaixão pelos menos afortunados, que dirá a ação pública para ampara-los. Todo um universo simbólico da luta social e por uma ordem política alternativa foi desmoralizado e as manifestações deste domingo foram o velório apoteótico dessa implosão, que será consagrada nas missas de sétimo dia anunciadas para a próxima semana, por menos que assim queiram enxerga-las os fiéis remanescentes da “causa”.

As manifestações deste domingo contra Dilma, Lula e o PT foram expressivas. Mas o foram por  duas razões: primeiro, porque o que está, com justa razão, sendo execrado, já não pode reagir, já acabou; e, segundo, porque essa execração atende ao status quo, pois arrasta junto toda a ordem simbólica alternativa acima mencionada, construída durante décadas contra a dominação rotineira dos promotores da desigualdade, que sabem ter voltado ao protagonismo político nessa hora em que se dá a gestação de uma ordem política substituta que lhes garantirá a manutenção da mesma desigualdade. O que houve neste domingo foi uma comemoração em torno de um suposto inimigo vencido, não luta contra ele. Este domingo foi a apoteose de uma desorientação: ao se livrar de uma mentira recente, o país se prepara para aceitar como alternativa pseudo novidades saídas de uma mentira mais velha e, por isso mesmo, mais solidamente danosas, cumprindo-se a máxima de que dias de festa são véspera de muita dor.

O FIM DA MENTIRA MAIS RECENTE COMO ESTERCO PARA A MENTIRA MAIS VELHA

Carlos Novaes, 10 de março de 2016

Ninguém que pretenda se gabar de saber o que está em jogo na política brasileira pode deixar de considerar que só o que há de velho em nossa política, só aquilo mesmo que persiste quando deveria ser deixado para trás , é que impede que as criteriosas evidências que pesam contra Lula se tornem parâmetro para investigações análogas contra Fernando Henrique, Alckmin, Serra, Aécio e mais os Agripinos, Temers e Renans, que sempre satelisam o mandante de turno em nossa ordem de mando. E esse Brasil velho, que fez a transição lenta e segura manipulando carências, sonhos e esperanças daqueles cuja luta havia tornado inviável uma ditadura, é o Brasil da rotina institucional obediente à danosa inércia do poder e do dinheiro, que atendem pelos apelidos de Sistema Político e Mercado.

Lula e o PT avacalharam a si mesmos porque aderiram às práticas de ganhar poder para fazer dinheiro com base na manipulação cínica de carências, sonhos e esperanças — quem acreditou neles fez papel de bobo, pois faz tempo que os sinais dessa mentira estavam claros. Já aqueles que convocam a ida às ruas em atos que fazem de Lula e do PT bodes expiatórios para a ira suscitada pelo que vai vindo à tona manipulam cinicamente carências, sonhos e esperanças com o objetivo de salvar as mesmas práticas de ganhar poder para fazer dinheiro — quem os acompanha faz papel de bobo, pois a bandidagem nos metrôs, nas privatizações, nos aeroportos e nos pedágios rodoviários automatizados (para citar apenas o mais evidente) é anterior às falcatruas mais recentes na Petrobrás. Isso sem falar na corrupção generalizada na ordem sindical que serve aos dois lados, estrutura viciada em que o orçamento é manipulado livremente pelo poder executivo correspondente, sem sequer um legislativo (fajuto que viesse a se mostrar!), a quem os dirigentes sindicais tivessem que prestar contas.

O problema que unifica essa elite profissional fraturada é controlar a energia nova produzida pelo dínamo trifásico (duas correntes positivas e uma negativa) da Lava Jato. Enquanto buscam a saída para uma situação complexa demais para ser resolvida via conspiração (embora as conspirações não cessem), ganham tempo dando meios de propagação às duas correntes de energia positiva (para eles): na farsa catártica do curto-circuito das ruas se engalfinham — numa polarização fajuta de entes movidos pela mesma avidez dirigida aos mesmos poder e dinheiro — anti-petistas e pró-petistas, por mais que néscios de um lado e de outro se julguem portadores da crítica à ordem malsã que nos infelicita. Cada lado dessa positividade tem o mesmo ânimo, e mobiliza contra o outro uma censura igual, de mesmo sentido e direção contrária. Cada um acusa o outro dos crimes que esconde no próprio armário. Eles estão a reafirmar a inevitabilidade da ordem de que somos vítimas, como a dizer, “política é assim mesmo”. É por não se dar conta do engano e do embuste que o cavalga que a imensa maioria descontente se vê sem ação, à espera não sabe bem do que.

Enquanto essa maioria dissipa energia numa indignação frequentemente tão tagarela quanto impotente, a elite que sabe o que está em jogo sente todo o perigo da situação e luta para controlar o fio desencapado da Lava Jato, sua negatividade, uma negatividade portadora do que há de emancipatório na situação. É precisamente por isso, por essa virtualidade transformadora, que vozes conservadoras mais espertas, que temem o descontrole do jogo, se levantam contra supostos desmandos cometidos pela Lava Jato contra Lula, fazendo figura de justos, sábios ou sensatos. Não. Esses atores estão a defender os próprios interesses, até porque mais adiante poderá ser a vez deles. Na ótica deles, se o lulopetismo deve ser tratado severamente como adversário político (que também é), mais razões há para não perder de vista, nessa hora perigosa, sua condição de parceiro do bloco de poder fundado pelo Real, ao qual o lulopetismo aderiu em 2002 e que está a se esboroar, circunstância que exige um novo pacto pela desigualdade, para o qual é mais útil contar com um lulopetismo de volta ao papel de crítico subalterno obediente do que descarta-lo, como imprestável que é, abrindo espaço para a construção de uma alternativa transformadora hostil a essa velha ordem.

Ao tirar do armário velhas fantasias militantes, ao empunhar bandeiras cuidadosamente esquecidas no curso dos auto-celebrados governos de Lula e de seus governadores de estado, tempo em que dispunha de prestígio e poder para correr o risco de pô-las em prática, o PT não está se contrapondo às elites (afinal não o fez quando estava em melhor situação para enfrenta-las), mas antes está  a contemporizar com elas, está a anunciar que aceita a volta do velho jogo. Veja bem, leitor, não é que o PT esteja sobretudo fazendo uma volta fingida às suas origens, no fito de reunir força contra as elites. Não. Eles estão sobretudo avisando aos adversários que topam voltar ao jogo antigo, em que eles fingiam combater a ordem da desigualdade. Ou seja, não contente em repetir a história como farsa, ao simular uma arregimentação de tropas para um quimérico combate final (sempre prometido e nunca levado a cabo), o lulopetismo desesperado está a coreografar uma platéia que aceitou aplaudir a própria tragédia reencenada como uma farsa dele.

Não sou jurista e não vou discutir tecnicalidades jurídicas. A maioria de nós vive a Lava Jato como um labirinto, no qual a imprensa convencional abre janelas a cada dia, algumas delas falsas. Moro conduz a Lava Jato, conhece-a à medida que ele mesmo partilha sua construção, sopesa cada pedra antes de ela ser assentada, é conhecedor de trechos por nós ainda desconhecidos. Cada decisão que toma está embasada no que já foi revelado, mas também se orienta no que está por vir à luz, que ele conhece e que imporá medidas cujo impacto ele busca antecipar. A condução coercitiva de Lula e as reações suscitadas no establishiment mostram que a velha ordem está disposta a trocar de roupa, mas se recusa a tomar banho, pois teme ir pelo ralo junto com a água suja. Cabe aos interessados que se mantém apartados da polarização fajuta em curso, que não vão às ruas não por serem indiferentes, mas porque recusam as alternativas oferecidas até aqui, cabe a essa minoria lutar para que a maioria que se mantém num ceticismo prudente venha a se engajar em lutas que deem sentido às potencialidades transformadoras abertas pela Lava Jato, impedindo que o fim da mentira mais recente sirva de esterco para a mentira mais velha. Vai levar tempo, muito tempo.

Fica o Registro:

1- A essa altura, com as evidências de crime que hoje passaram a pesar contra as contas da campanha presidencial petista de 2014, parece claro que o governo Dilma-Temer acabou e será substituído através de uma eleição direta, provavelmente ainda este ano, junto com as eleições municipais, tudo com base em decisões do TSE. Esse desfecho só poderia ser evitado se, escorados na polarização fajuta discutida acima, os políticos profissionais e o chamado mercado selassem uma solução artificial, que já não parece possível.

2- Como no caso da cassação de Dilma-Temer assume o presidente da Câmara dos Deputados, e como se afigura de todo impossível que o país aceite Eduardo Cunha na presidência da República, especialmente para presidir um processo eleitoral destinado a dar resposta ao maior escândalo de corrupção do país, também parece certo que Eduardo Cunha seja afastado ainda antes da queda de Dilma-Temer.

3- A eventual ida de Lula para o governo Dilma só serviria para acentuar a dramaticidade da hora vivida pelo lulopetismo, pois então já não haveria sequer a possibilidade de tentar obter com o descarte de Dilma um alívio sobre o destino de Lula. O pedido de prisão contra Lula, feito pelo MP de São Paulo, é um atropelo, não um desdobramento da tática da Lava Jato, de avançar polegada a polegada, e deverá ser negado.

A QUE PONTO CHEGAMOS!

Carlos Novaes, 18 de dezembro de 2015

 

Como Delcídio ainda não disse nada que nos conduza a uma crise política real, a “crise” política fajuta, à qual dei por encerrada semanas atrás, se apresenta como um pesadelo que ganhou vida e teima em nos assombrar. Isso ocorre não porque seus motivos sejam reais, mas precisamente porque eles são fajutos: como a reforma ministerial esgotou parte das motivações espúrias em torno das quais os atores da “crise” se organizavam, os seus personagens centrais, qual espantalhos, juntam-se aos carrapatos, agarram-se às suas fantasias pessoais e, com a ajuda da grande mídia convencional, exploram no limite da irresponsabilidade os poderes podres de que ainda dispõem. Os personagens com fantasias pessoais mais infladas são Cunha, Temer e Aécio — são eles que vorazmente se atiram a todo pretexto que possa prolongar artificialmente uma “crise” já esgotada e, assim, contrariam até mesmo as chamadas “forças do mercado”, que há muito entenderam que o melhor é ficar com Dilma num governo do p-MDB. Detalhemos isso.

Encurralado pelas evidências que pesam contra si, Eduardo Cunha, ciente de que não tem escapatória, numa ação solitária resolveu deixar como herança aos seus sucessores o maior estrago que puder em duas pontas: contra Dilma, a quem vê, com razão, como sua maior inimiga institucional, e contra a Constituição, na qual enxerga, com não menos razão, um obstáculo à prevalência de seus interesses e de sua visão de mundo. Perdidas todas as esperanças que nutria, Cunha fez da admissibilidade do impeachment uma ponte para o passado pré-constituinte: a balbúrdia de um processo como este serve de cortina de fumaça para novas investidas legiferantes dos reacionários, assim como tem ocorrido ao longo de todo 2015, ano em que, à sombra da “crise”, avançaram projetos danosos à imperfeita democracia brasileira, como já vimos aqui.

Temos acompanhado a movimentação de Temer, que sonha em mudar do Jaburu para o Planalto. Por razões históricas, que exploramos aqui, o obstáculo principal à concretização desse sonho é o próprio p-MDB, partido cujo precário equilíbrio interno depende de que ninguém ali detenha um poder incontrastável (por isso jamais se decidiram realmente por uma candidatura presidencial própria). Cunha decidiu pelo impeachment não para favorecer Temer, mas porque essa foi a cartada que lhe restou para prolongar seu próprio jogo, que sabe estar a terminar e para o qual, portanto, ficou indiferente o sucesso de Temer. A decisão pessoal de Cunha contrariou os principais caciques do partido que, alinhados com o governo que Dilma lhes entregou na reforma ministerial, não veem vantagem alguma numa presidência Temer, que certamente lhes diminuiria o poder. Esses caciques estão fundamentalmente no Senado, liderados por Renan, e no Rio de Janeiro, chefiados por Jorge Picciani, pai do líder peemedebista ioiô, Leonardo Picciani, ambos contando com o lastro do governador Pezão, que está muito bem acertado com Dilma.

A reação desses caciques contra a carta ridícula de Temer e contra a inábil ação dele na destituição do líder partidário na Câmara deixou mais uma vez claro que não interessa ao p-MDB governamental e governista a saída de Dilma (o que mais é preciso?!?): o p-MDB que manda é o que estiver alinhado com o mercado e com o governo (por isso, isolaram-se Cunha e Temer). O vice só recebeu apoio da mídia convencional mais néscia, que ainda supõe poder tudo e, consequentemente, não sabe interpretar os sinais da realidade: estamparam a imagem de Temer em suas primeiras páginas justo na hora em que da “alternativa Temer” já não restava nem a pose antiquada. Não há, portanto, nenhuma grande conspiração oligárquica contra Dilma. Ela própria é a fiadora fantoche de uma ordem oligárquica, membro que é de um partido que se burocratizou e oligarquizou há mais de vinte anos, o PT, como discuti aqui. Toda a briga não é nem ideológica, nem programática, mas pelo poder que permite fazer dinheiro, o que nos leva a Aécio.

Inconformado com uma derrota por tão poucos votos que pode até ser atribuída a erros de campanha, e vendo na junção da crise econômica com a Lava Jato uma oportunidade, Aécio fez do impeachment uma “causa”, para a qual valeu sacrificar até mesmo o verniz programático com o qual se vendia ao eleitorado: tem negado apoio a Dilma até ali onde ela propõe o que ele próprio dizia entender como acertado, membros que são do mesmo pacto. Tivessem os tucanos agido com o mínimo de responsabilidade, a “crise” política não teria prosperado e a crise econômica não teria chegado ao ponto em que chegou. Tanto é assim que o rebaixamento do Brasil nas famigeradas agências internacionais se dá, fundamentalmente, em razão da incerteza política (ou seja, a “crise”) e não propriamente pelas dificuldades econômicas. Aécio já tinha posto a viola no saco, mas oportunista e aventureiro que é, sem liames firmes com o establishment, voltou à trilha golpista assim que Cunha tomou sua decisão solitária e optou pela admissibilidade do impeachment. Essa retomada é tão arbitrária e tão extravagante diante do que já se havia “decidido”, que mesmo os trouxas dispostos a ir às ruas pelo impedimento de Dilma se mostram agora bem menos numerosos.

Em suma, a “crise” se prolonga porque a política profissional brasileira se tornou tão autônoma, tão desgarrada da sociedade, que personagens bizarros e solitários como Cunha, Temer e Aécio podem tumultuar a ordem conservadora que, não obstante, se mantém em marcha para nos fazer conhecer uma nova versão da piora da desigualdade. Mas, se é assim, poderia o leitor perguntar: por que alinhar-se contra o impeachment de Dilma? A resposta é simples: porque o impedimento dela, além de levar ao poder gente da pior qualidade (e que terá no desastre Dilma todas as desculpas para nos impor as piores “soluções), também franquia uma avenida tanto contra a Constituição, que garante nossa liberdade e sustenta direitos que nos querem arrancar, quanto contra a ação saneadora desse Judiciário capaz de pôr em movimento uma Lava Jato. Em política, quando se é minoria, a realidade quase sempre impõe a trincheira.

TEMER DERRAPOU NA LAMA DO CUNHA

Carlos Novaes, 08 de dezembro de 2015

Não, leitor, eu não combinei com Michel Temer o texto da carta em que ele escancarou para todo o país suas sempre mal disfarçadas e desleais ambições políticas, embora o texto do vice pareça voltado a chancelar o que elucidei aqui (especialmente no terceiro e quarto parágrafos). Digo que o vice derrapou na lama do Cunha porque Temer não entendeu que o gesto tresloucado de Eduardo Cunha foi exatamente isso: uma tresloucada ação isolada, sem lastro político real – e que, por isso mesmo, toma por um arremedo de lastro essa “crise” política fajuta que já havia se esgotado com a reforma ministerial em que Dilma entregou o governo ao p-MDB, como tratei aqui e aqui.

Digo que a ação de Cunha é isolada porque ela não atende a nenhum ator coletivo realmente importante na vida nacional. Ela não atende aos interesses do chamado mercado, não dá resposta real à opinião pública, ameaça o equilíbrio interno do próprio p-MDB (que depende de que nenhum cacique tenha poder incontrastável) e não atende sequer ao PSDB, que já havia recuado diante da desmoralização a que foi levado pelo seu golpismo e, agora, continua dividido diante de um encaminhamento de impeachment que já havia ficado para trás. Cunha agiu para gerar balbúrdia no fito de tentar se safar, simples assim. E Temer, num erro de cálculo monumental, deu uma de Jânio e embarcou na aventura por sua própria conta e risco!

Ao divulgar a carta desastrada que recebeu, Dilma não apenas mostra uma inusual sagacidade política diante das dificuldades do momento como também dá uma grande contribuição ao país, permitindo que todos vejam o material de que Temer é feito e obrigando o p-MDB que vem tomando posse dos cargos governamentais a se posicionar claramente em prol dos próprios interesses fisiológicos, que, parece, se chocam frontalmente com as ambições do vice.

“PROCESSO POLÍTICO PURO”

Carlos Novaes, 04 de dezembro de 2015

O título deste artigo foi extraído da descrição que um deputado federal do PT — membro da comissão de ética que discute a abertura do processo de cassação do mandato de Eduardo Cunha — deu para a sua própria situação, vendo suas inclinações pessoais (fossem elas quais fossem) imprensadas entre dois vetores: de um lado, o do governo (que preferia poupar Cunha para evitar a abertura de um processo de impeachment contra Dilma); de outro lado, o das demandas contraditórias de seu próprio partido (pois o PT, partido do governo, oscilava entre dois caminhos: punir Cunha, o que lhe permitiria salvar um arremedo de dignidade diante do crivo da opinião pública que lhe é majoritariamente desfavorável, ou poupar Cunha, o que lhe permitiria manter ainda afastada a possibilidade do impeachment, cerrando as próprias fileiras em torno dos cargos e/ou benefícios que detém com base na participação governamental).

Ao definir essa situação como “processo político puro” o deputado petista (e o petista aqui é importante) deu a mais cabal definição da crise de representação que decorre da política como profissão, crise na qual venho a insistir que estamos mergulhados: para ele a política é um jogo de forças apartado da sociedade, é um jogo que se decide de costas para nós, ao fim do qual eles improvisarão uma fantasia legitimadora, certos de que qualquer uma servirá. Submetido à lógica do palácio, o parlamentar se viu imprensado entre forças políticas organizadas com interesses opostos, sem fazer caso da condição de representante da sociedade, sem fazer caso da lógica da rua. É revelador que esse modo de ver a política mantenha seu efeito ordenador para o deputado mesmo diante do fato de a opinião pública estar unanimemente postada contra Eduardo Cunha, provavelmente a única figura pública da história política brasileira de reputação incontroversa, pois mesmo quem identifica nele um canal para seus próprios interesses ou desejos não deixa de enxergar quão nefasto ele é para a vida institucional do país.

Cunha não tem defensores, e o fato de ele, nessas condições, ainda presidir a Câmara dos Deputados é outra maneira de ilustrar a crise de representação e sua pantomima respectiva, a “crise” política. A condição petista do deputado aturdido é importante porque ela ilustra in nuc, de modo concentrado, a situação em que o PT se abismou: depois de ter sido a esperança (ilusória) de uma representação favorável aos interesses populares numa ordem política nova, o partido revelou-se uma burocracia ávida por poder e dinheiro sustentada numa mistificação de representação popular mantenedora da política velha. Os degraus da podridão por onde o PT desceu são os mesmos pelos quais se deu a ascensão de Cunha, e é por isso que o ápice do poder de Cunha é a admissão no Legislativo de um processo de impeachment que escorraçaria do poder o PT, mas sem que haja evidência de que a presidente cometeu crime no exercício do mandato em curso: o ato de Cunha é o último lance de uma “crise” política pela qual se procurou escamotear a crise de representação que estamos vivendo (da qual a farsa do PT é elemento chave), transferindo para o Executivo (gestão) uma crise de legitimidade do Legislativo (representação), manobra que foi muito facilitada pela reunião da incompetência governamental de Dilma com a desfaçatez inescrupulosa de Eduardo Cunha, ambas oriundas da certeza de que em política tudo é permitido porque se supõe que o êxito legitima: Lula não viu problemas para si nem para o país em impor Dilma como candidata; a Câmara não viu problema algum em nos impor Cunha como seu presidente.

A esse estado malsão da ordem política (Executivo e Legislativo) passaram a se opor braços do poder Judiciário. A Lava Jato é o braço mais vistosa dessa dinâmica nova que, agora, quando me parecia contida, ganha fôlego promissor e volta a suscitar as esperanças típicas de uma incerteza boa. Me explico: oriunda da primeira instância do Judiciário, a Lava Jato, por mais vigoroso que fosse seu ímpeto, não podia alcançar por si mesma os profissionais políticos dos crimes que investiga, limitação que, aliás, muito contribuiu para que os políticos profissionais se aproveitassem dela para fabricar a “crise” com que iludiram a opinião pública no curso de todo este ano. Não obstante, tenha sido empurrada por uma testemunha determinada a se safar, ou tenha  buscado por si mesma uma saída, o fato é que ao acolher a denúncia de Nestor Cerveró contra o senador Delcídio Amaral (PT-MS) a Lava Jato conseguiu alinhar aos seus propósitos, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal, fazendo uma solda inédita entre a primeira e a última instâncias do poder Judiciário contra o descalabro da política profissional. Depois de ter constrangido ministros do STF de recalcitrância conhecida quando se trata de enquadrar políticos, obrigando-os a acompanharem o ímpeto de juízes mais recentes naquela Côrte, o poder de arrasto do ineditismo dos fatos impediu que o Senado se fechasse em seu corporativismo e não deu tempo para o Executivo reagir.

Foi a esse conjunto de circunstâncias auspiciosas que enxerguei como a deflagração de uma verdadeira crise política, pois a decisão do Supremo, empurrado a acolher uma interpretação nova para a Constituição para poder enviar à prisão um Senador, no exercício do mandato e líder do Executivo na Câmara Alta, se reveste de caráter exemplar contra o estado de coisas inaceitável em que se encontra a política profissional brasileira, estado este em que estão envolvidos ou engalfinhados o Legislativo e o Executivo e, por certo, partes do Judiciário. O fato de um banqueiro ter sido levado de roldão também tem caráter simbólico animador, especialmente quando passamos a saber que André Esteves (celebrado como exemplo de arrojo no mundo dos negócios) tem Eduardo Cunha como principal apadrinhado do seu dinheiro na ordem política que combatemos… Como seria de esperar, não tem faltado formalistas [apegados à forma (memória)] para julgar impertinente e até antidemocrática a concatenação nova da dinâmica republicana que estamos a assistir, como se fosse possível construir o novo sem novidade, como se não fosse legítimo que, contra um Legislativo que não legisla senão para mercadejar contra nós, o Judiciário empurre à mudança (fluxo), ainda que no âmbito das estreitas margens de que dispõe para fazê-lo, como já discuti aqui.

Todo um modo de operar a política foi posto a nu, embora seja certo que entre mortos e feridos haverão de escapar quase todos os criminosos, uma vez que tudo se passa sem romper o alheamento da sociedade. Tanto é assim que o impeachment de Dilma, que desperta júbilo néscio em parte dessa sociedade inerte, nada tem que ver com a prisão de Delcídio, ele nada disse, ainda, que a comprometa — esse dínamo da verdadeira crise política está por ser ativado. Muito pelo contrário, o processo contra Dilma foi o último ato desvairado da “crise” política, “crise” essa que nada mais é do que a tentativa do Congresso de transferir para o Governo as consequências da crise de representação em que ele vê sua legitimidade perdida. Enfim, é mais do que hora de darmos outro sentido ao “processo político puro”: disseminemos o sentimento de tarefa de nas eleições de 2016 lutarmos todos por uma verdadeira representação política: tenha cada um os desejos ou os interesses que tiver, lutemos para que o voto para vereador se destine apenas a quem jamais esteve numa casa legislativa: chega dos mesmos!

Fica o Registro:

– Alckmin finalmente recuou da pretensão de reorganizar pela desativação as escolas públicas estaduais, mas apenas depois de mais um show de truculência autocrática, no qual não faltou o personagem de que o governador de SP mais gosta, a sua PM. Muita gente tem dado como acertado e defensável o projeto escolar de Alckmin, ainda que condenando seus métodos (uma antecipação do que seria uma presença sua na presidência da República). Entretanto, é de perguntar o porquê de espaço escolar ocioso ser desativado numa rede de ensino em que o número de alunos por sala de aula está acima do aceitável quando se pensa em uma educação de qualidade. Melhor seria distribuir o alunado por mais salas de aula, naturalmente contratando mais professores, etc.

REAÇÃO EM CADEIA (PROVAVELMENTE RETROATIVA)

Carlos Novaes, 26 de novembro de 2015

Sem produzir fatos novos — pois a prisão recente de Bumlai veio acompanhada da declaração explícita do juiz Sergio Moro de que não havia provas contra Lula –, a Lava Jato vivia dias de certa rotina, pois desconfiados das motivações de Nestor Cerveró, duvidando da sua efetiva disposição para colaborar, recusavam a ele o benefício da “delação premiada”. Cerveró, espremido entre essa reticência do Judiciário e a certeza de uma longa pena a cumprir atrás das grades, tomou a decisão de forçar a aceitação da sua delação premiada entregando uma poderosa vertente do esquema. Se a prisão de um banqueiro “perplexo” ainda poderia ser vista como mais do mesmo, pois Marcelo Odebrecht já vinha representando com brilho o empresariado encarcerado, prender um senador da República no exercício do mandato e líder do governo no Senado é, realmente, algo novo. Agora a “crise” vai desaguar numa verdadeira crise política, cujos desdobramentos (se Cerveró, de fato, entregar evidência criminal contra Dilma) terão efeitos retroativos sobre todo o ano de 2015, dando sentido novo a essa memória recente da política profissional nacional.

Se for assim, apesar de toda a farsa, 2015 não terá sido um ano desperdiçado, mesmo que esse desfecho inesperado venha a emprestar uma falsa legitimidade aos disparates jurídicos e às operações antidemocráticas a que o país veio sendo submetido; paciência. As prisões de Delcídio e de André Esteves foram possíveis porque o Supremo, por unanimidade, acolheu uma interpretação nova da Constituição, encaminhada pela PGR. Como há ministros do próprio pleno constitucional mencionados no material que serviu de base às prisões, a decisão unânime mostra que se atingiu no Judiciário um ponto de virada, isto é, que ali se entendeu que as coisas chegaram a um ponto que já não há lugar para tergiversações. Dessa perspectiva, a “crise” que nos embrulhou ao longo de todo o ano terá servido de empurrão final para que, diante das evidências entregues por Cerveró, a sensação de desperdício fosse superada e do limão se venha a fazer uma limonada.

A decisão do Senado de manter, pelo voto aberto, a prisão de Delcídio saída da politicamente incontornável decisão do STF, contra a patética, desmoralizante e inábil atitude da bancada do PT (que, assim, se isolou como polo nefasto da crise), tanto evidencia que se instalou uma verdadeira crise política quanto sugere que o desfecho será rápido, pois há motivação embasada nos fatos e, por isso mesmo, essa motivação aparece orientada em uma direção única, avalanche que irá, claro, engolir os elementos restantes da “crise” que se arrastou pelo ano todo. A decisão do Senado, que Renan preside, dá ao político alagoano munição para, enfim, se desvencilhar da companhia incômoda do presidente da Câmara, seu correligionário Eduardo Cunha. Afinal, não escapa a ninguém o contraste entre a dinâmica da Câmara, voltada a proteger corruptos, e esse gesto do Senado, abertamente voltado a fazer o que for necessário para salvaguardar alguma credibilidade à política profissional.

Entretanto, há razões para uma incerteza geral, pois, a depender da extensão das confissões de Cerveró, supondo-se que ele possa vir a fazer entregas de tal envergadura que levem outros presos a já não verem sentido em ficar calados, todo o sistema político profissional, no Legislativo e no Executivo, pode vir a ser engolido no processo. O caso de Lula e do PT é mais grave, pois eles seriam os primeiros a serem atingidos por uma delação generalizada. Se as coisas se passarem assim, os tucanos vão ter uma oportunidade de renascimento, seja porque terão coroado de “êxito” suas trapalhadas de 2015, seja porque terão elementos para tentar incriminar a chapa Dilma-Temer, alcançando a tão sonhada nova eleição presidencial, agora num cenário em que Lula estaria definitivamente fora do páreo. Vamos ver como se desdobram os fatos, os quais, por enquanto, favorecem o mando do p-MDB, que pode vir a herdar a própria presidência da República. Como quer que seja, 2015 não terá sido desperdiçado, pois terá ficado claro todo o desastre da política profissional, que terá tido que entregar muito mais do que os anéis. Vamos ver.

2015: O ANO QUE FOI DESPERDIÇADO

Carlos Novaes, 24 de novembro de 2015

 

2015 aparece como um ano desperdiçado porque se teimou em não aceitar três fatos que já estavam claros desde antes do final de 2014: Aécio Neves perdera a eleição presidencial, Eduardo Cunha seria uma péssima escolha para a presidência da Câmara dos Deputados e o pacto do Real se desfazia por todas as costuras: a política, a social e a econômica! As recusas a essas evidências foram artificiais e, por isso mesmo, se apoiaram farsescamente uma na outra: a crise econômica serviu de combustível para que o PSDB insistisse em afastar Dilma (a quem atribui toda a responsabilidade por uma crise decorrente do esgotamento do Real, que também é obra sua) e ajudou Cunha a avançar um projeto político danoso à nossa ordem constitucional no que ela tem de democrática. A farsa se desfez quando, uma vez esgotados os recursos de prestidigitação, que esbarraram na complexidade institucional do país, seus agentes foram desmascarados pela própria realidade e, claro, voltaram-se um contra o outro: o PSDB, desmoralizado por ter negado o próprio discurso, passou a combater Cunha; e Cunha, desmoralizado por ter revelado a si mesmo, passou a obstar abertamente uma versão de impeachment que, não obstante, apenas fingira favorecer, por razões que vimos aqui.

A tão néscia quanto ampla cobertura da mídia convencional à confusão gerada pela recusa às três evidências mencionadas ajudou nosso entulho autoritário reciclado, o p-MDB, a usar uma ação anti-corrupção do Judiciário, a Lava Jato, para ampliar seu nefasto poder de mando na política do país (e pensar que a Lava Jato se dirigiu justamente contra o modus operandi do bloco de poder de que este partido fez-se o eixo em torno do qual se articulam as abas “polarizadas” pelo PT e pelo PSDB! — falta o Metrô de SP e o mensalão de MG, ambos do PSDB). Embora o final hoje em andamento já estivesse claro em agosto, como argumentei aqui, a situação se arrasta porque, embora ela tenha elementos de conspiração (em política sempre há conspiração), ela, a situação, não pode ser concluída segundo uma conspiração totalizante, pois a ordem institucional do país é complexa o bastante para repelir tal desfecho. Por remanchada que se apresente, porém, a situação é a seguinte: depois de neutralizado o potencial disruptivo da operação Zelotes, e depois de a Lava Jato ter sido contida, Dilma, com apoio do establishment e acossada de modo oportunista pelo próprio partido, vai aos poucos assumindo o governo, mas não aquele para o qual foi eleita, que acabou sem ter começado, mas o governo do p-MDB, partido que Renan e Temer voltaram a “estabilizar”, depois de terem neutralizado o radical livre Eduardo Cunha, que terá de sair de cena, cabendo ao PSDB correr atrás do prejuízo, pois 2018 está logo ali — Alckmin é um caso à parte, pois não se meteu nessa embrulhada, tem conseguido retardar as investigações sobre o Metrô em SP e não depende do PSDB para tocar seu projeto presidencial reacionário.

O fato de, ainda hoje, se falar em impeachment e na salvação de Cunha decorre de duas coisas diferentes, mas que se complementam: primeiro, da nefasta autonomia da política profissional em relação à sociedade, o que permite que eles brinquem numa estufa à parte, como se de nada tivessem de prestar contas (repito: eles parecem não entender que até numa política como a nossa a esculhambação tem limites); segundo, de que, apesar da desmoralização de Aécio e de tudo o mais, setores da mídia mais reacionária ainda não se conformaram com o que ficou estabelecido ao final de 2014: a vitória de Dilma. Suas esperanças agora se concentram em Temer, que continua a fazer seu joguinho ambíguo: desorganiza a movimentação anti-Dilma de correligionários seus no p-MDB, mas insiste em consultas jurídicas que lhe permitam afirmar que houve uma campanha para vice-presidente separada da campanha para a presidência… o que permitiria incriminar a campanha de Dilma sem que o vice fosse atingido (como se ainda estivéssemos em 1961, quando presidente e vice eram eleitos em campanhas próprias e separadas, anomalia propícia a golpismos que a Constituição corrigiu explicitamente). As chances de que esse golpismo prospere são, portanto, mínimas, ainda que as incertezas da economia não permitam descartá-lo. Na verdade, a insistência biruta do PSDB, agora às voltas com o que parece ser uma nova barganha com Cunha (!), se deve também aos sinais que começam a surgir (desesperadores para os tucanos) de que a crise econômica poderá ceder mais cedo do que supunham os apregoadores do colapso, o que permitiria uma recuperação de Dilma e, por extensão, de Lula, antes de 2018 (em tempo: salvo evidência nova, que não está no horizonte, entendo que a Lava Jato não irá apanhar Lula, limitando-se a mantê-lo na mídia como uma espécie de Coringa* ensaboado a escorregar no bojo dos malfeitos comprovados ).

Alheios aos aspectos miúdos e propriamente político-profissionais desse jogo sumariado acima, os grandalhões do “mercado” atravessaram as incertezas de 2015 assistindo ao encaixe das peças segundo seu interesse fundamental: a manutenção do pacto do Real, pelo menos em sua versão propícia à acomodação da macacada em seus respectivos galhos, ou seja, que PSDB e PT se mantenham como “pólos” do mesmo projeto. Não é por outra razão que lá atrás Abílio Diniz sugeriu como “solução” o simplismo de trancar FHC e Lula numa mesma sala (eu ia escrevendo cela), jogando a chave fora até que eles se entendessem (não faltou “intelectual” petista achando a ideia boa…). Faz coisa de uma semana Marina Silva voltou ao tema (logo secundada pelo cervejeiro Lemann, da AmBev) em uma entrevista, na qual sua inconsistência e confusão chegaram a constranger o entrevistador, Roberto D’Ávila: depois de relativizar o lugar do líder e de afirmar que o protagonismo  caberia à sociedade, a ex-senadora contraditoriamente voltou ao anacronismo do mito do “Pai da Pátria” a também saiu-se com a “solução” Lula-FHC, chancelando o atestado de menoridade que o varejista dera às nossas instituições. Mas, sejamos justos: o caso de Marina é muito pior do que o de Diniz, afinal, ela embasou sua proposta em termos que simplesmente aboliram cerca de 20 anos da história política brasileira, como se as circunstâncias havidas em 1993-1994 pudessem ser simplesmente retomadas, como se no curso desses penosos anos tanto Lula como FHC não tivessem desfeito, com seus partidos, o passado que fora propício a um entendimento vantajoso para o país. Marina, ignorando que a memória é plástica porque pode desfazer o acontecido, e não porque seja capaz de repeti-lo sem fazer caso de memórias intermediárias (a não ser como farsa), invoca simbolicamente um Lula operário e um FHC sociólogo como se esses símbolos equívocos não tivessem sido desconstruídos pela própria história recente — nesse contexto farsesco, não é sem interesse explorar a razão que levou Fernando Henrique, para surpresa quase geral, a escolher 2015 para antecipar a publicação de memórias de bastidores políticos que ele próprio havia decidido que só viriam à luz depois de sua morte: FHC lançou seu livro em meio aos escândalos que envolvem o período presidencial de Lula justamente porque viu uma oportunidade para exibir um presumido contraste entre os dois porões presidenciais: o dele, FHC, seria tão limpo e inocente que pode até ser confessado, já o do adversário seria caso de polícia… como se pudéssemos acreditar que tudo o que houve de sujo no governo de FHC fosse o que está no seu calculado livro!

Enfim, as festas de fim de ano se aproximam e nos achamos cobertos de lama, ela é tóxica e a água que nos oferecem para a limpeza não nos serve porque não chega isenta dessa mesma lama da qual queremos nos livrar. Temos de passar a nos concentrar no que fazer em 2016 na perspectiva de uma transformação, tema que já explorei também aqui e em vários outros textos deste blog..

 

* – O Coringa do Batman e o do baralho, bem entendido.

 

 

 

LEGADOS DA “CRISE” — 2 DE 2

Representação profissional e revanche reacionária

Carlos Novaes, 03 de novembro de 2015

Acossados pela ação da Lava Jato contra o seu modo de operar, os políticos profissionais alimentaram a histeria do “fora Dilma!” (como se a Lava Jato fosse contra ela) enquanto não deixaram de agir metodica e diligentemente nos bastidores para tirar vantagem da confusão em que essa encenação do impeachment lançou a opinião pública. Observe leitor quão caprichosos podem se apresentar os enredos da política quando a gente se deixa submeter ao mando dos profissionais: o maior esquema de corrupção já desvendado, cujo dinheiro alimentou as rotinas de poder que permitem aos políticos profissionais nos darem as costas, acabou servindo como cortina de fumaça para que esses mesmos políticos profissionais aumentassem a base legal da sua atuação contra nós!

Por isso mesmo, coube ao medíocre Eduardo Cunha se revelar, a um só tempo, protagonista e símbolo do ímpeto reacionário de quem fez da “crise” uma oportunidade para inventar ou trazer de volta restrições à liberdade que a sociedade civil brasileira havia recalcado, mas não superado, nesse intervalo que vem desde as diretas-já. O deputado evangélico (não nos enganemos, o “evangélico” é, aqui, fundamental) está obstinado em permanecer num cargo e num mandato que já não tem como conservar legitimamente não por ser apenas um cínico e, muito menos, um psicopata, como quer o deputado Jarbas Vasconcelos em entrevista à Folha. Descrever Cunha nestes termos é um simplismo contraproducente para quem almeja alcançar, mais do que a sua danação, uma vitória contra os interesses que a truculência dele vocaliza. Mesmo liquidado, Cunha não se dá por achado não por ser um desvairado aferrado ao cargo, mas porque está seriamente engajado no propósito de fazer o país retroceder do pouco que, com muito custo, avançou na estrada democrática nos últimos trinta anos.

Aproveitando-se da desinformação e da confusão trazidos pela falsa polarização da disputa presidencial de 2014 — e de sua decorrência mais vistosa: o alarido da mídia em torno de um impeachment que não se sustentou porque não passa de uma ação golpista inconsequente que inverteu a sequência lógica entre crime e punição do crime (aberração jurídica para a qual não faltaram juristas) — aproveitando-se dessa situação anômala, eu dizia, Cunha elegeu-se presidente da Câmara Federal e desencadeou uma ação coordenada que no curso dos últimos dez meses trouxe à ordem do dia reações que não desagradariam aos mais destacados líderes direitistas do Centrão à época da Constituinte, reações estas que podem ser organizadas em dois vetores: em primeiro lugar, temos reações que proporcionam meios legais para que eles, os políticos profissionais, tenham ainda mais autonomia para representarem apenas a si mesmos, aos próprios interesses; em segundo lugar, temos as reações que visam diminuir a autonomia que a lei já consagra ao cidadão, impondo restrições a um padrão de liberdades que, é oportuno registrar, com muito pouco denodo vem sendo defendido por nós (aliás, é em defesa dessas liberdades ameaçadas que tenho militado para esclarecer o que está em jogo no impeachment de Dilma, embora tenha claro que a presidente já nada significa na luta contra a desigualdade).

Reações em favor da própria autonomia:

– diminuição do período de campanha eleitoral

– diminuição do tempo destinado à propaganda eleitoral na TV

Nessas duas “reformas eleitorais” os profissionais legislaram em causa própria, mas tendo o cuidado de cinicamente tirar proveito para si do descrédito em que estão, pois espertamente perceberam que a maioria insatisfeita enxergaria como vantagem ter de aturá-los por menos tempo, ou seja, apostaram na inércia e no desinteresse daqueles que, fazendo dano a si mesmos, dão a política como causa perdida. A essas duas medidas eles acrescentaram uma terceira, explicitando que também almejam embargar a ação das minorias que os contestam:

– restrição à participação das minorias políticas em debates televisivos de campanha eleitoral.

Mais recentemente, o rol de malandragens incluiu:

– triplicar as verbas do fundo partidário (enquanto querem cortar o bolsa-família)

– tornar legal a contribuição sem freios e indiscriminada das empresas às campanhas eleitorais*

– tornar impositivas as famigeradas emendas parlamentares no orçamento da União

– descriminalizar as contas bancárias não declaradas em países estrangeiros (enquanto posam de moralistas contra a descriminalização da maconha).

Ou seja, diminuem o tempo de interação com o eleitor, mas aumentam o dinheiro disponível para gastar na engambelação desse mesmo eleitor com quem querem cada vez menos contato. E tem mais: se aprovado, esse novo modelo de financiamento empresarial passará a impedir que se saiba a quem cada empresa deu dinheiro, impossibilitando a reconstrução da malha de interesses realmente representada no Legislativo. Por fim, ao tornar impositivas as emendas parlamentares eles ficam livres do trabalho de negociar com o executivo até mesmo os seus interesses de balcão; já a descriminalização das contas bancárias dispensa comentários.

Essa é a “reforma política” que o Congresso vai pondo de pé enquanto a rua coxinha se deixou enrolar no ridículo de fazer do impeachment uma “causa”, pela qual vale tudo, até mesmo apoiar Cunha. A feição antidemocrática dessas medidas fica mais nítida quando notamos que elas formam um conjunto coerente com providências destinadas a diminuir a autonomia do cidadão.

Reações contra a autonomia do cidadão:

– lei para penalizar a opinião crítica na Internet

– lei pela maioridade penal aos 16 anos

– lei para restringir o conceito de família à definição bíblica

– lei para aumentar a criminalização contra quem favorece a liberdade da mulher para escolher quando conceber

– lei “contra o terrorismo”, que atinge explicitamente os movimentos de contestação da sociedade civil.

Não nos enganemos: o protagonismo prático-operacional da reação no Brasil é acentuadamente evangélico e policial. São evangélicos e/ou policiais políticos profissionais que protagonizam essa frente do atraso, são evangélicos veículos de mídia e formadores de opinião que a propagam em seus programas policiais, sem deixar escapar que não menos evangélico é o silêncio em torno do quinhão da corrupção que favoreceu igrejas e seus próceres. Toda essa onda reacionária está animada por um cinismo sem precedentes, que engolfa a verdade como se ela fosse já nem mesmo uma inconveniência, mas uma bobagem de ingênuos. Mais uma vez, não nos enganemos: a obstinação de afirmar, contra toda evidência científica, que a Terra tem a idade ridícula que lhe atribui a Bíblia é uma besteira cuja face cínica serve de guarda-chuva legitimador para todo o cinismo político de que seus adeptos são capazes, qua capazes.

Muito se tem falado sobre o crescimento da intolerância no trato social cotidiano do Brasil (uma forma de violência), assim como muito se tem dito sobre o crescimento das correntes evangélicas e das pretensões de poder da polícia militar — é hora de começarmos a atentar para o potencial antidemocrático destes fatos, ainda que sem adotar explicações de ordem conspiratória para essa concatenação perniciosa contra a liberdade. A coisa toda está além da conspiração, mas o sentido geral parece claro: diante da desordem provocada pela desigualdade (sempre ela), os chefões intolerantes — manejando preceitos reificados supostamente plenos de verdade (Bíblia e Códigos ético-disciplinares nem sempre explícitos), e cavalgando hierarquias que organizam o mando e recolhem o dinheiro do rebanho — vão criando trincheiras de defesa que enquanto servem para burlar, pela ação de grupo ela mesma, as agruras mais sensíveis da desigualdade, enriquecendo alguns e aliviando o sofrimento dos mais vulneráveis; vão realimentando o mesmo rebanho com ideologias de recalque contra quem pensa, age e vive de maneira diferente, especialmente se conscientemente orientado por valores diferentes dos deles.

Prisioneira do mito primordial da “abundância sem esforço”, a sociedade brasileira sonha com mais liberdade e menos desigualdade, mas age de maneira tíbia e incompleta na busca dessas aspirações e, por isso mesmo, vive a emprestar apoio frívolo a “lideranças” sazonais que, quando muito, apaziguam consciências, sem, porém, nada liderarem, pois apegadas a bem disfarçadas ambições de poder, desprovidas de propósitos consistentes, mantém-se sempre em espera matreira, auscultando para “ver no que vai dar” — isso quando não apoiam veladamente as medidas reacionárias listadas acima. Sendo mais do mesmo, cada uma dessas “lideranças” sonha em ser pelo menos o plano B do establishment e, assim, fizeram-se todas irrelevantes para qualquer projeto de transformação.

* – Sou contra o chamado “financiamento público de campanhas eleitorais” porque entendo que devemos obrigar os políticos a correrem atrás do dinheiro e do voto. Mas também entendo que se deve coibir o abuso do poder econômico nas eleições. Por isso, defendo que haja um teto nominal único e exclusivo (cada doador doa para apenas um partido ou candidato) para contribuições de empresas e pessoas, isto é, que não se permita nem que as empresas possam contribuir segundo o seu faturamento, nem que as pessoas possam fazê-lo simplesmente segundo a própria renda, pois isso seria consagrar a influência dos mais fortes — daí um teto nominal igual para todos.

em 04/11/2015 — Fica o Registro:

– A revisão do Estatuto do Desarmamento de modo a liberar o uso de armas de fogo é mais uma evidência da onda reacionária, dessa vez com uma relação evidente com interesses empresariais deletérios da boa convivência social.

OUTRA COISA:

Mais abaixo o leitor encontrará link para a versão final de um texto meu sobre contos de Ivan Turguêniev (a saga de TchertopkhánovRelíquia viva e Pancadas!). Como não poderia deixar de ser, essa versão final, que integra a PARTE III, substitui todas as anteriores.

Ivan Turguêniev apura o ouvido.

LEGADOS DA “CRISE” — 1 DE 2

Demolição incompleta e alternativa reacionária

Carlos Novaes, 21 de outubro de 2015

[Com atualização no final, Fica o Registro, em 22 de outubro de 2015)

I. A “crise” engaiolou o governo

A inércia com que a sociedade brasileira se submeteu ao alarido da mídia deu aos políticos profissionais, na forma da “crise” política, o tempo necessário para que eles dissipassem as energias transformadoras geradas na primeira instância do poder Judiciário pela operação Lava Jato, que, atuando isolada, sem força política organizada em seu favor, acabou por ser contida — e eles o fizeram com os menores danos para o sistema de mando que infelicita essa mesma sociedade: será bastante que entreguem algumas cabeças, como acaba de ficar claro nessa historinha de que Fernando Baiano “se fazia passar” por operador do p-MDB, mas jamais o teria sido, tendo atuado como laranja de um diretor da Petrobras que roubava para si mesmo. Acredite quem quiser, especialmente quando essa revelação, tão novidadeira quanto tardia e conveniente, veio acompanhada de mais uma prisão decretada contra Marcelo Odebrecht, vaca premiada com tanta culpa no cartório que acabou útil como vistoso boi de piranha.

Ao lograrem nesse intervalo, sob a fumaça e o estardalhaço da “crise”, travestir de crise de governo uma crise de representação, isto é, ao transferirem para o poder Executivo (às voltas com uma crise econômica real) a crise de legitimação do poder Legislativo (nascida da indiferença para com o eleitor e da corrupção da coisa pública oriundas da reeleição infinita), os políticos profissionais deram sobrevida artificial a uma ordem que, embora condenada, só está de pé porque o executor da sentença ainda não se reconheceu no poder de aplicá-la: a sociedade brasileira ainda não entendeu que precisa negar o voto a todos os que lá estão ou lá já estiveram, pois é a rotina que os torna os operadores da corrupção: os elos políticos da corrupção são, sempre, deputados e senadores, dos quais depende a tramitação congressual da matéria governativa, engenhoca que já deveria ter posto por terra o mito, conveniente às traficâncias, de que nosso presidencialismo é imperial (mito este muito incensado pelos parlamentaristas doutrinários, e que se presta a que sempre se ponha a culpa na figura do presidente – simplismo que se encaixa na preguiça do eleitor, rotineiramente inclinado a culpar quem é mais visível). Ora, na verdade, é bem ao contrário, como essa “crise” mostrou à farta: Dilma só conseguiu se reequilibrar depois que cedeu tudo ao p-MDB e, através dele, para os seus satélites congressuais.

Esse estado de coisas esquisito se amarra a um outro mito: o de que para governar o presidente depende de uma maioria estável, quando não pétrea, no legislativo (exigência que, por si só, já desmente em parte o mito anterior, da presidência imperial que tudo pode…). Política é fluxo, negociação, conversa, gestão de incertezas; a exigência de maioria estável é fruto da abolição da política em troca da previsibilidade das rotinas reificadas nos esquemas de poder e dinheiro. Como as rotinas dos esquemas de corrupção engendrados no Legislativo são conduzidas por profissionais que estão de costas para o eleitor que eles deveriam representar, na prática deles já não há política, mas negócios. Como se aceita como “natural” o mito da necessidade da maioria estável, fica a parecer igualmente natural que a uma maioria estável deva corresponder com não menor naturalidade o caráter estável dos cargos de Ministro e seus nomeados de confiança respectivos. É essa pirueta que joga para dentro do poder Executivo os políticos eleitos para o poder Legislativo, com o resultado nefasto de que, ao se transfigurarem em gestores aqueles que foram eleitos como representantes, a sociedade se vê duplamente afrontada: não terá o representante comprometido com o que mentirosamente defendeu na campanha, e passa a ter um gestor das traficâncias que desde a campanha mentirosa eram urdidas, e por isso mesmo a financiaram. Para dar um basta, leitor, temos de parar de reelegê-los! Só então teremos representantes sempre novos, que, proibidos de se deslocarem para postos no Executivo, serão levados a apoiar, ou não, essa ou aquela política, medida, iniciativa do presidente, dinâmica da qual resultarão maiorias eventuais, com derrotas e vitórias do Executivo, como deveria, isso sim, ser natural. (Obama está em minoria há tempos, tanto na Câmara como no Senado americanos).

A exigência descabida dessa tal maioria estável facilitou o alarido em torno do impeachment de Dilma, contra quem ainda não há a mínima evidência na Lava Jato, alarido que foi a reunião artificial contra este governo de três circunstâncias: primeiro, o inconformismo dos tucanos de terem perdido por poucos votos uma eleição presidencial (mas basta um voto para definir o vencedor, oras!) — tanto que exigiram do TSE uma investigação sobre uma suposta fraude eleitoral, hipótese que foi desmentida categoricamente; segundo, a descoberta de um esquema de corrupção “nunca antes visto neste país” (ooohhh, que surpresa!), envolvendo empreiteiras cujos lucros irrigaram todas as campanhas eleitorais de 2014 (proporcionais e majoritárias, ainda que Aécio e seus tucanos insistam que o dinheiro recebido por eles tinha o carimbo de “não proveniente de lucros em contratos fraudulentos”);  e, terceiro, uma crise econômica que decorre, sobretudo, das inconsistências fundamentais do nosso velho “modelo” de “desenvolvimento”, no qual PSDB e PT são parceiros, as quais impedem a consolidação e o incremento entre nós do que é básico a qualquer sociedade de mercado bem assentada: uma classe média ampla, ainda que matizada em estratos, sem pobreza e, muito menos, fome.

Nossa pequena classe média não se espraia de forma sustentável de modo a engolir a pobreza porque no modelo partilhado pelo PT e pelo PSDB (e ao qual Marina Silva aderiu com suas propostas reacionárias e conservadoras na campanha de 2014) os ricos não podem perder e os pobres só ganham algum quando todo mundo estiver ganhando mais; quer dizer, em tempos de vacas magras, a classe média paga as migalhas que se destinam aos pobres, cujo sofrimento nunca tem fim. Na saga escalonada das agruras da nossa classe média tipo sanfona, nos tempos ruins, num primeiro momento, se deixa degradarem, onde ela mora, os serviços e a qualidade da vida urbana (desde sempre péssimos nas periferias que alojam os pobres), no passo seguinte da queda, estratos da classe média voltam à pobreza, e se as coisas vão realmente muito mal, que passem à pobreza estratos que nunca lá estiveram e cortem-se as migalhas aos pobres, desde que os ricos fiquem onde sempre estiveram. Nesse esquema perverso, se joga a classe média contra os pobres, pois, em razão da não menos perversa dinâmica das suas aspirações, ela almeja alcançar o consumo dos ricos e está sempre pronta a ver um vagabundo em quem recebe o bolsa-família, mas se recusa a ver um vagabundo no empreiteiro corrupto (ainda que preso), ou no banqueiro manipulador — esse conjunto recebe o nome legitimador de democracia de mercado, como se não fosse o Estado que estivesse a arbitrar quem sofre e quem é poupado nesse suposto jogo de mercado.

Foi justamente nessa arbitragem que as incompetências administrativa e política de Dilma tiveram papel decisivo na conjuntura complexa que estamos vivendo, pois não apenas ela não soube administrar os recursos públicos dentro das margens estreitas em que atua qualquer presidente docemente submetido ao pacto do Real em erosão, como também não foi capaz de exercer o mando e fazer política de modo a evitar a concatenação simbólica contra si daquelas três circunstâncias vistas no parágrafo mais acima. Em outras palavras, as responsabilidades de Dilma na “crise” política e na crise econômica decorrem mais do que falta a ela como quadro político, e menos do que ela tenha feito como gestor público, seja na política, na economia ou na administração dos bens e dinheiros públicos.

Por isso mesmo, ao virar, com base na sua fibra, e quase que só nela, a página de um impeachment injusto, Dilma herda, com toda justiça, um governo engaiolado, pois, assim como numa demolição mal-sucedida, caiu merecidamente sobre ela, na forma de elementos de reconstrução e entulho, um governo agora protagonizado justamente por um entulho que, reaproveitado pelo PT e pelo PSDB, vem de longe: o p-MDB. Esse entulho autoritário reciclado, tão arenoso que até uma figura como Eduardo Cunha chega a protagonizar, irá mostrar toda a sua capacidade poluente nos próximos anos — e o que ainda está em aberto no curso do mandato não é, portanto, se Dilma fica ou não na presidência (sem fato novo na Lava Jato, ela vai ficar, pois a opção de melar a eleição pelo TSE é uma invencionice a essa altura implausível), o que está em aberto é a extensão dos danos que advirão para o país de um domínio tão vasto e tão direto do p-MDB sobre unidades ordenadoras de despesas, e o quanto Dilma amealhará de recursos para, mais adiante, remover da esplanada pelo menos parte desse entulho (o que, se viesse a acontecer, daria ocasião a nova “crise”).

Não há razões para esperanças nessa linha, entretanto, seja pelo histórico da presidente, seja, sobretudo, porque ela, como já em março foi dito aqui , está numa solidão comparável à de Vargas, solidão que agora vem ficando clara aos olhos de todos, mas não tem sido bem compreendida: ao contrário do que muitos pensam, a solidão não levou Dilma a entregar para o Lula a condução política das suas escolhas, faltando entregar apenas a rapadura da economia. Não. Ao desautorizar Rui Falcão, dizendo que Levy fica, e ao espinafrar Cunha no momento em que Lula e Aécio estão empenhados em poupá-lo, a presidente mostrou ter entendido que Lula age não para protegê-la e ao seu mandato, mas segundo seus próprios interesses, os quais contemplam, inclusive, até um sacrifício dela, como também foi dito no artigo de março mencionado linhas atrás. O empenho de Lula por Cunha, combinado com suas críticas demagógicas ao ajuste fiscal, tem a ver com a sucessão presidencial (agora ou em 2018), não com a sustentação da presidente. De modo que a movimentação política de Dilma nestes últimos dias está a indicar que ela leu bem a conjuntura em que se deu a virada de página da “crise”, viu que Cunha está liquidado e que sua preservação na estufa do Legislativo só interessa a quem tem o rabo preso ou a quem quer melar o jogo, e trata de aproveitar o fôlego ganho para se distanciar publica e corajosamente dos esquemas de auto-preservação dos políticos profissionais e concentrar-se em obter no Congresso os resultados da reforma ministerial para poder, enfim, enfrentar a crise econômica, que vai piorar antes de começar a melhorar.

Como o velho não morreu e o novo sequer se apresentou, armou-se um estado de coisas em que os reacionários se fortaleceram, e se transformaram em conservadores todos aqueles que, exatamente porque organizados para fugir da desigualdade (não para enfrentá-la, sendo essa a marca de nascença dos nossos movimentos organizados pedinchões), agora se debruçam a defender o quinhão obtido dentro da ordem, fazendo-se desorientados, não mais sabendo quem é amigo e quem é inimigo, tornando-se incapazes de levantar a cabeça da presa fugidia para olhar adiante, o que permitiria a busca de uma alternativa transformadora — é nessa balbúrdia que se arma a eleição presidencial de 2018, que será polarizada por reacionários e conservadores na disputa pelo apoio dos assim chamados movimentos da sociedade civil, agora numa defensiva conservadora sem projeto próprio — foi a isso que chegamos em decorrência das  escolhas da burocracia oligarquizada do lulopetismo, que enfraqueceram a própria ideia de justiça social.

II. A “crise” chocou um mutante

Embora a desmoralização do PT tenha ficado clara, ainda não sabemos a extensão dos danos em Lula, até porque ele ainda não pode ser visto como totalmente livre da Lava Jato contida, mas não detida. Se tudo se passar como parece mais plausível, porém, Lula, desprovido do “lulismo“, será candidato na próxima eleição presidencial, nem que seja para defender seu próprio lugar na história. Mesmo com a presença dele na disputa, existirão tantos órfãos do PT a consolar que não haverá candidatura presidencial sem penduricalhos “progressistas” em 2018, ao contrário do que pensa quem imagina ter emergido das ruas do Brasil uma direita de manual que sustentaria uma competitiva candidatura presidencial puro sangue, embalada por uma luta de classes rediviva.

Tanto serão tempos de maquiagem, não de autenticidade, que já estamos diante dessa criatura que tem rabo de jacaré, pele de jacaré, boca de jacaré… mas parece a Carmem Miranda — é o Alckmin, depois de descobrir que não dá para ser presidente do Brasil com essa imagem de quem traz um cassetete sob o paletó. Assim como a pequena notável foi aos EUA e voltou americanizada, o pequeno reacionário foi ao Pontal e voltou reformista, embora ainda exiba seu característico modo raivoso de falar entre dentes, como se estivesse rasgando celofane. O personagem mostra toda a sua esperteza ao começar por agarrar para si, na corrente dos movimentos organizados, o elo do MST: trata-se do elo mais fraco dela, seja porque é o de menor custo (afinal, a imensa maioria da população é urbana e, por isso mesmo, não vê como custo para si uma desejável repartição de terras que será feita alhures), seja porque é dos elos mais afeitos a negócios, característica decorrente da longevidade de seus oligarcas. Como já se disse aqui, o “fica Dilma” favorece Alckmin, cuja candidatura em 2018 independe do que se passar com o, e no, PSDB. Na verdade, faz tempo que a única candidatura presidencial competitiva que se pode dar como certa é a dele, que tem plano para tudo e está muito bem situado com as forças de mercado, que adorariam ter alguém como ele para garantir um Estado favorável aos bons negócios. O novo figurino reformista vai cair muito bem no PSB, especialmente se contarem, em adesão ou fusão, com o PPS, cujo presidente, Roberto Freire, como todo ex-comunista que se preze, tem resposta prá tudo, até para uma aliança com Alckmin.

Alckmin pode se dar ao luxo de cortejar setores da chamada esquerda porque já deu provas suficientes de fidelidade, alinhamento e reiteração do que há de autoritário no cotidiano da cultura política brasileira, especialmente pelo manejo do braço armado dela: sua disposição de acolher como “erros” os modos brutais de setores da Polícia Militar sob seu comando não deixa dúvidas sobre seu compromisso com o “erro” para o qual seus soldados são treinados, embora ele sempre diga o contrário, claro. Aliás, a junção dessa fidelidade com as crescentes ambições políticas da cúpula da PM por todo o Brasil fará do atual governador de São Paulo o candidato natural da corporação em 2018, alinhamento que só pode ser visto como uma ameaça à democracia, pois, queiram ou não, políticos oriundos da corporação promovem a soma nefasta de memórias reificadas, redobrando suas forças: assim como os evangélicos com suas Bíblias e hierarquias pastorais, esses soldados carregam as rotinas de mando dos códigos da conduta hierárquica reificada para dentro das não menos reificadas rotinas de poder e dinheiro dos esquemas do parlamento. Enfim, a prosperar essa aliança de Alckmin com o MST, haveremos de ver, sob as bênçãos de Francisco e para inveja de certos utopistas, a passear nas terras de Piratininga, protegidos pela PM, a Opus Dei de mãos dadas com a Teologia da Libertação, estando a faltar apenas a benção evangélica — nada que o amor ao próximo, negócio, não possa resolver.

III. As “utopias” da “crise”

Se ninguém disse ainda, vale dizer que o grau de desorientação de uma sociedade se pode medir pelas utopias que seus intérpretes geram. A situação da sociedade brasileira é tão lamentável que aqui as utopias tem aparecido não como desenho de um futuro imaginado a ser alcançado, mas como reação a um passado de que se abriu mão de conhecer para superar. Em outras palavras, temos chamado de utopia não as aspirações a perseguir depois de vencida a crise econômica que nos maltrata, mas os subterfúgios pelos quais se pretende evitar o enfrentamento das causas da “crise” política que nos infelicita. De fato, primeiro foi o ex-presidente Fernando Henrique, que nos apresentou, numa entrevista à Folha de S.Paulo, a “utopia” de uma renúncia programada de Dilma, pela qual a presidente deixaria o poder no exato momento em que tivesse conseguido vencer a crise…(quanta imaginação e argúcia!). Tempos depois, foi a vez do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, que nos apresentou sua utopia Paraguaçu: a renúncia coletiva e simultânea de Dilma, Temer e Cunha… (uma solucionática digna das três irmãs Cajazeiras, que só fariam tal gesto em favor do seu bem-amado). Quando a gente podia pensar já ter visto tudo, eis que o economista André Lara Rezende, com a autoridade de quem já geriu a coisa pública “no limite da irresponsabilidade”, nos propõe a utopia de partir do zero em matéria de corrupção, ou seja, quem roubou, roubou, mas a partir de hoje fica, mesmo, proibido roubar (Ah! bom) — voltarei a este tema.

22/10/2015 — Fica o Registro:

– A Folha de S. Paulo (UOL) de hoje traz um artigo que vale o dissabor de ler, pois ele dá exemplo cabal (inclusive com gráfico mistificador) do simplismo arrogante que tem marcado muitas “análises” preguiçosas e inerciais da “crise”, tudo piorado pelo fato de o autor declarar que almeja um governo Temer com Serra de ministro da fazenda (quanta clarevidência…). Apoiando-se na desinformação que tornou Dilma um alvo fácil de atingir e, portanto, garante aplauso farto a qualquer um que a espinafre, o autor nos diz, com ares de quem anuncia o que deveria ser óbvio (que sumidade!), que a crise econômica está a piorar por culpa da “dupla” de vilões que só o simplismo oportunista torna plausível juntar: Dilma e Cunha!. É como se o Congresso não estivesse há meses empenhado em travar a ação governamental; é como se os tucanos não estivessem há meses negando a Dilma instrumentos de que eles próprios teriam de lançar mão para enfrentar a crise. O autor desconsidera até mesmo uma diferença que qualquer pessoa honesta teria de levar em conta: enquanto NADA se provou contra Dilma até agora, Cunha já tem contra si VÁRIAS evidências acachapantes apuradas por instituições internacionais confiáveis. Em suma, à sua compreensão simplória da “crise” o autor acoplou uma solução não menos simplória: basta remover Dilma e Cunha e o sol voltará a brilhar — sendo a Constituição só um detalhe inconveniente. Na verdade, o simplismo do autor expressou o cansaço do homem comum diante da “crise”, pois para ele, que quase nada compreende, ao fim e ao cabo, o melhor é tirar da sala os espantalhos convenientemente construídos pela mídia no curso da “crise” — o resto a gente vê depois… Tudo se passa como se a complexidade da situação fosse apenas um mal-entendido…

VIREMOS A PÁGINA

Carlos Novaes, 15 de outubro de 2015

Como a reforma ministerial teve seu alcance mascarado pela voraz ação hematófaga dos carrapatos congressuais (uma espécie de sprinte final antes que desapareçam as oportunidades abertas pela “crise” e eles se vejam de volta à modorra da sua própria rotina), a mídia ficou inundada de “análises” sobre mais um suposto malogro de Dilma, ainda que alguns articulistas tenham feito a ressalva de que fora Lula o responsável pela reforma “desastrada”. Tendo se afeiçoado à “crise” política que ajudou a inventar, esse pessoal não entendeu algo muito simples de explicar: em situações complexas como a que estamos vivendo, na qual a separação entre o mundo dos políticos e o nosso tornou-se um espetáculo diário, uma dança das cadeiras como a que foi realizada, feita só entre eles e desinformada de qualquer projeto, leva algum tempo para mostrar resultados, sobretudo porque trata-se de uma freada de arrumação com repercussão forte dentro do, agora, principal partido no governo, o p-MDB.

Em outras palavras, somou-se à complicada dinâmica de seus numerosos e nada estáveis grupos internos o fato de o p-MDB ter assumido o governo, o que determina uma reconfiguração daquela mesma dinâmica interna. Sendo ainda mais claro, embora o normal seja os partidos pactuarem previamente seus grupos e interesses internos, definindo a força de cada um e, só então, partirem para a conquista e o exercício do governo, a natureza do p-MDB impõe o contrário: são os nacos de poder obtidos que irão reconfigurar grupos e interesses internos, nacos cujos recursos, além de permitirem alcançar poder e dinheiro para a luta no cenário da política geral, também serão empregados reflexivamente na própria luta interna do partido, o que irá definir novos alinhamentos e obediências. Daí a ação desesperada dos carrapatos não contemplados diretamente pela reforma ministerial: com suas ferroadas eles buscaram se fazer de importantes, como se tivessem condições de obrigar o rabo a voltar a abanar o cachorro (e a mídia caiu!). Mas é só uma questão de tempo para que esse ímpeto seja contido pelo exercício do mando por parte daqueles que foram contemplados com ministérios.

Dessa perspectiva, tornaram-se ainda mais tolas as “análises” da reforma que insistiram num erro que repetem há meses: uma suposta inabilidade de Dilma na relação com seu viscoso vice. Há muito está claro que Temer sonha com uma versão de impeachment que o leve à presidência, e ele atua nessa direção reunindo aos sinais em que se oferece como alternativa a encenação de amuos por estar sendo alijado do processo decisório, alijamento esse que só se deu (quando se deu) precisamente em razão de suas muito mal disfarçadas ambições (ora bolas!). Afinal, como Dilma iria distingui-lo como parceiro e interlocutor se ele veio se oferecendo como alternativa a ela?! Em outras palavras, faz tempo que está claro o entendimento tácito entre os dois — e que a mídia não pescou (entre outras coisas porque, repito, está cega pelo brilho falso da crise política que teima em ver) –, isto é, se Temer apresentou publicamente suas ambições presidenciais com as mesuras típicas do p-emedebismo e, ao mesmo tempo, se ele se mostrou “distante” da condução política enquanto tal, também é verdade que ele jamais rompeu o frágil equilíbrio da situação dissentindo do governo (veja-se o “secreto” empenho dele em manter os “seus” ministros nos cargos); em contrapartida, Dilma recebeu em silêncio as movimentações desleais do vice, fez o jogo da “distância-alijamento” dele, fingiu acreditar em suas declarações de lealdade, sempre sem agir contra o poder efetivo de Temer dentro do governo, mantendo na esplanada os ministros indicados por ele.

Em suma, da perspectiva dos seus interesses respectivos, ambos jogaram muito bem até aqui, pois nem Dilma obrigou o vice a uma escolha (pressão que poderia resultar em rompimento), nem ele queimou as pontes que lhe permitirão, no caso de ela não cair, manter com dignidade encenada a pose de vice. É como se Dilma, avaliando bem a própria fragilidade, tivesse dito a Temer: “movimente-se, mas fiquemos juntos nessa tensão, pois se é do jogo que o vice aspire a presidência, também é do jogo que ele seja parte do governo cuja presidência almeja — o tempo dirá quem de nós se sairá melhor”. As últimas movimentações de Temer em torno da condução política que simulara ter abandonado, ajudando a planejar o voto aos vetos no Congresso, mostram que ele começou a avaliar que é hora de recuar, pois Dilma vai ficando… Hoje, diante das especulações em torno da sua ida para o Ministério da Justiça, Temer negou-as com uma declaração muito reveladora: “vou ficar vice”.

Se o leitor entende que as coisas vêm se passando mais ou menos como sumariei acima, fica mais fácil compreender a balbúrdia mais recente como um sinal não do agravamento da “crise”, mas do seu enfraquecimento, mesmo ali onde parece que o impeachment ficou mais plausível porque Cunha teve suas prerrogativas confirmadas pelo STF. Na verdade, o impeachment parece mais plausível para quem vê o açodamento do PSDB como sinal de força, e não do que ele realmente é, uma evidência da fraqueza dos tucanos, que jamais estiveram na ofensiva nessa “crise”. Como a “crise” nasceu e se desenvolveu em razão dos rearranjos impostos ao mando dos políticos profissionais pela Lava Jato (que vem perdendo força) — e não por causa da crise econômica (que segue “muito bem, obrigado”), nem pela “traição” de uma Dilma que teria se complicado por “teimar em não reconhecer os seus erros” (mea culpa que ela não fará) –, nossa “crise” vai encontrando um caminho de estabilização nesse rearranjo providenciado com a reforma ministerial precisamente porque a Lava Jato parou de produzir novidades significativas. A variável que parece ainda não controlada é Eduardo Cunha, que veio sendo o fiel da balança não só do impeachment em si, mas também entre as duas versões dele. Detalhemos isso.

Enquanto o impedimento de Dilma interessa ao PSDB congressual e a Temer, o impedimento duplo da chapa Dilma-Temer interessa ao PSDB congressual e a Eduardo Cunha, sendo certo que a luta interna do p-MDB teria desfechos distintos em cada uma dessas duas versões. Em uma como na outra o PSDB julga que alcançaria o que mais quer, remover Dilma e o PT do poder, mas antes precisa combinar com algum p-MDB. Pela primeira modalidade, Temer assumiria e o PSDB negociaria sua participação no governo novo; pela segunda, Cunha assumiria a presidência da República (!) e o PSDB disputaria com Aécio a nova eleição presidencial, a ser convocada em 90 dias. A segunda versão é a preferida de Cunha, pois ele presidiria não apenas o governo, mas, sobretudo, a eleição presidencial, posição na qual teria liberdade, inclusive, para jogar o peso da presidência em favor de Lula, a começar por não remover os petistas dos cargos de confiança na máquina governamental, ainda mais decisiva numa eleição realizada de afogadilho. Em outras palavras, como as duas modalidades para o impedimento de Dilma jamais se somaram, tendo sempre estado a competir entre si como variáveis, que são, da disputa interna no p-MDB, e como a sagaz reforma ministerial rearranjou os grupos internos do partido sem fortalecer desproporcionalmente qualquer de suas alas, parece claro que a motivação para o impeachment na versão Temer não tem como contar com o apoio de Cunha, que a vê como contra si. É também isso que vai fortalecendo Dilma e, claro, fazendo Temer recuar. Nada disso foi entendido pela mídia convencional que, não obstante esteja sempre pronta a criticar “teorias conspiratórias”, está nestes dias encharcada de especulações (e invenções!) sobre um acordo Dilma-Cunha — como se um tal acordo fosse necessário!

Se a versão Temer de impeachment ficou mais improvável, a versão Cunha precisaria de uma disposição muito forte do TSE para melar o jogo. Como já foi dito aqui, Cunha contava com Gilmar Mendes. Mas o agravamento da situação do ogre do Rio na Lava Jato restringiu muito sua capacidade de ação, por maiores que sejam as bazófias dele e, assim, é improvável que Cunha possa se manter no cargo até que conheçamos o resultado da reabertura das contas da campanha Dilma-Temer. Mendes, por seu turno, vai aprofundando o mergulho no pântano da política profissional, tendo mandando às favas qualquer respeito à própria condição de ministro da Côrte suprema do país: hoje, escancarando preferências, ao comentar decisões de seus próprios pares, ele chegou ao cúmulo de declarar que “ninguém fica no cargo à força de liminares”. Um dos muitos ganhos dessa “crise” é o de proporcionar como nunca antes neste país uma desmoralização tão geométrica do nosso sistema político profissional e seus satélites (para quem quiser ver).

Enquanto isso, de um lado do bloco de poder, Lula busca se fortalecer como alternativa a “tudo isso que está aí”, mesmo que a Lava Jato ainda pareça estar a lhe farejar as pegadas: articula sobretudo para preservar sua aliança com o p-MDB (o que parece aos ingênuos empenho por Dilma) e, assim, busca conter o ímpeto de parte da bancada petista contra Cunha (estou persuadido de que um impeachment na versão Cunha não desesperaria o ex-metalúrgico) e, de outro lado, o PSDB sofre uma desmoralização atrás da outra (quando vai parar?!): FHC e Serra mudos diante de Cunha, Aécio tergiversando, e esse pobre diabo do Carlos Sampaio a correr feito barata tonta, proferindo uma asneira após outra — a última foi propor ao PSOL uma troca de assinaturas nos respectivos requerimentos de cassação, soltando ao vento a lona do circo e permitindo que toda a gente veja o centro do picadeiro dessa gincana obscena que muitos tomam por crise política. Ou seja, PT e PSDB unidos para preservar Cunha, cada um com seus próprios cálculos! Essa é a polarização política na qual há quem veja a âncora da luta de classes

Só nos resta torcer para que os estertores da “crise” superada cessem e, então, possamos passar a fazer a crítica da nova mixórdia que ela produziu: um governo do p-MDB com Dilma Roussef na presidência, tendo por encosto um PT aniquilado, a lidar com uma crise econômica que, se não é o apocalipse (como não é), irá por certo redefinir, para pior, a desigualdade brasileira, até porque ela, a crise real, ficou ao sabor do mercado durante toda essa “crise” com a qual não teve conexão precisamente porque o mundo dos políticos profissionais é um mundo à parte, separado daquele em que nós tentamos nos salvar. Cadê a rua coxinha?

SÃO OS CARRAPATOS, LEITOR!

Carlos Novaes, 08 de outubro de 2015

Embora jamais tenha apoiado e, muito menos, defendido a governança Dilma, tendo mesmo feito, desde antes da sua investidura, a crítica da escolha e do lançamento do seu nome para a presidência — entre outras coisas porque sempre a vi desprovida de recursos, meios e talentos para enfrentar crises que me pareciam inevitáveis em razão do arranjo entre duas máquinas ávidas e de poucos escrúpulos como são o PT e o p-MDB –, mesmo tendo sempre estado, como estou, na oposição, eu dizia, não posso deixar de reconhecer que por grandes que tenham sido os erros da presidente (e o foram), eles formam uma pequena parte da explicação para essa junção adversa de “crise” política com crise econômica que estamos vivendo, afinal, enquanto a crise econômica resulta da erosão do pacto do Real e vai requerer mais do que um ajuste aecista ou dilmista para ser superada; a “crise” política é uma decorrência da reunião da Lava Jato com as exigências de rearranjo político que a erosão do Real impõe. De modo que boa parte das dificuldades que as pessoas de bem — isto é, aquelas que ainda preferem ajuizar antes de julgar — encontram para entender afinal o que se passa vêm da quase unanimidade da mídia em fazer de Dilma bode expiatório. (O que se está a dizer aqui tem larga tangência com o que diz, em lúcido e irônico artigo na Folha de S. Paulo de hoje, o professor Rogério Cezar De Cerqueira Leite).

Os exemplos são vários: os mesmos analistas que apontaram a proposta da volta da CPMF como um tiro de Dilma no próprio pé fazem agora o alarido triunfal em torno do que supõem ter sido mais um “erro político monumental” da presidente: o gesto de arguir a suspeição de Augusto Nardes, o mais do que suspeito relator do processo que “examinou” as contas do governo passado no TCU. No caso da CPMF, o que eles recomendariam que ela fizesse, se é certo que qualquer governo terá de recorrer a algum aumento da carga tributária para enfrentar a crise fiscal? Que o homem da rua esbraveje contra o “aumento dos impostos” é natural, mas que gente com espaço de mídia para formar opinião se limite a insuflar a ira desinformada dos passantes é simplesmente indecente. No caso de Nardes, por que o escândalo ao ver a presidente a enfrentá-lo no campo da luta política aberta, se escandalosa é a atuação do próprio Nardes que, atirando longe a “liturgia do cargo”, enfeitou-se com uma tão repentina quanto canhestra ira cívica e fez-se apregoador da má governança de Dilma,  depois de calado durante anos ante muitos outros truques contábeis e, talvez, coisa pior?

Se a presidente tenta governar e agir como presidente, acusam-na de voluntarismo, se ouve aliados e aceita conselhos, dizem-na incapaz de tomar as próprias decisões; se tenta manter os mais altos cargos da administração pública a salvo da cobiça dos políticos profissionais, apontam sua inabilidade no trato com o Congresso, mas se negocia com o Congresso nos termos baixos em que ele próprio exige, é ridicularizada como um fraca que cedeu à fisiologia; se busca se apartar e dar combate às ambições de figuras nocivas como Eduardo Cunha, sua tática é  apontada como inábil, se transpõe questões menores e chama o mesmo Cunha para entendimentos institucionais, grita-se um suposto oportunismo seu. Depois de martelarem que a “governabilidade” requer que Dilma alcance uma maioria pétrea (o que, além de bobagem, é anti-democrático – v. Madison, no capítulo X de O Federalista), censuram-na por buscar essa quimera. Qual Dilma querem, afinal!?! Na verdade, desde o começo da “crise” a situação de Dilma não muda: apanha porque está sem chapéu e, se põe o chapéu, apanha porque está com ele. No formato preguiçoso e fácil que esse pessoal deu ao comentário e à crítica da complexa situação política brasileira, tudo é culpa da presidente e, assim, nada do que ela faça poderá dar certo, o que, por sua vez, impõe a conclusão típica das manadas: Dilma tem de sair para que o sol volte a brilhar!

Ora, como venho dizendo aqui desde o primeiro artigo sobre essa conjuntura adversa, não é preciso ser um gênio para perceber que a saída de Dilma é uma falsa saída para a nossa situação. Por mais limitada que seja a nossa presidente, ruim com ela, pior sem ela, até porque não há sequer suspeita razoável que nos leve a supor que ela não mereça hoje a qualificação que sempre mereceu: Dilma é uma pessoa honrada. Se você, leitor, acha isso pouco, me aponte outro político relevante na linha de sucessão que possa sequer se aproximar da reputação de Dilma nesse quesito. Se você, leitor, acha que eu estou a me abandonar ao moralismo, me diga onde mais, em meio à insânia e às espertezas correntes, agarrar um fio de razão para defender essa ordem Constitucional que, não obstante defeituosa, nos ampara contra alternativas que só poderiam trazer mais sofrimento àqueles que não podem sequer sonhar com um naco de mando nesse país desigual.

É nesse ambiente repelente — em que a condição de mulher da presidente joga um papel que ainda terá de ser avaliado, pois o desrespeito escarnecedor de que ela é alvo de há muito deixou para trás a fronteira do mau gosto e está além da boçalidade pura e simples, o que mostra como o despreparo para avaliar uma situação complexa atiça à tona ressentimentos profundos — é nesse ambiente, eu dizia, em que a esperteza de alguns alimenta, e se vale, da insânia de muitos, que se perde aspectos essenciais da dinâmica em curso:

– Eduardo Cunha não é um aliado do impeachment de Dilma, como pensam 11 de cada 10 analistas da mídia convencional, junto com os tucanos e os coxinhas que o vinham celebrando como companheiro. Trouxas! A Cunha não interessa Temer na presidência, pois isso selaria o fim das suas ambições no p-MDB (e, até, fora dele), um partido que só se mantém se não houver alguém com poder interno incontrastável, o que já não seria o caso se Temer virasse presidente da República. É por isso que Cunha protela e arquiva pedidos de impedimento de Dilma, num jogo muito calculado, que a operação Lava Jato está a dificultar.

– Como Cunha joga afinado com Gilmar Mendes  — como deveria ter ficado claro a qualquer um que tenha prestado atenção na disputa em torno do financiamento empresarial de campanhas eleitorais, quando Cunha recorreu a Mendes e este deu início a uma campanha contra a própria decisão do Supremo — o mesmo Cunha aguarda, agora, os lances do mesmo Gilmar Mendes em torno de mais esse ineditismo institucional, dessa vez no TSE: reabrir as contas já aprovadas da campanha de Dilma-Temer em 2014. Sim, leitor, só a solução de um impedimento duplo interessa a Cunha, pois então ele assumiria a presidência da República (!!!), não para desfrutar do novo cargo, mas sim para exercer todo o poder presidencial sobre a eleição presidencial que presidiria. Ele não quer alguns meses na presidência, ele quer decidir os próximos anos de nossas vidas. Olhe-se para a agenda atual da Câmara, que, não obstante a “crise” (na qual eles vêem uma oportunidade, leitor), não pára de produzir iniciativas de retrocesso, e se terá uma ideia do que sairia da interinidade presidencial desse maléfico Pádua*.

– As esperanças de Aécio em conseguir melar as eleições de 2014 estão, portanto, depositadas na dupla Cunha-Mendes, fato que explica porque a bancada tucana não toma qualquer iniciativa contra Cunha, mesmo com as evidências suíças. Como a desmoralização do PSDB já é estratosférica, eles vem dando declarações cuidadosas nos últimos dias, muito embora não parem de insultar Dilma, contra quem nada conseguiram provar até agora.

São essas movimentações menores, mas cheias de potência numa situação delicada como a nossa (além de devidamente ampliadas pela cegueira da mídia ao que realmente importa), que explicam a desenvoltura de atores mais miúdos ainda, pois numa situação em que periquito se farta de milho, até os vermes se assanham: a miudeza pestilenta do Congresso está a ver na situação uma oportunidade para levar mais algum e, assim, descumpre os acordos feitos por seus “líderes”, pressionando por mais fisiologismo. Ou seja, depois de passarmos de um governo com fisiologismo para um fisiologismo que governa, estamos agora a chegar ao desgoverno do fisiologismo.

Resumo da opereta que se promete trágica: quando pareceu que depois de um tempo em que o rabo abanou o cachorro o estrato mais graúdo da ordem que nos infelicita tinha se acertado em torno de uma governança mínima com um governo do p-MDB, tendo o aniquilado PT como coadjuvante, a situação volta a ficar confusa porque os carrapatos profissionais resolveram ferroar o rabo do cachorro!

* – Personagem secundário, esperto e inofensivo, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

A INÉRCIA NAVEGA O BRASIL QUE NELA SE COMPRAZ

Carlos Novaes, 03 de outubro de 2015

Embora ainda haja um ou outro fio desencapado a provocar faíscas, o circuito que concatena os braços político e econômico do establishment foi restaurado, normalização que sequer precisou obedecer à lei conservadora de que “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”; afinal, a máxima de Lampedusa descreve soluções fajutas para crises verdadeiras… — como nossa “crise” política é fajuta ela mesma, não foi necessário mudar nada para que tudo ficasse como vinha sendo, por mais que curtos-circuitos secundários tenham atingido a sociedade, que deles não fez caso porque não quer a trabalheira transformadora que imporia a si mesma se viesse a se fazer acordar com os choques. Por isso mesmo, e até porque está sempre pronta a se satisfazer com um arremedo de ordem que lhe garanta o fetiche do desfrute das miçangas tecnológicas que o mercado oferece, essa sociedade acomodada recebe as soldas com que o p-MDB remenda a velha placa política do seu domínio institucional como se a desordem saída dele se abatesse alhures, e não sobre ela mesma, na forma de corrupção, doença, sucateamento urbano, degradação ambiental, ignorância e violência (seja a violência “ordeira”, seja a “desordeira”, ambas fruto da desordem produzida pelo apego perverso a um tão velho quanto inviável ideal de ordem).

Tudo o que vimos chamando de “crise”, e que a mídia convencional alardeou como crise política, não foi senão o intenso e turbulento azáfama em que, concatenados por música (sem conspiração cabal), o sistema político profissional, a Corte máxima do judiciário (que lhe atende às prerrogativas) e o grande capital se empenharam, usando a crise econômica real como cortina de fumaça, para absorver, e vencer, a energia de mudança desencadeada por um pequeno mas vigoroso dínamo inesperadamente ligado ao circuito principal desde lá da primeira instância do Judiciário: a Lava Jato. Não nos enganemos, a Lava Jato foi, enfim, contida, e não irá até onde poderia ir, por mais positivos que tenham sido os resultados pontuais alcançados. O último malfeitor graúdo a ser ainda neutralizado haverá de ser Eduardo Cunha, não por acaso o fio desencapado que tentou fazer da queima de fusíveis uma oportunidade para ligações heterodoxas na velha placa do p-MDB, fabricada pelos militares em 1965 — os custos foram altos para o país, a “crise” foi muito além do que teria sido necessário para uma reacomodação da ordem do mando profissional em tempos de desmanche do pacto do Real, mas Temer e Renan acabaram conseguindo reconectar os cabos institucionais de um modo ainda mais favorável para si, se entendermos por favorável reunir poder para fazer o dinheiro que, na volta seguinte, gera o prazer que leva ao circuito infinito de mais poder para ainda mais dinheiro.

É dessa ordem atravessada pelo prazer gerado pelos imãs do poder e do dinheiro que os políticos profissionais retiram ânimo para, em meio à “crise” em que se exibem esfalfados, reinterpretar a Constituição ali onde ela coíbe o abuso do poder econômico na política: eles vão tornar barragem o que nela foi erigido como barreira, de modo a poder receber na boca da usina, e sem chave de contenção, a energia firme produzida pelos grandes interesses econômicos. Como já foi dito aqui, o sonho dos políticos profissionais é ganhar eleições sem precisarem pedir ao eleitor nem dinheiro, nem voto. Essa reforma eleitoral que fazem aprovar em meio à “crise” por eles mesmos fabricada os deixa mais próximos do paraíso: removerão a barreira ao dinheiro empresarial* e já reduziram o tempo de campanha, isto é, encurtaram o período em que deveriam se empenhar pela participação do eleitor; além disso, diminuíram o tempo de TV, isto é, como nada têm a propor, atendem aos interesses das emissoras e, ao mesmo tempo, retiram às minorias que tem algo a dizer o pouco tempo de que dispunham. No âmbito da inércia que a caracteriza, a sociedade premia com júbilo néscio esse cinismo dos profissionais da política, interpretando como um ganho o tempo em que não vai precisar ouvi-los nas ruas, no rádio e na TV, insciente de que ao aprovarem essas barbaridades eles estavam exatamente a contar com essa alienação dela, pois tudo o que almejam é conseguir mandar sem precisar prestar contas — passa-se na política o mesmo que acontece nas delegacias de polícia de todo o país: sem reputação a nutrir ou defender (cuidam apenas de não serem apanhados em malfeitos ou prevaricação), os agentes do poder incumbente (no caso, políticos e policiais) fazem questão de tratar mal ao contribuinte, a quem não escondem nem descaso, nem cinismo, de modo a diminuir a demanda, pois a inércia do status quo lhes é favorável e o salário sempre pinga no final do mês.

Embora muitos tenham previsto o apocalipse, a crise econômica não gerou colapso algum e, agora, resta conte-la num outro patamar de desigualdade (sempre ela), o que será feito pelo governo do p-MDB, com ou sem Dilma, embora o mais provável seja que ela fique, pois esse respeito acertado à Constituição é útil à farsa de que há, na ordem política profissional, algo de sólido para além dos interesses do poder e do dinheiro. A única vantagem de tirar Dilma seria avançar sobre os cargos que o PT ainda mantém no governo, mas ao preço de atiçar as incertezas da rua com o lulopetismo, gerando uma fissura no “bloco de poder” que não interessa ao braço econômico do establishment — afinal, que grande mudança adviria da troca do PT pelo PSDB como ator coadjuvante num governo do p-MDB se, ainda por cima, a troca daria ao p-emedebista Temer um poder de arbitragem que certamente geraria novos curtos-circuitos na placa-mãe de todos os vícios? Nem em pesadelos eu poderia imaginar cenário mais favorável, e terrível, para escancarar que PT e PSDB são a mesma coisa!

* – Sou favorável à participação das empresas no financiamento eleitoral, desde que exclusivo (para um só partido) e obedecendo a um teto nominal igual ao da contribuição individual, sem relação com o faturamento delas. Tudo ao contrário do que eles vêm tentando aprovar.

Fica o Registro:

– O silêncio de FHC diante da situação insustentável de Eduardo Cunha, depois de ter se mostrado tão loquaz quando o alvo foi Dilma, diz mais do que se ele tivesse aberto a boca.

– E ainda há quem insista em ver Dilma como a principal responsável pela “crise”…

– Mesmo o menos trouxa dos coxinhas que foram à ruas vai precisar de muito tempo para entender a embrulhada em que se deixou enredar. Talvez só depois do horror de descobrir que não existe, há mais de vinte anos, o PT “stalinista”, “comunista”, “socialista”, “pró-Cuba” que, inspirado no Jabor, ele supõe combater: desde o final dos anos 1980 poder e dinheiro deixaram de ser motores para uma causa, tendo se tornado a própria causa da burocracia oligarquizada do lulopetismo (coisa que o Hélio Bicudo acabou de descobrir e, então, se aliou aos tucanos!…). Como tem essa mesma causa, o PSDB vê no PT um rival, pois na burocracia estatal não há lugar para todo mundo; o que não deixa de ser um spotlight adicional a iluminar as contradições da nossa desigualdade: sem um modelo sustentável de desenvolvimento produtor de riqueza e renda partilháveis, o estado ficou pequeno para atender aos grupos que lograram se organizar justamente para fugir das agruras da desigualdade pendurando-se nele. Nossa chamada sociedade civil organizada é, na verdade, uma sociedade civil controlada, como se pode observar no fato de que os sindicatos e os chamados movimentos sociais, que mimetizam a estrutura da representação profissional, têm direções mais estáveis, poderosas e longevas do que as das próprias empresas — é desse conjunto que saiu a explosão de direitos sem deveres em que estamos metidos. Melhor parar por aqui, não sem dizer que ontem li uma faixa que proclamava: “envelhecer com dignidade é um direito!”

O p-MDB TEM O BARALHO, LULA CORTA, OS TUCANOS CROCITAM E CUNHA SE DESESPERA

Carlos Novaes, 30 de setembro de 2015

(com atualizações, no título e lá no final, em 01 de outubro)

Quem acompanha este blog não foi surpreendido por nenhum dos lances que receberam destaque da mídia convencional nas últimas duas semanas, hoje em especial:

1 – a “crise” política está ainda mais próxima do fim, tendo, enfim!, ficado claro para todo mundo que a crise econômica não comandou o início, não comanda o transcurso, nem comandará o desfecho dessa “crise” política fajuta;

2 – Dilma já não faz diferença e o p-MDB parece ter encontrado na sarneyzação do governo um novo teatro de operações para suas disputas internas, que só conhecerão um rearranjo em sua rotina de toma-lá-dá-cá depois de os mortos e feridos da Lava Jato serem contados;

3 – Lula apóia esse (e se apóia nesse) rearranjo do p-MDB, pois para ele a campanha de 2018 já começou e só mais lá adiante será possível divisar qual dos p-MDBs vai engendrar uma renovação da aliança com ele (veja bem, com Lula, não necessariamente com o PT);

4 – Lula se “empenha” por Dilma, mas só depois de ter deixado claro que não concorda com o ajuste (com o olho em 2018, joga nas duas pontas, portanto) e, por isso mesmo, faz um movimento duplo: vai para dentro da máquina petista no fito de conduzi-la a aceitar o papel de coadjuvante num governo de ajuste que ela um dia julgou controlar; e deixa correr a gritaria contra esse mesmo ajuste, liderada por intelectuais a ele ligados.

Ao se dizer mero observador da montagem do “novo” ministério (enquanto articula ferozmente para não perder espaço), e ao se reunir com as lideranças pró-impeachment, Temer deu mais dois passinhos para manter sua assunção à presidência da República como uma das variantes de desfecho da “crise”, ao mesmo tempo em que cuida de não sofrer um desgaste irremediável se Dilma ficar, sendo evidente (para nós e para ele) que essa possibilidade vai ganhando terreno a cada dia, terreno este ganho na exata medida em que Dilma se aguenta na condição de “rainha da Inglaterra”, ainda que, talvez, sazonal.

Um dos mais empenhados nesse jogo de conferir, ou não, o cetro a Dilma é Cunha, que vem explorando suas prerrogativas de presidente da Câmara em três sentidos diferentes: contra as pretensões do vice da República (aliás, essa é a razão de Temer ter ido ontem ao aniversário de Cunha para “garantir” que não há nada que afaste os dois…); fustigando Dilma, com manobras em torno dos pedidos de impeachment; e, de modo a alcançar seus interesses mais imediatos, fazendo  indicações para o ministério (num governo que já é do p-MDB) e tentando garantir a continuação do financiamento eleitoral por empresas — tudo isso enquanto busca se safar da onda da Lava Jato que contra si se avoluma, agora com a participação direta da justiça suíça.

De modo que a continuação de Dilma no cargo está a ser obtida precisamente pela razão cuja possibilidade vimos explorado aqui: a presença de Dilma impede um p-emedebista na presidência de um governo do p-MDB, permitindo ao partido continuar a ser uma máfia, mas sem um Corleone. Em outras palavras: nesse trecho da “crise” em que o rabo vem abanando o cachorro, as calculadas manobras de Temer para virar presidente da República chegaram a ser plausíveis, mas parecem ter esbarrado na única força institucional realmente capaz de detê-lo: o p-MDB, que não quer a ele, nem a nenhum outro correligionário, como chefe incontrastável.

Assim como desde os tempos da ditadura, o país está a servir de massa para as manobras dos políticos profissionais que abduziram a política, transferindo-a da sociedade para os organismos de estado que controlam, rotinização para a qual a expertise do p-MDB lhe garantiu a titularidade, com Lula correndo por fora, como titular absoluto na prestidigitação em que reúne um simulacro de vitalidade democrática com uma representação fajuta dos interesses populares. Mutatis mutandis, Lula alargou o picadeiro em que exibia seus talentos, com a correspondente ampliação da lona: antes seu carisma manobrava a máquina petista e dela se lançava ao eleitorado; agora ele busca fazer um pas de deux com a máquina partidária e governamental do p-MDB, não sendo de subestimar o que Lula e Cunha poderiam fazer juntos se este último alcançasse o que o primeiro parece ter conseguido: escapar à Lava Jato. Se, como é mais provável, Cunha sucumbir e Lula permanecer criminalmente inatingido, o ex-metalúrgico terá todo o resto do governo do p-MDB para tentar costurar uma frente conservadora contra o bloco reacionário de Alckmin em 2018, bloco no qual a PM com pretensões políticas deverá jogar um papel não desprezível (voltarei a este tema).

Ah! sim, os tucanos… bem, se não aparecer evidência de crime contra Dilma, a eles só restará continuar a fazer o que já vêm fazendo: crocitar, corvos que são, pois a briga é de cachorro grande, e que sabe o que quer. Na hipótese remota de aparecer novidade criminal contra Dilma, o PSDB terá o que comemorar, mas abrindo novas fissuras internas, enquanto o p-MDB não poderá fugir do desafio de ter sua luta interna arbitrada por um dos seus e, então, a instabilidade do braço político do establishment ganhará novo desenho. Ainda assim, Lula não estará por baixo.

01 de outubro, Fica o Registro:

Eduardo Cunha foi apanhado e as consequências ainda são imprevisíveis. Ele pode querer dar uma de Maluf e, então, provocar tanto dano quanto ainda possa. Nesse caso, tendo que dar por perdida a disputa com Temer, vai fazer tudo o que puder para derrubar Dilma e Temer juntos, e nós, então, teremos a prova definitiva de quem é quem entre os tucanos. Há poucas semanas, depois de dizer que Cunha não poderia ficar na presidência da Câmara uma vez denunciado, Aécio foi levado a recuar por pressão de sua própria bancada, tendo até mesmo telefonado para Cunha para se desculpar! Como ele irá se comportar agora, diante da possibilidade de a raiva de Cunha ser-lhe útil enquanto o ogre do Rio estiver no cargo? E, diante disso, como se conduzirão FHC e Alckmin?

– O relator das contas de Dilma no TCU, Augusto Nardes, informou hoje (01/10) ter encontrado 40 bilhões de reais em “pedaladas fiscais”, e indica que vai propor a rejeição das contas do primeiro governo Dilma. Se no julgamento marcado para a próxima quarta-feira ele for acompanhado pela maioria do plenário do TCU, se terá pretexto jurídico para um pedido de impedimento da presidente. Considerando que a desgraça de Cunha abre caminho para as ambições de Temer, dando alento novo à luta interna do p-MDB, a “crise” poderá recrudescer no exato momento em que havia indicações de que o p-MDB se acomodara à sarneyzação do governo Dilma, cujo “novo” ministério ela anunciará amanhã. Vamos ver.

– o Deputado Molon, do Rio, tido como “progressista” (o que isso virou, afinal!?) deu entrevista hoje (01/10) dizendo que Cunha na presidência “mancha a imagem da Câmara dos Deputados”. Eis a versão mais acabada do “cretinismo parlamentar”, quando a essa altura dos escândalos que nos são oferecidos pelos políticos profissionais um “virtuoso” que esperou até ontem para sair do PT elege como prioridade a imagem dessa Câmara podre! Chega dos mesmos!

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 5 — Entrevista de FHC à Folha de S.Paulo

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2015

Folha – A cúpula do PMDB se distancia da presidente e os deputados negociam posições no ministério. O que significa?

Fernando Henrique – Em épocas de incerteza, é natural que os partidos fiquem oscilantes. O PMDB indica duas direções. Uns acham que vale a pena manter o governo. E há os que desconfiam que não dá mais. Isso vai continuar por muito tempo, até que se sinta que há mais clareza sobre o passo seguinte, seja do governo, seja dos que querem mudar o governo.

Novaes –Sendo o p-MDB um partido de correntes internas que se fazem e desfazem ao sabor de poder e dinheiro (poder para fazer dinheiro), estar no governo (em qualquer governo) é fundamental. Se compor em um governo de “outro” é sempre preferível, pois evita a definição de um mandante entre eles – como dizia Tancredo: “em política não se deve levar a conversa até o fim”. Como o partido está atolado em malfeitos, a Lava Jato gerou incertezas sobre quem vai ou não ser apanhado, levando a uma “crise” em que alguns (como Cunha) viram uma oportunidade. Tirar Dilma é definir a luta interna em favor de Temer, o que pode empurrar o p-MDB para um racha. É essa incerteza adicional que Dilma vem alimentando com esse ofertar-negacear ministérios, um espetáculo que mostra o divórcio total entre a política profissional e a sociedade brasileira, que, não obstante, a tudo assiste como se não fosse o futuro dela que estivesse em jogo.

O que falta para as principais forças políticas se definirem?

FHC — A presidente Dilma está num dilema grande. Ao nomear o [ministro da Fazenda, Joaquim] Levy, deu um sinal de que entendeu que o caminho que havia pego estava errado. Mas esse sinal não é convincente, e isso se reflete em tudo. Nosso sistema é presidencialista, mas muito dependente da capacidade do governo de formar maioria no Congresso. Ela não mostrou ainda que tem essa maioria.

Novaes – Não há dilema de Dilma que importe e as principais forças políticas já se definiram faz tempo: surpreendidas pela indomesticável Lava Jato, essas forças chamadas de principais (p-MDB, PT, PSDB e seus satélites) viram na “crise” uma maneira de  buscar fazer dos ovos quebrados um suculento omelete e, agora, brigam pelo tamanho da fatia que caberá a cada uma. Quando essa repartição estiver concluída, todos estarão prontos para serem convencidos do que lhes for conveniente, não tendo a crise econômica nada que ver com isso. Na hora em que o butim estiver repactuado, as soluções para a crise econômica encontrarão um rumo.

A oposição tem os votos necessários para abrir um processo de impeachment hoje?

FHC — O impeachment depende de você ter uma argumentação convincente, não só para o Congresso, mas para o povo. Os que desejam o impeachment não construíram até hoje uma narrativa convincente. Pega as pedaladas. Você pode argumentar, como juristas têm feito, que não há como caracterizar um crime.

Novaes – O impeachment depende de que haja plausibilidade na tese de que a presidente cometeu crime. Depois de tudo que já foi revirado, não se encontrou nada. Não há, até aqui, ponto de apoio para essa alavanca golpista.

A lei diz que precisaria ser um atentado à Constituição.

FHC  — Tudo depende de interpretação. No caso das pedaladas, para que se torne convincente, tem que fazer uma ligação direta com o uso de recursos para fins eleitorais. Aí o povo entende. Enquanto não houver uma narrativa que permita justificar politicamente o impeachment, é difícil.

Novaes – Narrativas tem havido muitas. O que não há é crime.

Mesmo se Dilma continuar com popularidade tão baixa?

FHC — Qual é a mágoa que a população tem da presidente? Ela ter dito uma coisa [na campanha] e fazer outra [no governo]. O que a salva em certos setores da opinião, o ajuste econômico, é o que a condena diante de outros.

No sistema parlamentarista, a perda da maioria no Congresso levaria à queda do governo. No presidencialista, não tem como fazer isso, a não ser por um processo mais violento, que é o impeachment.

O problema é a angústia do tempo. É tanto desacerto que surgiu uma grande inquietação. Se fosse por um ano, haveria a expectativa de uma mudança que estaria ao alcance. Como você não tem essa expectativa, a inquietação gera essas ideias para arranjar um modo de nos desvencilharmos da presidente.

Novaes – O que explica o “desacerto” político é a Lava Jato, não a crise econômica, que Dilma vem tentando enfrentar com medidas que seus adversários apoiariam se não vissem no “desacerto” uma oportunidade de levar vantagem: o PSDB quer melar a eleição de 2014, o p-MDB quer se safar da Lava Jato e conquistar mais poder para fazer dinheiro. Não fossem as incertezas e temores gerados pela Lava Jato, estariam todos em seus respectivos poleiros e Dilma estaria a comandar, com Levy ou assemelhado, mais uma tentativa de remendo para o desmanche do Real.

Essa dificuldade de “nos desvencilharmos do presidente” foi vivida por muitos brasileiros na virada de 1998-1999, quando o presidente recém eleito, esse mesmo FHC, teve de abrir seu saco de maldades para enfrentar o que viera escondendo na campanha da sua reeleição. Naquela altura, houve quem gritasse “fora FHC!”, mas, felizmente, prevaleceu a ordem contra os que queriam desvencilhar-se dele.

Deixo ao leitor ajuizar o que seria um sistema parlamentarista com esse Congresso que aí está (sim, porque não seria possível inventar outro).

O afastamento de Dilma seria suficiente para resolver isso?

FHC — A questão não é só a presidente. Temos um sistema partidário e eleitoral que tornou inviável construir maiorias sólidas no Congresso. Você tem 30 e poucos partidos, e a maioria está aí para disputar pedaços do poder, do orçamento. Qualquer um terá esse problema para governar.

NovaesA questão não é a presidente. Ponto. Todo o problema são os políticos profissionais, que estão “aí para disputar pedaços do poder, do orçamento”. Não há como governar senão na base do toma lá da cá.

O sr. defendeu outro dia a formação de um novo “bloco de poder” como solução para a crise política. O que falta?

FHC — Se estivesse no lugar da presidente Dilma… Eu perdi popularidade em mais de um momento, recuperei, perdi de novo, mas nunca perdi a maioria no Congresso, o respeito. É difícil imaginar, mas fui presidente, sei como é.

Ela teria uma saída histórica. Apresentar-se como coordenadora de um verdadeiro pacto. Em que não estivesse pensando em vantagens para seu grupo político, só no futuro do país, e propondo que o conjunto das forças políticas se unisse para fazer algumas coisas. Modificar o sistema eleitoral. Conter a expansão do gasto público. Reformar a Previdência. E ofereceria o seguinte: aprovado esse pacto, em um ano ela renunciaria. É utópico isso, eu sei.

Novaes – FHC, agora, pretende que um presidente só possa governar tendo maioria no Congresso. Ele parece ter esquecido os ensinamentos de Madison (no livro O Federalista), que viu de longe o perigo da “maioria facciosa” (é exatamente essa maioria nociva que se pretende forjar para o impeachment). Um presidente precisa viver e trabalhar na busca incessante de maiorias, que se formam e dissolvem ao sabor das matérias a decidir. Um presidente não pode pretender contar com UMA maioria pétrea (pétreas só as cláusulas da Constituição!).

Fernando Henrique, atropelando a lógica e a democracia com seus desejos, propõe que Dilma lidere uma saída para o país e, em seguida, tendo obtido êxito, renuncie! E ainda se faz o autoelogio de que ideia tão esdrúxula é utópica

Uma renúncia negociada?

FHC — Negociada em nome de objetivos políticos que não são do interesse do meu partido, de nenhum partido. Aí você segura a ânsia [das outras forças] de chegar ao governo.

O tempo dela está se esgotando. Ela tem que olhar para a história. Não convém ficar marcada como a presidente que não conseguiu governar. Ou que vendeu a alma ao diabo para governar. Agora, ofereceu cinco ministérios ao PMDB. Vai governar como? Não vai. Vai ser governada.

Novaes – Dilma sarneysou o governo porque não tem força para governar a fisiologia. Agora, a fisiologia governa. Foi levada a isso pelas contradições impostas pelo fim do pacto do Real, combinadas com os resultados da Lava Jato. Além de seus próprios erros, Dilma não dispunha da força política e do talento necessários para enfrentar uma combinação tão formidável de adversidades – é de perguntar se alguém teria.

Em caso de renúncia, o vice Michel Temer assume o governo.

FHC — A posse do vice não resolveria. Precisa realmente ter uma nova configuração. Mas não adianta uma nova configuração com regras antigas.

Dilma pode continuar a governar. Vai fazer pacto com o demônio o tempo todo. Vai ter que ceder cada vez mais. E o governo ficará mais contraditório. Na Fazenda, o que se requer é um ajuste. E isso é contraditório com os interesses dos grupos políticos que vão para o poder, porque eles querem estar lá para fazer coisas. E não vão poder fazer.

Então, vai ser um governo complicado, confuso. Pode? Se tivesse um ano só… Mas são três anos. É uma longa caminhada, de incertezas.

Novaes – Agora nosso “teórico” já não fala em um novo “bloco de poder”, mas em uma “nova configuração”. Ficou menos ruim, pois “configuração” significa uma disposição diferente das mesmas peças – é bem isso, mas não há nada de novo aí!

Como para o PSDB 2018 está muito longe, três anos parecem muito para FHC. Mas o fato é que este governo tem de ir até o fim, seja com Dilma, seja com Temer. Por melhor que ainda possa se revelar, não será um governo de realizações – será um governo de fisiologia em tempos de crise e desorientação, enquanto a sociedade não gera uma força transformadora que refaça a rosca no parafuso. Um desfecho verdadeiro, bom ou mal, será em 2018, não antes.

E a saída pelo impeachment?

FHC — Se houver alguma coisa que seja clara para a população, pode ser. Suponha que nos processos na Justiça Eleitoral se demonstre de forma inequívoca que houve dinheiro do petrolão na campanha. O que o juiz vai fazer? Aí não tem jeito, tem a lei.

Novaes – Aqui o tucano mostra toda a extensão do seu bico! Nesse caso, de vício original, já na campanha, Temer iria junto e, assim, teríamos uma nova eleição, dando aos tucanos a oportunidade de não terem de esperar até 2018.

Nesse caso, Dilma e Temer seriam cassados juntos.

FHC — A chapa inteira. Seria uma solução? Uma confusão enorme também. Porque os problemas estão aí. Não resolvemos nada, nem na política, nem na parte de gerência do Estado. Se não tiver uma perspectiva de reorganização das contas públicas, e do sistema político, não tem solução.

Novaes – FHC foge da questão, afinal, teríamos de ter uma eleição. Uma eleição abriria o debate sobre como “reorganizar as contas públicas”: a questão é definir quem paga a conta, o que abre a discussão sobre a desigualdade. Quanto a “reorganizar o sistema político”, só vejo uma solução: acabar com a reeleição para o legislativo. Mas uma nova eleição presidencial, solteira, agora, não daria oportunidade real para nenhuma das duas tarefas, pois a sociedade está inerme diante da crise. Haveria, no máximo, a tão sonhada “reconfiguração dos mesmos”, com o surgimento de um “novo” Collor, tão solteiro quanto o anterior.

Como têm sido as conversas do PSDB com Michel Temer?

FHC  — Quem pode dar as cartas hoje no jogo é o PMDB. Dilma pode ficar no feijão com arroz, ou fazer um gesto de grandeza. O mais provável é que continuará no feijão com arroz. O PMDB pode construir uma saída constitucional.

O PSDB se confrontará com outra questão. Vai ajudar, ou não? Se houver razão concreta, narrativa convincente, votará pelo impeachment. Mas e depois? Os problemas não vão mudar porque mudou o presidente. Precisa ter um sentido, um rumo. Aí o PSDB vai ter que cobrar esse rumo.

Novaes – O p-MDB já vem distribuindo as cartas desse baralho marcado. Eles agora estão empenhados em identificar as marcas das cartas uns dos outros e, então, decidir se vão ou não melar a rodada, tirando Dilma. O risco de melar é Temer decidir que, agora, o baralho é mais dele do que dos outros.

O PSDB já está totalmente desmoralizado: apostou no golpe, fez um recuo para inglês ver, tem um governador forte a quem só interessa o calendário normal de 2018 e, assim, está entre dois cenários complexos: se Dilma cair e Temer ficar, terá de decidir se em 2018 convém ser oposição ou situação; se Dilma ficar, terá de torcer para o ajuste dela não dar certo, pois, do contrário, Lula poderá renascer.

Se não for pego em malfeitos criminais, a posição mais cômoda para 2018 é, por incrível que pareça, a do Lula!

LULA + CUNHA: O DESFECHO DA “CRISE” NUMA “NOVA” FACÇÃO PARA 2018

Carlos Novaes, 19 de setembro de 2015

 

Como qualquer um dos que se têm ocupado da situação política, escrevo a quente — só o tempo dirá quanto elucidei ou confundi nesse esforço dos últimos meses. Mas este artigo é especialmente exploratório, trazendo notícias por assim dizer do front mental, pois comecei a trabalhar essas inquietações poucos minutos após ter publicado aqui meu artigo de ontem, mais exatamente, assim que li na WEB a notícia de que Lula se reunira com Cunha e humildemente pedira para que o p-emedebista retardasse o trâmite dos pedidos de impeachment. O título acima é uma hipótese, mas uma hipótese terrível que, me parece, não convém desprezar, ainda que nesse momento seja de configuração muito improvável. Se ela se verificar, a “crise” terá terminado mostrando toda a projeção danosa da sua fajutice, ainda que essa alternativa promova uma correta preservação do mandato Constitucional de Dilma.

Embora reconheça a situação patibular da presidente, vou explorar essa possibilidade que a complexidade da situação não permite descartar, e o faço amparado na ilusão de que o leitor conhece deste blog não apenas o post de ontem, mas também, digamos, as últimas doze postagens e, ainda, algumas das mais antigas, desde, pelo menos, os dois meses finais do ano passado. Convido a que pensemos (e especulemos) juntos, pois ainda que a hipótese explorada seja implausível e não se verifique, quero acreditar que a sua discussão permite dar tratamento proveitoso a temas conexos.

Lá atrás, quando Cunha era apenas uma ameaça que os profissionais da política brandiam, mas ainda não haviam cumprido contra nós, apontei que a melhor saída para o país seria PT e PSDB se entenderem sobre as presidências da Câmara e do Senado, evitando com isso a ascensão do ogro do Rio (o que pareceu a alguns desatentos mero exercício de um sonhador). Enquanto eu parecia sonhar, Lula exercia sua argúcia pragmática na direção contrária, e recomendava ao PT (com tanto sucesso quanto eu…), que ao invés de lançar candidato à presidência da Câmara, seu partido se compusesse com Cunha que, como ele previa (e temia), acabou vitorioso contra o PT, apartando o lulopetismo da dinâmica majoritária do bloco de poder dos profissionais. A seguir vieram os desdobramentos da Lava Jato e o aprofundamento da crise econômica, solavancos que o país tem vivido e cujos efeitos complexos têm desafiado o entendimento de todos nós.

Mais recentemente, Fernando Henrique, com a cegueira costumeira, especialmente para tudo o que envolve seu próprio papel na construção do desastre que estamos a viver, saiu-se com  a “teoria” (tz tz tz) de um “novo bloco de poder” para tirar o país da “crise” política e da crise econômica, fenômenos que, pare ele, claro, se fundem num só, confusão a que é levado por duas circunstâncias adversas fundamentais: primeiro, ele não pode reconhecer que, no lado econômico, o que está a desabar é o edifício do Real, que ele próprio começou a demolir depois de ter liderado sua notável construção (hoje está claro que ele nunca entendeu a grandeza, a potência e as limitações a que condenou o que havia feito); segundo, pela mesma ordem de razões, FHC está impedido de enxergar que o PT, o PSDB, o p-MDB e seus satélites já constituem, faz tempo, o mesmo “bloco de poder”, sempre que se entender por “bloco de poder” a expressão, na política profissional, de uma hegemonia econômico-social. Daí que nosso “teórico” junte as duas metades da própria confusão do modo mais cômodo para seu partido e para a sua biografia: em seus devaneios, o país estaria vivendo uma turbulência econômica decorrente sobretudo de erros de condução gerencial, turbulência à qual o eleitorado teria respondido condenando o bloco dos culpados (Dilma, Lula e o PT) e, ao mesmo tempo, pedindo que as forças que sempre teriam estado certas, lideradas pelo PSDB, claro, promovam a construção de um “novo bloco de poder”. Em suma, FHC resolveu nos fazer acreditar que a polarização fajuta entre PT e PSDB tem base real e, pior, que com apenas uma dessas duas metades da vanguarda política profissional brasileira se poderia construir um bloco de poder ao qual, ainda por cima, receberíamos como “novo”, delegando a ele a condução da política voltada a transpor de modo socialmente profícuo o impasse de destino em que o país se encontra com o desabamento do Real! O bicho é corajoso…

Mais espertos e prudentes do que o cacique tucano, movidos por desejos mais sólidos do que a própria reputação, os grandes agentes econômicos sabem que o lulopetismo é parte imprescindível do bloco de poder profissional que atende aos seus interesses e, por isso, jamais embarcaram na “aventura” da danação de Lula, o que se traduziu na resistência que vinham opondo ao “fora Dilma”. Naturalmente, até por razões antropológicas, ou por assim dizer “culturais”, as coisas estarão mais ao seu gosto sempre que no bloco de poder que os contempla o lulopetismo ocupar posição subalterna — mas isso não quer dizer que pretendam prescindir dele e, muito menos, que desprezem o potencial de dano contra si que haveria em empurrar o carona incomodo para fora do bloco, obrigando-o a questionar a ordem para poder voltar a dispor dos meios de obter nela o seu quinhão. Aliás, é a junção daquela assimetria cultural (velha como a escravidão e seus efeitos deletérios sobre a vida brasileira) com a luta profissional diária pelo quinhão nosso de cada cargo que explica a ferocidade crescente com que se dá a disputa eleitoral, fazendo com que muitos analistas vejam luta de classes na mera realização da máxima “farinha pouca meu pirão primeiro”, velha como a Bíblia e, claro, especialmente vigente em tempos de escassez.

A novidade (e o infortúnio) foi que à escassez desses tempos de crise econômica real se somou a determinação de Sergio Moro e do Ministério Público, esse sim um bloco novo, que aloprou a coreografia manjada do carnaval da nossa política profissional, com o inconveniente não antecipado, e muito menos planejado, de que sua ação indiscutivelmente positiva também serviu, infelizmente, como alegoria pirotécnica que, com a ajuda da mídia convencional, deu tempo aos profissionais para fantasiarem sua luta política de punhais (na qual se engalfinham por meras vantagens marginais) na figura conveniente de uma suposta expressão política da crise econômica real e, assim, levando quase todo mundo a nomear de “crise política” o desarranjo pastoso das suas práticas de repartição de poder e dinheiro. Assim, como todo inconsequente que é pego de surpresa com o anúncio da gravidez da amante, já lá se vão nove meses nessa batalha em que nossos políticos profissionais embrulharam o país numa confusão desinformada, usando Dilma e seus erros (pobre dela!) para ganhar tempo, enquanto buscam uma saída para o desabamento de todo um sistema de operações através do qual, há décadas, talvez século, reproduzem seu bem viver. A Lava Jato não só desmontou o esquema PT–p-MDB na Petrobrás, mas, como disse Geddel, pôs em cheque todo um modo de operar, no qual se pode reunir os Metrôs e aeroportos do PSDB, as contas inexistentes do Maluf, a máfia do ISS em SP, as falcatruas da operação Zelotes, os mensalões e mensalinhos ainda não apurados no PSDB e em Assembléias e prefeituras do Brasil, nas quais deputados e vereadores espetam caminhões e máquinas em nome de laranjas e reproduzem o modus operandi da máquina infernal da nossa política profissional, toda ela amparada na reeleição infinita para o Legislativo. Não foi por acaso que veio de um grupo de jovens atuando na primeira instância do Judiciário o aríete que se contrapôs a essa fortaleza do mal em que foi trancafiada a força de um Executivo Federal supostamente onipotente (essa “onipotência” é a maior das mentiras nas lendas que fazem a narrativa dos nossos três poderes).

Ao cabo desses nove meses, um Lula revigorado, e um Cunha que vê crescerem as dificuldades dessa vida evangélica de mãe solteira dissoluta que tem levado, podem se descobrir prontos para a união estável que lá atrás o primeiro já propusera e, assim, pleitearem a adoção da criança que, ajudando a superar o trauma da perda recente, faria a alegria do casal e seus padrinhos — até porque o pior que poderia lhes acontecer — mais lá adiante, no 2018 vindouro, se a relação já não puder ser discutida — seria terem de pactuar a guarda compartilhada da menina (desde que a arbitragem não seja do Moro, claro). Nessa ordem de pesadelos de Rosemary, teríamos não a construção de um fantástico “novo bloco de poder”, como fabula FHC, mas o arranjo pragmático de uma “nova” facção política dentro do velho bloco de poder de sempre, facção esta que lhes traria a vantagem operacional de abolir intermediários nesse verdadeiro casamento da fome com a vontade de comer. Se propriamente felizes não ficarem, os grandes empresários tampouco ficarão contrariados. Os que foram às ruas gastarão algum tempo refletindo sobre o que, afinal, deu errado, e acabarão por pedir ajuda ao Chaves (o do SBT, claro). Quanto a nós, restaria o consolo típico de perdedores inveterados: assistir os universitários do PSDB ruminarem sonhos de “voltarem” ao ideário social-democrata “original”, enquanto roem os cotovelos por terem sido alijados do tão almejado e ainda mais primitivo “pudê”.

Delírio puro?

COMO O GOVERNO DILMA ACABOU… LULA ABRIU A CAMPANHA DE 2018

Carlos Novaes, 18 de setembro de 2015

 

A “crise” política está em sua etapa final. Quando a fumaça em dissipação tiver ficado para trás, descobrir-se-á que o segundo governo de Dilma já acabara, embora jamais tenha começado: de um lado, assuma Temer ou não a presidência da República, não há razão para supor que o p-MDB vá perder poder na sarneyzação alcançada: é dele o governo; de outro lado, ao papel definitivo do PT como coadjuvante soma-se a decisão de Lula de jogar a toalha, ainda que sem dizê-lo de uma vez. Estão todos a empanar Dilma, para então passar a fritá-la à milanesa, cada um por seu lado, o que dá a impressão de que atuam como forças de projetos opostos: o p-MDB e a oposição oficial estão em vias de alcançar o pretexto que lhes permita condenar Dilma sem crime, para então fazerem o milagre de “resolver” a crise pondo em prática maldades como as que ela já propõe; Lula e o PT defendem acertadamente o mandato da presidente contra a qual não se demonstrou crime, mas atacam farisaicamente as maldades propostas por ela, muito embora não tenham outro projeto.

Para o establishiment, o afastamento dela vai ficando indiferente, pois, nesse tempo em que o rabo abana o cachorro, Lula, que passou a se sentir seguro com os resultados da Lava Jato, vem dando garantias crescentes de que não quer barulho, pois já está com os olhos em 2018 — o resto é ritual de passagem, ainda que barulhento, como convém a quem “defende os interesses do povo”. De fato, Lula vem há tempos buscando se vacinar contra os danos do governo Dilma sobre si, nunca perdendo uma oportunidade de salpicar na mídia alguma discordância, sempre dosada para não ser nem dura demais que pareça um rompimento ou abandono, nem branda a ponto de sugerir não haver diferenças entre ele e a pupila. Nos últimos dias, Lula deu mais um passo calculado nessa estratégia: depois de ter anunciado, em solo estrangeiro, publicamente, que não estava de acordo com um ajuste que antes parecera lhe convir, Lula agora se diz pronto para o “sacrifício” de ir às ruas defender uma versão ainda menos popular do tal ajuste, em favor do mandato de Dilma.

Não nos enganemos, esse anúncio de uma ida sacrificada às ruas é a abertura da campanha eleitoral de 2018, não o chamado a uma insurreição em defesa do mandato de Dilma. Lula está apenas a se pavonear como defensor do emprego de milhares de petistas (impossíveis de conservar/prorrogar com a queda de Dilma), enquanto também busca garantir a posição mais aberta possível para si mesmo, pois o debate da campanha já começou. Se Dilma superar o impeachment (o que vai ficando mais e mais improvável, até porque não depende dela), Lula poderá escolher, lá adiante, um de dois figurinos eleitorais, conforme o êxito ou o malogro do governo dela: ou aparecerá em 2018 como o chefe contrariado que conseguiu corrigir a pupila e vai retomar o rumo venturoso que ela abandonara; ou se apresentará como o líder que fez tudo o que pôde, mas a teimosia da outra, com quem já terá rompido, pôs quase tudo a perder e, agora, há que recomeçar. Se Dilma cair, tudo fica mais fácil: ele já terá dado à burocracia petista demonstrações suficientes de defesa dos empregos dela e, ao mesmo tempo, já terá deixado claro que não concorda com o ajuste e, assim, diante da ordem Constitucional quebrada, irá para oposição aberta em defesa dos interesses do povo pobre. E há quem acredite e veja nisso a diferença que sonha existir entre PT e PSDB!

Fica o Registro:

– As divisões no p-MDB em torno da queda de Dilma existem, mas não devem ser muito valorizadas: o problema maior está apenas no Rio, pois enquanto Cunha se vê entre a cruz e a fogueira, o núcleo Pezão-Picciani não pode, sem mais, debandar da base da presidente que tanto o apoiou (parte da “radicalidade” de Lindberg Farias contra o ajuste de Dilma está ligada a esse apoio que ela deu a eles na eleição de 2014).

– Quanto ao PSDB, o papel dele é esperar pela decisão alheia e, então, se for o caso, dar número para o impeachment, pois a desmoralização é total.

– Ao voltar à CPMF, da qual havia recuado erradamente, Dilma fez a coisa certa, mas só depois de ter dado uma oportunidade a mais para que a desautorizassem. Seja como for, ficou claro, como argumentei aqui, que não havia nada de “suicídio” em ter proposto a volta desse “imposto”.

– O corte na verba cultural do sistema “S” é mais uma evidência do misto de miopia e autoritarismo do governo nessa área: quer tirar dinheiro de programas culturais de comprovada relevância, enquanto mantém verbas laxas destinadas a esse verdadeiro “se vira nos trinta” nacional em que se transformou a tal “economia criativa”, com o detalhe de que no “se vira nos trinta” do lulopetismo o dinheiro é entregue antes da avaliação do público, cuja opinião jamais se leva em conta.

DILMA JÁ NÃO FAZ DIFERENÇA

Carlos Novaes, 13 de setembro de 2015

 

Venho insistindo que a crise econômica é real e a “crise” política, fajuta, entendimento que é o oposto da imensa maioria dos comentadores, que têm nutrido a desorientação quase geral propagando dois equívocos: o de que o país precisa de um “novo bloco de poder”, ou seja, a “crise” política seria real; e o de que a crise econômica comanda essa “crise” política encarada como real. A plausibilidade de ambos os equívocos decorre de uma mesma paixão, manipulada cuidadosa e milimetricamente pela razão cínica que fervilha na nuvem compartilhada por profissionais e operadores simbólicos da nossa política profissional: a paixão de que o culpado pelos nossos problemas tem nome e sobrenome, Dilma Roussef. Antes de enfrentarmos a relação entre as duas chamadas crises e o papel da infausta Dilma nela, convém recapitular esta decisiva semana que passou: aberta com o artigo de FHC no domingo passado, no qual nosso dublê de sociólogo “teorizou” sobre a suposta necessidade de um novo “bloco de poder”, a semana foi coerentemente encerrada com a notícia da ida de Temer para a Rússia, viagem a ser feita com pose e entourage de chefe de estado (nem em sonhos eu poderia pedir ilustração mais fiel às minhas reflexões! –*). Mediando esses dois extremos que se tocam, tivemos ainda, nesta semana:
1. a reunião em que o p-MDB repactuou suas disputas internas com a decisão de negar a Dilma tudo o que tiraria o país desse inferno, mas que deverá mais adiante ser concedido para a glória “salvadora” de um governo Temer, “demonstrando-se”, assim, que a culpada exclusiva do desgoverno era mesmo Dilma, inflando as certezas dos idiotas, que em seu júbilo estarão cegos para os sofrimentos do povo pobre;
2. o rebaixamento da nota econômica do Brasil, por uma dessas agências internacionais que avaliavam como boa a situação daqueles que quebraram o mundo em 2008 (a esse respeito, o comportamento de certos “analistas” tem sido repulsivo, especialmente à luz do que escreveram naquela altura);
3. a formalização, pela PF, de que não há provas formais de envolvimento do Lula na Lava Jato (incautos acham que essa notícia da PF foi contra Lula, caindo no despiste da recomendação de que ele precisaria ser ouvido…, recomendação que o desgasta, é verdade, mas traz, a contrapelo, a absolvição dele!); e, finalmente,
4. a ida desse desgastado e aliviado Lula para a oposição, se antecipando lá da Argentina a um governo que pode sair do “novo” bloco de poder sugerido pelo pouco imaginativo FHC, se Dilma cair.

Diante desse “acerto” geral e de suas consequências para 2018, Dilma se tornou irrelevante e sua queda quase que só depende de um pretexto jurídico, para o qual Hélio Bicudo forneceu o amparo da sua autoridade, num rompimento cabal com o lulopetismo, rompimento este cujos prós e contras Bicudo ruminou por longos vinte e dois anos… — ninguém pode dizer que esta não tenha sido uma decisão maturada, não é não? **. Voltemos às duas crises.

A ideia de que a “crise” política decorre da crise econômica, de que a segunda explica a primeira, teve aceitação fácil por duas razões: primeiro, porque um certo marxismo de manual se tornou a ferramenta mental básica dos leitores de jornal, digam-se eles de esquerda, ou não; segundo, porque o desmanche do pacto do Real se impõe, de fato, como desarranjo para o sistema político que o operava. Não obstante essa derrocada do pacto — em torno do qual os condôminos PT e PSDB se digladiavam (sem motivo outro senão a mera e simples disputa pelos rentáveis postos de poder) — implique um desarranjo na ordem política profissional que nele se sustentava, não há razão para derivarmos dela, da derrocada, a “crise” política em que os profissionais e seus analistas pretendem nos fazer acreditar que o país submergiu. É que o motor da “crise” fajuta é a Lava Jato, não a economia. Não fosse a Lava Jato, nem os tão condenados erros de Dilma seriam tão condenados, nem a “calamitosa” situação econômica seria tão calamitosa aos olhos de quem faz o alarido do fim do mundo. Tudo se arranjaria de modo a procrastinar as consequências políticas da situação econômica adversa, numa fuga para a frente em que os mesmos atores profissionais de sempre buscariam ganhar tempo para mais um acerto como aquele que o Real instituiu e ao qual o lulopetismo aderiu formalmente em 2002. Em outras palavras, não fosse a Lava Jato, a erosão do pacto do Real não ficaria tão clara como ficou e os atores comprometidos politicamente com a manutenção da nossa desigualdade (governo e oposição) teriam tempo para engendrar, com calma, um outro arranjo, uma vez que a sociedade brasileira, embora pareça muito engajada, está inerme, pois desprovida de vetor político que lhe permita sair da crise com um viés transformador, traída e embrulhada que foi pela política dos profissionais e de líderes que aspiram chegar lá.

A ação liderada pelo juiz Sergio Moro se impôs como uma variável não controlada e colocou o sistema político profissional em polvorosa, ao mesmo tempo em que forneceu a munição apropriada (e merecida) para o abate oportunista (sempre o é) do lulopetismo, condômino incômodo, que não sabia se comportar na piscina e insistia em ocupar as áreas de festa e, ainda por cima, com churrasco e pagode… Em outras palavras: com a Lava Jato, não só o PSDB, na oposição, viu a oportunidade de suplantar o PT, como também os chefes do p-MDB (Renans e Temers), na situação, fiéis da balança no pacto que “polarizava” PT e PSDB, se viram apanhados num fogo cruzado, e precisaram de tempo para resolver o melhor a fazer diante da junção adversa de estarem na condição de governo num momento em que seria melhor estar na oposição e, por isso mesmo, tendo de enfrentar uma dissidência interna (Cunha), que viu antes deles a oportunidade que se abrira. A solução foi ganhar tempo, e esse tempo foi o martírio remanchado da frágil e incapaz Dilma, para o qual foram mobilizadas multidões religiosas de inocentes úteis, convidadas a inundaram ruas e praças do país para mais uma realização exemplar do rito sacrificial de que o mito primordial de Abraão se fez feixe: o que não falta é gente implacável, seja nas ruas, seja nas redes sociais. E tudo para cortar a cabeça errada!

Em síntese, o martírio de Dilma teve duas manobras e um lançaço final: primeiro, atribuiu-se a ela a crise econômica; segundo, negou-se a ela todos os instrumentos para combater essa mesma crise, operação na qual se transformou o Orçamento da União em peça econômica, quando ele é, e sempre foi, a expressão contábil de um arranjo político. Quando Dilma, acertadamente, pediu a CPMF para fechar o rombo, negaram; em seguida, quando ela escancarou a patranha enviando ao Congresso um orçamento com déficit, foi imediatamente acusada de se recusar a governar, quando são eles que a tem impedido de fazê-lo! Emparedada, recebeu o lançaço final, na forma de dois recados enviados por Lula desde o outro lado do rio da Prata: primeiro, ele sacramentou o abandono da “defesa” do ajuste de Dilma (ao qual de início apoiava porque ainda apostava suas chances de 2018 numa recuperação econômica sob Dilma) e voltou a envergar a casaca surrada de defensor dos pobres; segundo, acalmou o establishiment ao indicar que sua ida às ruas será para ganhar força para 2018, e não para desestabilizar o “novo” governo do condomínio e, muito menos, para pôr em risco a hegemonia (ou seja, Lula mostrou que não vai abandonar o bloco de poder ao qual aderiu em 2002: o bloco é o mesmo, apenas muda, talvez momentaneamente, o protagonista de turno).

Sem Lula, sem o PT, sem os empresários, sem discernimento para entender onde está metida, sem laços com o eleitorado e cheia de pedras técnicas pelo caminho, onde Dilma encontrará apoio para prosseguir? E a que, e a quem, serviria essa continuação, uma vez que seu governo já acaba de ser totalmente sarneyzado e, nem assim, o p-MDB se satisfez, pois seu racha parece requerer um passo adicional?

E ainda haverá quem atribuirá a queda de Dilma ao “colapso” da economia, supostamente provocado por ela… A incapacidade dela não teria forças para tanto.

Notas:

– * Em artigo que enviei a amigos e publiquei, em 2009, no site do chamado Movimento Marina Silva (é, leitor, a vida de quem tem esperanças é dura — mas advirto que logo adiante rompi com os auto-intitulados coordenadores do site, por escrito e publicamente), no tal artigo, entre outras coisas, eu disse que:

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

O fato de que, seis anos depois, o erro que engoliu Lula fique estampado nessa ida majestática de Temer à terra onde Putin ainda reina soberano, e reina pelas razões que sumariei no parágrafo citado acima e, ainda por cima, a despeito de a Rússia estar há tempos na mesma condição precária de “grau de investimento” para a qual o Brasil sob Dilma acaba de ser rebaixado; são aspectos que desenham uma ilustração tão irônica quanto precisa do que foi antevisto, reunindo à materialização do desarranjo anunciado o que há de fajutice nela.

– ** Não entendeu? Explico: Hélio Bicudo foi figura central na comissão de ética do PT que, em 1993, examinou as denúncias de corrupção feitas contra Lula pelo digno e corajoso Paulo de Tarso Venceslau, então secretário na prefeitura petista de São José dos Campos-SP. Naquela altura, ficou claro para qualquer um que não tivesse nascido ontem que o caso Lubeca, de 1989, não fora isolado. Não obstante o incrível depoimento de Lula à comissão (por si mesmo uma peça muuuiiito instrutiva), e as evidências de que Paulo de Tarso não mentia, o denunciante acabou expulso do PT, numa decisão política ao arrepio das evidências “jurídicas” a que chegara a comissão, onde também estava assentado o hoje ministro Eduardo Cardozo, o mesmo que havia se indisposto com Lula no caso Lubeca, pois Cardozo era secretário da prefeita Erundina, em 1989, quando ela barrou aquela maracutaia. Pois bem, assim como em 1993 Hélio Bicudo se aquietou na conveniência política e ficou no PT mesmo atropelado como jurisconsulto e diante de uma injustiça flagrante, tendo até sido candidato pelo partido depois que estava mais do que claro que o PT se transformara numa máquina de tomar poder para fazer dinheiro (sem participação de Bicudo nos malfeitos, fique bem claro), também agora ele adere à conveniência política do “fora Dilma”, que se dá ao arrepio da técnica jurídica, pois não há, até aqui, nenhuma evidência de que a presidente tenha cometido crime.

– Fica o Registro:

— Eduardo Cunha está numa situação difícil, da qual depende, em algum grau, a sorte de Dilma: se ele tocar o impeachment na Câmara, abrindo caminho para um governo Temer, o novo presidente poderá usar seu poder para esmaga-lo, valendo-se, é claro, da Lava Jato. Por outro lado, se Cunha embarreirar o impeachment para segurar a fúria de Temer contra si, corre o risco de contrariar  seus parceiros de profissão, parte deles ansiando por mais acesso ao butim fornecido pelo executivo. De modo que a sarneyzação do governo Dilma pode pender para realavancar Cunha, mas sem trair completamente Temer, virando ela própria o fiel da balança da disputa interna do p-MDB. É um cenário pouco provável, mas não impossível, dada a desmoralização de PSDB e PT. Seja como for, a essa altura já não há vantagem política na permanência de Dilma para quem se mantém na luta contra a desigualdade — vamos assistir ao desenrolar dos acontecimentos que, assim, serão, de fato, meros acontecimentos.

O RABO ABANA O CACHORRO — 2 de 2

Carlos Novaes, 06 de setembro de 2015

Lá no início de novembro do ano passado, quando o desastre que seria Eduardo Cunha alcançar a presidência da Câmara era ainda uma possibilidade, eu disse aqui que:

Não é segredo para ninguém medianamente informado que se Eduardo Cunha chegar à presidência da Câmara dos Deputados toda pessoa de bem logo sentirá as mais sinceras e pungentes saudades de Inocêncio de Oliveira e Severino Cavalcanti. No âmbito congressual da lógica de palácio e em nome do projeto gradualista comum, Dilma deveria chamar Aécio a um entendimento para que as duas forças, ainda que mantendo suas hostilidades institucionais, somassem esforços para que o Senado fosse presidido pelo PSDB e a Câmara pelo PT (ou vice versa), cabendo ao p-MDB de Temer as devidas compensações em ministérios — um típico toma-lá-dá-cá. Um arranjo assim permitiria conter o ímpeto das forças mais nocivas à democracia pactada em que vivemos (ruim com ela, pior sem ela), daria parâmetros mais seguros para algum desenvolvimento, sem desmanchar a polarização fajuta de que os dois partidos julgam se beneficiar, e abriria perspectivas para que nosso povo pudesse se informar em prol de uma alternativa melhor no curso dos próximos anos, o que poderia incluir uma segmentação mais clara na lógica da rua.

E, adiante, acrescentava:

– Dilma não tem escolha: ou derrota Eduardo Cunha ou será derrotada por ele. Por isso, se vierem a apresentá-lo na presidência da Câmara como resultado de qualquer coisa que se assemelhe a um acerto, podemos dar tudo por perdido – mesmo.

Naquela altura eu não tinha em mente, evidentemente, o impedimento da presidente, mas a sarneyzação do seu governo, pois todos sabemos o que Cunha almeja num acordo com o poder executivo. Se, agora, no calor da “crise”, retomo o tema do acordo que outrora temi, não é em razão da sarneyzação em curso, mas da ameaça do impeachment. O que mudou de ontem para hoje foram os desdobramentos dos últimos passos de Temer, que dá sinais seguidos de que está mesmo desembarcando do governo. Como disse no post de ontem, Temer atua na crise sobretudo para não perder o controle do p-MDB, onde vem sendo desafiado por Cunha, que viu uma oportunidade nas ruínas do lulopetismo e vem abrindo caminho em meio à “desmoralização” das bandeiras que essa autointitulada esquerda fingia defender. Com o protagonismo de Cunha, associado ao desaparecimento do PT, criou-se um ambiente novo para o oportunismo do p-MDB, que passou a contar com opções, o que sempre dá ocasião a alguma cisão: enquanto o lado mais antigo do mando (Renan e Temer) viu na situação uma oportunidade para a tradicional sarneyzação pura e simples do governo Dilma; o lado emergente, liderado por Cunha, passou a atiçar uma latência minoritária antiga, sempre neutralizada pelo adesismo puro e simples, que, pressionando esse adesismo, sonhava em ver o p-MDB alçar vôo próprio, embora com a mesma orientação fisiológica.

Pelas razões já exploradas aqui e em outros posts recentes, o empresariado grosso fez a opção de ficar com Dilma, reforçando o p-MDB tradicional, de Temer e Renan, e sacrificando o protagonismo de Cunha, danoso aos seus interesses imediatos na estabilização da “crise” política para, então, poder enfrentar a crise econômica. A complexidade da situação, porém, não dá trégua e, como não há espaço para conspiração pura e simples, os lábeis acertos vão sendo feitos, e desfeitos, no curso vertiginoso dos fatos. Dispostos a ficar com Dilma, evitando enfrentar um Lula de volta às ruas fazendo oposição em tempos de crise, mas com Cunha a acossá-los pelos flancos, Temer e Renan vêm jogando nas duas pontas: ora acodem Dilma, ora sopram as brasas do impeachment, dando uma ponta de chama ao que parecia estar a morrer e, com isso, contrariando o empresariado, a cujos interesses, entretanto, não vão deixar de contemplar: trata-se apenas de uma dissonância acerca da melhor maneira de fazê-lo. É que para os empresários é mais simples, pois querem tão somente que reine a paz para os negócios, seja com quem for; já para o seu braço político, estar no comando é o que define o acesso aos negócios e, então, Cunha é vivido como uma ameaça por Temer e Renan.

Dito isto, fica claro que, em razão da desorientação geral, a sorte de Dilma depende cada vez mais de como a velha guarda do p-MDB vier a resolver o dilema que, desde sempre, a desafia: qual a melhor combinação para manter o partido no poder e sob seu controle?. Em outras palavras, como continuar no governo e, ao mesmo tempo, neutralizar Cunha?

Se for assim, a recente tentativa de Dilma de se acertar com Cunha pode ter sido um impulso para o avanço de Temer na direção do impeachment. Afinal, ao distinguir Cunha com um chamado ao Planalto, a presidente torpedeou o acordão no qual o empresariado tinha se empenhado (segundo o qual Cunha seria sacrificado), e passou a serrar o galho do p-MDB em que ainda se apóia (cujos protagonistas estão ameaçados pela ação do mesmo Cunha)… Em outras palavras, nos últimos dias, Dilma deu a impressão de que escolheu dar as costas aos “amigos” para abraçar o inimigo, operação desastrada que, porém, também resulta do fato de que em seu jogo ambíguo Temer se retirou da negociação política na Câmara, empurrando Dilma a fazê-la (e para a qual ela não tem perfil, não obstane não tenha escolha!!). Para complicar o cenário, a existência de trechos da delação premiada de um empreiteiro envolvendo Lula no cerne da Lava Jato, informação só vinda a público no final da tarde de ontem, pode muito bem ser a razão de Temer estar a seguir o impulso sugerido pela ação desastrada de Dilma na direção de Cunha. Especulemos:

Diante de sinais de que já não haveria um Lula a recear, seria só correr para o abraço: com Lula fora das ruas o empresariado ficaria seguro para embarcar no impeachment, Temer assumiria a presidência, consolidando seu poder no p-MDB sem frustrar a ala que almeja ver o partido correndo em faixa própria, reincorporando Cunha de um modo subalterno. Seria o melhor desfecho para os que cavalgam a nossa desigualdade e a consagração de uma derrota histórica para quem a combate, não havendo ocasião sequer para celebrar o tão venenoso quanto amargo encontro com a verdade sobre a farsa que foi o lulopetismo: superando a “crise” pela via mais conservadora, o establishiment teria tudo para implementar, sem freios, sua solução ótima para a crise e, pior, estaria em condições de passar a impor o retrocesso mais amplo que Cunha almeja protagonizar, ainda que, talvez, sem ele como líder.

Mas como ainda há algum jogo para que esse pior não se configure, vamos ver como caminham o p-MDB e a Lava Jato que, além de Lula, ainda pode implicar outros nomes, até do p-MDB. A situação é sinistra.

Fica o Registro:

– Dilma não falar no feriado da Independência do Brasil é uma decisão estapafúrdia, de uma covardia sem paralelo.

O RABO ABANA O CACHORRO — 1 de 2

Carlos Novaes, 05 de setembro de 2015

 

Como todo mundo sabe, a situação orçamentária da União requer, se não as duas, pelo menos uma das seguintes medidas: aumento da arrecadação e/ou corte profundo de despesas. Esse aumento e esse corte podem se dar levando ou não em conta a capacidade contributiva e econômica de cada um: de um ponto de vista estritamente liberal, a sociedade brasileira é formada por indivíduos iguais perante a lei e, então, os custos serão distribuídos per capita; num entendimento contrário, de um ponto de vista não-liberal, a sociedade brasileira é formada por camadas sociais muito desiguais em riqueza e em capacidade de apropriação de renda e, então, os custos tem de ser distribuídos segundo essas capacidades. O mais recente grande erro de Dilma foi não ter  perseverado e enviado ao Congresso a proposta da volta da CPMF, um aumento inconveniente na carga tributária que, não obstante, teria o mérito de distribuir a carga adicional de um modo menos desigualitário: cada um pagaria segundo sua própria movimentação financeira. Ao perseverar, mesmo na quase certeza de que seria derrotada, Dilma teria deixado claro duas coisas: primeiro, que ante a recusa de Temer em fazer a intermediação política ela teria (finalmente) assumido um papel que é seu (ainda que, como digo desde 2008, ela não disponha de liderança para este papel — mas, agora, que ela já dele está investida, não há outro remédio senão ir até o fim, explorando o que de auspicioso para si ainda possa haver na incerteza que a vida política sempre conserva); segundo, que sua opção para vencer a crise inclui uma efetiva preocupação com a desigualdade e com a situação dos mais pobres sob ela. Ao recuar, Dilma perdeu de todo lado e deu mais um passo para se tornar mais um Sarney, ou simplesmente ter de deixar de ser presidente da República.

Como quem muito recua acaba por encontrar o inimigo pelas costas, Temer avançou mais algumas polegadas na sua calculada trajetória de “não-traição”: depois de proclamar que alguém precisava unir o país, ele agora declarou, à platéia de um movimento pró-impedimento com o qual aceitou se reunir, que Dilma não terá condições de continuar presidente sob baixos índices de aprovação popular, não sem acrescentar, com a gravidade empoada de sempre, que nada fez, faz ou fará pela queda dela… Se, num primeiro momento, a reação do p-MDB à proposta da volta da CPMF pôde ser interpretada como mais um passo no controle sobre Dilma, como explorei aqui, agora, depois que ela não enfrentou aquela reação e, simplesmente, recuou, o que há de desafiador na situação é o por quê de Temer ter entendido que substituir seria mais vantajoso do que meramente controlar sarneycamente a presidente. A chave para entender a mudança está, de um lado, no fato de que para os políticos profissionais em condições de chegar ao poder com a ruína de Dilma, o quanto pior, é melhor; e, de outro lado, na pergunta que se faz o empresariado (aquele que conta) acerca de o que é esse pior?: se a queda de Dilma (que vai deixar Lula solto para mobilizar os de baixo contra o governo que se instalar – é bom não subestimar essa variável), ou se a continuação dela, que impõe pactamentos novos com o braço político.

Como a situação econômica se deteriora na exata medida em que se nega à presidente o apoio político profissional necessário para que ela implemente as medidas que, se sabe, devem ser tomadas para conter a crise, e como a piora da situação econômica aumenta a incerteza dos empresários poderosos sobre o que vai resultar da movediça inquietação popular ante os sofrimentos impostos pela mesma crise, as duas faces do establishment, a político profissional e a econômico empresarial entraram em momentânea assimetria: os políticos querem mais crise para resolver a sua “crise” e os empresários querem menos “crise” para equacionar de modo favorável a crise. Ou seja, para o establishment, se não há crise de hegemonia, há “crise” no modo de operar politicamente a hegemonia que, não obstante, não se perdeu. A desarmonia surgiu porque profissionais do p-MDB passaram a enxergar no exercício direto da presidência, via Temer, uma solução não apenas para a “crise”, mas também para implementar com ares de salvadores da pátria a mais conservadora das saídas para a crise. Me explico: como a opinião pública foi convencida tanto de que a situação econômica grave é desesperadora (e não é), quanto de que a culpa é sobretudo de Dilma (e não é — o pacto do Real é que entrou em falência, pois a conta um dia ia chegar), como a opinião pública já foi devidamente embrulhada, eu dizia, o júbilo com o sacrifício de Dilma proporcionará a credibilidade que o novo presidente voltará contra a imensa maioria dos próprios jubilantes: medidas de austeridade que protejam os ricos, penalizem as camadas médias e sacrifiquem os mais pobres. Assim como Itamar proporcionou o lançamento do Real, Temer levaria a cabo o “relançamento” de um plano salvador, via recauchutagem, mas sem as qualidades do plano de FHC. Ainda assim, o que não vai faltar é candidato a ministro da fazenda…

A variável incerta é Lula. Por isso, busca-se, sem parar, desgastá-lo, explorando todo e qualquer indício de sua participação nos malfeitos, não sendo mesmo crível que ele nada soubesse e de que não tenha tirado proveito para si dos malfeitos. Lula colhe a safrinha do que plantou, adubou e regou. Ainda assim, até que tenham encontrado provas que o incriminem, seus adversários sabem que não podem subestimar sua força, especialmente numa conjuntura em que a saída que querem implementar passa por sacrificar ainda mais a já sacrificada pobreza do país: com Lula na oposição e podendo “voar”, vai haver confusão (e confusão sempre abre brecha para pôr em risco a hegemonia). Os empresários, cuja maior capacidade é fazer conta no longo prazo avaliando a solidez do curto prazo, são mais cautelosos e temem a saída de Dilma; os políticos profissionais, cujas contas sempre incluem ambições de curto prazo, deixando o longo prazo para o “estaremos todos mortos”, estão mais prontos a tomar o lugar de Dilma. Eis uma típica situação de desordem na ordem do mando: o rabo está a abanar o cachorro.

Ou seja, à medida que o tempo passa o acordão telepático que havia praticamente sido alcançado em torno de Dilma vai apresentando essa dissintonia, própria de acordos que não resultam de uma conspiração, mas de leituras de uma realidade complexa, as quais só alcançam convergência de modo indireto e incerto. Por mais oportunistas e nefastos que sejam esses atores que sempre ganham, uma coisa é certa: em última instância, o principais culpados pela situação política adversa ao povo são Lula e o PT: depois de terem assinado o contrato de adesão ao pacto do Real, depois de terem abandonado suas bandeiras originais e se entregado aos êxitos fáceis da condução ruinosa desse pacto não menos ruinoso para os mais pobres e as camadas médias, Lula e seu PT ainda se ajeitaram em torno da candidatura Dilma (imposta pelo primeiro ao segundo), ambos fiados num acordo com o p-MDB que, agora, se posiciona para herdar — e desviar (profissionais que são do tráfico de esperanças) — a energia vital que a sociedade brasileira se vê chamada a despender para sair da crise. Se as coisas se passarem assim, ao fim e ao cabo vamos recolher uma derrota ainda maior do que de início supus, pois esmagado pelo peso que terá pagado para que as elites mais uma vez tenham se safado de uma crise da qual são responsáveis, nosso povo, mais uma vez, vai concluir que de nada adianta lutar. Esse é o maior crime do lulopetismo, pois, por mais medo que, agora, imponha ao “outro” lado, ele não tem a menor condição de tirar da implosão uma variante auspiciosa para o povo. Ou seja, ao fim e ao cabo, a implosão decorrente de uma saída de Dilma não tem nada de incerta: vai sobrar para o povão.

Fica o Registro:

Quando, dias atrás, Alckmin declarou que o importante é varrer o PT, ele não estava visando a luta interna no PSDB, como se interpretou na mídia convencional. Não. Ele estava a reconhecer o adversário em 2018 e, por isso, dava uma resposta ao “voltei a voar” do Lula que, por sua vez, não foi menos arguto na interpretação da ocasião para declarar-se de volta ao jogo: o cai ou não cai de Dilma depende também de o quanto o temam, e o resultado contra si de uma queda dela depende de o quanto ele venha a ser identificado com os erros dela — por isso, depois de passar a voar Lula declarou que Dilma deve suavizar o ajuste. É leitor, a qualquer cochilo se perde o fio.

– Repito: não se pense que Lula está amarrado à marca PT. Se necessário, sacrificar-se-á a marca e ele voltará, no vetor de uma “frente popular de oposição à saída da crise em favor dos pobres”, encabeçando um movimento popular que por certo reunirá muita gente boa aos burocráticos e oligárquicos movimentos sociais. E tudo recomeçará, mais uma vez em torno da luta de classes, esse eixo que, partido desde a segunda década do século XX, continua a ser manipulado em vão.

O racha no p-MDB tem importância central na ação de Temer: sem força para decapitar Cunha (cujo poder de articulação fora do parlamento vem se mostrando maior do que se supunha – em mais uma demonstração da decadência de nossa ordem política), o vice-presidente se vê empurrado a fugir para a frente, reunindo mais poder para recolocar a casa, o p-MDB, em ordem. Para Temer, se houver mudança de rota no partido, que seja sob o comando dele, não de Cunha.

– O que explica esse racha no p-MDB é o fato de que o ambicioso e atrevido Cunha viu, e está a explorar, a brecha para um projeto próprio que a ruína do PT abriu para o seu partido. Ele quer liderar o p-MDB para uma nova fase, que rompa com a história subalterna da legenda, que vem desde 1965, surfando na onda, a um só tempo conservadora e mudancista, que está a se abrir.

– Ia esquecendo: a “proposta” do Abílio Diniz é tão primitiva quanto ele. Deixando de lado a complexidade da situação, que venho buscando discutir em seguidos posts e que já não comporta “soluções” desse tipo, de onde ele tirou que FHC toparia se trancar com Lula em algum lugar!!???

SER-ney ou NÃO SER-ney

Carlos Novaes, 29 de agosto de 2015

Se toda crise traz alguma desorientação, a combinação de “crise” política fajuta com crise econômica real desorienta muito mais. A tônica na mídia e no meio político profissional diante dos últimos lances de Dilma pode ser resumida numa palavra, suicídio, termo, aliás, empregado por vários analistas. Penso diferente. Ao pretender a volta da CPMF Dilma demonstra que não abriu mão de exercer as funções de presidenta, por mais que isso contrarie aqueles que almejam remove-la do cargo — o que não quer dizer que o gesto tenha melhorado sua situação, pois ao propor a volta de um dispositivo controverso que, ainda por cima, é um “imposto”, Dilma atiça o alarido contra si. Mas é justamente aí que está o núcleo do que há de desafiador na situação, e que reclama análise. Vou tentar.

Tal como quem corre de uma tempestade, Dilma vem buscando se colocar um passo adiante dos que querem lhe tomar o mandato. Um mandato que ainda não pôde iniciar porque colocaram na conta dela uma “crise” política pela qual a responsabilidade dela é mínima: a “crise” política é o modo de apresentação da desorientação em que se encontra o mundo político profissional que, de tão apartado da sociedade, não tem nela ponto de apoio para arbitrar um novo modo de partilha do butim e, assim, está a depender tão-somente de ganhar tempo para ver como sai da encrenca, se pondo a gerar tanta confusão e alarido midiático quanto seja capaz — e o que não falta é jornalismo néscio, afeito ao papel. De modo que a crise econômica real, que Dilma seguiu chocando no primeiro mandato, veio à luz sem que a presidente reeleita possa enfrentá-la com a força da presidência porque quem quer retirá-la do cargo escolheu como ideal a reunião de dois mundos: culpá-la pela crise (em que ela tem culpa, mas que resulta de lances dados desde o início do Real, que na crise se desfaz) e, cinicamente, impedi-la de enfrentar essa mesma crise, mesmo quando ela propõe medidas que são também as desses seus opositores — e o país que se dane, claro!

Ora, ao propor a volta da CPMF Dilma está tentando governar. Ou seja, ela não está deixando-se intimidar pelo alarido da “crise”, ela mostra que não acovardou-se diante da ameaça real de impeachment, ela deixa claro que tudo fará para não se tornar um Sarney, ela exibe disposição para enfrentar a crise econômica que massacra o país. Não é pouco, especialmente quando sabemos das limitações políticas e do despreparo da presidente (pergunto: quando e onde limitação e despreparo foram razões para impeachment, leitor!?). É nessa moldura que as reações de Renan, de Temer e da miuçalha que o p-MDB sateliza devem ser examinadas. Ao tentar dar um passo adiante da “crise”, ao tentar governar o governo e, então, o país, Dilma ameaça desgarrar-se da “crise” e, assim, o p-MDB puxa a presidente de volta: eles a querem em meio à “crise” em que estão, para que tudo pareça a mesma coisa — e, claro, não se importam que a crise econômica piore, pois estão certos de que o país sobreviverá, não importando os sofrimentos materiais impostos à sociedade que, despreparada e desorientada, se deixa levar.

Renan fala em “tiro no pé”, Temer faz fintas diversionistas em torno de sua lealdade à presidente pretendendo dizê-la desleal, quando ela só está tentando governar (vice é vice, oras!). Tudo isso precisamente porque as possibilidades de impeachment são menores a cada dia — eles precisam da ameaça do impedimento da presidente para tentar arrastá-la, a contragosto dela, àquilo a que Sarney, de bom grado, se abandonou: refém das negociatas no Congresso comandando pelo p-MDB, secundado por forças satélites que, como ele, sobreviveram à ditadura e recuperaram energia justamente porque PT e PSDB as realimentaram na luta inglória (e bota inglória nisso) em que se engalfinharam. A desorientação é de tal ordem que “analistas” e leitores tem se lançado a reclamar de Dilma justamente quando ela tenta se desvencilhar dessa mixórdia, quando ela tenta, ainda que cheia de culpa no cartório, é verdade, fazer uso da procuração que recebeu de um modo que, ao enfrentar a crise econômica que maltrata a sociedade, também tenta evitar que o rearranjo da política profissional se dê segundo o velho modelo que infelicita essa mesma sociedade que, de tão inerme em sua face desorganizada, e de tão oligarquizada em sua face organizada, mesmo diante dessa desordem não exibe nenhuma força de transformação. Dilma ainda é a alternativa menos ruim.

Fica o Registro:

Ao reclamar da volta da CPMF, a Fiesp exibe dupla falta de idoneidade: primeiro, porque essa Federação, por interesse e dever de ofício, sempre irá reclamar de impostos; segundo, porque ela é presidida por um político do p-MDB no qual o que não falta são ambições políticas desprovidas de escrúpulos.

Ao se lançar à presidência em 2018 Lula faz um salto triplo: adverte os que ainda tentam aprofundar suas perdas com a Lava Jato. como a dizer que pode incendiar a lona do circo; deixa claro que estará na oposição de um governo que suceda Dilma antes de 2018 e inicia a arregimentação das forças burocráticas e oligarquizadas que colonizam a energia transformadora insciente e insipiente que há no país. Dentro das suas limitações, é uma jogada de quem está lendo com argúcia a situação política.

Ao ameaçar com o Código Penal os críticos dos políticos profissionais, a Câmara dos Deputados de Eduardo Cunha crava mais um prego no profissionalismo político. Definitivamente, leitor, Chega dos mesmos! Pelo fim da reeleição no legislativo.

Aécio declarou que nos desdobramentos da Lava Jato Cunha terá de se afastar da presidência da Câmara, no que foi prontamente desmentido pelos parlamentares do próprio PSDB que preside — é “crise” para ninguém botar defeito, não é não?

A proposta de pacto em torno de sepultar o impeachment e levar até o fim a Lava Jato (mas que grande ideia!!) é chover no molhado, afinal, é justamente isso que vem ocorrendo há semanas, a despeito do alarido da mídia, das jogadas dos políticos profissionais e da sapiência de certos analistas. E as coisas se passam desse jeito porque o velho não morre e o novo não tem forças para nascer, e não porque ainda restam políticos responsáveis e que amam o país… Não há nem força transformadora, nem uma “força política maior” que resolva a situação de uma maneira ainda mais favorável aos muito ricos, como o presidente da Fiesp reclama (deve ter saudades de 1964). No final, não vai faltar pai dessa “ideia” de pacto salvador, que não foi ideia de ninguém, mas mero resultado do empate lamacento em que estamos metidos.

DILMA DEVERIA SAIR DO PT

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2015

 

Sigo entendendo que o menos ruim para o país é Dilma cumprir seu mandato, pelo menos enquanto não houver evidência de crime seu. Por isso, embora faça o registro do quão lamentável é o acordo em curso para mantê-la no cargo, não deixo de ver a vantagem que ele tem para aqueles que seguem na busca de caminhos para enfrentar a desigualdade brasileira: a permanência de Dilma impede que a presidência seja definitiva e diretamente entregue aos esquemas de poder e ao reacionarismo que hegemonizam o poder Legislativo. A permanência dela nos dá tempo, até porque a falta de alternativa para nós é notória, dada, de um lado, a burocratização e a oligarquização que marcam os autointitulados movimentos de esquerda e, de outro, a desmoralização em que se acha a não menos autointitulada variante política da sustentabilidade.

Dito isto, fica cada vez mais claro que a presidente e os que a cercam não ajudam. Suas declarações e anúncios dos últimos dias mostram não apenas a fragilidade política do núcleo do poder, mas, sobretudo, seu despreparo para entender a complexidade da situação em que estão metidos, mesmo depois de o tempo já ter indicado os vetores mais evidentes da situação adversa: o primeiro vetor é a absoluta inutilidade de qualquer mea-culpa; o segundo é a total falta de credibilidade de Dilma para prometer o quer que seja.

Fazer mea-culpa é dar carne a leões que, por definição, pedirão sempre mais. Fazer promessas é abrir o flanco para o escárnio público, que se fará cada vez mais merecido a cada promessa. A única coisa que Dilma pode fazer é agir. Se entendeu ter errado, tome atitudes para corrigir os erros; se quer realizar mudanças, faça de sua realização o anúncio mesmo delas. De modo que nada poderia ter sido pior do que as atitudes recém-tomadas pela presidente: chamou a imprensa para dizer que errou e anunciou um corte de ministérios e de cargos comissionados quando não tem sequer um plano claro de como rearranjar e o que cortar! Dilma ainda não entendeu que o seu tempo acabou, o que resta é, quando muito, um penoso mandato.

Como, na prática, reconhecer erros implica alterar a condução da economia na direção contrária ao discurso demagógico do PT (que aceitou caladinho o arrocho do Lula no primeiro mandato); como, na prática, diminuir ministérios e cargos comissionados vai exigir sacrificar postos hoje ocupados pelo PT (em nome dos quais o partido abriu mão de suas bandeiras),  e como essas duas mudanças iriam, de um lado, ao encontro do que a opinião pública tem sido levada a entender como acertado (especialmente em razão de o PT estar atolado em corrupção) e, de outro, criariam desafios novos para a sustentação do governo no Legislativo, Dilma deveria se desfiliar do PT e conduzir o que vier a lhe restar de mandato fora de qualquer partido.

GRAÚDOS E MIÚDOS

Carlos Novaes, 20 de agosto de 2015

 

No rescaldo das ruas, qualquer um pode observar que, na contramão delas, a situação de Dilma não só parou de piorar, como melhorou. Nada surpreendente para quem acompanha este blog. Mas a ação das ruas não foi inócua, afinal, ela permitiu a toda gente avaliar o estofo dos profissionais políticos de que dispomos. À medida que a incerteza se espraiou e que o desfecho da “crise” se aproxima, não só os atores centrais mostram quem são, mas também os periféricos, que vinham fora do olho do vórtice, vão sendo arrastados a se posicionarem (ou reposicionarem). Foi assim que as manifestações de quatro dias atrás levaram Fernando Henrique — que não é um aventureiro e vinha se conduzindo de modo solene, sempre afinado com o hemisfério político que representa, o da prudência, desde que por prudência se entenda a condução responsável e consequente dos interesses do establishment –, as manifestações de rua, eu dizia, levaram FHC a mudar diametralmente de posição: em poucos dias , sem que tivesse havido qualquer alteração na situação jurídica de Dilma, ela passou de “honrada” a “ilegítima” e o sociólogo passou de “estadista” a dublê de golpista, sendo finalmente arrastado pela “direção”(!) do PSDB. Mandou às favas os escrúpulos com “nossa jovem democracia” e fez coro com os espertalhões que vem a tentar transformar um desarranjo político numa crise institucional, usando como pretexto a ira popular contra medidas impopulares, como se fosse crime de responsabilidade um governante adotar medidas que contrariam a opinião pública — se fosse assim, ele próprio deveria ter sido afastado do cargo em 1999, depois de ter desvalorizado o Real mal fechadas as urnas da reeleição em que prometera não fazê-lo, e em cuja campanha chamara de fracassomaníacos aqueles que apontavam os erros que a desvalorização veio comprovar.

Política é como programa de auditório, se der espaço, as aberrações se apresentam. Assim, uma vez abertas as comportas do oportunismo por FHC, figuras como Geddel Vieira Lima saem das sombras para dar entrevistas. Tal como em programas de auditório, também na política é pela baixaria que surge a verdade, como comprovam as declarações de Geddel que, em alto e bom som, disse o que pode ser resumido assim: a esculhambação em que vínhamos nos locupletando até aqui entrou em falência e precisamos encontrar um outro modo de operar. Desafio qualquer um a encontrar resumo mais apurado do que esse para a “crise” política brasileira que, como venho insistindo, é uma “crise” do modo de operar dos profissionais, por sua vez sobreposta ao desmanche do pacto do Real. Se não houver freio algum na Lava Jato, figurões do p-MDB, aliados de Geddel, se não o próprio (impossível não é) irão logo-logo aparecer entre os indiciados. Como foi dito aqui no dia 14, ainda antes das manifestações, Cunha já foi enquadrado, mas até por dificuldades de comando no p-MDB, ele vem tendo alguma margem para poses que lhe permitam uma saída “digna” do proscênio – talvez a Lava Jato não lhe dê tempo de completar a manobra. Vamos ver.

Por enquanto, as elites empresariais preferem conduzir o desmanche do arranjo falido mantendo Dilma na presidência. Veem na continuidade dela um prazo para uma outra solda. À prudência delas, que é orientada pelo fato de que são as senhoras do tempo, se opõem certos profissionais da política que, mais premidos pelo calendário, julgam poder tirar do fogo, aqui e agora, as castanhas que ambicionam, como Aécio e Serra. Se não surgir nada juridicamente consistente contra Dilma, o empresariado deve prevalecer. O acerto final, para o qual ninguém propriamente sentou à mesa, claro, mas em torno do qual todos se entenderam, parece ser, até aqui, o seguinte: Dilma fica; a indômita Lava Jato prossegue, deixando ao STF os lances de acerto para tentar livrar um ou outro;  o processo da Zelotes morrerá de inanição no âmbito administrativo; cada um dos partidos incorpora como puder os próprios prejuízos; e, jogo jogado, quem sobreviver volta em 2018 para dar mais uma volta no parafuso, quando, se imagina, a contração fiscal terá dado alguma folga. Em suma, o merecido estrago já alcançado, e ainda em curso, contra o PT e Lula parece estar em vias de satisfazer aos atores que contam. Querer ir além, removendo Dilma, é para afoitos que arriscam-se a colocar fogo na lona do circo.

Nesse jogo de gente grande, há também quem pretenda tirar as castanhas do fogo sem risco de pelar as mãos. A melhor representante dessa estirpe é Marina Silva, que, depois de quase nove meses “ouvindo”, embora dando a entender que era contrária ao impeachment, avaliou errado o lugar da rua nesse jogo de profissionais e reapresentou-se, aos 42 do segundo tempo, com a mais sinuosa das declarações. Por dever de ofício, li, sopesei cada palavra e garanto: quem não leu a longa e enfadonha peça nada perdeu. A vacuidade é total. Não há ali nenhuma reflexão. Não há ali qualquer ideia. Não há ali uma única proposta. Ao dizer que Dilma já foi “saída” da presidência, Marina saiu da moita para “aderir”, sem engajamento (é claro), a uma campanha de rua que fingia não endossar: o fora Dilma. Depois que seu guru FHC mudou de lado, Marina, firme como estaca no pântano, achou que podia ter seu dia de Ulisses Guimarães. Veja bem, leitor, não é que Marina Silva finalmente escolheu resolutamente um lado. Não. Ela apenas pôs o pé na rua, mas voltou rapidinho para a calçada (sempre a do lado conservador, claro). Foi uma saidinha rápida, dessas de porta de banco, apenas para se calçar, afinal, nunca se sabe — vai que a Dilma cai, não é mesmo?

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 4 – Deu na Folha de hoje – entrevista da segunda

Carlos Novaes, 17 de agosto de 2015

Dando continuidade à minha mania de responder ao que não fui perguntado, leia abaixo minhas respostas à entrevista que a Folha fez com o Sr. Carlos Pereira, cientista político, que vê razões para impeachment e diz que o país não deveria desperdiçar a “oportunidade de mudança”…

Folha – Qual é o seu balanço sobre os atos deste domingo?

Pereira – Vejo como um movimento. Algo que começou de forma difusa, sem foco, com uma insatisfação generalizada. A sociedade não conseguia identificar qual era a fonte desse mal-estar. Uma classe média que viu a situação melhorar na vida privada, renda, crédito, mas não viu melhoria no serviço público. Isso vem desde 2013. Agora, fica claro que a população identifica, como a fonte dessa insatisfação, a presidente Dilma, o PT e, o mais surpreendente, o ex-presidente Lula. A mobilização pelo impeachment tem de ser ininterrupta, é de longo prazo. Nessa perspectiva, acho que foi muito bem sucedida.

NOVAES – Não dá para querer, ao mesmo tempo, aumento do consumo privado, melhoria nos equipamentos e serviços públicos e manter a desigualdade, ou seja, o modelo que permite aos ricos concentrar riqueza. As camadas médias pagaram os custos do pacto do Real: aumento do consumo pessoal e familiar com o sacrifício dos serviços e equipamentos públicos, pois aquele aumento tinha de sair de algum lugar, já que o pacto prevê que os ricos não podem perder. Ao identificar Dilma e Lula como responsáveis pelo seu infortúnio a classe média, como sempre, faz o serviço pela metade, poupa o PSDB, o p-MDB e todo o establishment político e, por isso mesmo, vai na direção mais fácil, tirar Dilma, sem pensar nas consequências.

Em São Paulo, a manifestação reuniu 135 mil pessoas. Mais que abril, menos que março.

Pereira – O número é importante. Mas não só. Hoje, fruto do resultado do julgamento do mensalão e mesmo do petrolão, que vem se desenvolvendo muito rapidamente, há uma expectativa muito positiva em relação à Polícia Federal, o Ministério Público, o Judiciário. Então talvez a eficiência desses mecanismos de controle tenha arrefecido a manifestação. Uma delegação do eleitor aos órgãos de controle, é uma sofisticação.

NOVAES – O número foi expressivo, isso não pode ser negado. Atribuir uma suposta diminuição na participação a uma delegação às instituições exige pesquisa muito bem feita, de que não disponho.

Desde o apelo do vice Michel Temer por união percebe-se uma movimentação de setores empresariais pedindo moderação. Como avalia?

Pereira – Percebo uma tentativa de construção de um acordo para sair da crise com o argumento da necessidade para que as elites sejam responsáveis, evitem o aprofundamento da crise econômica. Há notícias de reuniões do presidente da Globo com líderes do governo e da oposição com apelos sobre esta suposta responsabilidade. A pergunta fundamental hoje é saber o que de fato significa ser responsável. A história oferece janelas de oportunidade para mudanças. Identifico que estamos vivendo uma dessas janelas. O Brasil sendo chamado a decidir se quer se transformar mesmo em um país desenvolvido. Todos os países que alcançaram padrão de desenvolvimento reforçaram seu estado de direito e suas instituições democráticas e de controle.

Essas escolhas não são destituídas de custo. Entretanto, quando sociedades optam pagar esse custo de curto prazo são beneficiadas no futuro. Portanto, ser responsável hoje é não compactuar com comportamentos oportunistas. Transigir sob o argumento de caos político e econômico acarretará maiores custos, pois estará se alimentando um cinismo cívico de que tudo vale.

NOVAES – Tratei no post imediatamente anterior desse acordo para sair da “crise”. Esse acordo está propondo o certo (a manutenção de Dilma) pelas razões erradas (salvar o sistema político tal como é). Não há janela de oportunidade de mudança nenhuma porque a “crise” não traz alternativa virtuosa, auspiciosa, e  muito menos, claro, emancipatória. Não há alternativa virtuosa porque os que podem substituir Dilma são piores do que ela; não há alternativa auspiciosa porque a queda de Dilma não dá espaço a nenhum avanço institucional transformador; não há alternativa emancipatória porque a queda de Dilma se daria num momento de agudo recuo e desorientação das forças transformadoras que ainda terão de se realinhar no país – o momento é de e uma ofensiva conservadora e reacionária, que a queda de Dilma premia.

O moralismo do Sr. Pereira é primário. Nem vale à pena discutir. O que interessa numa hora dessas é identificar a que, e a quem, as forças da “mudança” estão a favorecer… é aí que se tem de engastar a discussão “moral”.

Na sua opinião, há razão para abertura de um processo de impeachment contra Dilma?

Pereira – Acredito que sim. Há vários elementos que suscitam a formação de maioria no parlamento pelo impeachment. Lembrando que é um processo político. Há vários indicativos de crimes eleitorais e de responsabilidade. O Tribunal de Contas da União está em vias de analisar as contas. Pareceres preliminares foram muito críticos. O relator apresenta consistência em suas declarações. Vários economistas mostram que esse comportamento de maquiar contas foi recorrente. E as evidências de delações. Ainda não se sabe o conteúdo de tudo. Mas o que eu depreendi da decisão do procurador-geral para não abrir inquérito contra Dilma é que não foi por falta de evidências, mas porque isso foi estranho ao mandato atual. E a interpretação que ele faz é que só é suscetível ao impeachment quando o delito é cometido no mandato em vigor.

NOVAES – (ver adiante meu sintético apanhado geral dessas tergiversações)

Mas isso está expresso na Constituição, não é bem uma interpretação.

Pereira – É, exatamente. Mas há juristas de muito calibre que têm interpretações distintas, como Ives Gandra, Miguel Reali. É aberto para o debate.

NOVAES – (ver adiante meu sintético apanhado geral dessas tergiversações)

Então qual é, exatamente, o crime de responsabilidade cometido pela presidente?

Pereira- Pois é. É muito difícil dizer. É uma interpretação política. Collor sofreu impeachment sobre crime de responsabilidade, mas foi absolvido da acusação de crime comum no STF. Então mesmo havendo divergência de interpretação entre instâncias de deliberação sobre um processo de impeachment, o impeachment ocorreu. E para que a decisão alcance um grau de legitimidade, quanto mais aderente a acusação alcançar densidade empírica, mais substancial será o processo.

NOVAES – Pois é… O pobre Sr. Pereira, sendo só um pouquinho apertado pelo jornalista, já não tem como esconder que o que o orienta é uma mera preferência política pelo afastamento de Dilma… Onde está, agora, seu aparente apego às “instituições da nossa democracia”? Precisa dizer mais?

No caso, o impeachment teria que ser aberto pelo presidente da Câmara. Mas Eduardo Cunha é acusado de receber US$ 5 milhões oriundos da corrupção. Há legitimidade nisso?

Pereira – É uma contradição incrível isso, né? É interessante isso. Como o presidente da Câmara e o do Senado [Renan Calheiros] são investigados, o jogo adquiriu um grau de sobrevivência individual desses atores. Assim, a estratégia dominante tem sido tentar vulnerabilizar ao máximo a presidente. É para sinalizar a ela não tem saída a não ser que esses atores também sobrevivam. Mas eu acho que o Executivo não entendeu isso e adotou uma estratégia de isolamento do Eduardo. Aí a crise se aprofundou.

O surpreendente é isso que você diagnosticou: quem tem a capacidade de abrir a investigação é um outro acusado, com evidências fortíssimas. Nesse cenário, acredito que aumentam as chances do impeachment. Meu diagnóstico é que ou esses atores sobrevivem juntos ou morrem juntos. Não vejo como um sobreviver e outro morrer.

NOVAES – Não, Sr. Pereira, não é uma contradição, muito menos “incrível”. Chegamos ao centro da questão: onde o Sr. Pereira vê contradição, não há contradição alguma. Ele precisa de uma contradição porque a equação dele não fecha, pois ela gira em falso em torno da tese do impeachment, cujos resultados vão, necessariamente, beneficiar gente pior do que Dilma! Não há na “crise” atual a oportunidade de a sociedade brasileira se livrar dos três grandes articuladores do pacto e da corrupção que a infelicitam, o p-MDB, o PT e o PSDB, junto com seus aliados. Em outras palavras: o grande problema é que a “crise” não é uma crise para valer! A “crise” é um desarranjo no establishment e o impeachment é só um freio de arrumação. Não há alternativa a Dilma melhor do que Dilma para quem quer ir além do pacto do Real, para quem quer enfrentar a desigualdade e a corrupção. É certo que Dilma não vai além do pacto, nem enfrenta a desigualdade, mas tirá-la é recuar ainda mais nessas frentes. O melhor é ficarmos com o calendário de 2018 e lutar para reunir forças em direção à transformação na sociedade. Como tirar Dilma é só um freio de arrumação na política como ela é, os grandes empresários, com razão (da perspectiva deles, de não fazer marola desnecessária na condução da ordem que os favorece), não vêem necessidade de  correr os riscos da instabilidade que essa freada pode gerar. Eu, ao contrário deles, não tenho esperanças de que essa freada possa trazer algo de fecundo contra os interesses deles e, assim, a contragosto, tenho de reconhecer, embora com ânimo contrário a eles, que tirar a Dilma é pior.

A política nacional é marcada pela polarização PT-PSDB desde 1994. Podemos esperar algo diferente no próximo período?

Pereira – Acho que sim. Estou muito pessimista com o futuro do PT. Não acho que o PT vai acabar, até porque tem uma burocracia grande e muito distribuída que depende dessa estrutura partidária. Mas vai haver uma progressiva migração. Alguns vão criar novos partidos de esquerda. A velocidade disso vai depender diretamente da extensão das punições judiciais.

NOVAES – Sim e não. Embora o PT esteja liquidado, ainda poderá vegetar na força da máquina, como eu já disse aqui. Se Dilma vier a cair, as possibilidades de Lula ter alguma chance em 2018 (quando pensadas em relação à situação atual dele) aumentam um pouco, pois haverá um governo não aliado a criticar (supondo que o Lula vá para a oposição!)… Se ela não cair, a recuperação econômica, se ocorrer, pode recolocar Lula no páreo. De um modo ou de outro, não se deve descartar um sacrifício da marca PT via transfiguração numa autointitulada frente de esquerda, encabeçada por Lula, etc… Em suma, a ausência de um vetor transformador faz com que tudo gire sem rosca e tudo pareça possível. Mas nem tudo é possível: não há chance de se tirar alternativa transformadora da situação.

E o PSDB?

Pereira – O PSDB, de certa forma, está de camarote nesse jogo. Vai tentar pegar o espólio disso. Teve um candidato muito competitivo em 2014 e, de acordo com as pesquisas, tem uma dianteira sólida agora. Então o PSDB corre menos riscos. Acredito que o jogo vai ficar entre PSDB e PMDB na próxima eleição. Daí porque, no caso de um impeachment, vejo a dificuldade do PSDB em apoiar um novo governo [com Temer]. O PSDB já começa a identificar o PMDB como seu principal rival. Mas vai ser muito pouco crível que o PSDB não participe de um governo de transição sob a liderança do PMDB.

NOVAES – Primeiro, o PSDB não teve um candidato “muito competitivo” em 2014. Aécio só virou preferência depois que o eleitorado que queria mudança viu que não tinha para onde correr. Ou seja, a “competitividade” de Aécio foi decorrência da mesma falta de alternativa que estamos vivendo nessa “crise”, e isso não se dá por acaso…

Segundo, no caso da queda de Dilma, um governo Temer teria, hipoteticamente, três opções: 1. formar um governo do p-MDB com o PT, deixando tudo mais ou menos como está, mas trocando as “ênfases” na ocupação dos cargos de poder; 2. formar um governo do p-MDB com o PSDB, rearranjando totalmente os ocupantes dos cargos de poder entre estes dois partidos, mas para fazer a mesma política de sempre; 3. formar um governo do p-MDB com o varejão do Congresso, com PSDB e PT sendo buscados pontualmente. Ora, não precisa ser muito esperto para ver que qualquer uma das três opções é pior do que Dilma…

Terceiro, permitam-me perguntar ao Sr. Pereira: governo de “transição” de onde para onde?

A oposição é cobrada por estar votando contra medidas que ela defendia só para atrapalhar Dilma. Como vê isso?

Pereira – Quem faz essa crítica não percebe que para a oposição, numa situação de polarização, não há espaço para um comportamento responsável no curto prazo. Ser responsável hoje significa aumentar o tempo que vai continuar na oposição. A estratégia para a oposição é vulnerabilizar ao máximo a presidente. E sabendo que ela está muito constrangida do ponto de vista fiscal, e sabendo que a probabilidade dessas medidas passarem é baixa, pois, em última instância, a oposição sabe que ela vai vetar, o que a oposição está fazendo é o jogo de transferir a responsabilidade do veto à presidente.

NOVAES – quem está sendo cínico e aceitando o cinismo, agora!? A polarização é falsa, pois eles defendem a mesma política desde pelo menos 2002!! Mas o Sr. Pereira não está sozinho: além dessa ideia esdrúxula de que é aceitável ficar contra suas próprias posições, nessas últimas semanas tem sido comum encontrar na imprensa apoio à tese tucana de que não cabe à oposição oferecer caminhos, que a crise é do governo. Ou seja, eles, agora, se conduzem como se fossem revolucionários e esquecem que uma oposição liberal tem, sim, de oferecer caminhos. ATENÇÃO: não é que os tucanos não tenham caminho a oferecer, é que a alternativa deles tem a mesma orientação (por isso o país está empatado, não dividido, como já discuti aqui), só que mais danosa, pois eles tem preferência por soluções mais duras, como já discuti aqui.

Mas não é esse o tipo de comportamento que, no fim, vai distanciar ainda mais os eleitores? Isso é um cinismo. Não seria, com sinais invertidos, um estelionato da oposição?

Pereira – Não resta dúvida. O ponto é saber até onde a oposição pode ir com isso. Até quanto o custo gerado para a presidente compensa o custo da perda de grau de legitimidade com a sociedade em função de fazer isso? Mas queria destacar que a opinião pública pode não estar vendo esse componente estratégico, vê só o componente de princípios.

NOVAES – O jornalista fez picadinho dele. É nisso que dá misturar preferência com análise ruim!

O p-MDB, os Quatro Poderes e a Rua: encontro infausto

Carlos Novaes, 14 de agosto de 2015

 

Nos últimos dias, a “crise” política brasileira (para entender as aspas, leia o post imediatamente anterior) dá sinais de que vai encontrando sua saída em mais um arranjo propício à lógica de palácio, mas há incerteza quanto ao desenho final do favorecimento porque a lógica da rua ainda se faz ouvir (embora sem oferecer virtualidade emancipatória). A lógica de palácio se arranja porque o p-MDB (de Sarney, Renan e Temer) dá sinais de que vai permanecer na condição de quem dá rumo sem parecer que dá (ao contrário do que o voluntarismo desgarrado de Cunha pretendeu); a lógica da rua não apresenta virtualidade emancipatória precisamente porque favorece o arranjo de palácio, pois ao invés de ter como alvo a política profissional, escolheu como objetivo derrubar Dilma, uma meta coxinha, adequada a quem se dispõe a fazer papel de ativista café-com-leite, a ser sorvido, lentamente, pelos ocupantes do palácio. Mesmo que Dilma caísse, a lógica de palácio iria imperar, pois os partidários da presidente estão desmoralizados, embora não se deva descartar assim sem mais o quanto a desinformação possa levar o outro lado da rua a se perfilar em defesa dela… (a marcha das Margaridas, que homenageou Lula, teve, assim, o inconfundível perfume dos recados – e a foto em que aparecem o mesmo Lula, Renan, Sarney!, Temer e Jader Barbalho! apresentou, como contrapartida, a pose da alternativa de contemporização ao alcance da mão).

É justamente o temor do que pode vir do outro lado da rua que vai fazendo a luta interna no p-MDB pender para a tradição de só chutar bola parada. Como já vimos aqui, Cunha aflorou não por ter méritos inusitados de liderança, mas pela desmoralização do PT, que levou junto quase toda a legitimidade das bandeiras justas que fingia defender. Diante da desordem que essa desmoralização gerou no lado “adversário” (que, na prática dos profissionais, não era adversário coisa nenhuma, pois o PT era só mais um a disputar os mesmos poder e dinheiro), diante da desorientação, eu dizia, Cunha calculou que era a hora de dar um chutão na bola em movimento, e pôs na ordem do dia do Congresso dos profissionais um rol de temas conservadores recalcados pelo menos desde a Constituinte: a revanche do Centrão. Como o emparedamento crescente e sem trégua do petismo pela auspiciosa atuação do Judiciário na operação Lava Jato se somou à implosão do pacto do Real e às dificuldades do cenário internacional, o chutão de Cunha deu a impressão de que poderia atingir a meta, arregimentou a raia miúda da Câmara, ajudou a vetorizar o descontentamento geral em Dilma, e assustou os caciques tradicionais do p-MDB, que ficaram momentaneamente desorientados e levaram algum tempo para se reorganizar num campo atingido por todo tipo de inservíveis atirados pela platéia, revoltada, irada, decepcionada, mas sem direção emancipatória.

Desmanchando-se à luz do dia, o arranjo da nossa política profissional atada ao interesse empresarial grosso começou uma corrida contra o tempo para reencontrar um ponto de repouso. Para isso, a capacidade do establishment foi desafiada em três frentes, cada uma correspondendo aos três poderes da República: no Congresso, eles tiveram de avaliar se seus interesses estariam melhor representados na fuga para trás proposta por Cunha, ou num remendo no status quo, sem mexer em itens que não chegam a impactar diretamente seus negócios, sendo antes aspectos de ordem simbólica cujo peso material, embora não desprezível, não chega a ser imprescindível ao seu domínio neste momento; no Executivo, a escolha foi entre afastar Dilma ou permanecer com ela, sendo que em qualquer caso seus interesses estariam preservados: tratou-se de saber se os desconforto maior viria de desagradar a néscia rua que lhes é favorável ou de contrariar a não menos néscia rua que lhes é contrária; no Judiciário, tendo dado por perdida (em larga medida) a batalha da Lava Jato, eles se concentraram numa operação dupla: aprofundar a catarse, via quarto poder, da Lava Jato na direção de quem já está irremediavelmente queimado (a prisão do Dirceu já preso é o símbolo máximo) e abafar a operação Zelotes, muuuuiiiito mais grave do que o escândalo da Petrobrás, seja no volume do dinheiro desviado (os bilhões são, até aqui, realmente incontáveis), seja no espectro de envolvidos (pega o grosso do empresariado, inclusive grupos de mídia), seja na longevidade da retroação (pois não é de ontem que a coisa vem azeitada, e engraxando a todos).

O que estamos a assistir (e a ler!!) na mídia interessada é, assim, a concatenação domesticadora desses interesses nefastos, na qual estão zelosamente (de zelotes) empenhados “grandes” nomes da nossa política profissional (Lula, Sarney, Renan, Temer e FHC) e do empresariado nacional “sem os quais o Brasil não pode passar”… Ao que parece, as escolhas foram as seguintes: no Congresso, sacrificar a ambição de Cunha, embora dando a ele a oportunidade de se encaixar (se conhecemos o personagem, já sabemos o que ele fará), e rearranjar a lógica do palácio em torno de Renan e Sar-Tymer; no Executivo, ficar com Dilma, que depois de surrada (até e, talvez principalmente, por Lula e o seus) entendeu o papel destinado ao Dutra; e no Judiciário, como o juiz Sergio Moro não parece exatamente disposto a se enquadrar, se buscou garantir que o caso da corrupção no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), investigado na Zelotes, seguisse morno, sob obsequioso silêncio do quarto poder, a mídia, ainda que o juiz Ricardo Augusto Soares Leite tenha sido afastado sob a reclamação do MP de tomar várias medidas que prejudicaram o andamento do processo. Convenhamos, quando de uma situação como essa, a que eles vem chamando de crise, se alcança um resultado em que mesmo os anéis perdidos foram os do “adversário” mais conveniente, não dá para dizer que os caras não são profissionais!

Naturalmente, num arranjo tão manjado ficam a ver navios todos aqueles que sonharam voluntariosamente com algum protagonismo: Serra, contra quem o tempo age com especial  impiedade, fica a ver navios porque achou que estava de volta ao 1961 da sua juventude, só que dessa vez do lado “certo”… ; Aécio porque ainda não entendeu que protagonismo conservador não dá a ninguém o papel de liderança, ou, em outras palavras, Aécio não tinha entendido que se a “crise” é cachorra, a ele está destinado o papel de rabo; Cunha porque não percebeu que mesmo em palácios como os nossos, até avacalhação tem limite; a autointitulada “Frente de esquerda” porque pretende, a essa altura da história, ser porta-voz da morta e sepultada luta-de-classes, e a serviço do Lula… e, finalmente, ficará a ver navios a malta que vai à rua no domingo, pois o faz em vão — como trouxas, que são.

Fica o Registro:

– Quem parece ter sido o mais esperto dos reacionários nessa “crise” é o Alckmin: ganha no desgaste de Aécio e Serra, ganha porque desde o início viu as vantagens para si de Dilma ficar, e ganha porque sai afinado com os atores graúdos do establishment na perspectiva de 2018 — afinal, qual é o contingente dos que se importam, mesmo, com a mais recente chacina!!?. [acréscimo de texto de 15-08-2015].

– Por sugestão de mais de um amigo leitor, tornei o título do artigo mais fiel ao conteúdo.

QUE FAZER?

Uma “crise” que não é a crise, mas abre oportunidade de superação da crise

 

Carlos Novaes, 08 de agosto de 2015

 

A “crise” política que estamos assistindo, repito, assistindo, não decorre do choque entre projetos diferentes, a “crise” parece a crise porque o desmanche generalizado, sem disfarces, do mundinho dos profissionais da política permitiu a toda gente ver, finalmente, que todos eles tem o mesmo projeto: reunir poder para fazer dinheiro. É por isso que a estamos assistindo: não há como tomar partido nisso. O que está a ruir não é a Petrobrás, muito menos o Brasil, mas um determinado arranjo da política dos profissionais — e o motivo dessa ruína é simples: o pacto em torno do qual todos se arrumavam, o Real, desmoronou. Eles estão a tratar de como sair da encrenca e chamam de crise o salve-se quem puder em que se dilaceram, mas é só uma “crise”. Seremos trouxas se embarcarmos na deles.

O não envolvimento da sociedade nessa “crise” aparece na forma de incerteza ou desorientação precisamente porque não estamos dando aquela paradinha, aquele recuo de cabeça que situações conturbadas requerem — o alarido da mídia está nos arrastando a acreditar que há uma crise. Olhando bem, se repararmos que nem foi o trapalhão Dirceu quem inventou anteontem a corrupção grossa na Petrobrás (essa mesma estatal em que os tucanos tentaram por o “X” multiplicador), nem foi a despreparada Dilma quem inventou esse pacto fajuto pelo qual os ricos não podem perder e os pobres só podem melhorar (e via consumo individual-familiar), quando for possível, cabendo à classe média o papel de fiadora dessa possibilidade — se repararmos com cuidado, eu dizia, o país está sendo chamado, por vias tortas, à realidade de que não há consumo sem produção, de que não há produção sem gente capaz de produzir, de que não se forma gente capaz de produzir sem distribuição da renda, e de que não haverá distribuição da renda sem um novo arranjo político, que é justamente o que a “crise” está nos dando a oportunidade de fazer.

Se fizermos um “alto lá”, talvez possamos encontrar nessa balbúrdia dos profissionais uma oportunidade de iniciarmos prá valer a longa, repito, loonga caminhada para nos livrarmos deles. Faz alguns anos que venho insistindo na crise da representação política profissional (que chamo de delegação), crise essa que só pode ser enfrentada se fizermos a distinção entre representação política e delegação/representação como profissão. Nas mãos dos profissionais, a quem imprudentemente delegamos nossa vontade, a política se tornou um jogo autônomo, desligado da sociedade que eles deveriam representar, desligamento esse que desconectou dos representantes os fluxos de vida que os empurrariam a serem diferentes uns dos outros porque representariam realidades diferentes, saídas da vivacidade da sociedade. Não. Eles passaram a representar a própria realidade de poder e dinheiro em que se abismaram e, assim, tornaram-se realmente todos iguais (com as inúteis exceções de sempre que, quando não estão a fazer gracinhas típicas do cretinismo parlamentar, estão lá apenas a legitimar a avacalhação da representação: são iguais, embora diferentes).

Como o pacto do Real se abre por todas as costuras, eles estão ao desabrigo e sem chão. A “crise” os leva a buscar uma saída fácil (e digo fácil não por não ser trabalhosa e maléfica, mas porque não enfrenta o problema real), saída fácil que tem duas portas: o escorraçamento do PT (embora merecido, já está dado e, portanto, é chover no molhado) e a imolação de Dilma (alvo frágil e de substituição danosa para nós, nesse momento). Se nós, a sociedade, a opinião pública (chame como preferir, leitor), comprarmos a “crise” como crise vamos levar água ao moinho deles de duas maneiras diferentes, ambas contraproducentes: pela primeira, embarcamos nessa de remover Dilma, catarse que só vai trazer ainda mais problemas e, pior, dar a eles a materialização fajuta de uma “crise” que justificará ou encobrirá todo o retrocesso que está sendo urdido para empurrar o país de volta à situação legal pré-Constituinte (o Centrão, derrotado naquela oportunidade, vem se reagrupando em torno de Cunha, Temer e Renan); pela segunda, ao comprarmos a “crise” como crise, passaremos mais uma vez a achar que estamos diante da oportunidade de um desenlace revolucionário, num raciocinar com os próprios desejos em que não vai faltar, claro, uma Constituinte autonomamente convocada (e dê-lhe manifesto!), e isso numa hora em que mesmo as modestas conquistas da nossa Constituição atual estão ameaçadas (oh cegueira!). Em qualquer desses dois caminhos, os vencedores serão eles, os profissionais: pelo primeiro, eles promovem um rearranjo que vai criar novos salvadores da pátria (Temer!?, Cunha!?, Aécio!?, Renan!?, Serra!?), de reinado efêmero, por certo, mas suficiente para continuarem o telecatch e irem tocando o barco de pilhagem por mais uma geração; no segundo, as energias daqueles de nós que se dispõem a combater serão mais uma vez dissipadas sem proveito, pois é certo que os profissionais vão nos tirar de letra, ainda que sempre vá haver gente néscia a achar que está “acumulando forças”.

A experiência internacional mais recente (o vigoroso e inovador 15M espanhol, sua ruim imitação norte-americana, o Occupy, a primavera egípcia e o despetalar grego) já deveria ter levado esse pessoal a entender que nem havia “força acumulada” a liberar, nem há caminho transformador fora de uma representação não-profissional segundo uma verticalidade dinâmica, sem hierarquia, mas também sem as ilusões horizontalistas dos que acham que as pessoas querem (e podem) participar da política todo o tempo: a política como atividade (não como assunto) é para os que dela querem (e podem) se ocupar e estes nem são todos, ou mesmo a maioria de nós, nem apenas aqueles poucos que dela fizeram uma “profissão”: há um contingente intermediário que, interessado, está à margem porque não quer misturar-se à rataria. Desgraçadamente, essa verdade tão simples não se dá a conhecer e, então, a maioria de nós ou se faz refém dos profissionais, ou se abandona na culpa (ou na raiva) diante dos mais “abnegados”, que insistem na quimera da horizontalidade, sempre precedida, é claro, de uma grande hecatombe que nos propiciaria recomeçar do zero. Sei (como se pudesse haver fluxo novo sem memória). Esses “abnegados” sempre terminam em um de dois grupos: representantes profissionais empenhados em lograr um próximo mandato (a rotinização reificante da memória); ou desiludidos amargos dizendo que o mundo não tem jeito (o remoer ressentido da memória) — os militantes gregos estão, neste exato momento, dividindo-se entre esses dois grupos; quem viver, verá. (Mais adiante, se não criarem juízo, os espanhóis seguirão o mesmo caminho, já trilhado pelos italianos faz algum tempo).

A crise de que nos devemos ocupar não requer uma hecatombe restauradora — nossa crise já se dá há tempos, ela é contínua e nós já estamos vivendo seus danos: é a crise da representação. Superá-la requer de cada um de nós fazer a transição que a literatura romanesca já fez: obrigar o romantismo que anseia pela grande crise a dar lugar ao realismo que se ocupa da crise que todos já podem enxergar, afastando-nos da “crise” enganadora que devora a capacidade de juízo lúcido. Precisamos de um trabalho tenaz, mas sem sacrifício; dedicado, mas sem abnegação; partilhado, mas sem a ilusão participacionista; corajoso, mas sem heroísmo; planejado, mas sem holismo; com verticalidade, mas sem hierarquia. Eles nos deram as costas, pois então vamos golpeá-las. Mas vamos fazê-lo com método e dentro do calendário eleitoral da política que queremos transformar. Não aumentemos o trabalho a fazer, antes tiremos proveito da realidade como ela já é: iniciemos com afinco um movimento, uma campanha (chame como quiser, leitor) para que na próxima eleição para vereadores em todo o Brasil ninguém vote em quem tem ou já teve qualquer mandato legislativo. Chega dos mesmos! É simples assim. Uma meta como esta, de fácil explicação e com a qual a indignação generalizada já predispõe as pessoas a simpatizar, pode receber diferentes níveis de engajamento, tirando proveito do muito ou do pouco que cada um puder alocar para o objetivo comum — se a imensa maioria der apenas o seu voto individual na direção que queremos, já será ótimo.

O êxito de um tal movimento, por parcial que seja, haverá de alimentar a ação contínua rumo às eleições de 2018, quando teremos a oportunidade de voltar nossas costas a todos aqueles que estão no Congresso ou lá já estiveram. Por maior que seja a incerteza decorrente dessa substituição geral, ela não haverá de ser mais danosa do que aquilo que eles com certeza nos oferecerão se lá puderem continuar. Ademais, na remota circunstância de que oxalá conseguíssemos uma substituição realmente geral, estaria dada a oportunidade do marco zero para aqueles que, ansiando por ele, estão sempre a adiar o engajamento efetivo no empenho diligente por uma transformação política que abra caminho à invenção. Afinal, no mundo complexo em que vivemos, não dá para lutar por uma transformação apostando na capacidade de invenção da sociedade e, ao mesmo tempo, pretendendo controlar de antemão a direção e o sentido que as coisas vão tomar depois da transformação. Apostemos na inventividade, o depois é outro trecho.

Fica o Registro:

– Serra declarou que a situação de Dilma é pior do que a de Jango. Só mesmo um trouxa pode acreditar num disparate desses. Jango estava acossado por um levante de forças reacionárias organizadas, inclusive empresariais e militares, porque tinha uma agenda (confusa, é verdade) de mudanças contra a desigualdade. Dilma não tem agenda de mudança alguma e os que estão contra ela são um bando de políticos profissionais da pior espécie, que sequer conta com força empresarial organizada (até porque boa parte dela está na cadeia ou em vias de ser presa). Serra está falando dos anos 1960 porque sonha em repetir em benefício próprio o improviso sem-vergonha daquela época: o parlamentarismo. Veja só leitor, o Serra quer ser em 2015 o Tancredo de 1961. Quer ser o primeiro-ministro DESTE Congresso que nos infelicita. Nos anos 1960 havia as vivandeiras de quartel, agora Serra, definitivamente do outro lado, se oferece para puxar o cortejo das vivandeiras do Congresso.

– Se ultrapassarmos o espalhafato dessa “crise” sem desmanchar o calendário institucional em curso, o país vai reencontrar a estabilidade medíocre que tem se mostrado apto a organizar, pois o cenário econômico está longe de ser grave como os vendedores de dificuldades querem nos fazer crer — aliás, o alarido cresce porque eles estão numa corrida contra o relógio, pois sabem que o ajuste de Dilma, que nada mais é do que uma versão (agora inescapável) do que eles sempre propõem, tem tudo para dar certo, se entendermos por certo o que eles próprios entendem: um equilíbrio precário para seguirmos fingindo que encontramos uma alternativa para o país. O menos danoso para nós, até enquanto não se comprovar crimes de Dilma, é esperarmos as eleições de 2018: teremos desmoralizado os golpistas da “crise” e ainda poderemos acertar contas, inclusive com o Lula (isso se o Judiciário não o tiver feito antes).

A VOZ (ventríloqua) DAS RUAS

Carlos Novaes, 06 de agosto de 2015

A re-prisão de um Dirceu que já estava preso aumentou a certeza sobrenadante de que falta “alguém” e, desafortunadamente para Dilma, ela se tornou a candidata “natural” a preencher a lacuna. Afinal, ao invés de se dar ao trabalho de enxergar esse “alguém” faltante na nossa própria ordem política profissional enquanto ela mesma (por mais evidente que isso esteja, pois os maiores adversários da nossa lastimável presidenta são muuuiiito piores do que ela) a opinião pública prefere o caminho cômodo para si, e vantajoso para os oportunistas, de concentrar na figura mais frágil e merecidamente desmoralizada toda a sua ira preguiçosa. A pesquisa DataFolha de hoje é clara: a opinião pública afunilou em Dilma toda a repulsa que nutre pelo sistema político corrupto que nos infelicita. Há uma onda contrária ao governo que é justa, mas que abriga a inconsistência que provavelmente determinará seu breve e curto espraiamento, pois Dilma está a pagar não só pelos erros (muitos) que cometeu, mas por simplesmente tudo. É a colheita do PT por ter fraudado as bandeiras que até hoje insiste fingir que ainda defende. Infelizmente, o impeachment dela, se ocorrer, não será uma oportunidade para a mudança, mas uma gigantesca válvula para dissipar a pressão a que, de certo modo, toda a ordem política profissional está submetida. Esse desfecho político fajuto de uma crise econômica verdadeira provocará na população uma euforia imatura, num desperdício de energia que será captado pelos espertalhões para que tudo fique como está – ou pior.

Digo pior porque os que estão a tramar a queda de Dilma irão fazer um ajuste ainda mais duro do que este que ela vem tentando levar a cabo contra a cínica sabotagem deles, e tudo revestido do manto (e do mando) da necessidade, pois sempre poderão invocar a herança maldita recebida – levará ainda muito tempo para que a opinião pública entenda que nossos políticos profissionais não tem como deixar herança bendita. Digo pior porque na esteira da desmoralização do PT também foram desmoralizadas muitas das ideias e propostas justas que ele fingia defender, o que abrirá caminho para que, de posse da presidência via impeachment, as forças reacionárias imponham ao Brasil um retrocesso legal para aquém dos tímidos avanços obtidos com a Constituinte. Digo pior porque revestidos da autoridade da presidência num país em convulsão sofrida, os agentes das práticas nefastas irão ter oportunidades novas para continuar a agir contra o interesse público e contra os mais fracos. Se Dilma cair, iremos viver tempos sombrios, leitor.

É por enxergar os danos presentes e futuros da insânia e da sanha reinantes que Fernando Henrique tem sido cauteloso, pois ele, não sendo um Aécio, olha para além dos ganhos imediatos que uma situação política conturbada desprovida de viés transformador pode trazer. Tendo falseado uma discordância em torno daquilo que na verdade os unia, PT e PSDB jogaram o país numa teatralização macabra. Cada um teve de ir buscar nos porões da ditadura forças auxiliares para levar a farsa adiante, numa encenação que aos poucos vai se revelando trágica para o nosso futuro, pois o pacto do Real se desfaz por todas as costuras. Sim, leitor, não há alternativa auspiciosa na desordem atual; e isso ocorre porque essa é uma desordem que nasce de um desmoronamento, não de uma disputa entre projetos alternativos que estivessem disputando o seu, o meu, o nosso engajamento lúcido. Não. O que está a desmoronar é o arranjo frágil que os tucanos puseram de pé há pouco mais de vinte anos, ao qual o PT aderiu faz pouco mais de dez, mas sem que ambos tivessem tirado consequência prática auspiciosa dessa convergência. A árvore da nossa ordem política profissional está caindo de podre aos nossos olhos, mas a opinião pública é levada a se comportar como se tivesse encontrado um fruto podre na cesta. E quem maneja o boneco se ri.