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REGRESSÃO AUTORITÁRIA COMO AMEAÇA

Carlos Novaes, 02 de outubro de 2017

Duas entrevistas publicadas hoje pelo UOL são muito relevantes para quem busca entender onde poderá desembocar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que a ditadura paisano-militar nos legou, um arranjo institucional que no curso da confusão dos últimos trinta anos veio sendo erroneamente defendido como se fosse um Estado democrático de direito, como se democracia eleitoral bastasse para fixar um Estado de Direito Democrático.

Enquanto o pacto pela desigualdade pôde prosseguir em sua marcha nefasta, na qual primeiro incluiu (agora sabemos até o preço) e depois levou ao topo, em sucessão, o PSDB e o PT; enquanto não vieram à tona as contradições entre um sistema eleitoral aberto e uma desigualdade sem paralelo, que infelicita a grande maioria dos votantes, foi possível fingir estar sob um Estado democrático de direito, e isso graças principalmente a dois dispositivos: primeiro, quem sofria o autoritarismo aberto das ações de Estado eram “apenas” as populações pobres, da periferia, que jamais deixaram de receber o pé na porta ou de serem achadas pela balas perdidas; segundo, o pacto pela desigualdade, em sua versão liderada por PSDB e PT, “compensava” os mais pobres com políticas de “inclusão”. Esses dois dispositivos acomodavam as coisas na medida para que formadores de opinião da classe média bem pensante enaltecessem o que julgam ter sido a grande conquista saída das lutas da sua geração: o Estado democrático de direito – esse fetiche engoliu a autointitulada esquerda, inclusive boa parte daquela que jamais lutara propriamente por democracia.

Agora, quando a chamada crise econômica tornou impossível continuar a empurrar a desigualdade com a barriga e explicitou toda a insustentabilidade dos benefícios recém-distribuídos; agora, quando cálculos políticos errados (próprios de um mercado político em ação plena, onde todos estão incluídos no jogo, mas sem suspenderem suas rivalidades) acerca das vantagens partidárias que poderiam ser obtidas dessa crise econômica levaram a que um impeachment desastrado e desastroso explicitasse uma crise de representação e, de roldão, desencadeasse uma crise de legitimação do próprio Estado, obrigando seus ocupantes a trazerem para suas próprias entranhas o exercício faccioso dos poderes institucionais que rotineiramente castigam, desde sempre, a franjas mais pobres da sociedade; agora, quando a implosão engaiolada fez da luta de facções o método para arbitrar perdas e ganhos no jogo bruto pelo poder de Estado, um jogo do qual a Constituição é uma peça, não a regra, podendo ser suprimida ou devolvida ao tabuleiro segundo o andamento do jogo; agora já não dá para sustentar que havíamos construído um Estado democrático de direito.

Mas nossos analistas convencionais não se dão por achados e insistem em ver a situação como uma crise “institucional” e, então, ficam a fazer a defesa do “nosso Estado democrático de direito”, rogando às facções em luta que respeitem a Constituição, tal como se fosse razoável pedir aos chefões do tráfico de drogas que respeitem o código penal! Tudo se passa como se fosse possível, a um só tempo, deplorar a ação institucional dos titulares dos mais altos postos dos três poderes da República, registrar suas arbitrariedades, reclamar do seu desrespeito à Constituição, e, depois, celebrar o fato de que “as instituições democráticas estão funcionando”, como se esse funcionamento não se desse justamente na exata medida da vigência daquilo que censuram, com toda sorte de decisões arbitrárias, danosas e ilegítimas! Veja bem, leitor: nem PSDB, nem PT, nem os intelectuais que orbitam à volta deles, podem reconhecer a crise de legitimação do Estado brasileiro, nem reconhecer que ele entrou em crise precisamente porque é um Estado de Direito Autoritário, sem mecanismos para a solução democrática dos seus conflitos, mormente os distributivos; e não o podem porque fazê-lo exigiria que os dois partidos reconhecessem a própria ilegitimidade e que seus intelectuais finalmente reconhecessem como vieram enganados na guerra de trinta anos que julgavam ter vencido.

Portanto, essa convocação estapafúrdia para que preservemos um Estado que jamais tivemos é especialmente danosa nessa crise. Ela nos desvia das duas tarefas principais dessa hora tão difícil: constatarmos que o perigo de regredirmos a uma forma estatal ainda mais autoritária só faz crescer (o inimigo avança em todas as frentes) e, então, lutarmos para fazer da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário uma oportunidade para criar mecanismos de construção de um Estado de Direito Democrático.

É nessa ordem de ideias que encaixo minha análise das duas entrevistas mencionadas no início deste artigo. Se você veio até aqui, aguente mais um pouco.

A primeira entrevista é do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército (aquele que “escolheu”, sob o silêncio de Temer, não punir o general Mourão, que recentemente opinou por uma saída militar para a crise). A segunda é do pesquisador alemão Christoph Harig, que recentemente defendeu no King’s College de Londres sua tese de doutorado sobre o uso de tropas em ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO, como no caso da Rocinha e da presença militar brasileira no Haiti). As duas entrevistas se complementam pelo que trazem de esclarecimento tanto sobre o que está em jogo, quanto sobre nossa cegueira diante do seu desenvolvimento.

COMENTÁRIO À ENTREVISTA DO GENERAL

O que está em jogo é a volta do protagonismo militar no Brasil. As incursões no Rio, tenham ou não sido pensadas desse modo, vão se fazendo um treino para uma prática mais aberta da tutela militar que a Constituição ambiguamente já prevê (o que é ambíguo em teoria, ganha seu caráter inequívoco via escolhas práticas, de uso).  No artigo de anteontem, aludi a uma entrevista do general secretário da comunicação do Exército. Hoje, as palavras dele são não apenas inteiramente retomadas pelo comandante da Força, como ampliadas: os militares estão a reclamar mudanças drásticas no ordenamento legal do país de modo a dar desenvoltura ao seu papel de polícia. Estão a ver um oportunidade na junção da crise de legitimação do Estado com a chamada crise da Segurança na sociedade, uma oportunidade que depende, claro, de que não se reconheça que ambas as crises têm o mesmo fundamento: a desigualdade.

Por isso, as demandas são tipicamente facciosas:

– permissão para violar direitos civis (de pessoa e domicílio).

O general não poderia ter sido mais claro, pois defende o “estabelecimento de instrumentos legais que priorizem o direito coletivo sobre o individual, possibilitando um emprego mais eficiente das tropas no combate à criminalidade”. É ou não é uma nova versão para as abordagens diferenciadas do comandante da ROTA? Estou curioso para ouvir o que têm a dizer nossos liberais sobre essa proposta “comunista” do comandante do Exército, para quem os cidadãos das comunidades parecem não ser propriamente indivíduos…

Ou seja, pretendem tornar legal o que a PM já faz na marra, numa regressão autoritária para lá de atrevida. Fazendo coro com os defensores do nosso suposto Estado democrático de direito, os generais entendem que para consultar a sociedade sobre essa legalização de violações basta submeter ao Congresso, a este Congresso — que não nos representa e ao qual eles próprios, quando convém, criticam –, um projeto de lei que as autorize, uma vez que a “própria possibilidade de ocorrência de danos colaterais envolvendo civis inocentes, deve ser avaliada atentamente pela sociedade”.

– tribunal próprio para julgar os “efeitos colaterais” dessas violações.

O que só pode ser interpretado como a busca por uma franquia para a impunidade. Segundo Villa Bôas, a “Força é equipada com armas e munições com alto grau de letalidade, alcance e capacidade de transfixação, e vem sendo empregada em áreas civis urbanas, densamente povoadas”, o que põe o militar em ação sob “elevado nível de estresse”. E completa: “A dinâmica recente do clamor social pelo emprego de forças militares parece apontar para a necessidade de um incremento das ações militares no combate ao crime organizado”.

Ou seja: ao invés de encarar o que há de impróprio no uso urbano de suas armas e munições, o general quer usar o que há de histérico nos apelos por segurança e pela volta dos militares como argumento para legalizar a insegurança que a presença da sua Força nas ruas vai gerar! Tenha sido planejada ou não, está dada, na prática, a largada para uma regressão autoritária que reunirá protagonismo militar com a manutenção da atual rotina eleitoral para a escolha de todos os mandatos da República. É urgente que se obrigue os pré-candidatos à presidência a se posicionarem nessa matéria, pois, a continuar assim, consagraremos outro perfil para as Forças Armadas, tornando parte da paisagem a presença delas nas ruas para impor a ordem, o que é uma ameaça direta ao direito de manifestação.

– incremento orçamentário

Os generais enxergam na crise uma oportunidade de defender ganhos para si em detrimento do restante da sociedade. Mas o general vai além, pois reveste sua demanda de um arremedo de preocupação social: segundo ele, “uma maior destinação de recursos para o combate ao crime organizado, em uma época de dificuldade econômica, deixando de priorizar outras áreas importantes para o país” é uma escolha que a sociedade tem de fazer – como se o aumento das oportunidades para o engajamento dos adolescentes e jovens no crime que ele se propõe a impropriamente combater com recursos adicionais não fosse função direta dessa falta de prioridade em “outras áreas importantes para o país”.

– a solução final

Ao final da entrevista, o comandante do Exército brasileiro chama o uso da força de argumento: “o emprego de tropas em GLO não pode se tornar uma ação trivial. Há que se lembrar de que o Exército é o último recurso do Estado. Como último argumento, ele não pode falhar!”

Assim, com exclamação, o general criou a figura esdrúxula do “argumento” que não pode falhar, quando o que é próprio do argumento é precisamente a sua falibilidade. É nesse rumo que estamos indo…

COMENTÁRIO À ENTREVISTA DO DR. HARIG

Não obstante faça uma rica e persuasiva análise sobre o aumento das operações de GLO, pelas quais, desde Lula, os presidentes da República vieram imprudentemente incrementando a presença das FFAA nas ruas, Harig parece comprar pelo valor de face as declarações dos militares e, por isso, depois de constatar que

“desde 2010, os governos federais aumentaram continuamente sua dependência dos militares em relação à segurança pública, o que, sem dúvida, aumentou a visibilidade das forças armadas no país. A Minustah [operações no Haiti] desempenha um certo papel neste processo, pois os políticos parecem ter percebido a utilidade de usar os militares em ambientes urbanos –ou pelo menos a possibilidade de usá-los para fins de marketing político”,

Christoph Harig opina que “apesar da justificada indignação pelo discurso do general Mourão, ainda considero improvável uma intervenção militar. Eu argumentaria que as pessoas que têm poder de decisão dentro das Forças Armadas não estão interessadas em uma intervenção, e ainda menos em governar o país.”

Ora, a questão, naturalmente, não é saber acerca de em que a FFAA estão “interessadas”, mas sim de antecipar que tipo de interesses elas podem passar a ter depois de experimentarem certas práticas, especialmente quando se considera o ambiente faccional em que estamos. Afinal, nada garante que o interesse marqueteiro que orientou os políticos tenha mantido a sua vigência depois de um uso tão prolongado e cada vez mais amiúde da prática de convocar as FFAA, uma vez que os militares não estão aí para obedecerem ao papel de figurantes em peças de propaganda… Por outro lado, essas novas práticas estão a mostrar que as FFAA podem aumentar seu grau de tutela sem propriamente uma intervenção e, nesse caso, pode ser até muito mais confortável, para elas e para o establishment, que se conserve a rotina eleitoral para a escolha de governos civis.

Harig argumenta que Mourão não foi punido também porque Temer é fraco e não está em condições de entrar em atrito com os militares, o que é verdade; entretanto, esse argumento está em contradição com a opinião dele de que os militares estão insatisfeitos com as convocações para a GLOs, uma vez que elas são determinadas pelo mesmo presidente fraco… Se eles não as quisessem, mesmo, poderiam impor isso a Temer. Ou seja, o analista pode estar deixando escapar um “interesse” novo dos militares pelas GLOs, que os leva ao ponto de defender incisivamente alterações no marco legal do país, bem como um incremento orçamentário.

Finalmente, mas não por ser menos importante, vale mais uma vez salientar que essas incursões militares no Rio têm sido tão onerosas quanto inócuas, o que por si só deveria deixar claro que já não há apenas marketing político em jogo, pois ninguém quer propaganda contrária. Vamos ver.

A CRISE É DE LEGITIMAÇÃO, NÃO INSTITUCIONAL

Carlos Novaes, 30 de setembro de 2017

Venho tratando da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário. Apartado da sociedade, a qual, por sua vez, se mantém inerte diante dele por razões também já discutidas, o Estado brasileiro abisma-se em si mesmo enquanto não reencontra os fundamentos para o exercício estável da sua força – essa queda só acabará em uma de duas possibilidades: ou quando o Estado reencontrar a força bruta, numa nova forma autoritária (com ou sem eleições, mais provável com); ou quando o Estado brasileiro finalmente encontrar a sociedade, único fundamento para o uso legítimo da força. Venho acompanhando a deterioração da conjuntura, mas sem ânimo para escrever, pois a cada dia temos mais do mesmo, isto é, a cada dia se rearranjam as facções de ontem e/ou se arranjam novas, enquanto Temer não para de afundar, como indicam as pesquisas mais recentes.

Hoje resolvi escrever porque com a nova determinação da primeira Turma do STF para que Aécio se afaste do mandato, a mídia convencional vem trazendo como novidade a descoberta tardia de que o afastamento de Cunha, lá atrás, se deu ao arrepio da Constituição. Naquela altura, não se viu nenhum problema; agora, com Aécio, estaríamos vivendo uma crise entre os poderes da República, como se houvesse uma disputa entre os Poderes eles mesmos, entre as Instituições elas mesmas. Esse equívoco ao ajuizar a marcha da deterioração do Estado de Direito Autoritário deriva de dois erros básicos: primeiro, o de não enxergar a relação entre essa deterioração propriamente política e a desigualdade, como já discuti aqui e em muitos outros posts deste blog; segundo, o de insistir que construímos depois da ditadura um Estado democrático de direito. Ou seja, para quem lê os fatos da perspectiva confortável do establishment (de “direita”, “centro” ou “esquerda”) temos, de um lado, que a desigualdade é um problema de justiça social, e não entra na discussão da crise política como tal; de outro lado, como para esse pessoal nós já vivemos num Estado democrático de direito, crises institucionais não resultam da forma institucional, mas de maus procedimentos, a serem corrigidos pelas instituições elas mesmas.

Sustento que não há crise entre os Poderes da República pela simples razão de que esses poderes não estão alinhados uns contra os outros. O que há é uma crise de legitimação do Estado, diante da qual diferentes facções, transversais aos poderes, buscam firmar o pé para levar o Estado a dar um passo favorável a si mesmas. Daí a facção liderada por Temer e Gilmar, que conduziu Dodge à PGR, dando lugar a uma configuração de forças que desarranjou a facção não menos circunstancial que era liderada por Janot e Facchin. No Senado, por sua vez, em meio às disputas menores entre “situação” e “oposição”, se sobrepõem convergências facciosas contra as decisões ameaçadoras saídas do teatro de operações da Lava Jato. Dentro do Supremo, além de alinhamentos explícitos com o Executivo, há a atuação facciosa das Turmas, cada uma delas com seus aliados no Legislativo.

Como a marcha dessa luta de facções se dá ante a inércia da sociedade, a gestão pública prossegue como se legítima fosse. Não tem havido obstáculo à aprovação de “medidas impopulares” (muito fala da nossa letargia interna o fato de que a única medida danosa de Temer revogada tenha sido a que encontrou forte reação contrária internacional), o que nos vai conduzindo ao pior dos mundos, pois além do dano gerado pelas medidas em si, há o encorajamento de novas investidas e, com o êxito delas, o surgimento de novos arranjos faccionais. Com a crise de legitimação do Estado, já não se trata de se “organizar” para obter seu quinhão, como fizeram partidos, sindicatos, ONGs, no curso desses trinta anos em que construímos nosso Estado de Direito Autoritário. Não. Temos, agora, na crise dele, algo mais fluído e deletério: arranjam-se facções ocasionais, sem propriamente organização, para obter decisões favoráveis. De costas para uma sociedade inerte tudo é permitido.

Uma evidência de que a crise se aprofunda é o ressurgimento público da opinião dos militares, o que não deve ser isolado da desenvoltura com que eles vêm sendo mobilizados por Temer para tratar da situação criminal no Rio. Deveria estar óbvio de que não se trata de um problema entre civis e militares.

No caso da opinião, enquanto o general Mourão (punido em 2015 com a perda do Comando militar do Sul justamente por dar opinião política) respondeu recentemente a uma pergunta sobre a situação política do país defendendo aberta e impunemente um golpe militar; em contrapartida, dias depois, o general Edson Leal Pujol, justamente o substituto de Mourão no Comando militar do Sul, respondeu a uma pergunta semelhante recomendando que “se vocês estão insatisfeitos, vão para a rua se manifestar”. Com isso a luta de facções se explicitou também no Exército: sem força propriamente institucional para punir Mourão, o comando do Exército deu sua resposta através da manifestação política de Pujol, o que reforça a conduta militar irregular, única possível em situações deterioradas — para nossa momentânea sorte, Pujol tem tropa e Mourão, não.

Dada a insegurança da sua própria situação, Temer tem jogado facciosamente com os militares – pegou mal quando os convocou para ocupar Brasília, mas vem agradando aos incautos com essas tão onerosas quanto deletérias incursões pelos morros do Rio, nas quais o espírito de facção já atingiu até aos soldados, que patrulharam as ruas em conduta hostil para com os moradores em geral, fazendo uso de máscaras com a figura da caveira, além de braçadeiras típicas de milícias justiceiras – ou seja, o espírito de facção desceu ao nível da descaracterização do uniforme, cujo padrão se destina, precisamente, a simbolizar a atuação legal, infensa a preferências pessoais ou grupais. Ao invadir casas e maltratar o povo pobre, o Exército vai voltando às práticas que legou às facções autoritárias da Polícia Militar, numa reconfiguração do exercício faccioso dos poderes institucionais propriamente militares que a ditadura paisano-militar nos deixou.

Em meio à flagrante arbitrariedade dessa ocupação da Rocinha, o general Otavio Santana do Rêgo Barros, chefe de Comunicação Social do Exército, põe a pergunta de se “para uma maior efetividade das ações a sociedade está preparada para abrir mão do direito individual em prol do coletivo?” E diz mais: quer foro privilegiado para os militares que cometerem crimes comuns nessas ocupações e, ademais, vê como problema à desenvoltura das tropas a vigência constitucional das garantias e direitos individuais e de domicílio. Note bem, leitor: se a crise fosse institucional, interpretar a Constituição ainda seria exclusividade do Supremo Tribunal Federal. Mas como a crise é de legitimação do Estado de Direito Autoritário, a interpretação da Constituição se tornou um jogo de malabares em que todos se acham no direito de tentar a sorte e defender o seu.

Não se trata de ver em tudo isso uma ação concatenada, uma grande conspiração. Não. A situação do Brasil é muito mais grave do que uma interpretação assim ingênua indicaria: trata-se de uma marcha convergente sem estrategista, na qual poderá haver uma solução ao mesmo tempo conservadora, constitucional, eleitoral e militar. A versão abominável seria a eleição de Bolsonaro, que banalizaria o emprego das prerrogativas do art. 142 da Constituição, tornando rotina a presença militar nas ruas; a versão horripilante seria a eleição de qualquer dos nomes do chamado “centro”, com o qual se alinhem as bancadas evangélica, da bala e do boi.

Nossa passividade levou o Brasil a uma atipicamente prolongada crise de legitimação, uma vez que a falta de legitimidade do Estado não encontra outra ebulição senão a das suas próprias facções internas, as quais, dada sua natureza apartada da vida real, não podem gerar alternativa. Se não nos mexermos, se nos limitarmos a rogar respeito a uma Constituição que já foi rasgada, acabaremos por encontrar uma nova estabilidade, em termos muito mais desfavoráveis à imensa maioria de nós e, ainda pior, com o voto da maioria de nós.

TRANSIÇÃO PARA ONDE?

Carlos Novaes, 21 de agosto de 2017

Nos dois artigos mais recentes deste blog tratei tanto do adiamento que a sociedade brasileira, no papel de avestruz, acertou tacitamente com seus políticos profissionais — pelo qual a “solução” da crise ficou para o ritual eleitoral de 2018 – quanto do acerto realizado entre os políticos profissionais fechadinhos uns com os outros nesse cômodo Estado de Direito Autoritário; um acerto que só é possível porque o avestruz enfiou a cabeça na areia e pelo qual todo mundo aderiu ao modus operandi seguido pelo PT faz décadas: quando um político seu é apanhado em malfeitos pela ação de agente externo, e não se inviabiliza, segue sem ser incomodado pelos seus e afere nas eleições seguintes seu poder para continuar a fazer dinheiro.

Daí a grita no PSDB contra a “autocrítica” de Tasso Jereissati na TV que, ao aceitar dar alguma resposta à sociedade, ainda que rala, cometeu três pecados: primeiro, reconheceu, e trouxe para o próprio partido, o descontentamento da sociedade (quieto, o avestruz não deveria ser “provocado”); segundo, apontou companheiros de partido na condição de devedores (infringindo o esperto preceito petista de que não se atira para dentro do forte); terceiro, trouxe o debate de volta à conjuntura, ao governo golpista de Temer (quando já havia sido acertado o desvio para as eleições de 2018). Tanto é assim que todos os principais aspirantes já estão em campanha eleitoral aberta, com Temer previamente escolhido para o papel de espantalho conforme cada campanha entender que é chegada a sua hora de zoar o golpista. Mais uma vez ficou claro que Tasso não é do ramo, mas não é só isso.

A arquitetura que o pobre diabo do Tasso não entendeu, e que Lula entendeu tão bem que não explorou a fraqueza do adversário em seu programa de auditório itinerante pelo Nordeste (a re-encenação de uma atração velha requer teste prévio com plateias menos críticas), toda essa arquitetura, eu dizia, explicitou que estamos de volta a uma transição tipicamente brasileira: se a crise exige que saiamos dela para um estado institucional diferente, os profissionais que nos levaram a ela operam para que a nova situação seja o mais parecida possível com a anterior. Mais uma vez, assim como fizeram os principais agentes da transição (p-MDB e PFL) da ditadura paisano-militar para o Estado de Direito Autoritário em que estamos, os principais agentes dessa nova transição [p-MDB, PSDB, PT e DEM (ex-PFL, ex-ARENA)] querem realizá-la com o menor dano possível para si.

Em outras palavras, tal como lá atrás, a inércia da sociedade dá espaço para uma transição comandada pelo pacto entre aqueles que uma verdadeira transição deveria justamente deixar para trás. Mais uma transição sem Justiça de transição, como já tratei aqui. Seria bom que ao criticar a impunidade as pessoas se dessem conta do quão fundo está cravada essa estaca entre nós: não punimos o bandido da esquina, não punimos os torturadores, não punimos os corruptos – sequer os maus governantes são punidos com a perda do voto!

Num teatro desses, não é de espantar que o chamado Centrão encene papel aparentemente central (ele se autodenomina no aumentativo, “Centrão”, precisamente porque não está no centro de nada realmente relevante), quando não passa de atração aberrante no programa de auditório da transição: a impossibilidade de qualquer dos grandes partidos protagonizar uma transição verdadeira sem sucumbir a ela é precisamente o que revigora essas forças abjetas, fazendo com que meros satélites das traficâncias havidas passem a desempenhar força gravitacional típica de planetas, situação anômala que só irá perdurar até um novo acerto geral, quando todos tiverem redefinido seus respectivos tamanhos, cujo metro será oferecido pelo comportamento inercial da sociedade na eleição de 2018. Ou não?

Fica o Registro:

– O p-MDB quer tirar o “p” da sigla, dizem que é para voltar às origens e ir às ruas pela mudança… A crise os levou ao embuste total, pois, tal como venho tentando demonstrar neste blog, desde 1965 ele jamais deixou de ser o MDB para o qual foi criado: mantenedor da desigualdade.

– Ao “teorizar” que a “polarização” impede a autocrítica do PT, Haddad não poderia ter sido mais involuntariamente preciso: dada a polarização fajuta que empata o Brasil, e como todos os protagonistas estão igualmente implicados nos malfeitos, qualquer autocrítica verdadeira levaria à ruína quem a fizesse. Haddad aprendeu rapidinho o que o Jereissati não entendeu — mesmo se não contar com Lula como candidato, o PT larga na frente do PSDB para 2018…

NA GUERRA DE FACÇÕES, QUEM ASSISTE, PERDE

Carlos Novaes, 08 de agosto de 2017

Nem por encomenda direta deste blog poderíamos ter dois exemplos mais claros da combinação perversa, contra nós, da guerra de facções no âmbito do Estado de Direito Autoritário, de um lado; e do exercício faccioso dos poderes institucionais, no âmbito também da chamada sociedade civil organizada, de outro: no lado do Estado, a entrevista do PGR, Rodrigo Janot; no lado da sociedade organizada, a notícia de que as Centrais Sindicais querem uma contribuição ainda maior no lugar do imposto sindical que lhes premia o peleguismo, faz décadas.

Quase ao mesmo tempo em que era mais uma vez atacado pelo insultador mor da República, Gilmar Mendes (o que, por si só, já é mais um exemplo da guerra aberta entre facções que tenho buscado caracterizar aqui), Janot concedia uma entrevista à Folha na qual deixou patente, em tiro certeiro, que há uma disputa de poder entre a PGR e a Polícia Federal, exemplificada no fato de que a PF só ataca as delações de que não participou.

Embora o tiro tenha sido certeiro, Janot ainda não enxergou tudo o que alvejou. É que não se trata da PF. Trata-se de uma crise de legitimidade do Estado, diante da qual todo agente estatal suficientemente poderoso entende poder fazer o que dá na telha para ampliar seu poder, e seus ganhos. Aliás, do lado da procuradoria, não há melhor exemplo recente de exercício faccioso dos poderes institucionais do que o descabido pleito por aumento real de salários que, mesmo sem crise, já seriam indecentemente altos. Ou seja, a força das facções está na fraqueza propriamente institucional do Estado, sua ilegitimidade de fundo, fraqueza essa que alimenta a desenvoltura com que se movem os agentes públicos, sejam polícias, técnicos, gerentes, etc.

O que explica a desenvoltura facciosa como resposta à crise de legitimação é a inércia da sociedade, que a tudo veio assistindo como se nada pudesse fazer e, agora, parece, assumiu definitivamente o papel de avestruz, tudo postergando para 2018, como se, por milagre, algo muito diferente pudesse acontecer quando lá chegar — sem que ela própria se tenha dado ao trabalho de sequer entender o fosso que há entre seus desejos e esperanças e a empenho real dos atores organizados em prol de seus próprios interesses, num exercício perverso de autonomia. A continuar assim, em 2018 o Brasil repetirá o que o eleitorado do Amazonas acaba de fazer: escolherá os mesmos.

Essa inércia também explica a desenvoltura não menos perniciosa da outra metade do Brasil organizado, a da sociedade civil: assim como os políticos profissionais, os procuradores, os policiais e os juízes, também do “nosso” lado os partidos políticos e os sindicalistas de todas as correntes farejam na nossa inércia diante da crise de legitimação — que a todos engolfa sem que a vejam — uma oportunidade para ampliar seus ganhos de poder e dinheiro. Enquanto os partidos articulam uma reforma eleitoral e de financiamento feita sob medida para que quem já lá está fique ainda mais inamovível e mais endinheirado; os sindicalistas querem fazer da perda do indecente imposto sindical uma oportunidade de arrancar manhosamente ainda mais dinheiro dos trabalhadores, ainda que todos finjam indignação com os efeitos da crise e simulem compaixão pelos que mais perdem com ela. A única diferença é que os políticos vão ao dinheiro do Tesouro, que sai do nosso bolso; enquanto os sindicalistas nos vão direto ao bolso.

Esses grandes agentes organizados estão a explorar ao máximo a fragilidade do poder Executivo (gestão), ora ocupado por um golpista tão corrupto que desonrou até o próprio golpe e está de joelhos diante de um Legislativo (representação) não menos corrupto do que ele, situação que os obrigou a escancarar o modo como sempre se deu a construção da chamada governabilidade no Brasil – e que vem sendo tratada na mídia convencional como demonstração de força, de habilidade profissional!  Ou seja, 99% das análises não param de pé, pois, a um só tempo, denunciam a imoralidade do conjunto, mas vêm nele não apenas as qualidades da eficácia, como ainda celebram o “bom funcionamento das instituições”! — como se essa suposta eficácia institucional não fosse justamente a materialização da crise de ilegitimidade que corrói todo o conjunto e, portanto, expressa, em último grau, a crise do Estado de Direito Autoritário.

Como esse Estado é o instrumento garantidor da desigualdade, aquela parte da sociedade organizada que reúne os maiores players do chamado Mercado (que só aparentemente estão do lado oposto ao dos sindicatos de trabalhadores) manobra para que o resultado final da crise seja ainda mais vantajoso para seus interesses, manejando o poder para fazer dinheiro. Para isso, faz da crise de legitimação do Estado, e da fragilidade do Executivo que a habita, instrumentos para alcançar as tais reformas impopulares, que irão aumentar a desigualdade. Na superfície, parece haver uma luta entre os organizados, há quem veja até luta de classes. Mas, na verdade, os sindicalistas pelegos e os partidos traidores mobilizam suas bases fajutamente, fazendo-as massa de manobra desfraldando contra o outro lado bandeiras que, na prática, já traíram, mas cujo tremular serve para encobrir o que realmente querem: poder e dinheiro, mesmo que tudo o mais fique até pior – cálculos que explicam o quase consenso que já existe contra a Lava Jato.

Tudo o que se disse acima quer dizer, ainda, o seguinte: é ridículo celebrar nos arranjos em curso o “bom funcionamento das instituições democráticas” que nos foram legadas pela Constituição de 1988, como fazem vários analistas muito prestigiados na mídia convencional. É justo o contrário: herdamos um Estado autoritário, com seus legados paisano e militar e, agora, depois de trinta anos, vivemos a agonia dele. Supor que, sem que a sociedade se mexa, se vá chegar, pela marcha dessa luta de facções, à consolidação democrática é sonhar os pesadelos da razão, pois o que está no horizonte é uma regressão autoritária, por via eleitoral, ou não.

Estado de Direito Democrático, só se a maioria da sociedade deixar as arquibancadas.

Fica o Registro:

– Já querem avacalhar o que proponho: está em discussão a limitação da reeleição para o Legislativo. Não. Temos que acabar com a reeleição, mesmo para cargos diferentes. Vou voltar ao tema em breve.

– O ministro do STF, Luis Roberto Barroso, se mostra mais um engenheiro eleitoral sem conhecimento do assunto: está a defender uma reforma política para pior, com voto distrital misto e semi-presidencialismo, entre outras bobagens.

– Em mais um exercício faccioso dos poderes institucionais contra o povo, o judiciário do Rio decidiu manter preso Rafael Braga, vítima de uma facciosa armação da polícia.

ACERTO ENTRE A RAPOSA E O AVESTRUZ

Carlos Novaes, 02 de agosto de 2017

A vitória que Temer acaba de obter na Câmara dos Deturpados dá uma boa ideia do que seria consagrado com a adoção do parlamentarismo. Esse autêntico “parlamentarismo de ocasião” neutraliza temporariamente a contradição Executivo x Legislativo através de uma esdrúxula governabilidade da minoria. Esse arranjo aberrante é mais uma explicitação da guerra de facções de que é palco o Estado de Direito Autoritário. Ontem, na ponta oposta às facções vitoriosas de hoje, a facção integrada por Janot voltou acertadamente a pedir a prisão de Aécio, num exercício faccioso dos poderes institucionais ainda mais escancarado do que da primeira vez, pois agora fez a solicitação indicando a primeira Turma do STF, que lhe parece mais afinada com suas preferências.

Enquanto isso, o PT finge querer derrubar Temer, e o PSDB orienta o voto contra o golpista, enquanto não desgruda dos cargos ministeriais que ocupa e, por isso mesmo, deu votos para protegê-lo. Nesse festival de hipocrisia e cinismo, a sociedade fica no papel de marido traído que se recusa a tirar consequências do que está evidente: o mundo político mandou às favas a opinião pública precisamente porque está certo de que a sociedade não vai se mexer.

Embora não faltem políticos profissionais certos de que o eleitorado sequer vai se lembrar do que se passou, os mais precavidos estão a preparar legislação eleitoral que os proteja da ira do eleitor que for ao voto usinando a memória recente: estão para aprovar o voto em lista, de modo a não terem que pedir o voto para si. Pela modalidade aventada, mas ainda não aprovada, os nomes de quem exerce mandato legislativo teriam preferência na lista, de modo a oferecer alguma garantia de reeleição a esses deturpados que nos infelicitam, levando-os, assim, a aprovarem a mudança. Na outra ponta, a do financiamento das campanhas eleitorais, embalados pela mentira de que são elas, as campanhas, a causa da corrupção, eles preparam um assalto ao Tesouro Nacional da ordem de 4 bilhões de reais para o chamado financiamento público. Ou seja, como já discuti aqui, querem, na mesma jogada cínica, se livrar de ter de pedir voto e dinheiro.

Num cenário desses, a separação entre eleito e eleitor se tornaria ainda maior do que já é, situação que escancara o que há de contraproducente na nossa inércia: eles não param, e não irão parar de apostar numa ordem política democrática de novo tipo, pela qual uma participação eleitoral segundo ritual democrático acabará sempre por legitimar um exercício faccioso dos poderes institucionais voltado a manter a desigualdade exercida contra os interesses de pelo menos 80% da população, o que é o oposto do que se poderia almejar para uma democracia consolidada e só nos poderá levar na direção de uma regressão autoritária.

O impasse em que se encontra o país, que, opõe, de um lado, mais de 80% do eleitorado preferindo a remoção de um gestor que conta com apenas 5% de aprovação popular e, de outro lado, uma camarilha facciosa de representantes comprados com recursos subtraídos da gestão pública precisamente para sustentar esse gestor repelente; um impasse assim — em que a imensa maioria não consegue fazer valer uma preferência tão clara contra os interesses nocivos para si de uma minoria que se pode tão facilmente estigmatizar (e já estigmatizada!), só se explica pela seguinte ordem de fatores:

– a desigualdade é tão grande que levou a uma autonomia sem precedentes da política profissional em relação à sociedade, autonomia que caracteriza tanto as instituições de representação do Estado, como as da sociedade (parlamentos, sindicatos, associações, etc);

– essa autonomia gerou um espírito de corpo que faz dos profissionais da política (no Estado e na sociedade) um “grupo” com interesses próprios, ainda que atravessado por conflitos em torno de desfrute do exercício faccioso dos poderes institucionais, conflitos que eles buscavam resolver através das disputas eleitorais entre si;

– as contradições de um modelo assim perverso aumentaram, a ponto de opor momentaneamente os braços empresarial e político profissional do establishment, e os conflitos já não podem esperar eleições para serem resolvidos: a luta de facções ganha corpo dentro do próprio aparelho de Estado, conflagrando as instituições e explicitando a crise de legitimação que um Estado assim não pode deixar de engendrar;

obnubilada pelas paixões subalternas despertadas por essas disputas eleitorais, aturdida pela balbúrdia das facções — cenário em que o que há de renhido tem muito pouco que ver com diferença de ideias; pelo contrário, em larga medida se explica pela motivação igual de conquistar poder para fazer dinheiro – a sociedade ou se engaja como massa de manobra (e fica fazendo papel de boba nessa polarização PT-PSDB, por exemplo); ou fica de mero espectador desse balé dos enganos a que chamamos crise, à espera de que “alguém” protagonize a próxima volta no parafuso.

É por isso que o que se passou hoje na Câmara representa, de fato, a escolha feita pelo país. Todos os agentes, o Brasil inteiro, eleitores, políticos profissionais, situação e oposição, virtuosos e corruptos, polícia e ladrão, réus e juízes se acertaram para procrastinar: todos, ainda que cada um a seu modo, segundo seus próprios cálculos, estão a pagar para ver o jogo só em 2018. Façam suas apostas, ainda que Janot, parece, vá fazer mais uma.

¿FOI TUDO UM MAL-ENTENDIDO!

Carlos Novaes, 02 de agosto de 2017

Vinha naquela a tempo suficiente para filosofar sobre como é difícil dar um ponto de origem a situações assim desafiadoras (chamava-a assim porque era um forte; do contrário, a situação seria simplesmente penosa). De início pensara que o começo de tudo se dera pouco depois da viuvez do amigo e sócio. Conjeturas depois, porém, o arrastaram para o tempo em que a irmã da esposa ainda vivia (sim, o amigo e sócio casara com irmã da mulher dele). Era assim que, nos dias ruins, como ele dizia, ficava a alimentar suspeitas, em flaches selecionados da rotina de remotos encontros de família, ou de desencontros no escritório, exercício em que banalidades como olhares, risadas, coincidências de horário e trocas de presentes adquiriam sentidos novos, aumentando o desafio do que havia para esclarecer naquela história.

Uma história assim conhecida reclama desfecho rápido. Deve ser por isso que estamos no meio do dia em que tudo se esclareceu (ou não?). É que ele acaba de saber, como se vivesse num plantão de notícias, o endereço em que os fatos estão a se dar. Quase submerso nas evidências, respirando indícios contrários como podia, sempre determinado a não perder o pé na realidade (uma especialidade de que se orgulhava: sua capacidade de se manter íntimo da realidade, uma outra maneira de dizer de sua afeição pelo mundo como ele é), nosso homem partiu ao encontro do seu destino (sim, ele tinha ímpetos dramáticos).

Não percamos tempo com o embate de sentimentos que o acompanha pelo caminho, nem relatemos os escrúpulos de procurador com que examina a área. Ele espera, a hora chega e, quando eles saem juntos no carro do sócio, nosso homem pula para o meio da rua, pára tudo e parte para o lado do carona. Ainda dentro do carro ela pergunta se aconteceu alguma coisa em casa, ele esbraveja suas suspeitas, ela abre a porta e parte para cima dele com a indignação que seria de uma leoa, se leoas se indignassem, e passa a chamá-lo de volta à realidade: explica que o cunhado, sabidamente inconsolável com a morte da irmã dela, enfatizou esse “irmã”, pedira a ela, claro, para acompanha-lo naquela visita sentimental ao quarto de tantas escapadas. O amigo, ainda ao volante, espera, compungido e confiante, o desfecho da cena, que se conclui quando o segurança intervém para restaurar a ordem na fachada do estabelecimento.

Ela pergunta onde ele parou o carro, reclama da lonjura, que a obriga a andar pela rua, enquanto informa que o dela ficara no cabeleireiro. Já em casa ela vai para o banho e ele, roído em culpas, invade o quarto, a tempo de vê-la já sem a blusa, apenas com o sutiã rendado do conjunto novo. Ele corre e a retém, ela luta para ir ao banho, ele a segura, enfia a mão por baixo da saia, e o tesão aumenta quando descobre que ela está sem calcinha.

DA ANOMIA À AFASIA

Carlos Novaes, 22 de julho de 2017

Diante da marcha da crise, a sensação é a de que todas as análises já foram feitas; todos os insultos já foram lançados; todas as conclusões já foram tiradas; todas as indignações já foram expressas; tudo o que era inaceitável já foi absorvido e, assim, exaustos, os brasileiros esperam – pelo quê?! Enquanto esperamos, os políticos profissionais e seus facciosos aliados em outros poderes recebem nossa inércia como franquia para a ação deles e continuam em marcha batida para levar tudo ao nada, como alguém que leva o carro ao lava-jato e, sem fazer caso, o tira de lá tão emporcalhado quanto entrou:

–  Depois de abandonar a trincheira do Paraná, e de apresentar rotina alternativa à da PGR sobre delações (no fito de torná-las menos abrangentes e mais difíceis de obter), a Polícia Federal acaba de declarar que Jucá, aquele que mobilizava gente e recursos para “parar a sangria”, não cometeu “obstrução de justiça” (segundo esse entendimento faccioso da PF, para caracterizar obstrução ele teria de ter conseguido obstruir…);

– No Supremo Tribunal Federal-STF (judicação), fala-se em rever a validade legal de gravações realizadas por participantes da conversa gravada – mais uma tentativa de obstruir a apuração e invalidar provas já obtidas de casos de corrupção, a começar pelo de Temer. O “argumento” é o de que o STF tem, agora, composição diferente da de 2009, quando seus juízes decidiram validar essas gravações. Ora, um entendimento desses é mais pernicioso do que “ouvir a voz rouca das ruas”, e faz o STF passar de Corte Suprema a Corte Arbitrária dos indivíduos que a compõem; afinal, a se tornar aceitável que a cada composição se reveja a jurisprudência, a memória constitucional do país ficará precisamente ao sabor do humor das facções a que seus membros pertencem, cuja lógica daninha venho analisando neste blog!

– No Congresso (representação) não há voz significativa na denúncia dessas manobras, nem no apoio efetivo à facção republicana da Lava Jato. Pelo contrário, ali falam em anistia aos condenados por corrupção; engendram subterfúgios para livrar políticos da cadeia; tentam desviar a ira popular inventando abuso de autoridade por parte do MP; e, além de sustentarem Temer em troca de favores escandalosamente públicos, não param de legislar contra o povo e em favor dos muito ricos, como dão provas as reformas recém-aprovadas; a obstrução ao fim das isenções fiscais às empresas; a liberação de áreas antes protegidas para mineração, extração de madeira e agronegócios; a liberação de agrotóxicos danosos à saúde e muito mais.

– Esse mesmo Congresso discute a adoção do parlamentarismo, como se o povo não tivesse recusado esse modelo em dois plebiscitos. Se não der para aprovar a manobra, farão outra: tramam conduzir à presidência da República o presidente da Câmara, essa mesma Câmara que está a tomar as medidas sabidas, que está a exaurir recursos para manter o mesmo Temer que eles planejam deixar o STF tirar, depois de ele os ter atendido, claro. Além disso, com apoio do Mercado que defende a tal Reforma Política, pretendem obter dinheiro do tesouro para campanhas eleitorais e a adoção do voto em lista, autênticas reformas contra a mudança.

– A Polícia Militar (dispositivo que nos foi legado pela ditadura) está a cada dia mais submetida ao exercício faccioso dos poderes institucionais que lhe foram conferidos: há grande assimetria de conduta, com batalhões apresentando casos de abusos muito maiores do que unidades similares e, até, inversão de hierarquias. Tudo se passa como se não houvesse a exigência de obedecer a uma uniformidade de conduta, numa balbúrdia de facções que é a própria subversão da ideia de disciplina que, não obstante, eles inapropriadamente pretendem obter da sociedade.

– No Executivo (gestão), insiste-se em condenar o acordo da PGR com os irmãos Batista, como se os benefícios dados à dupla tivessem sido em vão, como se eles não tivessem oferecido o mapa da corrupção dos políticos profissionais no país, como se o próprio chefe do poder Executivo, e vários ministros seus, não tivessem sido flagrados em atividade explícita de corrupção através das confissões deles. Enquanto isso, aumentam impostos sobre nada menos que o consumo de combustíveis, e, de quebra, dão força a esse pato enganador, que só grasna em favor dos ricos.

– Diante de tudo isso, prospera no Congresso o projeto de lei para declarar ilegal o chamado Funk-proibidão, estilo musical pavoroso, mas muito revelador: exaustos de tanto exercício faccioso dos poderes institucionais, setores da juventude se voltam contra a desordem estabelecida propondo uma desordem aberta, que expõe ao ridículo todo esse pomposo apelo à ordem oficial que infesta a mídia convencional com defesas do Estado democrático de direito, que não há. O Funk-proibidão é a proclamação popular da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário – por isso mesmo, ele, em sua irracionalidade, faz evidente o que há de irracional em pretender que este Estado seja reconhecido pela sociedade como seu. É a isso que nos levaram o PT e o PSDB ao avacalharem a si mesmos, ao fraudarem as esperanças dos que neles confiaram, ao darem as costas ao país e se fecharem na defesa de seus criminosos e, assim, legitimarem aquilo que o passante desavisado sempre dissera: político é tudo igual. Sim, na prática, os políticos profissionais são todos iguais, pois as exceções de nada servem.

– Nas redes sociais, nas tripas de comentários a artigos e colunas, que se repetem em indignação e análise, o que não falta é boçalidade como resposta a tudo isso. Essa baixeza escancarada é outra maneira de se apresentar a crise de legitimação: muito se fala, mas não há vozes reconhecíveis, não há parâmetro respeitável, não há solo comum de conversa – o que há é uma pradaria aberta ao insulto, que sempre teve mão única e é uma forma do não dizer. As reações estapafúrdias aos artigos não resultam propriamente de um não saber ler, nosso velho conhecido analfabetismo funcional. Não. É que já não se lê. O que o outro escreve não tem legitimidade, não merece con-si-de-ra-ção.

A situação política do Brasil está além da Dinamarca de Hamlet: nossa podridão está a se fazer indizível – em outras palavras, como a ação social não se dá, estamos a passar da anomia à afasia, o que é meio caminho para o nada, que não é senão o indizível do dilema ser ou não ser. Como isso vai acabar é um mistério, mas já não há sinal algum na direção do que seria bom.

FACES DA RUÍNA

Carlos Novaes, 13 de julho de 2017

É mais do que simbólico que tenham se dado juntas a condenação de Lula e a aprovação da derrubada da legislação trabalhista cujo cerne saíra da era Vargas. Vai além da simbologia porque o que abriu caminho à desfaçatez dos conservadores e à ida de Lula aos tribunais foi a leviandade do lulopetismo. Vista assim, a concatenação dos dois eventos não marca exatamente uma derrota do PT e de Lula (como poderia sugerir a revolta da bancada petista no Senado), mas antes mostra um desdobramento das escolhas que eles fizeram para alcançar êxitos efêmeros: infelizmente, estão a colher o que plantaram.

Em outras palavras, o revés sofrido pelos trabalhadores com a aprovação dessa nova legislação trabalhista danosa aos seus interesses só foi possível porque Lula e o PT – que fizeram da sua acomodação à ordem trabalhista conservadora que deveriam ter transformado um dispositivo a mais no seu extenso rol de acomodações oportunistas – levaram tão longe a teatralização de compromissos de “esquerda” há muito abandonados que quando o cenário ruiu a plateia foi junto. Em suma, eles foram tão danosamente falsos que fizeram da própria ruína a ruína dos trabalhadores,  a quem haviam confinado na condição de platéia para os seus “feitos”.

O mesmo mecanismo vai operar no caso de outras reformas, pois de reformas é que não pode escapar um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Tendo aderido a esse Estado, sendo parte no que dá causa à crise de legitimação, o lulopetismo ficou desautorizado para protagonizar reformas e, agora, tem de se re-fantasiar de radical para assumir a posição conservadora de quem defende o status quo atrasado que deveria ter transformado. Assim como Tolstoi disse na abertura do seu Ana Karenina que todas as famílias felizes se parecem, as infelizes o são cada uma à sua maneira, também devemos entender que se há uma onda conservadora a varrer o mundo, em nenhum país importante essa infelicidade colhe os mais fracos tão desprovidos de meios políticos de resistência como no Brasil.

O caráter singular da nossa infelicidade se deve ao PT liderado por Lula (embora não apenas a eles). Ao simular com tanta hipocrisia o compromisso com a mudança, eles atravancaram com falsas esperanças e interesses burocráticos o caminho por onde poderiam ter surgido forças transformadoras autênticas e, uma vez apanhados, abriram caminho a essa desfaçatez cínica dos mais fortes no manejo da força do Estado contra os mais fracos. É um nó de marinheiro, leitor!

Embora haja muito conteúdo repelente no ódio contra Lula e o PT — um ódio que, como não poderia deixar de ser, pelo que foi visto acima, se estendeu a toda a “esquerda” — o fato é que lá bem longe da boçalidade há uma decepção profunda que alimenta o desencanto e vai se tornando raiva naqueles que, sem jamais se terem identificado com o lulopetismo, haviam começado a rever preconceitos precisamente porque se permitiram ver qualidades no que antes repudiavam – a reversão dessa disposição de ir na direção de quem pensa diferente, e pela fraude, é um dos efeitos mais danosos que nos lega a ruína lulopetista, pois nenhuma transformação é possível sem a conquista de consciências recalcitrantes do outro lado. Essa reversão está nas classes médias e é mais funda entre os muito pobres — é aí, nas águas turvas desse desencanto, que irão pescar os gestores e os bolsonaros (“radical” por “radical”…).

Precisamos, mesmo, de um outro projeto — e me parece um desperdício de energia, um esforço vão e contraproducente, adicionar à luta por transformação a tarefa de salvar a “esquerda” — coisa muito fácil de entender quando observamos que boa parte dessa “esquerda”, infensa mesmo às autocríticas protocolares, está empenhada em passar por cima de sua própria contribuição aos problemas que nos trouxeram à situação atual, como faz Fernando Haddad em artigo que critiquei aqui.

MESMO SEM RENÚNCIA DE TEMER, CÂMARA PODERÁ “LAVAR AS MÃOS”

Carlos Novaes, 08 de julho de 2017

Faz um ano, publiquei aqui um artigo com o título Vitória de Maia fecha a janela à transformação aberta pela Lava Jato”. Errei no cálculo, pois supus que já naquela altura o acerto em torno da escolha de Maia para presidir a Câmara permitiria aos políticos profissionais sufocar a Lava Jato. Como temos acompanhado, porém, no transcurso desses 12 meses desde a eleição de Maia, o teatro de operações da Lava Jato apresentou vitórias importantes da facção republicana, infligindo ao sistema político derrotas que foram muito além do lulopetismo, virando em pesadelo os sonhos dos profissionais do p-MDB e do PSDB, que almejavam confinar a operação no unilateralismo inicial.

Em artigos mais recentes, ao tentar analisar a “fidelidade” de Maia, que já trancafiou mais de vinte pedidos de impeachment contra o golpista, desenvolvi a ideia de que o Congresso já não conta com esse expediente, o impeachment, para desviar a ira popular contra o Executivo, pois a solução Temer, um dos seus, não apenas não lhes permitiu encontrar uma saída, mas, principalmente, serviu à explicitação da crise como uma crise de legitimidade do Estado de Direito Autoritário que, por óbvio, engolfou o Congresso. Assim, como argumentei, eles já não dispõem nem do “lugar”, nem do “método” para reencenar a coreografia seguida contra Collor e contra Dilma.

A “fidelidade” de Maia não resulta, portanto, de uma escolha com base na “moral aprendida em casa”, mas de um cálculo pela sobrevivência num cenário adverso. Por isso, desde a denúncia da PGR contra Temer as coisas começaram a mudar de rumo no Congresso: no Senado, Renan ficou mais agressivo contra Temer; na Câmara, Maia vai ganhando desenvoltura para a sucessão. É que, agora, já não será preciso recorrer ao impeachment para remover Temer, nem realizar eleição indireta de modo intempestivo depois da queda dele, providências que exporiam duplamente a crise de legitimidade: pelo impedimento em si e pela eleição indireta em seguida. Pelo contrário, a Câmara só precisa votar a licença para que o Supremo julgue Temer, um julgamento que pode durar seis meses, período no qual Maia exerceria a presidência da República, dando aos profissionais da política mais prazo para tentarem tomar pé no lodo em que estão.

Em outras palavras, se Temer não renunciar, a Câmara apenas lavará as mãos, sem precisar dizer se Temer é culpado ou não, sem precisar se expor em declarações inflamadas, podendo cada deputado se esconder atrás do manto da “isenção” (“Temer pode voltar”), uma vez que licença para julgar não é um juízo final, que caberá ao Supremo. Essa manobra permitirá que eles instalem, de fato, o “parlamentarismo de ocasião” celebrado pelo ex-ministro da ditadura paisano-militar Delfim Neto: Maia sairá da presidência da Câmara direto para a presidência da República, nomeando um ministério de comparsas e intensificando a sufocação da facção republicana da Lava Jato.

A combatividade da facção republicana da Lava Jato deu à sociedade brasileira um ano inteiro para que ela se mexesse. Infelizmente, nossa inércia fez desse tempo um refresco ao adversário e, agora, talvez eles tenham, realmente, se reorganizado em campo. Se for assim, o lulopetismo vai teatralizar um repúdio à solução Maia, enquanto tenta colher os frutos que essa solução propiciará, em escalas variadas, a todos os implicados nas investigações de uma Lava Jato finalmente sufocada (a menos que a facção republicana ainda consiga fazer uso do material de que dispõe contra Maia, nos dando outra oportunidade…). Vamos ver.

TEMER SE COBRE DE UM RIDÍCULO REVELADOR

Carlos Novaes, 06 de julho de 2017

[Com acréscimo às 20:21h]

Tentando aparentar normalidade, sob aplausos protocolares de cúmplices seus, Temer fez hoje um discurso cujo efeito é o oposto do pretendido, especialmente para quem acompanha este blog. Disse o golpista corrupto:

“As pessoas, muitas vezes, pensam no seu interesse pessoal, ou no seu interesse funcional… Ou às vezes, até, entram numa disputa — sem embargo da Constituição determinar a harmonia entre os Poderes; o que mais se verifica é a tentativa de desarmonizar os Poderes do Estado. Isso é um crime contra o Estado democrático de direito. Isso só passa pela cabeça daqueles que, na verdade, acham que são autoridades iluminados por uma centelha divina e não autoridades emanadas do único dono do poder do Estado, que é o povo. Nós somos todos autoridades transitórias”.

Nem sob encomenda Temer teria feito uma declaração tão sob medida para iluminar o que venho perseguindo. É fácil enxergar que nesse parágrafo tudo é falso. Falsidade que escancara não apenas, nem principalmente, a precariedade da situação de Temer, mas sobretudo a fragilidade de nossa ordem institucional como tal.

Primeiro, a situação é de tal desordem que o próprio presidente da República explicita num discurso solene a luta de facções que engolfou o Estado de Direito Autoritário brasileiro. Observe, leitor, que, em razão do emparedamento em que se encontra, Temer é mais um que não pode reconhecer a crise de legitimidade do Estado e, então, vem invocar a preservação  da harmonia constitucional entre os poderes, como se o que houvesse fossem tentativas de criar conflito entre eles. Não.

Como todos temos acompanhado, cada um dos poderes está, ele mesmo, dividido entre facções rivais, que se aliam transversalmente com facções de interesses semelhantes no poder adjacente. Logo, o que há não é o risco de um poder entrar em desarmonia com outro, como quer Temer – a desarmonia já é muito mais profunda — o que há é uma crise de Estado, no âmbito da qual se fazem alianças oportunistas, numa avacalhação tal que os facciosos já têm de lutar à vista de todos, não obstante teatralizem cinicamente o respeito ao protocolo, como quando Fachin resolveu contornar a facção da segunda turma e foi direto ao pleno do STF para impedir a soltura de Palocci, ou quando a PF deu prazo exíguo para Temer responder 82 perguntas, ou quando o magistrado Mendes recebe o investigado Temer para jantar na noite anterior ao anúncio do sucessor de Janot na PGR; ou quando Aécio tem a carreira política elogiada por Marco Aurélio quando este decide negar a sua prisão, prisão que fora solicitada pela PGR precisamente porque essa mesma carreira está sub judice.

Segundo, qualquer estudante de direito sabe que não há crime sem vítima. Logo, não pode haver crime contra o “Estado democrático de direito”, pois a sociedade brasileira não conta com um. Aliás, estivéssemos sob um Estado de Direito Democrático, jamais estaríamos a ver uma desordem dessas, saída precisamente das entranhas do Estado que nos foi legado pela ditadura paisano-militar. Em outras palavras, o Estado brasileiro não conta com mecanismos para debelar essa crise precisamente porque ele não é democrático, precisamente porque os agentes do Estado, divididos em facções, não respeitam a Constituição – e não a respeitam porque simplesmente não podem respeitá-la, uma vez que respeitá-la significaria a derrota da própria facção que o fizer, fragilizando-se na luta contra as outras. É por isso que são ridículos todos os graves apelos e salamaleques a reclamar na mídia convencional o respeito à Constituição. Ela foi rasgada e precisamos de outra – menos para termos outra Constituição, embora dela precisemos, e mais para passarmos por um novo processo constituinte, do qual necessitamos desesperadamente.

Terceiro, Temer finge respeito litúrgico à transitoriedade do seu poder para, a contrapelo, pavonear-se com plumagem tucana, como se essas penas imundas pudessem substituir o manto de que não dispõe: a vontade do povo. Temer não é transitório por vontade do povo; ele é transitório por ser um golpista e um indigno, até do próprio golpe, e, por isso mesmo, sob seus pés se agita a revolta do povo — infelizmente ainda recolhida, porque sem rumo claro a seguir.

Fica o Registro:

– Horas depois do discurso de Temer, a PF fez o anúncio da desmobilização de seus efetivos na Lava Jato lá no Paraná. Enfim, o ministro da justiça de Temer fez o que Lula pediu, em vão, ao Ministro da Justiça de Dilma. Certamente, diante desse golpe contra a Lava Jato, não teremos senão silêncio dos “republicanos” parceiros de José Eduardo Cardozo no PT. E ainda há quem veja o PT como alternativa a todo esse absurdo! Até quando?

Acréscimo das 20:21h:

– Tasso Jereissati, que preside interinamente o PSDB, fez declarações quase espantosas no fim desta tarde: primeiro, que se o parecer do relator na Câmara for desfavorável a Temer, é o fim (ora, então o PSDB precisa desse parecer do p-MDB para aceitar a gravidade dos fatos?! — por muito menos deram o golpe em Dilma); segundo, sem sequer ter saído do governo Temer, o PSDB já está aderindo a um governo Rodrigo Maia; terceiro, Jereissati defende que se faça “qualquer tipo de acordo”, de modo a alcançar uma estabilidade “mínima” até 2018; coisa que, segundo ele, “não é difícil” de obter… — como é que é?!

GENERALIZAÇÃO DA REGRA É EXCEÇÃO BEM-VINDA

Carlos Novaes, 03 de julho de 2017

 

Quem, a essa altura dos acontecimentos, enfatiza mais os defeitos do que as qualidades dos desdobramentos da Lava Jato tem de estar ou comprometido com o que há de errado na política brasileira, ou confuso diante do que acontece nela. Exemplo máximo de comprometimento é a ação combinada dos advogados de Lula, Aécio e Temer para atacar a Lava Jato. Exemplo cabal do que há de confusão é questionar excessos das facções republicanas da Lava Jato invocando a preservação do Estado democrático de direito e/ou fazendo a apologia da política como profissão. Esmiucemos isso.

Segundo a vanguarda jurídica que, no teatro de operações da Lava Jato, defende contra a maioria da sociedade brasileira os interesses do partidão dos profissionais da política (p-MDB+PT+PSDB+Satélites),  a ameaça que paira sobre o Brasil é um Estado de Exceção, que estaria a brotar das providências tomadas contra os interesses dos seus clientes pelas facções da Lava Jato com orientação republicana. Ora, o que eles estão chamando de exceção é o uso contra os seus clientes do que sempre foi a regra em favor deles, e contra a maioria dos cidadãos brasileiros, na atuação do nosso Estado de Direito Autoritário: trata-se do velho exercício faccioso dos poderes institucionais, no qual “quem pode mais, chora menos”.

É assim de uma ponta à outra da pirâmide social: seja lá no topo da pirâmide, nas licitações fraudulentas, que distribuem ilegalmente o dinheiro público entre poucos, protegendo os empresários graúdos das dificuldades das chamadas leis de mercado que eles fingem defender (essas “leis” só valem contra os pequenos empresários, para evitar a concorrência e a alternância); seja nos segmentos intermediários da pirâmide, onde setores da classe média se veem achacados ilegalmente pelas pequenas autoridades e, ao mesmo tempo, disputando uns contra os outros, com graus variados de ilegalidade, as oportunidades escassas que são criadas para as classes médias pela ordem voltada a manter a desigualdade; seja lá na base da pirâmide, onde o emprego ilegal e ilegítimo da violência do Estado pelas Polícias Militares garante, pelo pavor em que mantém os pobres, a mesma ordem desigual de que as licitações fraudulentas são, hoje, o exemplo mais vistoso.

Ou seja, o que eles chamam de exceção é a regra ter, pontualmente, se voltado contra eles.

É justamente porque houve essa inversão pontual no exercício faccioso dos poderes institucionais que nossos analistas movidos por “convicções” estão confusos. Afinal, como defender o Estado democrático de direito em que eles julgam viver e, ao mesmo tempo, apoiar as facções da Lava Jato mais assertivas contra os desmandos que inviabilizam uma República democrática?!? Então, eles nos torturam o entendimento: escrevem duros artigos contra a corrupção e querem punir os corruptos, mas choramingam no artigo seguinte contra as inconstitucionalidades cometidas por quem está a investigar e a punir os corruptos. A confusão desses analistas, leitor, decorre do apego deles (muito natural, aliás) a uma vida cômoda: primeiro, jamais se voltaram contra as inconstitucionalidades perpetradas diariamente contra o povo pobre precisamente porque elas são diárias (não daria, mesmo, para denunciar todas… – então, preferem comodamente acreditar que vivem num Estado democrático de direito); segundo, e porque vivem na bolha social que permite aquela primeira fantasia cômoda, eles veem nessa ou naquela inconstitucionalidade cometida pela facção republicana da Lava Jato sobretudo uma oportunidade para comodamente pavonearem a isenção com que se apegam à fantasia de que vivem sob um Estado democrático de direito. Muitas carreiras acadêmicas dependem do sucesso em se equilibrar nessa prancha…

A essa defesa canhestra de um Estado democrático de direito supostamente existente se soma uma desonesta defesa da política, que estaria sendo demonizada pelo desenrolar da Lava Jato (como se nossa ojeriza aos políticos profissionais pudesse ser confundida com uma recusa à política). Não chega a surpreender que a articulação dessas duas mentiras apareça na boca de Gilmar Mendes em manifestação recente num evento da Fiesp voltado, vejam só, à apologia dessa armadilha contra nós que é a Reforma Política: “quem sonha com democracia de juiz, ou com uma ditadura de juiz – alguns dizem, ‘ah, é iluminado’—, desconfie. Não há salvação fora da política e dos políticos”.

Veja, leitor, a sutileza: cria um suposto sonho acerca de um regime de juízes, solução que não é defendida por ninguém, apenas para fazer crítica despeitada à facção republicana da Lava Jato (contrária à sua própria, no STF) e chegar ao principal, que é confundir a defesa da política com a defesa dos políticos profissionais, como se a política só pudesse, e só devesse, ser exercida por eles. É nessa linha que já vão outros magistrados, como Marco Aurélio Mello, que não apenas negou a prisão de Aécio, como lhe devolveu o exercício do mandato fazendo questão de louvar exatamente o que está sub judice, a legalidade e a legitimidade da carreira do mineiro…

A confusão é tanta que esse modo de defender o status quo tem recebido apoio técnico até involuntário, como dá exemplo um artigo recente de Angela Alonso, na Folha de S.Paulo. Lendo Weber de maneira anacrônica e pouco proveitosa, a socióloga confundiu vocação política com profissionalização da política e nos brindou com um raciocínio que é a expressão do beco sem saída em que se meteram esses naturalistas que se arvoram em representantes da tradição crítica: “sem políticos profissionais, que acumulam experiência ao longo de carreira específica, a gestão da vida pública ficaria à mercê de aspirantes tendentes a inventar regras ‘ab ovo’, como se não houvesse aprendizado coletivo.”

Alonso diz óbvio o raciocínio acima, quando óbvio é o absurdo dele, afinal, o que a crise brasileira está a demonstrar é que o aprendizado coletivo a ser celebrado é o da sociedade, não o dos políticos profissionais. A memória/aprendizado a ser preservada e reenviada periodicamente à dinâmica institucional é a da sociedade, em sua incessante mudança na busca por acertar, memória essa contraposta à dos profissionais da política, para quem o limite da mudança é a continuidade da própria carreira, voltada a simular a representação do aprendizado coletivo: é esse contraste entre memórias que explica a reação legiferante em curso no Congresso, onde proliferam e se aprovam leis assumidamente impopulares.

Supor que o fato de eleger representantes fora do mundo dos profissionais de carreira nos deixaria nas mãos de neófitos arbitrários exige mais do que pensar que a política é regida pelas trivialidades positivistas da socióloga, pois requer não ter compreendido nada sobre a formação e o exercício da preferência coletiva sob dinâmica democrática – afinal, ao fim e ao cabo, não só ninguém é eleito por si mesmo, como não há porque supor nem que os vínculos dos novos representantes com seus representados sejam menos vivos do que os dos profissionais (pelo contrário), nem que o exercício da representação tenha mistérios intransponíveis pelos neófitos. Difíceis de transpor são as maracutaias em que se especializam os profissionais, cujos laços mais fortes não são feitos com o eleitor, mas entre eles mesmos, como discuti aqui e como, mais uma vez, está a demonstrar a articulação suprapartidária contra a Lava Jato, discutida mais acima.

Tanto a invocação de um suposto Estado de exceção, como a defesa de uma não menos suposta indispensabilidade dos políticos profissionais deixam de lado o essencial: as traficâncias da política profissional herdada da ditadura nos conduziram a uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Nessa crise, com a generalização do exercício faccioso dos poderes institucionais, o Estado se apresenta conflagrado, e o Judiciário foi arrastado para fora da sua rotina, como antes vieram sendo o Legislativo e o Executivo. Pretender a isenção dele na judicação é tão tolo quanto tem sido exigir que o Congresso nos represente ou que o Executivo faça a boa gestão da coisa pública. Em outras palavras, diante das circunstâncias havidas, pedir que o Judiciário tenha um comportamento estritamente legal faz tanto sentido quanto pedir ao Temer que faça um bom governo, ou pedir a este Congresso que aprove boas leis!

O que orienta esses apelos é a expectativa inercial, preguiçosa, comodista, de que a crise se resolva pela ação do Estado. Então, primeiro, se fez uso do velho truque de rifar o Executivo – não apenas não bastou, como a crise recrudesceu depois da queda de Dilma; depois, se descreu do Congresso – não deu resultado, pois ele continuou a legislar contra nós, enxergando em nossa descrença inerte uma franquia para o exercício de sua autonomia nefasta; então, todas as esperanças se voltaram para o Judiciário – mas, como não poderia deixar de ser, ele também não pode oferecer a saída, poder “derivado” que é do jogo entre os outros dois (afinal, os juízes do STF e o Procurador Geral são escolhidos pelo presidente e referendados pelo Senado).

Se a sociedade não compreender o que se passa e não agir segundo essa compreensão a adquirir, o término dessa marcha inercial será a porta dos quartéis ou uma saída eleitoral autoritária! Toda essa errância pelas instâncias do Estado se dá pela recusa ou inaptidão para encarar um fato simples: estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário – logo, a saída já não está no Estado, mas, pelo contrário, depende inteiramente da sociedade, cuja governabilidade é que legitima o mando. É hora de nos mostrarmos ingovernáveis por essa gente.

PRESIDENTE SIMBÓLICO

Carlos Novaes, 20 de junho de 2017

Todos temos claro (mesmo o mais extremado dos coxinhas proto-fascistas; mesmo o mais boçal congressista brasileiro; mesmo o juiz mais comprometido com a injustiça), todos sabemos que Temer não tem a menor condição de continuar na presidência da República. E, não obstante, ele ainda não caiu. É que Temer exerce uma presidência simbólica. Note, leitor, que eu não me refiro à trivialidade de que ele virou simbólico porque tornou-se irrelevante. Não. Pelo contrário, Temer se tornou simbólico porque é tudo o que restou a um sistema político em ruínas. Dessa perspectiva, mais do que relevante, a manutenção dele no cargo é central, pois sua queda deixará a nu essa ruína e, por isso, o sistema político se agarra à permanência dele segundo cálculos os mais variados.

Em outras palavras, diferentemente de Collor e Dilma, a queda de Temer não serviria para protegê-los – dessa vez, ficaria evidente demais que o verdadeiro problema permaneceu, que a tarefa ficou, por assim dizer, pela metade (como tempos atrás indiquei aqui). Não é por outra razão que, como também desenvolvi em dois textos recentes, faltem aos políticos profissionais tanto o método para derrubar Temer, quanto o lugar a ser ocupado pelo sucessor: mais um impeachment de presidente exporia todo o ridículo deste Congresso; mais um presidente sem voto exporia toda a ilegitimidade de que se reveste hoje o exercício do mando político neste país. Nunca esteve tão evidente que a solução exige uma eleição para todos os cargos federais: presidente, deputados e senadores, como defendi aqui ainda antes da queda de Dilma.

Mas mesmo uma eleição federal seria, agora, insuficiente, pois a crise e o trabalho incessante de desconstrução constitucional em que se empenham as facções do Congresso expuseram toda a matéria propriamente constitucional que permanece irresolvida: as forças a serviço da desigualdade pretendem tirar da Constituição o que enxergam como obstáculo ao exercício injusto do mando, acrescentado o que lhes fortalece; as forças com motivação republicana manejam não menos facciosamente a Constituição para proteger o país das facções desigualitárias; o futuro do país depende, sim, de mudanças na Constituição, ainda que não sejam desejáveis as mudanças em curso, pois elas estão na direção errada. Abandonando esperanças incrementalistas em nossas instituições atuais, recusando a eles nossa governabilidade, parece claro que precisamos de tempo, a ser gasto no debate sobre as reformas constitucionais para a República que queremos.

Por razões já vistas, nem a animação do debate, nem a condução das reformas poderá ter como protagonistas nem PSDB nem PT, que pipocaram quando tiveram a chance de anima-lo e fazê-las. Para quem ainda queira provas do anacronismo dessas duas forças políticas, recomendo observar que o primeiro ainda se debate sobre o que fazer com o governo Temer — tivesse eu talento, ilustraria a situação do PSDB com um desenho do FHC a equilibrar-se numa pinguela caracterizado como Madame Bovary; já o PT está a apostar todas as suas fichas no carisma de Lula, descendo o mais fundo possível no que há de pior no populismo e, por isso mesmo, acabando por abrir caminho para os Bolsonaros da vida. Aliás, quem pode realmente duvidar de que haja entre petistas o sonho temerário de um segundo turno contra Bolsonaro?

Fica o Registro:

– Novas evidências da PF contra Temer vão dar força à ideia de uma renúncia dele, convocando eleições. Esse “consenso” seria a última saída para o sistema político, poupando o Congresso do constrangimento de ter de “julgar” Temer, como discuti acima e alhures. Talvez esse seja o desfecho inevitável e, assim, não restará outro remédio senão nos engajarmos de imediato num processo eleitoral que irá reanimar partidos e lideranças que deveríamos deixar para trás. Paciência — a gente tem de lutar pela transformação na trincheira disponível. Vamos ver.

O ESGOTAMENTO DO RECURSO AO IMPEACHMENT

Carlos Novaes, 16 de junho de 2017

 

Quem acompanha este blog está familiarizado com a ideia de que, desde a redemocratização eleitoral, o Congresso brasileiro tem sido mais conservador do que os presidentes da República eleitos. Mais conservador, aqui, significa mais avesso à mudança. A razão dessa assimetria é simples de entender: o Congresso da redemocratização herdou da ditadura paisano-militar seu dispositivo paisano, o p-MDB, tendo como linha auxiliar o PFL-DEM, partidos que haviam criado raízes na dinâmica eleitoral miúda, não interrompida pela ditadura. Esses partidos sempre enxergaram a mudança como ameaça à situação que haviam conquistado no período autoritário e, por isso, se empenharam em obter a transição lenta, gradual e segura.

Como uma desigualdade como a brasileira não pode deixar de colocar problemas à reprodução da ordem política, especialmente quando há um sistema eleitoral aberto à participação popular, o desafio para os que buscam manter a desigualdade é obter o voto de quem quer mudança para depois fazer com que, malgrado melhorias instáveis, tudo fique como está. Faz mais de trinta anos que eles tem tido sucesso nisso — chegaram a embrulhar pela cooptação PSDB e PT — mas ao preço de acumular contradições que estão sempre a criar problemas novos. Ou seja, o Brasil tem vivido sob o regime político da improvisação.

Como já discuti aqui, sempre que as contradições desse estado de coisas resultam em mobilização popular hostil ao mando, e torna-se incontornável oferecer algum aceno à mudança, a ira popular é desviada contra o Executivo (gestão), numa operação que visa preservar o coração do sistema nefasto: o Congresso (representação). Essa é a explicação para estarmos à beira do terceiro impeachment presidencial em menos de trinta anos. Com isso, se vendem várias ilusões em uma única manobra: primeiro, como o impeachment é tarefa congressual, o Congresso não apenas fica preservado, mas se  fortalece como instância de solução do problema, quando é nele que estão concentrados nossos problemas; segundo, e por isso mesmo, reitera-se que o problema é o presidencialismo imperial (mas que força é essa, que vive ameaçada de cair?!); terceiro, e até contraditoriamente, se faz mais uma aposta em que a solução virá com a escolha de um novo presidente, realimentando a dança das cadeiras em que o Congresso nunca deixa de encontrar onde sentar!

Em outras palavras, o impeachment tem sido uma manobra para contornar crises. Mas como a crise se aprofundou numa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o impeachment já não tem o poder prestidigitador que vinha tendo, pois a ilegitimidade do próprio Congresso veio a furo.  A melhor maneira de perceber que um truque de mágica ficou manjado é vê-lo a ser encenado por qualquer um – pois é o que estamos a ver: há gente propondo impeachment por todo lado; ele, o impeachment, virou a varinha de condão da luta de facções em que está abismado nosso Estado de Direito Autoritário. Há facções que o cogitam contra Fachin; outras contra Gilmar e, até, contra o Janot.

Olhada assim, a situação de Temer é esdruxulamente nova, e é nessa novidade que ele se segura: não é exatamente que falte a eles um nome para substitui-lo, falta o método; afinal, com que cara nossos “representantes” se dirigiriam ao microfone para declarar SIM ao afastamento de Temer?! Eles estão numa sinuca de bico, pois está à vista de todos que a fábula fala deles. Em artigo recente, explorei esse mesmo dilema por outro ângulo: o que falta é o lugar, não um nome.

Fica o Registro:

– Sem fazer caso dessa crise de legitimidade que os engoliu, os deputados e senadores continuam a agir como se nos representassem e apertam o acelerador da parafernália institucional destinada a roubar da sociedade qualquer possibilidade de buscar a mudança: querem improvisar o voto em lista ou, pelo menos, o chamado distritão, e estão em vias de aprovar nada menos do que mais 3 bilhões de reais do nosso dinheiro para gastarem contra nós na campanha eleitoral de 2018. Até quando, Brasil?!?

– Os tucanos, coitados, foram na do FHC e subiram na pinguela, estando a descobrir que não sabem nadar!

– Sintoma adicional do aspecto terminal da crise é o fato de haver quem sonhe em voltar à polarização Lula-FHC, agora mais fajuta do que nunca.

– Mais abaixo, links para uma sequência de três recentes palestras minhas sobre o que nos levou à crise atual. Entendo que a participação do público ao final de cada palestra foi fundamental, inclusive para que eu deixasse mais clara a minha opinião.

PALESTRA 1

PALESTRA 2

PALESTRA 3 

HADDAD NA VANGUARDA DA PÓS-VERDADE

Carlos Novaes, 08 de junho de 2017

Sempre tive o professor e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, como um homem público capaz e sério. Estive entre os que viram a entrada dele para a política eleitoral como um ganho para o país, especialmente porque essa estreia se deu depois do bom trabalho que fizera no Ministério da Educação. Embora tenha visto problema sério em sua política de alianças e possa fazer reparos à sua gestão na prefeitura de São Paulo, entendo que Haddad tem lugar folgado entre os melhores prefeitos que a cidade já viu. Por isso mesmo, foi com pesar que antecipei a derrota dele para esse capacho com brilhantina que agora governa a cidade, figura essa para quem o PT veio abrindo caminho nos últimos anos, como tratei aqui, trajetória que culminou na aliança com Maluf — ou seja, a vitória de Doria começou lá na aliança do PT com Maluf. Dizendo de uma só vez: Haddad está entre o que de melhor o PT produziu, mas numa circunstância em que o próprio PT já havia solapado as condições em que o seu melhor poderia ter êxito.

Por pensar desse modo, a permanência de Haddad no PT me intrigava, pois mesmo tendo claro que a dívida dele com Lula era imensa, nunca me pareceu razoável que esse reconhecimento requeresse o sacrifício de permanecer no PT de Lula a partir do momento em que a ninguém mais seria permitido dizer “não sabia”, quando posto diante das traficâncias de poder e dinheiro que os governos do PT protagonizaram. Mesmo que para Haddad o PT devesse ser preservado ali onde o reconhecesse como parte do patrimônio das lutas do povo brasileiro por uma vida menos sofrida, mesmo assim, sempre me pareceu que o caminho a seguir pelos homens de bem que, apesar de tudo, tinham permanecido no partido, seria, agora, um de dois: ou sair do PT, ou enfrentar intra muros Lula e a burocracia petista a ele obediente – mesmo ao preço de ficar sozinho, como muitos foram deixados no curso desses 30 anos em que o PT veio se descaracterizando em relação à formidável promessa inicial. Enfim, qualquer coisa seria de esperar, menos este entrincheirar-se com eles, como Haddad veio fazendo, ao lado de outros, cujo comportamento não permanece menos intrigante, como o ex-governador Tarso Genro.

Vinha eu em fabulações assim quando li, no UOL, o artigo de Fernando Haddad que a revista Piauí publica neste mês de junho. Já não estou intrigado. Estou decepcionado. Não apenas, nem especialmente, pela fragilidade, digamos, teórica do artigo, nem pela mistura de registros pessoais e intelectuais (afinal, os tempos talvez peçam algo disso), mas porque Haddad se incumbiu de dar a largada para a pós-verdade em que o PT terá de se enredar para tentar sobreviver. (Não seria impróprio se o leitor fosse ao artigo de Haddad antes de prosseguir).

Como sabemos, a marca da pós-verdade é o desprezo pela evidência contrária ao que o narrador pretende incutir: por exemplo, é assim com o aquecimento global, quando visto por Trump como uma conspiração contra os EUA; é assim com a ditadura paisano-militar brasileira, quando vista por Bolsonaro como um período de prosperidade e liberdade; é assim com a era FHC, quando vista pelo próprio como um esforço hercúleo contra a injustiça social; é assim com a era Lula, quando vista pelo professor André Singer como governos no rumo do socialismo…

Ora, qualquer um que pretenda analisar o pleito eleitoral de 2016 no município de SP não pode deixar de enfrentar a crise político-institucional em meio à qual ele se deu e, ao fazê-lo, tampouco pode deixar de se debruçar sobre as evidências a respeito do papel do PT e de seu líder maior, seja na crise, seja no fracasso eleitoral, que também resulta dela. Em outras palavras, dada toda evidência disponível acerca da trajetória eleitoral do PT naquela capital e tudo o que a Lava Jato trouxe à tona no curso da crise, nenhum analista pode tratar do período 2013-2017 sem fazer a concatenação desses eventos e, muito menos, poupando PT e Lula de uma dura crítica.

Embora bem escrito, o artigo de Haddad é confuso justamente porque todo ele é uma ginástica para tratar do fracasso eleitoral e da crise, mas poupando o PT e, sobretudo, Lula, de qualquer crítica. Sobra apenas para Dilma, coisa que, no contexto, é uma tremenda covardia (já tratei aqui de Dilma como um alvo frágil). E o autor invoca a crise não para explicá-la, e sim para nos persuadir de que não fracassar na reeleição estava além de suas forças, pois algo maior acontecia. Entretanto, no agenciamento desse algo maior adverso põe quase todo mundo, menos o PT e Lula, tão vítimas quanto ele, coitados. O único reparo ao PT aparece em suas elucubrações sobre a “natureza patrimonial do Estado brasileiro”, quando, com muito jeito, e bem de passagem, parece lamentar que a ala majoritária do partido tenha entendido que “nosso projeto era realizável sem reformar profundamente as estruturas do estado patrimonialista” – como se o problema fosse a insciência do lulopetismo acerca dessa “reforma”…

Decidido a não atirar para dentro do forte, Haddad faz uma crítica tão acertada quanto padrão à grande imprensa (cujo player maior, segundo o próprio Haddad, queria a volta de Lula em 2014… não diga?!); seguida por uma crítica unilateral ao PSDB (como se o fortalecimento do conservadorismo no Brasil não fosse obra conjunta, saída da polarização fajuta PT-PSDB, em cuja encenação eles nutriram o entulho autoritário que agora nos “governa”, p-MDB+DEM) – para Haddad, o êxito de Doria e o crescimento de Bolsonaro saíram da estufa do PSDB, não do ambiente poluído em que PT e PSDB se locupletaram.

Sobre essa locupletação propriamente patrimonialista, nem uma palavra. O que há é a tão altissonante quando encobridora observação de que

“há um equívoco quando se fala de lobby no Brasil. O lobby pressupõe pelo menos dois lados, se não uma mesa quadrada, pelo menos um balcão. No nosso patrimonialismo, o poder político e o poder econômico sentam-se a uma mesa redonda. Não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios”.

Ora, se o autor entende que as coisas se passam assim, a pergunta que ele próprio deveria fazer, e responder no artigo, é: como se explica que Lula e o PT tenham permanecido sentados a esta mesa redonda atualizando e ampliando velhos esquemas dessas relações nefastas entre o poder e o dinheiro no curso dos 13 anos em que ocuparam os mais altos cargos políticos do Estado brasileiro?!?

Haddad não só não se faz essa pergunta crucial para quem quer entender a crise, como tem a coragem de fazer a observação de que os movimentos sociais em rede deram causa à crise que malbaratou seus sonhos: “tenho para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não fossem as Jornadas de Junho ”.  O autor lamenta que os movimentos em rede não tenham seguido o manual de conduta da oligarquizada esquerda brasileira, afinal,

“tradicionalmente, todas as modernas organizações contestatórias no Brasil, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), passando pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e demais movimentos sociais, sempre foram adeptas de alguma mediação político-institucional. Mesmo durante a fase mais aguda do neoliberalismo, essas organizações faziam atos, exerciam seu direito de protesto, mas buscavam a negociação com as instituições. Diante de governos de centro-esquerda, essa tendência se acentuava e trazia ganhos efetivos para os grupos representados.”

Agarrando-se ao que há de menos legítimo na direção das burocracias das “modernas organizações contestatórias” (com a exceção do MTST), só o que Haddad recolhe da rica experiência em andamento de quem busca novas formas de ação política é a queixa reacionária de que os novos movimentos em rede não aceitaram vir negociar à mesa (redonda?) em que a UNE e a CUT se aboletaram!  Nosso autor entende que a ação via internet, que é própria de movimentos em rede, permitiu que a direita capturasse uma forma, surfando nela com seu conteúdo nefasto – ora, essa constatação fica sem explicação, pois não há uma só linha sobre a desmoralização que impediu a esquerda de disputar essa forma, uma vez que sua adesão à inação burocrática e à corrupção a descredenciaram, faz tempo, para obter engajamento espontâneo. Por isso mesmo, Haddad passa a considerar que a internet é uma ferramenta ruim… Acho que é hora de advertir que o 15M espanhol, que resultou no Podemos, teria sido impossível sem a internet.

Tudo o que foi visto acima já seria o bastante para descredenciar Haddad como analista da cena atual. Mas há coisa pior. Trata-se de sua abordagem do Judiciário – e não é por acaso.

Embora discorra longamente sobre o que entende por “natureza patrimonial do Estado brasileiro”, Haddad em momento nenhum aborda a crise atual como uma crise de legitimidade desse “Estado patrimonial” que invocou. Fica parecendo que o patrimonialismo foi trazido à cena apenas para, de um lado, explicar as dificuldades de Haddad para se reeleger prefeito de São Paulo, bem como as do PT para governar o Brasil; e, de outro, para dar gancho à discussão do papel da Lava Jato, que está a “abrir a caixa-preta das relações público-privadas no Brasil”.

Em outras palavras, Haddad não pode tratar da crise de legitimação porque para fazê-lo teria de encarar o papel do PT e de Lula na construção da ilegitimidade. Em decorrência dessa limitação, ele enxerga a Lava Jato como uma operação nos estritos limites do Judiciário, para então nos advertir de que o Judiciário não faz revolução e indicar uma “tensão no interior da operação entre uma ala facciosa tradicional, com claros interesses políticos, e uma ala republicana que quer passar o país a limpo sem aparentemente se dar conta da escala dos seus propósitos” — é bem o caso de advertir que não deveríamos deixá-los sozinhos na busca desses propósitos…

O leitor familiarizado com este blog sabe que venho desenvolvendo aqui a ideia de que a crise atual é uma crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário, crise essa que resulta da erosão do pacto do Real em conexão com o esfacelamento do sistema político corrupto, acomodado e a serviço da desigualdade. A agudeza da crise só faz crescer e, nesse processo, a sociedade viu aflorar como nunca antes o exercício faccioso dos poderes institucionais de que sempre fora vítima, mas que, agora, ganhou corpo numa luta aberta entre facções que dominam, segundo maiorias ocasionais, este ou aquele braço do Estado, levando para as disputas dentro do Estado ilegalidades desde sempre dirigidas contra os mais pobres.

Nessa crise de legitimação, não cabe escolher entre forças facciosas e não facciosas. O que caracteriza o Estado brasileiro em crise é ser palco de uma luta aberta entre facções, ainda que haja facções que aspirem uma ordem propriamente republicana. Por exemplo, se é inegável que a aliança circunstancial entre a PGR e o Ministro Fachin está a atuar numa direção republicana, não é menos inegável que o faz de modo faccioso, forçando brechas legais e impondo constrangimentos, de que são exemplos a suspensão do mandato de senador de Aécio, a aceitação sem perícia das gravações de Joesley e o prazo de 24 horas para Temer responder a nada menos do que 82 perguntas… Nada disso me aborrece ou contraria, pelo contrário, mas tenho de reconhecer que foram providências no âmbito do exercício faccioso dos poderes institucionais. Por isso mesmo, faz tempo que a Lava jato deixou de ser uma operação, dando lugar a um teatro de operações em que facções medem forças, como já expliquei aqui.

Trocando em miúdos: Haddad nos adverte de que o Judiciário não faz revolução porque ele, Haddad, fez escolhas que o impedem de somar forças com as facções que estão “tensionando” o seu “patrimonialismo moderno” (o “moderno” deve ser por conta da participação do PT e de Lula nele). Haddad vê a Lava Jato como uma operação dividida entre uma “ala republicana” e uma “ala facciosa tradicional” porque não pode enxergar a crise como ela é, uma crise de legitimação; então acha possível que a essa altura o Estado brasileiro ainda possa nos oferecer uma virtuosa “ala republicana” isenta de práticas facciosas e desprovida de interesses políticos! Nas fabulações de nosso autor, tudo se passa como se Moro fosse faccioso contra Lula, mas Janot não fosse faccioso contra Temer. Nada disso. O que há é uma luta de facções em reconfiguração constante e que, em razão dos poderes que detêm, desfiguraram a Constituição como se fosse um roteiro de ficção – e ainda há toda sorte de nostálgicos a defender essa sacrossanta conquista de 1988!

Não deixa de ser curioso que num artigo tão longo o autor não convide o leitor para nenhuma saída, nenhuma ação, nenhum cenário, nada. Haddad se apresenta a assistir ao desfecho da crise como qualquer passante, tão emparedado quanto diz, com razão, que Temer está – e não é por acaso que eles partilham essa condição…

E é por estar emparedado que nosso autor termina seu longo artigo com um parágrafo cuja ambiguidade, sendo coisa pensada, faz a síntese do conjunto:

“Lula terá no próximo pleito papel central. A política brasileira organiza-se em torno dele há quatro décadas. Desde o final dos anos 70, é o personagem mais importante da história brasileira. Tudo o mais é circunstancial. A própria eleição de FHC foi obra do acaso – como o próprio reconhece. Lula participará da sua oitava eleição presidencial, seu nome estando ou não na urna eletrônica. Independentemente disso, as eleições do ano que vem podem se dar na arena da grande política ou num programa de auditório. A escolha está sendo feita agora”.

Quem poderia discordar dessa pérola acerca do óbvio? Estou, claro, de pleno acordo com um juízo assim neutro. Será que essa neutralidade foi combinada com Lula? Afinal, nesse exercício de distanciamento, Haddad se insinua como alternativa ao próprio Lula, mas com o cuidado de não criticá-lo… nem elogiá-lo…

Seja como for, é necessário dizer que Lula estará realmente à vontade no próximo pleito se ele for transformado num programa de auditório – e este é o maior risco de que saia dessa eleição uma regressão autoritária, afinal, é nesse tipo de auditório que as velhas aberrações recepcionam as aberrações novidadeiras, num Fla-Flu que incita no público suas paixões mais contraproducentes quando se tem em mente um Estado de Direito Democrático.

O que falta para fazermos da crise impulso a um processo de transformação é povo em movimento, é desobediência civil — e nem PSDB, nem PT podem liderar um movimento dessa ordem, pois eles são parte do entulho da Nova República, que tem de ser deixado para trás. Atônita, confusa diante da extensão dos estragos a que nos levaram aqueles em quem confiou a ponto de depositar neles as suas esperanças, a maioria da sociedade brasileira ainda não atinou que é chegada a hora de tomar o que é seu. É dessa perspectiva que, como já disse aqui, defendo eleições constituintes em 2018, evitando a armadilha das diretas-já.

VAI DEMORAR, POIS TEREMOS DE TRANSPOR OS ESCOMBROS DE PSDB E PT

Carlos Novaes, 03 de junho de 2017

O sistema político profissional não nos representa faz tempo. A novidade é que ele já não oferece alternativa sequer para si mesmo, pois PSDB e PT, as duas forças que se revezavam no teatro eleitoral trazendo a reboque os partidos da ditadura paisano-militar, já não dispõem de credibilidade para apresentar uma alternativa crível. É por isso que, a cada dia, fica mais largo o abismo entre o palácio e a rua, de que já tratei detidamente aqui, e bem antes desta crise.

Esse abismo está a ficar mais largo porque tanto o palácio quanto a rua se resolvem pondo o PT e PSDB à margem. No palácio, cujo polo dinâmico está, hoje, centrado na Câmara dos Deturpados, a solução vai sendo construída em torno de Rodrigo Maia, do DEM (ex-PFL, ex-ARENA), tendo como coadjuvante o p-MDB – uma dobradinha entre os partidos da ditadura paisano-militar que é mera inversão daquela apresentada no Colégio Eleitoral de 1985: Tancredo (p-MDB), com Sarney (PFL, ex-ARENA). Ou seja, mais uma evidência de que estamos a voltar atrás, mas numa versão piorada. O sistema político do nosso Estado de Direito Autoritário se fecha num nó ainda mais apertado.

Uma situação como essa não tinha como não levar PSDB e PT a agudas divergências internas – quando não a rupturas e, até, um notório sumiço (cadê o Serra, senador por São Paulo?!). Enquanto o PSDB Bovary se debate entre sair e ficar no governo liderado por Temer; o PT se divide em torno de lideranças secundárias conforme as escolhas de Lula. Nos dois casos, trata-se de um abraço de afogados, como se pode verificar no fato de que não há correspondência na rua a estas lutas internas.

As lideranças dos movimentos proto-fascistas, que haviam acolhido e celebrado Aécio, já não têm coragem de dar as caras, mesmo quando as evidências contra Temer se mostram muito mais contundentes do que o que havia contra Dilma – esses “líderes” têm corruptos de estimação e, por isso, sequer conseguem imaginar apoio aos segmentos do PSDB que querem sair do governo. Sem eles, o PSDB não tem como sair à rua. Quanto ao PT, vai às ruas com capacidade de arregimentação cada vez menor, pois tem havido uma diminuição no contingente de trouxas dispostos a assistir suas piruetas “esquerdistas” de ocasião: no governo, se jactavam de ter levado os ricos a ganharem dinheiro como nunca antes; perdidos os cargos, querem nos convencer de que irão combater o modelo de concentração de renda e riqueza a que se acomodaram…

A direita saiu da rua; a autointitulada esquerda independente tem em Boulos seu porta-voz. Ora, Boulos exibe esperanças erradas ao advertir que Lula precisará aprender com os próprios erros, “esquecido” de que o que se cometeu foram crimes e, pior, fingindo acreditar que, a essa altura, Lula precisaria aprender o que desde sempre soube, mas preferiu não enfrentar (precisamente porque moldou sua liderança na perspectiva da acomodação, não da transformação): não iremos adiante sem que os ricos percam, pois a desigualdade brasileira é, sim, um jogo de soma zero.

Não chega a servir de começo a uma transformação o engajamento de artistas e de ativistas culturais e populares à bandeira das diretas-já, de cuja impropriedade já tratei aqui. Eles acertam quando rejeitam a presença em suas manifestações dessas burocracias partidárias e sindicais que temos de deixar para trás, mas erram ao pleitear eleições às quais só poderão concorrer exatamente essas burocracias! Como já disse, precisamos de tempo. Realizar eleições constituintes em 2018 talvez nos dê algum fôlego para criar melhores condições para disputas eleitorais que, no cenário mais provável, terão PFL e p-MDB no governo, com PT e PSDB na “oposição” e trazendo Dória e Ciro Gomes como novidades…

O QUE SIGNIFICA “MORTE POLÍTICA” ?

Carlos Novaes, 02 de junho de 2017

Começam a surgir especulações e “análises” sobre o futuro político de Aécio Neves. Uns dizem que ele está politicamente morto, outros dizem que não. Mas o que cada um entende por morte política, afinal? Há quem doutamente pondere que apontar alguém como politicamente morto é tão fácil quanto quebrar a cara ao fazê-lo. Sustento que só se engana quem não sabe o que é morte política.

Desde logo façamos uma distinção básica: a morte política não está para a política como a morte está para a vida – afinal, para fazer política basta estar vivo. Não obstante, muita gente douta acha que a vida política não acabou se o camarada ainda faz política, se ele próprio ainda não desistiu. Se fosse assim, a morte política seria ou evento raríssimo, tão raro que não seria o caso de falar sobre ela; ou ela só aconteceria quando o político morresse, mesmo.

Entendo que há morte política quando a trajetória ascensional provável de um político é interrompida por razões que o desqualificam definitivamente para aspirar vitória em disputas eleitorais para cargos de relevância igual ou superior ao pico do(s) que já conquistou, tendo em mente esta hierarquia: vereador, deputado estadual, deputado federal, prefeito, senador, governador e presidente. E por que esta hierarquia, que privilegia os cargos majoritários? Por que a magnitude e a diversidade relativa destes eleitorados, aliada à respectiva relevância orçamentária e/ou política destes cargos, requerem do aspirante à recondução (ou progressão) uma reputação benigna bifronte: junto a um eleitorado tão complexo quanto numeroso e junto aos seus pares de profissão. Para um político, perder essa reputação é o equivalente a estar morto.

Naturalmente, essa definição dispensa saber a opinião do próprio político, seja ela qual for. Afinal, a coisa mais improvável é um cadáver se convencer da sua condição de cadáver… Daí que um morto político possa viver a nos assombrar por muitos anos após sua morte, ainda que jamais consiga o cargo almejado.

Para ilustrar essa conversa, peguemos o caso de Paulo Maluf, há décadas o cadáver político brasileiro mais notório (como fede!). Ex-prefeito indireto e direto da capital paulista, ex-governador indireto de São Paulo, ex-candidato à presidência da República pelo Colégio Eleitoral, ex-candidato a presidente, governador (SP) e prefeito (SP) pelo voto direto – ele só parou quando, parece, se convenceu de que era um cadáver ambulante.

Fui um dos que decretou a morte de Maluf, e minha cara ficou intacta. Eu o disse há uns 20 anos, em algum momento entre 1997 e 1998, quando pesquisas que realizei deixaram ver que, com o governo do prefeito Pitta em SP, Maluf era carta fora do baralho majoritário no estado e, portanto, no Brasil. Com base no diagnóstico que fizera, foi fácil perceber que o morto jamais teria êxito, e o disse a cada vez que Maluf disputou um cargo majoritário depois disso: em 1998, para governador de SP, e em 2000, 2004 e 2008 para prefeito da capital paulista. A cada candidatura, ouvia sempre a ladainha de que “vejam só, Maluf não está morto”, como se a morte de um político requeresse a desistência dele. Não. Um político não morre apenas quando desiste de tentar o voto, ele morre quando o eleitorado desiste dele.

Evidentemente, se você considera que ao ser eleito e reeleito Deputado Federal Paulo Maluf deu mostras de estar vivo politicamente, então sua definição de morte política é outra, e eu não sei para o que ela serve, dado que ela faz de todo político que já tenha sido grande um imortal… É raciocinando assim que lá em Minas tem gente vaticinando que Aécio não morreu, uma vez que ele sempre poderá chegar à Assembléia Legislativa mineira, ou à Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, ou, quem sabe, à de São João Del Rey… Francamente.

Afinal, Aécio está politicamente morto? Embora esteja claro que ele jamais chegará à presidência da República pelo voto direto, ainda não disponho de elementos para saber da situação dele em Minas, não obstante seu declínio ali já venha de antes deste escândalo, pois recentemente perdeu eleições majoritárias importantes em que se empenhou por aliados seus, seja para o governo estadual, seja para a prefeitura da capital. Aécio só poderá ser dito um morto político quando se demonstrar que ele não tem condições de disputar com êxito os cargos de governador ou senador em Minas Gerais.

Talvez não venha a ser necessário esperar, uma vez que dadas as flagrantes diferenças de temperamento e fibra, não parece absurdo imaginar que, diferentemente de Maluf (que, no dizer de uma amiga minha, “não tem superego”), Aécio acabe por trilhar mais cedo o caminho da desistência da vida pública, liberando o ambiente político de mais um provável cadáver ambulante. O tempo dirá.

Fica o Registro:

– Não precisamos de pesquisa para saber que Temer está morto. Mas ele, como todo morto-vivo, continua a provocar danos. As últimas movimentações de Temer são tão escandalosamente facciosas, tão repugnantes, tão danosas ao que quer que se entenda como governar para o bem comum que, acredite, leitor, tenho preguiça de fazer qualquer análise mais detida. Refiro-me à Medida Provisória para preservar o Angorá (apelido certeiro, dado pelo Brizola, em 1982); à busca de manter o mandato do Rocha Loures, indo além de lotear o ministério da República, pois o põe a serviço de manter a própria avacalhação da República como tal; à reclamação contra uma suposta “pressa” de Fachin no caso JBS, quando o próprio Temer disse que queria urgência; à celebração da alta do PIB, claramente insustentável; à diminuição de áreas protegidas na Amazônia, em favor de madeireiras e mineradoras, etc. Até quando a maioria da sociedade brasileira vai tolerar isso?!?

– A boca fala do que o coração está cheio: segundo o chanceler de Temer, Aloysio Nunes (aquele para quem o gozo estava em assistir “Dilma sangrar”), segundo ele, “o PSDB tem compromissos com o governo e com o programa do governo. E o PSDB não é Madame Bovary”. Ora, qualquer um que tenha lido o romance de Gustave Flaubert sabe que Madame Bovary é justamente o que o PSDB se tornou: sufocado pela frustração de sonhos pequeno-burgueses de grandeza, o PSDB-Bovary, tal como a madame mencionada, oscila entre agarrar-se ao consumo desenfreado do que está à mão (ficar no governo) e a tortura de ver o beco sem saída em que se meteu (sair do governo). Por isso mesmo, o chanceler Bovary faz acenos de lealdade a Aécio, dizendo a situação dele “defensável”.

DE VOLTA AO COLÉGIO ELEITORAL — COMO NÃO DESPERDIÇAR A TRANSIÇÃO? — 3 DE 3

Carlos Novaes, 27 de maio de 2017 — 23:31

Foi dito no início do artigo anterior que nossa crise é crônica. Entender este aspecto da crise pode nos ajudar a pensar alternativas para a transição. Nossa crise é crônica porque no decurso do tempo ela, a cada vez, coleciona tanto o que foi escamoteado na “transição” da crise precedente, quanto o que foi necessário engendrar institucionalmente para acomodar as contradições do que fora acumulado até então – não é por outra razão que estamos a ter a impressão de que esta é uma crise de extensão e profundidade jamais vistas no Brasil.

Essa característica de herdar sem resolver é o desenho do nosso pendor para a acomodação, não para a transição. Para transitar é preciso resolver os problemas, não fingir que eles não existem. Os crimes que hoje se cometem impunemente contra os índios estão diretamente ligados àqueles que foram cometidos no passado e ficaram sem punição; ninguém ignora que a situação de pobreza e violência em que está imersa a imensa maioria da população brasileira afrodescendente resulta do fim acomodatício da escravidão, que não criou obrigações para os senhores nem previu reparação para os escravos; nossos atuais problemas no campo são filhos diretos da grilagem de terras, protegida, quando não promovida, pelo Estado no curso de décadas; chegamos por muitas vias a essa vida urbana precária, sendo a principal delas o descaso com o espaço público e com os equipamentos públicos, como é próprio da ordem política que considera o público como “coisa para pobre”, deixando toda excelência para a chamada iniciativa privada.

Talvez seja proveitoso, nesse limiar de mais uma transição, buscar orientação na chamada Justiça de Transição, sobre a qual o leitor encontrará informação preliminar segura, aqui. Muito resumidamente, trata-se de um arcabouço conceitual que visa oferecer instrumentos para que um Estado de Direito que suceda regimes autoritários possa fazer justiça aos injustiçados pelo arbítrio. Para o nosso caso atual, quando se trata de superar pela transição uma crise crônica, entendo que a ênfase deve estar nas noções de memória e transformação, não nas de anistia e reparação. De fato, diante de uma crise cujos sofrimentos e injustiças vão tão longe quanto a memória se recuse a recalcar, não parece apropriado falar em reparação, seja pela distância no tempo, seja pela magnitude dos danos sofridos colecionados: não teríamos pernas para reparar. Por outro lado, precisamente porque para transitar é preciso lembrar, não esquecer, não cabe falar em anistia, especialmente quando os anistiados seriam criminosos sobre cuja conduta não pairam dúvidas de que se destinava a obter vantagens pessoais pelo desvio fraudulento de recursos públicos. Não é por acaso que já se fale no Congresso numa anistia…

Quando se pensa nos problemas a enfrentar com ajuda do ferramental da Justiça de Transição em prol da construção de uma maioria social, não parece haver ponto mais sensível na nevralgia da injustiça social saída da desigualdade do que a questão da Segurança. Trata-se de uma área que não poderá ficar de fora no rol das reformas necessárias à transição para um Estado de Direito Democrático. Vivemos uma guerra interna. Ela se arrasta há tempos, devora vidas e recursos públicos numa magnitude desumana e irracional, e não permite registro nem de vencidos, nem de vencedores. É um moto-contínuo sem sentido. Na linha de frente dessa guerra se antagonizam segmentos do nosso povo pobre, uma parte fardada, outra parte esfarrapada. Nossos policiais militares são treinados com recursos públicos sob maus-tratos, levam uma vida estressante e mal remunerada, tudo para garantirem uma ordem que maltrata aqueles a quem deveriam defender – o prêmio que recebem é a proteção da hierarquia para as ilegalidades cometidas pela minoria deles. A população pobre das periferias recebe dos bandidos, na forma de benefícios privados, compensação parcial pelo muito que deixa de receber do Estado em serviços e equipamentos públicos. Como alcançar coesão social para o bem comum numa situação dessas?

Assim como no âmbito da representação política o dispositivo paisano (o p-MDB) que nos foi legado pela ditadura paisano-militar vem sendo desmontado (embora não possamos antecipar a extensão do desmonte), uma transformação na área da Segurança Pública vai precisar desmontar o dispositivo militar que também nos foi legado pelo regime autoritário. Ao incluir a Segurança Pública entre as reformas a serem discutidas na transição, teremos de começar por dar outro desenho à luta pelos Direitos Humanos, incluindo resolutamente a defesa dos direitos dos policiais ao treinamento justo e à remuneração digna, condições básicas para a sua desmilitarização, desvencilhando-os de cadeias de comando remotas e aproximando-os da sociedade pela subordinação ao poder local.

Fica o Registro:

– Se antes das delações dos donos da Friboi se tinha como certa a vitória de Temer na decisão do TSE sobre a chapa Dilma-Temer, agora já se cogita um alinhamento diferente dos mesmos juízes, não obstante a questão jurídica seja também a mesma. Eis outra evidência de que estamos ao sabor de maiorias facciosas ocasionais, a variar segundo os desdobramentos da crise.

– O pedido de Temer para que seu processo saia das mãos de Fachin mostra que há uma tentativa de redesenhar o próprio teatro de operações da Lava Jato. Pretende-se que por Lava Jato se entenda apenas a investigação da corrupção na Petrobrás, quando está mais do que claro que aspectos técnicos já foram superados pela organicidade política que todo o jogo da corrupção está a evidenciar.

– Em mais uma demonstração do alinhamento político que a condição de réu na Lava Jato prevê e obriga, Lula ataca os delatores da Friboi, no que ajuda Temer em seus esforços para safar-se via desqualificação dos indefensáveis, mas úteis, colaboradores do MP.

– As declarações corajosas do Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, sobre as tentativas facciosas de levar o Supremo a desfazer o que vem dando certo no teatro de operações da Lava Jato alimentam a esperança de que, talvez, haja uma chance de alcançarmos uma transição para um patamar superior de civilização. Além de afinadas com a preferência pela transformação que, apesar da inércia, se pode sentir na sociedade brasileira, as posições do Ministro — contra pôr em revisão os acordos de delação, e sobre a prisão de réus condenados em segunda instância – nada têm de facciosas, pois refletem um entendimento do funcionamento institucional compatível com a almejada vigência de um Estado de Direito Democrático.

Acréscimo em 28/05, às 08:41:

– O prof. José Murilo de Carvalho, em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, atribui “a instabilidade de nossos governantes no poder à incapacidade de processar a entrada tardia do povo na política.” Concordo, mas, como disse aqui, entendo que o problema está na contradição fundamental entre, de um lado, esta expansão do eleitorado popular e, de outro, a manutenção da desigualdade, com a expansão da parafernália institucional conexa necessária ao equilíbrio instável dessa contradição — daí a corrupção. Não é uma coincidência que se aloje na contradição mencionada a polarização entre Legislativo-representação e Executivo-gestão, fase última da instabilidade de que trata o prof. J. M. de Carvalho em seu instrutivo artigo e da qual tratei detalhadamente há cerca de um ano, aqui e, ainda mais, aqui.

 

DE VOLTA AO COLÉGIO ELEITORAL — COMO NÃO DESPERDIÇAR A TRANSIÇÃO? — 2 DE 3

Carlos Novaes, 27 de maio de 2017 – 17:36

O momento político brasileiro atual exibe o impasse que antecede uma transição, e isso por quatro razões interdependentes: primeiro, a crise, além de crônica, é abrangente e profunda, atingindo as dimensões política, econômica e institucional; segundo, não há identificação clara do vetor da crise; terceiro, não há força política capaz de exercer hegemonia para dar rumo auspicioso ao vetor da crise; quarto, não há proposta clara sobre como sair da crise de modo proveitoso. Numa situação dessas, não é de surpreender que o exercício do poder se dê de modo precário. Ademais, dadas as circunstâncias criminosas que marcam a crise, as forças que estão no exercício do poder estão afundadas na ilegitimidade, sendo elas mesmas, a um só tempo, causa da crise e parte do que deve ser deixado para trás. Em suma, a sociedade brasileira precisa construir uma maioria social que lhe permita transitar para outro patamar civilizatório. A outra alternativa é regredirmos a uma forma abertamente autoritária. Não sendo de descartar que acabemos por deixar à inércia a definição do curso, o que acabará por nos levar aos sofrimentos típicos de quem vive eternamente na véspera de desastre ainda maior.

A dimensão política da crise geral é uma crise de representação; a dimensão econômica é uma crise da gestão pública posta a serviço dos interesses dos que se aferram à desigualdade; a dimensão institucional é um Estado de Direito Autoritário conflagrado numa luta entre facções. O vetor principal desta crise são as contradições postas pela insustentabilidade da desigualdade brasileira, mas as forças que exercem o poder não poderiam, é claro, concordar com este diagnóstico e, então, inventam causas: na política, a culpa foi de Dilma e do PT, como se eles não fossem todos sócios; na economia, os culpados são exatamente os poucos direitos arrancados pelos de baixo nas últimas décadas, voltados a mitigar efeitos nefastos da desigualdade, simbolizados na Previdência, na ordem do Trabalho, no SUS etc; nas instituições, os problemas adviriam de um suposto atropelo da independência entre os três poderes, agravado com a ação supostamente abusiva das autoridades que justamente investigam os crimes que cimentaram a prestação de serviços recíprocos entre políticos profissionais e agentes do Mercado.

Não há força capaz de exercer hegemonia no rumo da superação auspiciosa da crise porque uma das razões da crise está no fato de que as duas forças que a sociedade gerou para levá-la adiante, o PSDB e o PT, se aliaram às forças do atraso aderindo ao dogma de que os ricos não podem perder – o dinheirão da corrupção é compatível com a extensão da tragédia socioeconômica cuja encenação farsesca no teatro eleitoral ele financiou. Precisamos de outra política, da qual sairão novas forças políticas orientadas à mudança e à transformação. Finalmente, não há proposta clara sobre como sair da crise porque, de um lado, os embates que ocupam o proscênio são os da situação rebaixada já descrita, e eles visam a manutenção, não a transição; de outro lado, não há proposta clara porque ela terá de ser inventada, terá de sair de um processo Constituinte, no qual se faça o debate das reformas necessárias, que, sem dúvida, como já dito, incluem a Previdência, a ordem do Trabalho, as políticas sociais e muito mais.

Ou seja, nossa transição só poderá começar com a instalação de um processo constituinte, a ser aberto com a escolha de um presidente indireto que se abstenha de promover reformas e se restrinja a presidir o início da construção de uma via constitucional nova. Nessa nova transição, deveremos evitar cometer os erros da anterior, que nos deu uma democracia eleitoral em articulação contraditória com um Estado de Direito Autoritário.

UMA NOVÍSSIMA POLARIZAÇÃO

Carlos Novaes, 26 de maio de 2017

Nas atuais circunstâncias, o establishment deu duas incumbências à presidência da República, seja quem for o presidente: primeiro, fazer as reformas que garantam o funcionamento do Estado de modo que atenda, como sempre, aos interesses do Mercado; segundo, que ponha toda a força do cargo na defesa do sistema político que a Lava Jato feriu de morte, mas que os políticos profissionais insistem em manter de pé. Como o tempo é de desordem e, por isso mesmo, abriram-se fendas entre o Mercado e os seus políticos, as duas incumbências acima geram certo conflito entre o Mercado e os políticos profissionais. Não tendo vocação suicida, o Mercado, sempre oportunista, não morre de amores por um sistema político moribundo, e até preferiria seguir sem ele se, ainda assim, pudesse fazer as reformas que lhe interessam. Já o sistema político tenta sobreviver mostrando-se o único que pode conduzir as tais reformas. Ao ser apanhado em malfeitos, Temer, do p-MDB, é o presidente que encarna essa situação em estado puro, daí sua saída ou permanência (como se fosse possível) estar mesmerizando o país.

Temer faz a crise conhecer novo estágio, pois seu destino abre dissenções entre os próprios players do Mercado: enquanto a Globo parece ter se convencido de que o sistema político liderado pelo p-MDB não tem salvação, e aposte suas fichas na escolha de um novo presidente para liderar a aprovação das reformas; outros pesos-pesados do Mercado ainda buscam saídas para Temer – não deve jogar peso pequeno aqui o fato de que a Globo não deve ter falcatruas em dinheiro no seu indiscutível papel de quem ajudou a sustentar o sistema político (ela o fez oferecendo tela e microfone, não dinheiro); diferentemente dos demais grandes empresários, que tiveram que comparecer com a sua parte em dinheiro… Ou seja, a Globo teme menos do que outros players as delações dos políticos profissionais que veem seu mundo ruir. (Deve vir daí o sucesso de Silvio Santos como o apresentador-empresário: ao distribuir arbitrariamente microfone e dinheiro no palco dos domingos, encarnou, no entretenimento, as duas faces da forma da dominação autoritária de rotina no Brasil — talvez venha daí uma futura aposta da Globo no Huck, um populista eletrônico que já trará, porém, a marca de sua origem autoritária).

Seja como for, essas dissenções vieram à luz através dessa novíssima polarização que opõe a Globo à Folha de S.Paulo em torno de Temer e da atuação da PGR. Enquanto a Globo, fazendo-se de “escrava da verdade”, deu tela e microfone à ação da PGR contra o sistema político (isto é, contra Temer, do p-MDB), a Folha, fazendo-se de “fiel ao Brasil” (qual deles?), tirou do armário a batina surrada dos “interesses nacionais” e está a pregar contra a facção da Lava Jato que atua para por fim ao sistema político do qual a Globo parece ter desistido.

Enquanto a Globo atua pragmaticamente em prol de seus próprios interesses num momento em que o futuro está a ficar incerto em razão da imprevisibilidade que a luta de facções adquiriu; a Folha disfarça seus interesses fazendo sermões normativos que só podem enfraquecer a única facção do Estado de Direito Autoritário cujo poder de fazer estragos vem trazendo benefícios à maioria da sociedade. A Globo busca ocupar a vanguarda do Mercado em um novo ciclo da política brasileira, a Folha arrisca sua merecida credibilidade ao alinhar-se com aqueles que querem prolongar a vida de um ciclo moribundo.

A Globo entendeu que a ordem real ruiu pela ação dos atores nela implicados; a Folha acredita que invocar uma ordem conceitual imaginária irá submeter os atores que a subverteram. Sejam quais forem os desdobramentos de curto e médio prazo, nem é preciso ser muito esperto para saber que a Globo vai sair disso em posição melhor do que a Folha, nem se pode deixar de lamentar que em tempos de polarização fajuta a primeira polarização do alvorecer de um novo ciclo seja justamente essa!

JOGO POLÍTICO E FADIGA CONSTITUCIONAL

Diretas-já é a farsa depois da tragédia de 1984

Carlos Novaes, 23 de maio de 2017

Em política, é muito difícil ver o jogo terminar, pois em geral as partidas duram anos, por vezes décadas; por isso mesmo, mais difícil ainda é antecipar essa ocorrência rara que é o término do jogo e, então, criar oportunidades para um novo jogo. Logo, não faz nenhum sentido pretender aplicar ao chamado “jogo político” a regra de que não se mudam as regras no decorrer do jogo. Na verdade, é bem o contrário: uma das características marcantes da política é justamente que ela é feita segundo regras que sempre podem ser alteradas, mesmo no caso das chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição, pois estas também podem ser alteradas pela vontade soberana do povo. A política é um jogo que produz regras para o próprio jogo. Nessa ordem de ideias, tampouco faz sentido pretender impugnar as diretas-já com o argumento do “respeito às regras do jogo em curso”.

Esses legalistas de araque ficam em situação ainda mais difícil quando se observa que afortunadamente estamos no limiar de um fim de jogo, abrindo-se perspectivas para um jogo novo. No artigo anterior deste blog, procurei mostrar que Temer é o fim e não o início de uma nova fase da vida política brasileira. Ele reuniu todas as características negativas do exercício do mando voltado à manutenção da desigualdade e, claro, bateu de frente com a exaustão e com a indignação da sociedade, farta dos sofrimentos e da enganação que vêm desde a transição lenta, gradual e segura. Temer, não por acaso presidente do p-MDB até antes de assaltar a presidência da República, encarna, no cargo, toda a ilegitimidade que marca o exercício do poder político no Brasil contemporâneo. Além de estar a defender causas impopulares sem ter lastro eleitoral para isso, Temer toca o trator cometendo crimes, pois a natureza do seu mandato de origem criminosa é tentar manter de pé um sistema político criminoso, do qual faz parte o lulopetismo que a ele finge se opor. O lugar da presidência é, hoje, o lugar da ilegitimidade. Para ir adiante, para sair da crise, o Brasil precisa justamente de um processo de reconstrução da legitimidade do poder político. Em outras palavras, o Brasil requer um jogo político novo. E, portanto, novas regras.

Sendo a Constituição a regra máxima a ordenar o jogo político, no limiar de um fim de jogo, início de outro, ela deveria, pelo meu argumento, dar sinais de fadiga. E não é outra coisa o que está a acontecer no Brasil. Afinal, tanto as reformas propostas pelos legalistas de araque, quanto aquelas daqueles que se lhes opõem são, em larga medida, reformas constitucionais ou com implicação constitucional (Previdência, Tributação, Trabalho, Prerrogativas Parlamentares, Abuso de Autoridade, Corrupção, Restauração da Escravidão no Campo, Vinculação de verbas sociais, Meio Ambiente, Parques Nacionais, Terras Indígenas e o que mais você lembrar, leitor).

Esse quadro de inatualidade constitucional fica ainda mais claro quando se observa que na luta de facções que caracteriza a vida institucional de nosso Estado de Direito Autoritário, as facções propriamente políticas não apenas invocam a Constituição cada uma em favor de suas próprias pretensões facciosas como, para piorar, recebem do Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição, sinalização contraditória sobre o que está ou não em acordo com a Carta Magna. Para cúmulo, essas contradições não vêm apenas do Pleno dos 11, que poderia estar a rever escolhas, mas variam segundo a Turma e/ou o magistrado consultado – mas isso ainda não é tudo: é de notar que já estamos em conflito aberto entre poderes, com ministros do STF, em decisões benéficas à sociedade, mas facciosamente ao arrepio da Constituição, afastando representantes eleitos dos seus mandatos. De que mais precisamos para reconhecer que a vigência da lei está ao sabor de maiorias ocasionais no Brasil? Temos de reunir maioria social nova através de um processo Constituinte, para tentarmos criar condições à construção, no curso do tempo, de um Estado de Direito Democrático. Na marcha em que nos deixou a ditadura paisano-militar jamais iniciaremos a consolidação de uma democracia.

É justamente porque precisamos de uma nova maioria social que me oponho às diretas-já. Uma maioria assim não será construída de maneira ajuizada se fizermos eleições 90 dias depois da queda de Temer, especialmente se for para eleger de forma solteira o presidente da República, isto é, sem pôr em disputa os mandatos do Congresso Nacional. Não. Precisamos de mais tempo para conversar e pensar. Tempo para deixar para trás as paixões do jogo que está a findar, até porque este jogo, em sua fase final, apaixonou torcidas que não sabiam que o jogo vinha combinado havia anos. Precisamos de tempo para que os segmentos menos sectários destas torcidas reorientem suas paixões, diminuindo as chances de êxito destes mesmos times que querem voltar ao campo para burlar com suas práticas enganadoras as novas regras que vierem a ser definidas para um jogo novo, como deixam claras as notícias de ontem e de hoje, em que aparecem soluções a serem combinadas por PT e PSDB, ou PSDB, p-MDB e DEM, ou, até, a junção dos quatro, que arrastariam os seus respectivos satélites – só se for para atirá-los no fosso do estádio!

Além do que, precisamos de tempo para trazer ao debate aqueles que, com razão, se sentem desorientados em face da barafunda atual, em que, como já dito, se vê dissolver no curso do dia o pouco de compreensão que se julgou ter alcançado no curso da noite. Uma eleição agora só vai aumentar a confusão. Para isso precisamos montar um debate sereno e concatenado (formando novas alianças e agrupamentos políticos) acerca de todas as propostas de reforma constitucional e institucional que estão sobre a mesa, e ainda sob e além dela: da Previdência ao Financiamento Público de Campanhas Eleitorais; da corrupção às prerrogativas parlamentares; da Lista Fechada ao Abuso de Autoridade; da Vinculação de verbas sociais à Reforma Tributária; da Proteção ao Meio Ambiente ao papel do BNDES, do  Voto Distrital ao fim da reeleição infinita para o Legislativo, e muito mais.

Sim, estou ciente de que a escolha indireta de um presidente para a República em transição será feita pelo Congresso, por este Congresso… Mas é hora de perguntar onde perdemos menos: legitimando com nosso voto direto um presidente escolhido na melhor situação para eles continuarem a mandar; ou deixando que eles escolham de modo indireto um presidente para uma situação que não nos satisfaz? Leia novamente a pergunta, e pense.

Parece evidente que a segunda alternativa é a que mais nos convém, sem nos satisfazer, por óbvio. E nos convém porque nós sempre teremos 2018, e o tempo até lá para tentar construir um projeto transformador. A diferença é que o presidente indireto, por pior que seja, terá sempre a marca da ilegitimidade de ser indireto, terá de ser mais contido, do contrário dará com os burros n’água ainda mais rápido do que Temer. E ainda há a possibilidade, remota, é verdade, de que a nossa pressão (nossa, leitor, é a sua, a minha, e a de quem mais entenda sofrer as consequências negativas da desigualdade) possa empurrar o presidente indireto no sentido de favorecer o debate sobre 2018. Talvez por temer essa alternativa haja muito pilantra defendendo diretas-já. Não seria de surpreender, afinal, como sabemos, a história se dá por assim dizer duas vezes, na primeira como tragédia, na segunda como farsa. Olho na Globo, a vanguarda do Mercado.

O QUE FALTA NÃO É UM NOME, MAS O LUGAR A SER OCUPADO

Carlos Novaes, 21 de maio de 2017

Peço ao leitor um pouco de paciência até que eu justifique o título acima. Vamos lá, coragem.

Lendo os jornais de hoje, em entrevistas, colunas e matérias, a pergunta é uma só: Quem?

Todos os “analistas” que têm nos advertido sobre os perigos do personalismo, da crença em “salvadores da pátria”, traem agora suas ânsias mais secretas ao nos perguntar Quem?, como se a queda de Temer gerasse uma orfandade generalizada.

Proponho darmos um passo atrás para verificarmos quem exatamente está ficando órfão.

Acoplados à reeleição infinita para o Legislativo-representação, apoio$ empresariai$ generoso$ levaram nosso sistema político gerido para manter a desigualdade à condição ilegítima em que se encontra, estado de coisas a que chegamos no curso de anos, passando, grosso modo, por três fases, duas longas e uma breve: primeiro, o sistema atendia demandas laterais e desnaturava as aspirações centrais da sociedade, com PSDB e PT fustigando-o à mudança com seus projetos próprios – já aí se inicia a construção de um mundo à parte, pois após a Constituinte se inicia uma descaracterização paulatina do PSDB; no passo seguinte, os políticos deram as costas à sociedade e passaram a simular atendê-la (cria-se um mundo à parte, com a cooptação definitiva do PSDB e, em seguida, do PT, que se descobre vocacionado havia tempo para essa adesão, sacramentada por assim dizer através dos Correios, com a Carta aos Brasileiros); finalmente, depois de anos de procrastinação de um futuro melhor, a sociedade vive sua repulsa insciente a esse arranjo infeliz na forma de uma exaustão de tudo e de todos, e a Lava Jato surge como dispositivo real dessa inquietação subterrânea, trazendo a furo a corrupção, que é o combustível do mundo político paralelo cujas etapas de montagem acabei de resumir.

Incapazes de avaliar a extensão contra si do ineditismo da Lava Jato (leia-se, da exaustão da sociedade), os políticos profissionais respondem à novidade com o cardápio de sempre: incriminar alguns para salvar o conjunto, tangendo a ira popular para o alvo mais frágil, a presidência da República, como já tratei detidamente aqui. Com a queda de Dilma, essa manipulação da opinião pública parecia ter dado resultado e eles se acertaram para a jogada seguinte, prosseguir com Temer, todos encorajados pela adesão conformada do PT e de Lula, que passaram à coreografia de “oposição para inglês ver”: votaram em Maia para a presidência da Câmara e tiveram os direitos políticos de Dilma poupados, numa jogada com Lewandowsky. Daí em diante, eles, que já estavam num mundo à parte, de costas para nós, mandaram às favas os escrúpulos com a opinião pública e passaram a uma luta aberta contra nós (vale dizer, contra as facções da Lava Jato hostis a eles) para estancar a sangria, ou seja, salvar o sistema. Mal sabíamos, nós e eles, que o destino funéreo do sistema havia sido selado na jogada anterior à queda de Dilma, duas antes, portanto, dessa que entronizou Temer: a malograda ida de Lula para a Casa Civil da presidência da República.

Temer chegou à presidência contra a vontade da maioria da população, o que, por si só, já caracterizou seu governo como um arranjo de salvação do próprio sistema em crise, contra a força subterrânea da exaustão da sociedade – eis a marca indelével da ilegitimidade. Por isso mesmo, ele montou um governo sem qualquer gesto de diálogo com a maioria contrariada, e o fez sem ver nisso nenhum problema – pelo contrário, nomeou e manteve no ministério figuras expoentes da banda podre da crise. Logo em seguida, denúncias novas não abalaram sua lealdade ao que a sociedade repudia: além de não fazer caso da renúncia de um ministro farto da bandalheira, manteve outros cujas bandalheiras em que se fartaram impediriam a permanência nos cargos. Deu sequência aos gestos próprios da acomodação buscada visitando Lula em hora sofrida, tratando-o como ex-presidente a ser ouvido, pouco ligando para o fato de ele estar a responder inquéritos na Lava Jato. Segue nessa batida impopular com as tais “reformas” sabida e assumidamente impopulares, que são uma decorrência necessária desse processo de salvação do sistema. Ao longo de todo esse percurso indefensável, analistas, comentaristas, figurões do Mercado e posudos como FHC não cansaram de nos advertir de que Temer era a “pinguela disponível”, o “mal necessário”, a “única saída” e não sei mais o que em matéria de rebaixamento de expectativas.

Olhando bem, Temer foi o homem certo, no lugar certo, na hora precisa: um político profissional tarimbado, jeitoso, tão confiável quanto o pode ser alguém do p-MDB, com trânsito neste Congresso, neste Mercado e entre estes adversários tão chegados, chegou à presidência da República (o lugar) no ápice de uma crise de legitimação política e não fez outra coisa senão afrontar e contrariar a sociedade cuja exaustão e indignação geraram a crise de legitimação que ele deveria superar… – a queda dele será a evidência cabal da desconstrução mesma desse lugar chamado presidência da República, enquanto visto como o lugar para tomar decisões impopulares em articulação com este Congresso e estes políticos, cevados pelos interesses deste Mercado. Quem ficou órfão foram eles! Para nós a primeira pergunta não é Quem?, mas Qual Lugar? Ou  Que presidência? e, em seguida, Para qual República?

E as respostas são relativamente simples:

– o lugar é o espaço que permita preparar a refundação do Brasil político, preparando as condições para reconstruir a legitimidade do exercício do poder. Um objetivo desses não será alcançado se realizarmos eleições diretas-já, mesmo que também puséssemos no saco este Congresso de bandidos. Pior ainda seria se realizássemos uma eleição presidencial direta solteira. Devemos fazer a eleição do próximo presidente o mais longe possível das paixões equivocadas que até recentemente levaram muitos de nós às ruas – que sentido faz, a essa altura, escolher entre Lula e Aécio; Lula e Serra; Lula e Alckmin? É urgente redirecionarmos as nossas paixões, dando a elas todo o sentido da busca do bem comum. Para isso, precisamos de tempo. Por isso, eleições em 2018.

– a presidência é a de uma República em transição, devendo, portanto, abster-se de propor ou sancionar reformas, sejam elas populares ou impopulares, liderando tão somente as condições eleitorais para o lançamento realmente livre de candidaturas e a realização não menos livre do debate sobre as reformas, informando a construção das forças políticas e dos programas com que elas disputarão as eleições Constituintes de 2018;

– a República, será aquela que resultar de um processo Constituinte, que se iniciará com a eleição tanto de um presidente para a República, ou seja, um presidente comprometido com um programa de refundação conhecido; quanto de um Congresso Constituinte comprometido com o debate e a deliberação finais acerca da República que queremos.

O nome a ser indicado para o exercício da presidência de transição deve ser o de alguém que não apenas não afronte essa perspectiva de reconstrução, como também assuma o compromisso de obedecê-la, sob pena de destituição.

Encarado assim, o momento é auspicioso.

CONVERSAR, PENSAR, CONVERSAR… E SÓ ENTÃO VOTAR

Carlos Novaes, 20 de maio de 2017

O empenho da Globo em derrubar Temer e a leitura de uma entrevista inteligente e de um artigo tocante na Folha de S.Paulo de hoje me empurraram a escrever este texto: a entrevista é do escritor chileno Alejandro Zambra, o artigo é da jornalista e editora Maria Clara Vergueiro. Espero não parecer impertinente ao apontar que o melhor é ir à entrevista e ao artigo antes de continuar a leitura.

A mistura de desordem com autoritarismo na cena político-institucional brasileira atual convida à reflexão. Afinal, se já temos autoritarismo e, ainda assim, a desordem impera, estamos desafiados a reinventar nossa percepção da realidade política, pois nada se resolverá simplesmente reclamando mão-de-ferro para obter ordem ou simplesmente reivindicando mais direitos contra o arbítrio. Precisamos de uma outra forma político-institucional para decidirmos democraticamente por novos arranjos entre ordem, justiça e liberdade. Para isso será necessário não apenas pensar em outro futuro, mas sobretudo relembrar em outros termos o passado. Nosso cérebro é plástico porque a memória o é. Toda invenção começa sempre pela reinvenção do que parecia ter havido.

O mundo mudou, o Brasil mudou, e não podemos encarar nossos esforços recentes por uma vida nacional melhor como uma “obra”. Não. Um dos impedimentos à invenção é o apego ao já realizado. É mesmo difícil rearranjar a memória na direção que desmente aquilo que no passado nos pareceu valioso. Todos os nossos esforços políticos resultaram nesse Estado de Direito Autoritário que está a ruir. Como nossos malogros superam em muito nossos acertos, esse Estado de Direito não pode ser motivo de orgulho, mesmo que aquilo que há de civilizado nele tenha a nossa marca. Como já disse aqui em mais de um texto, o simulacro de ordem democrática plasmado nessa luta entre facções que, a um só tempo, nos aturde e ilumina, não se presta a aperfeiçoamento – precisamos de uma transformação. Que fique claro: transformação é mais do que mudança e menos do que revolução – requer valentia e serenidade.

A luta de facções de que venho me ocupando vem de longe, mas agora chegou ao topo da hierarquia do Estado, já não havendo nenhuma cerimônia no atropelo da “ordem” legal de vitrine, que escondia a brutalidade do mando autoritário. As punhaladas desferidas pela PGR, em aliança com este ou aquele membro do STF, contra maiorais do Executivo-gestão, do Legislativo-representação ou das burocracias partidárias corruptas são a contra-face radical da inobservância pura e simples dos direitos dos mais pobres e/ou mais fracos, espremidos entre facções mais antigas de polícia-bandido, fiscais-achacadores, chefes-abusadores, licitantes-prestadores.

O autoritarismo se fez e se desfaz nessa desordem porque nosso Estado de Direito Autoritário é a engenhoca saída de uma equação que não fecha: manter uma desigualdade irracional combinada com o exercício livre do voto individual racional num país com 150 milhões de eleitores predominantemente urbanos. A desigualdade é irracional porque sua magnitude solapa as próprias condições em que a riqueza pode ser produzida para ser desigualmente repartida; o voto individual é racional porque cada eleitor é uma usina de memória a funcionar com base na informação que alcançou processar em sua sofrida existência de perdedor permanente combinada com expectativas de melhoria difundidas pelos meios de comunicação de massa.

Dessa perspectiva, a equação se aguentou enquanto havia obstáculo político plausível a nos persuadir a esperar: “primeiro derrubemos a ditadura dos militares, a culpa é deles”; mais adiante “agora precisamos de uma nova Constituição, ela abrirá as portas”; para então ouvir “espere pelo menos até elegermos diretamente o presidente da República”; com o arremate de “mais um pouco de paciência, você vai ver quando pusermos um dos nossos”…

Em cada uma dessas promessas estava embutido um logro procrastinador, novelo que se desdobrou porque lá atrás não vimos que a ditadura não era militar, mas paisano-militar, como já discuti aqui e aqui.  Os paisanos não apenas sobreviveram politicamente, mas com apoio nos meios de comunicação de massa lograram construir uma forma institucional que lhes permitiu abrir e fechar todo o ciclo de enganação política que vai de Sarney a Temer, não por acaso dois vices do p-MDB (sendo que Sarney saiu da Arena para o p-MDB – esse bem poderia ser o selo da nossa chamada transição democrática!).

Se olharmos de modo diferente para o contraste entre as esperanças suscitadas e o sofrimento efetivo da nossa vida social nos últimos trinta anos – somando miseráveis, pobres e classe média –, poderemos avaliar a energia que foi necessária para transformar o PT e o PSDB de agentes da mudança em dispositivos de restauração traidora, a ponto de hoje termos esse morfético chefe do p-MDB saído de vice do PT para tomar a presidência da República sustentado pelo PSDB! Essa foi a união PT-PSDB que eles conseguiram engendrar – e isso não é uma metáfora: eles estão, sim, unidos no propósito de salvar a política profissional da crise que a desrazão auspiciosamente abriu para a sociedade brasileira. Acuados, eles não apenas estão impossibilitados de comemorar a queda do “adversário”, como têm o cinismo de pregar contra os supostos perigos de uma inventada “demonização da política”, como se nosso repúdio não fosse à política deles, como se a política só pudesse ser feita por profissionais – por eles. Ora, a política será grande justamente quando não for feita por profissionais, quando alcançar pertencer a você, a mim, a nós.

E aí moram novos perigos.

Essa valorização das nossas individualidades põe problemas cabeludos, a tal ponto que temos visto dois fenômenos curiosos: de um lado, há quem proponha democracia direta depois de ter teorizado sobre as virtualidades emancipatórias do fim do indivíduo; de outro lado, animam-se os liberais tradicionais, que veem chegada a hora de fazer da política um mercado entre todos os demais. Modos de traduzir na prática essas aberrações são, de um lado, pregar o fim da representação e a adoção da democracia via voto eletrônico e, de outro lado, estabelecer que a política é assunto empresarial, a ser tratado por quem é do ramo, isto é, pelos empreendedores, esse novo tipo de profeta que infesta nossos meios de comunicação de massa.

Sobre o fim da representação, assunto de que já tratei aqui e em outros textos, não vou me estender agora, pois o perigo não é iminente e o artigo ficaria longo demais. Registro apenas que não vejo como um ganho político a instalação de terminais eletrônicos para poder consultar cada indivíduo sobre todos os assuntos a qualquer tempo – entendo essa fantasia realizável como uma ameaça à democracia, não um aperfeiçoamento dela.

Passemos, então, a essa novíssima panaceia, a do empreendedor não-político que prega uma gestão empresarial da coisa pública.

O pressuposto dessa fábula supõe a gestão empresarial como um primor de eficiência, com perfeita alocação de recursos para uma sempre ótima obtenção de resultados. Esse raciocínio esbarra no fato de que não obstante essa quimera, as falências são diárias. Se no mundo privado uma falência pode ser compensada pelo êxito de outra empresa, na esfera pública, a ruína de um Estado mal gerido não encontra compensação, pois não há um mercado para providenciar um Estado substituto, como estamos a ver… Essa é uma das razões para a gestão do que é público ser política, isto é, partilhada, negociada, levando em conta os mais fracos, não tirando proveito deles, como é próprio do ímpeto empresarial. Aliás, se olharmos para o desempenho da Odebrecht e da Friboi constataremos exemplos daquela presunção de otimização de resultados, mas ao custo de não contabilizarmos o que nos foi roubado em dinheiro e sossego em prol do sucesso delas…

Uma das maiores lições a tirarmos da crise é justamente que a má gestão da coisa pública é resultado da avidez e da ausência de escrúpulos que são próprias da busca por eficácia empresarial. Como os políticos de carreira fizeram da política uma ação para profissionais servis à manutenção da desigualdade tão prezada pelo Mercado, deu-se o encontro nefasto, para nós, de dois vetores inescrupulosos, encontro de que a corrupção é o azeite. Assim, seria apenas engraçado, se não fosse uma ameaça real, que alguém como esse Doria – um lobista criado e sevado na interface das traficâncias entre a política profissional e o mundo empresarial – apareça como novidade política para nos liderar na saída da crise gerada precisamente por essa amarração de interesses em que ele próprio se especializou em acomodar. Francamente…

Mas o mauricinho prefeito não é o único player (eles gostam muito desse termo) nesse jogo. Há algo muito mais pesado no ar, não obstante voe: é a Globo, leitor.

Já me dei ao trabalho de desenvolver aqui a convergência que vejo, contra nós, entre as trajetórias da Globo e do p-MDB nos últimos cinquenta anos, a primeira atuando por cima, com o direito de antena para vender fantasia, e o segundo atuando por baixo, na política miúda em prol de interesses graúdos. Entre outras coisas, busquei apresentar as conexões que vi, e vejo, entre os programas de auditório e a encenação da política profissional – cheguei mesmo a tentar mostrar as semelhanças de forma entre o Domingão do Faustão e o Domingão do Cunha, naquela infame votação do impeachment de Dilma, a incapaz.

Entretanto, depois de décadas dessa parceria não explícita, por assim dizer virtual, eis que somos surpreendidos por um rompimento unilateral e, como não poderia deixar de ser, midiático, do acordo entre a Vênus platinada e seu braço partidário. Repentinamente, a Globo desistiu de transitar com o p-MDB e, deixando a outros players a máscara da cautela (prontamente agarrada pela Folha), jogou ao ventilador indícios não conclusivos contra Temer e seguiu adiante, pedindo a saída do golpista. Há algo sob o tapete, e a ponta de fora é o nariz do Hulk.

O leitor dirá se estou delirando, mas desconfio que o projeto casal 21, Hulk-Angélica, começa a tomar forma. Pessoas próximas sabem que falo isso faz alguns anos. Sim, leitor, há alguns anos eu venho dizendo que essa dupla poderia aparecer como alternativa eleitoral para a presidência da República do Brasil. E cheguei a isso muito antes da crise, precisamente porque tirei consequências do caminho trilhado nas análises que já apresentei aqui e em outros posts mencionadas mais acima. Pode não dar em nada, afinal o Brasil não é para principiantes, mas não custa explorar o terreno.

Além de ter entendido que o mundo político estruturado em torno do p-MDB nos últimos 50 anos não pode ser salvo, a Globo também vai se dando conta de que a crise deixou um horizonte aberto o bastante para tentar uma confusão proveitosa para si entre o real e o virtual – seria a apoteose da política como espetáculo nesses tempos da pós-verdade, com a conexão definitiva entre a fantasia e a realidade, em prejuízo da segunda, porque sem distinção de gênero. O fato de Silvio Santos ter reagido às pretensões da Globo, se fazendo notar mais tarimbado do que Hulk para o papel [afinal ele seria o protótipo da reunião de duas mitologias, a do empresário de sucesso (sei) e a do comunicador popular], essa reivindicação, eu dizia, mostra mais do que ciúmes: ela dá voz a uma certa nostalgia de fundo, na qual SS figura como a memória de uma alternativa anterior a essa transição democrática malograda, quando, ainda sob ditadura, ele distribuía arbitrariamente no palco dinheiro e microfone, secundado pelas “silvetes” uniformizadas, compondo no mundo do entretenimento uma mimetização da ordem militar arbitrária que vigia no mundo lá fora distribuindo tribuna e tortura.

Mas se uma alternativa SS é tão inviável quanto parece implausível uma mera volta dos militares, seja porque Silvio está velho demais (em todos os sentidos), seja porque a sociedade brasileira não parece irresponsável o bastante para se degradar a ponto de dar chance aos militares de deixarem a caserna, por outro lado, o predomínio da Globo aliado ao nosso pendor escapista deveria ser o suficiente para nos deixar alerta contra essa alternativa que busca prolongar a vida útil de uma forma cujo dispositivo político-profissional erodiu, fazendo de conta que não houve Nova República nem República nova e tangendo as esperanças na direção de um camarada que distribui dinheiro e microfone usando a camisa despojadamente para fora da calça apenas nas costas, de modo a poder mostrar a fivela do cinto…

Para ir adiante precisamos nos desvencilhar não apenas das falsas novidades, mas também do velho embate entre esquerda e direita. São rótulos para vender ilusões improdutivas acerca de mundos outrora imaginados como alternativa a situações que ficaram para trás (por desperdício ou inviabilidade), para bem e para mal, assunto para historiadores. Você não precisa se dizer nem de esquerda nem de direita para se engajar na discussão da transformação que o Brasil reclama, afinal, como disse Zambra, “classificamos os livros para vendê-los. Há pessoas que precisam saber se estão lendo um romance ou contos. Eu não. Nunca me interessei por gêneros. Para mim, um romance não tem mais valor que um ensaio ou um poema.”

Vivemos um tempo de desordem e precisamos de uma nova narrativa. Devemos fazer como na literatura, que “sempre esteve ligada à desordem. Começar pelo final, reabilitar as digressões, enfrentar o desejo de simultaneidade e multiplicidade.” Enfim, vamos discutir nosso futuro num processo Constituinte ao qual todos sintam pertencer e no qual não se faça como nas dinâmicas autoritárias, onde na decisão sobre as reformas necessárias há “um encobrimento dos detalhes (…) a informação [é] submetida a reduções extremas até chegar a uma redução final. Ao silêncio.”

É hora de darmos lugar e tempo à conversa, não de decidir. Mas é preciso querer se dar ao trabalho, leitor.

Fica o Registro:

Aos que insistem em perguntar, declaro que não defendo uma presidência interina em caso da queda de Temer por apego à Constituição, afinal, não estão a preservá-la nem os ministros da Corte guardiã, o STF: por exemplo, a liminar para suspender o mandato de Senador de Aécio é, mais uma vez, tão benéfica quanto facciosa. Defendo a manutenção do calendário eleitoral, com eleições Constituintes em 2018, porque quero tempo para discutir o país que queremos, elegendo um presidente e um Congresso Constituintes só depois dessa discussão.

ELEIÇÕES CONSTITUINTES; NÃO MAIS UMA GAMBIARRA

Carlos Novaes, 19 de maio de 2017

Talvez a sociedade brasileira tenha dado um passo adiante nas últimas horas. A erosão da nossa ordem político-institucional chegou a tal ponto que a maioria de nós parece ter passado do alheamento ao aturdimento. Se for assim, estamos no rumo certo. Esse aturdimento é até natural, uma vez que é difícil reconhecer que nossos esforços para consolidar uma democracia depois do fim da ditadura deram errado, dinâmica de fracassos que explorei detidamente em duas séries recentes de artigos publicadas neste blog. E quando falo de esforços malogrados estou falando de todos os que te vierem à cabeça, leitor: anistia; Constituinte; diretas-já; Estado de Direito; construção do PT e do PSDB como alternativas aos partidos da ditadura; eleições de presidentes por via direta; plano Real etc.

Longe de mim não reconhecer aspectos positivos nessas construções. Mas o que importa agora é outra coisa: tudo isso esbarrou e/ou foi engolido pela barragem da manutenção da desigualdade – tudo ficou pelo caminho, e só foram adiante os aspectos que se conformavam aos interesses dos que nada aceitam perder: anistia, desde que para ambos os lados; Constituição cidadã, desde que dependente de controlada regulação congressual futura; diretas-Já, desde que fiquemos com Tancredo-Sarney; Estado de Direito, desde que conservando os dispositivos paisano (p-MDB) e militar (PM) da ditadura; PT-“socialista” e PSDB-“social-democrata”, desde que os de cima nunca percam; eleições presidenciais livres, mas com a barreira congressual dos partidos da ditadura (p-MDB e PFL) e seus satélites; plano Real, mas restrito ao mundo da moeda e obedecendo aos interesses de quem manda nela.

É a dificuldade de reconhecer o que há de derrota em tudo isso, e de tirar dela, da nossa derrota, todas as consequências, que explica o fato de muita gente de bem ainda estar agarrada ao lulopetismo e ao tucanismo, escolhendo lado nessa mixórdia! – é, mesmo, muito difícil reconhecer que malogramos. Mas malogramos. E precisamos reunir forças para recomeçar, pois a fábula fala de nós, não apenas dos políticos profissionais e dos seus auxiliares. Precisamos assumir responsabilidades, parar de fingir acreditar que “alguém” porá as coisas no lugar por nós. Temos de encarar o serviço, e só há dois caminhos para a sociedade tomar nas mãos a construção do seu futuro: eleições ou revolução. Como revoluções são eventos que não podem ser preparados – elas se dão de modo imprevisível ali onde a situação ficou insuportável, como já discuti aqui, deixo ao delírio dos autointitulados revolucionários o sonho de uma saída de alto custo como essa. Entendo que a situação político-institucional brasileira é intolerável, havendo pontos de apoio para uma transformação assentada em eleições (note bem o plural, leitor: não há pleito bala-de-prata).

Mas não quaisquer eleições, afinal as eleições do intervalo 1989-2016 já mostraram bem o que irá acontecer com mais uma aposta num pleito para discutir, pela enésima vez, o cardápio de sempre, que todos servem num indistinguível molho pardo (“saúde, educação, segurança, habitação”), tendo o cuidado de deixar de lado temas que realmente poderiam definir campos políticos: previdência, trabalho, tributação, energia&meio-ambiente, dívida pública. É por isso que todas as promessas de campanha são tão parecidas e o saco de maldades contra a maioria de nós depois delas é sempre o mesmo, afinal, os ricos não podem perder.

No Estado de Direito Autoritário, pau que dá em Chico nunca atinge Francisco. Por isso, é hora de eleições constituintes, ou seja, de eleições para darmos uma nova forma ao nosso Estado de Direito. Com o desmanche da nossa ordem política corrupta, será necessário criar ambiente para a discussão das reformas estruturais necessárias, saindo do alarido da polarização fajuta que tem orientado a ida às ruas. Tal ambiente será criado se apontarmos para uma meta factível e inspiradora: um Congresso Constituinte, a ser eleito em 2018 juntamente com o presidente da República, cujo programa tenha discutido as reformas e sua relação com o Congresso. É com este compromisso que a presidência interina deveria ser exercida, abstendo-se de quaisquer reformas estruturais no curso desses meses que nos separam de outubro de 2018. Não, leitor, o Brasil não vai acabar amanhã.

Entendo que não haveria ganho algum em realizarmos eleições antes de 2018: faríamos nossas escolhas no caldo dos ressentimentos dos embates mais recentes, sem a conclusão dos principais inquéritos da Lava Jato e, por isso mesmo, com as burocracias partidárias corruptas ainda com boas chances de sobreviver. Em contrapartida, se aceitarmos uma presidência interina com o compromisso de eleições constituintes realmente livres, com a possibilidade de candidaturas avulsas, fora dos partidos (ainda que lastreadas numa adesão cidadã estabelecida por lei), abriremos possibilidades reais de fazermos algo bom dos sofrimentos dos últimos quarenta anos. Teremos de exigir que os programas dos candidatos ao Congresso e à presidência da República tragam propostas claras sobre temas como a previdência, que precisa sim ser reformada; sobre a ordem sindical, que precisa sim de fiscalização independente e perder a mamata do imposto sindical; sobre a carga tributária, que precisa sim ser distribuída com justiça na arrecadação e na distribuição; sobre o embate infértil entre a preservação ambiental e a produção de riquezas, pois esse dilema é falso.

Para superarmos o autoritarismo que herdamos da ditadura e a desordem que resultou dos esforços corruptos para manter a ordem que favorece a desigualdade, precisamos de um período de debates sobre esses e outros temas. Só então poderemos ir além dos gritos por mais ordem (embora haja mesmo uma desordem intolerável), por mais justiça (embora haja mesmo uma injustiça estrutural intolerável), ou por mais liberdade (embora haja mesmo um autoritarismo intolerável), dando contorno mais claro e permitindo alinhamentos novos sobre o que entendemos por ordem, justiça e liberdade.

Fica o Registro:

A reação de Temer ao ouvir a gravação de sua conversa com o corruptor Joesley Batista, dizendo que “a montanha pariu um rato”, lembra a reação de Collor ante o andamento do seu impedimento no Congresso: fez algumas contas e disse: “então ganhamos!”

Se non è vero, è ben trovato… é o que indicam as reações no mundo político profissional que, sem checar as gravações, sem sequer tê-las ouvido, nos apresentou desembarques do governo de partidos da base, pedidos de impeachment de Temer vindos da própria base (o PSDB), saída e volta de ministro (do PSDB, de novo…), decisões de desembarque e, em seguida, reembarque (mais uma vez, a firmeza do PSDB), saída parcial de ministros (PPS) e o adesismo renitente do DEM, que já no caso de Collor viu algo a ganhar indo com ele até o fim. Ou seja, tomam decisões sem checar os fatos, pois eles conhecem como ninguém o próprio mundinho em que chafurdam – em suma, não é por leviandade (embora o sejam), nem por oportunismo (embora o sejam), é por experiência própria, mesmo.

Diante dos palavrões de Aécio, João Dória afirmou que quem emprega palavrões não está qualificado para exercer função pública. Tal como os impertinentes censores de Lula em episódio que discuti aqui, o mauricinho confunde conversa privada com manifestação pública – e o faz porque o êxito eleitoral do logro que ele representa depende também de que os trouxas não deixem de acreditar que ele é por dentro tão limpinho e arrumadinho como se apresenta por fora. Sei.

Por falar em mauricinho, os movimentos liderados por mauricinhos desconvocaram manifestações contra Temer (não sabem bem o que vai acontecer…) — é bom mesmo que eles deixem as ruas para quem está em busca de saídas emancipatórias, incluindo parte daqueles que os acompanham e começam a se ver traídos por esses espertinhos.

FACCIOSISMO REPUGNANTE

Carlos Novaes, 22 de setembro de 2016

O Estado brasileiro se acha ocupado por facções entrincheiradas que lutam pelo poder para preservar os próprios interesses, que são, em última instância, subalternos ao interesse maior dos muito ricos: a manutenção da desigualdade. Por razões que já explorei em três das séries mais recentes publicadas neste blog, e em outros artigos conexos, esse blocão convulsionado formado pelos maiores partidos brasileiros assentados no Congresso (representação), por grandes empresas (mercado), por setores fundamentais da burocracia estatal (Judiciário e polícias) e pelo Executivo (gestão), esse blocão, como eu dizia, está de costas para a sociedade e briga entre si pelo proveito a ser tirado da ira popular que este descaso, deles próprios, gera.

Alguns lances recentes permitem ilustrar com clareza esse jogo nefasto:

– A aprovação em comissão do Senado (representação) de restrições à distribuição do Fundo Partidário, à posse em mandatos e do tempo de TV aos pequenos partidos.

A propaganda diz tratar-se de medidas para restringir o incentivo à manutenção e à criação de partidos de aluguel, melhorar a representação e tornar menos custosa a obtenção da governabilidade. Tudo falso, assim como outras feitiçarias, de que já tratei aqui.  No caso do Fundo Partidário, a mudança reforçará com mais dinheiro os partidos que já são grandes, distorcendo ainda mais nossa dinâmica de representação. Como há tempos defendi aqui (artigo onde também adverti sobre o papel futuro de Cunha na articulação da miuçalha da Câmara) e aqui, o Fundo Partidário tem de ser extinto, não concentrado em benefício de poucos. Isso sim acabaria com o incentivo aos partidos de aluguel. Temos de obrigar os partidos a correrem atrás do dinheiro, assim como têm de correr atrás do voto. O fato de que o p-MDB, nosso mais vistoso partido de aluguel, sairia dessa manobra com ainda mais dinheiro público é uma evidência de que essa mudança não nos serve.

No caso da restrição à posse em mandatos, a cláusula de barreira pretendida vai levar à perda de representação, reforçando o poder das rotinas já encasteladas no Congresso contra as forças da mudança atuantes na sociedade. Junto com o reforço da concentração do dinheiro do Fundo Partidário nos que já são grandes, a cláusula de barreira poderá significar o fim dos pequenos partidos autênticos, digam-se eles de esquerda ou de direita. Se somarmos a isso as restrições no acesso à TV, verdadeira mordaça contra quem pensa diferente, teremos o pior dos arranjos possíveis quando se pensa em consolidação da democracia.

O correto seria extinguir o Fundo Partidário (medida que seria mortal para os muitos partidos de aluguel de pequeno porte), se mantendo as normas atuais para a posse nos mandatos e distribuindo-se de maneira mais democrática o tempo de TV. As dificuldades que uma dinâmica de representação (Legislativo) desse tipo imporia para a gestão (Executivo) não seriam maiores do que aquelas que vêm sendo impostas pelos partidos de aluguel, sejam eles grandes ou pequenos. Na verdade, os cardeais do Congresso imaginam que essas mudanças tornariam mais fácil para eles submeter seus ávidos subordinados. Talvez eles tenham razão nisso, mas o custo para nós desse “sucesso” não seria menor do que esse que já vimos pagando pela briga miúda deles, pois a avidez final continuará a mesma.

 – Tentativa de descriminalização, na calada da noite e sem prévio aviso, dos esquemas de caixa2.

Ao lado da lei já aprovada, com o beneplácito do PT e do PSDB, para o repatriamento de dinheiro escondido, essa manobra tentada ontem, também com a participação de PT e PSDB, é das mais emblemáticas no esforço deles para conter o que ainda pode haver de danoso ao sistema político enquanto tal no teatro de operações da Lava Jato — sem prejuízo do que de danoso a facção paranaense ainda possa trazer ao PT, visto que não se trata de uma conspiração, mas de luta política no âmbito de uma abóboda de convergências ditadas pela profissão de político. Em suma, enquanto Temer marcha na direção da reação, o banditismo avança no Congresso Nacional, e a facção paranaense aprofunda seu unilateralismo espetaculoso contra o PT, como nessa prisão do ex-ministro Guido Mantega, revogada por Moro tão logo se deu conta de que havia, mais uma vez, ido longe demais.

Lá onde não chegar nosso cinismo é que será o ponto de partida para uma transformação nesse estado de coisas intolerável.

 

CONSOLIDAÇÃO DO AUTORITARISMO

 Carlos Novaes, 16 de setembro de 2016

“O Estado é de direito e a democracia é uma construção permanente, responsabilidade de todos”. Ministra Cármen Lúcia, em seu discurso de posse na presidência do STF.

Vejo nesta frase, em que a presidente do Supremo Tribunal Federal separou Estado de direito e democracia, um fundamento para a ideia de que vivemos sob um Estado de Direito Autoritário: ao não aceitar a trabalheira que a democracia como construção permanente requer, a maioria da sociedade brasileira se acomodou ao Estado de Direito saído da ditadura e, agora, recebe como desordem e arbítrio a ressaca da sua própria preferência pela inércia. Os mais conservadores ressaltam o que há de desordem na situação; os mais libertários salientam o que há de arbítrio nela. Mas essa oposição é em si mesma falsa, fajutice que replica toda a ordem vicária em que vivemos, que já não cabe na velha oposição esquerda X direita. Aliás, não é por outra razão que muita gente de bem encontra dificuldades para acomodar dentro de si os sentimentos suscitados pela avacalhação atual, no Brasil e no mundo.

Uma atitude transformadora requer que reconheçamos como real e indesejável tanto o déficit de ordem quanto o atropelo aos direitos que acompanham este continuado e contumaz exercício faccioso dos poderes institucionais que nos infelicita. Ninguém que queira transformar o país para melhor pode enxergar como promissor nem o pendor acomodatício das facções congressuais (que rasgam a Constituição para distribuir punição e perdão segundo o que identificam como benéfico à própria sobrevivência); nem o voluntarismo da facção paranaense da Lava Jato (que, sufocada pelas facções adversárias, armou um circo “evangélico” para animar crenças de uma platéia já cativa, ao invés de oferecer provas à cidadania exigente); e tampouco se pode aceitar a não menos facciosa modorra procedimental do braço federal da Lava Jato, onde impera o tratamento desigual a situações iguais, e ministros do STF chegam a desdizer hoje o que escreveram ontem.

Na tentativa de buscar a raiz dessa situação intolerável em que nos encontramos, tenho escrito neste blog séries e artigos que podem ser resumidos assim: vivemos sob um Estado de Direito Autoritário, cujas rotinas estão voltadas à manutenção de uma desigualdade que favorece aos muito ricos. Não fizemos a ruptura político-institucional com a ordem política que nos foi legada pela ditadura e, por isso, deixamos que levassem o Estado de Direito conquistado a se acomodar ao exercício faccioso dos poderes institucionais que desde sempre marca a vida brasileira, e que recebeu desenho especialmente perverso na ditadura (arbítrio na gestão + eleições para a representação).

O fato de o colapso do pacto do Real ter levado à erosão, como falsas adversárias entre si, as duas principais forças políticas em que a sociedade depositara sua confiança pós-ditadura, o PSDB e o PT, alçando à condição de protagonistas forças que deveriam ter sido definitivamente derrotadas por uma consolidação da democracia (p-MDB e ARENA), deixa evidente que desperdiçamos nossas melhores oportunidades: nos abandonamos à continuidade, negligenciamos as possibilidades de mudança e não nos empenhamos pela transformação. A balbúrdia institucional em que nos encontramos, com o Estado a abrigar uma devastadora luta de facções, torna cada vez mais difícil sustentar que há ganhos incrementais a comemorar, e cobre de ridículo a ideia de que vivemos em uma democracia consolidada.

Diante desta situação, tenho defendido neste blog duas propostas políticas, uma de ânimo perene; outra, conjuntural. A primeira é o fim da reeleição para o Legislativo; a segunda é a realização de eleições federais para a escolha de um novo Congresso e de um novo presidente da República. Sustento que o mecanismo que permite a continuidade paradoxal de um mando assim turbulento (entre eles) e tão intolerável (para nós) é a rotina da reeleição para o Legislativo. A única saída para esta crise de legitimidade do nosso sistema político, marcado por uma representação traidora e por uma presidência golpista, é a devolução do poder ao povo através da convocação de eleições federais, para as quais não poderiam se candidatar à representação aqueles que detém, ou detiveram, mandato legislativo.

Ambas as propostas dependem, é claro, de um amplo e aguerrido movimento de desobediência civil, isto é, só serão alcançadas se nós, a sociedade brasileira insatisfeita, recusarmos a nossa governabilidade ao mando cada vez mais intolerável dos políticos profissionais. Essa recusa exigirá que saiamos à rua libertos dessa polarização fajuta entre PT e PSDB. Ou fazemos isso, ou viveremos a conclusão, contra nós, do movimento em pinça a que as circunstâncias já empurram os dois dispositivos que nos foram legados pela ditadura (o paisano e o militar), que iniciaram uma marcha sem conspiração totalizante ou plano geral prévio, mas que ganha nefasto sentido convergente a cada passo: retrocesso no marco legal da vida político-social (com a correspondente gestão reacionária e fraudulenta dos recursos do Estado) e intensificação do arbítrio policial (com o apoio da religiosidade reacionária). O mais provável candidato dessa nova solda eleitoral do entulho autoritário (p-MDB + PM, com o beneplácito garantidor das Forças Armadas, cada vez mais “prestigiadas”) é o governador de S. Paulo, Geraldo Alckmin, que, além de providências mais notórias, deslocou seu truculento secretário de segurança para a função de ministro da justiça (!) de Temer e, se necessário, se filiará a um partido “socialista” (o PSB) – você concebe alternativa pior, leitor?

QUE OS MORTOS ENTERREM SEUS MORTOS

Carlos Novaes, 13 de setembro de 2016

Faz quase dois meses que nada publico neste blog. Nenhum dos fatos “novos” desse período me motivou a escrever; afinal, a despeito do alarido da mídia convencional, tudo o que foi trazido à cena política recente não passou de monótono desdobramento previsível do que ficara assentado da turbulência institucional anterior, cujas virtualidades positivas cessaram quando o sistema político dos profissionais se entendeu em torno da eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara dos Deputados. Este entendimento teve como desdobramento por assim dizer natural o acerto pelo qual uma maioria de ocasião, dentro de outra maioria de ocasião, poupou os direitos políticos de Dilma.

Essa manobra é um exemplo autêntico e acabado do que venho chamando de “exercício faccioso dos poderes institucionais”, pois foi um atropelo à Constituição urdido e realizado em sessão do Senado (a mais alta corte do Legislativo) comandada pelo então presidente do STF (a mais alta corte do Judiciário) para beneficiar quem estava a sofrer um outro atropelo à mesma Constituição! Esse golpe dentro do golpe foi uma manobra típica dos encorajamentos recíprocos que o acordão em curso demanda: o PT votou em Maia; Dilma foi poupada.

Por isso mesmo, não havia nenhum cabimento em supor que o benefício a Dilma abria brecha por onde Cunha pudesse escapar. Não. O destino de Cunha ficara selado ainda antes da derrota que sofreu com a eleição de Maia para o cargo que fora seu. De modo que a cassação de Cunha foi não o ápice de um rearranjo do sistema político profissional, mas tão-somente o item mais vistoso da liquidação dos restos a pagar de um acerto que já se concluíra. Mais uma vez, saliento que não estou a sustentar que este acerto foi feito tintim por tintim, à moda de uma conspiração, em que cada um tem seu papel, e o resultado imaginado depende de um plano muito bem estabelecido e realizado. Claro que não. Há conspiradores por toda parte, mas não há conspiração totalizante. O que há são as evidências de que o PT já abandonara Dilma e de que o lulopetismo aceitou ter sido levado de volta à oposição, lugar no qual o outro lado do sistema político profissional mostra-se disposto a tolerá-lo, pois essa presença legitima seu próprio mando. Em outras palavras, é como se o PT reconhecesse que deu mole e, agora, encara com resignação ter de começar tudo de novo, num jogo coreografado com os adversários – tanto é assim que o PT não dá força a nenhuma das investigações em curso contra seus adversários. Muito pelo contrário, contra essas investigações (dentro e fora da Lava Jato), petistas e anti-petistas formam uma única força, pois constituem um mesmo bloco de poder, como diria o FHC.

Os lulopetistas se agarram ao discurso sobre o golpe havido não porque estejam inconformados, mas porque não podem se somar às forças que querem ir adiante. Fingem-se de inconformados porque não podem ir à rua exigir o aprofundamento das investigações pelo que resta da Lava Jato. Ficaram sem ter para onde correr. É isso que explica essa inação barulhenta deles. Mesmo o mais tolo deles está a perceber que limitar-se à denúncia do golpe havido é uma forma de manietar-se, pois a única consequência dessa denúncia seria o “volta Dilma”, que é simplesmente impossível. Não, leitor, eles não querem derrubar Temer, pois iriam juntos para um poço ainda mais fundo. Tanto quanto Temer, Lula está empenhado em preservar o sistema político, e prefere fazer oposição ao golpista para te-lo como adversário em 2018. Por isso não apoiam as diretas-Já, ainda que possam vir a se apresentarem se a luta por um novo pleito crescer. Simples assim.

VITÓRIA DE MAIA FECHA A JANELA À TRANSFORMAÇÃO ABERTA PELA LAVA JATO

Carlos Novaes, 17 de julho de 2016

Quem já leu outros posts deste blog, como os da série iniciada aqui, sabe que há anos venho explorando as conexões entre nossa desigualdade e nossa crise de representação política, problemas que, a meu ver, estão na base de nossas crises econômicas e políticas. A política brasileira é vítima de um longo cativeiro, sequestrada que foi pelas rotinas impostas por aqueles que fizeram da representação uma ferramenta para alcançar seus próprios interesses, que alimentam a manutenção da desigualdade e se opõem aos interesses da maioria da população, que sofre as consequências dela. Para sair disso precisamos de uma outra representação política, pois só ela nos permitiria adotar procedimentos de combate eficaz à desigualdade, o que destravaria o desenvolvimento pleno do país – o problema principal, portanto, é a política, e qualquer mudança real só ocorrerá contra a política profissional, cujas mazelas centrais a Lava Jato e seus desdobramentos puseram a nu nesses quase vinte meses de crise e “crise”, período no qual a sociedade brasileira teve oportunidade de iniciar um processo de transformação.

Infelizmente, porém, deu-se o mais provável, e a eleição de Rodrigo Maia (DEM, ex-PFL, saído da ARENA) para a presidência da Câmara dos Deputados indica que os políticos profissionais se reorganizaram em campo e, assim, fechou-se a janela de oportunidades à transformação política que havia sido aberta pela Lava Jato, cujo braço republicano ainda irá espernear por algum tempo, mas sem provocar qualquer novo estrago significativo no bloco de poder que se refundiu. Em outras palavras, a maioria facciosa que elegeu Maia, hegemonizada pelas facções que tem projeto de poder (para fazer dinheiro), derrotou o ajuntamento não menos faccioso de pequenos partidos que tem apenas projeto eleitoral (para fazer dinheiro), que se havia fortalecido de maneira extravagante no curso da desorientação provocada pela Lava Jato. Acompanhando o curso da liderança funesta de Eduardo Cunha, o chamado Centrão viveu a ascensão e a queda de sua agenda de miudezas, que foi devolvida aos bastidores da dinâmica parlamentar tão logo se completou o rearranjo no bloco de poder, que dentro em breve deterá coordenação suficiente para — apoiado nesse “parlamentarismo de ocasião” do “é dando que se recebe” — voltar a distribuir vantagens que contentarão esses agrupamentos minoritários momentaneamente rebelados e permitirão alcançar a governabilidade deles.

Essa refundição do bloco de poder foi possível porque ao impedirem que Lula assumisse a Casa Civil sob Dilma seus adversários eleitorais mantiveram o propósito de remover a ele e seu PT do protagonismo, mas sem perder de vista que não podiam abrir mão de seus préstimos para a reconstrução, em outros termos, e sob novo protagonismo, do que a Lava Jato havia destruído da ordem política que beneficia a eles todos. O curso das negociações políticas que se deram no teatro de operações da Lava Jato levou Lula e seu PT a acabarem por aceitar o impeachment de Dilma e, assim, puderam voltar por inteiro à condição de força subalterna, vale dizer, de oposição, no bloco de poder em que desde a eleição de 2002 figuravam como protagonistas. Dessa perspectiva, o apoio de Lula à candidatura de Maia, que foi decisivo para a vitória contra Cunha, não foi nem um erro de cálculo da “esquerda”, nem mais um episódio na derrocada do ex-presidente. Não foi um erro de cálculo porque Lula e os seus compreenderam que o que estava em questão já não era o ex-mandato de Dilma, mas a reconfiguração do bloco de poder que permite a todos que o jogo da política profissional seja jogado. Não foi mais um episódio da derrocada de Lula porque essa vitória conjunta demarca o início da sua recuperação, pelo menos no âmbito das relações internas do bloco de poder dominante desafiado pela Lava Jato a se reinventar.

Depois da investidura de Temer, a eleição de Maia é mais um passo no refreamento da Lava Jato, processo que se concluirá em breve com a cassação do mandato de Eduardo Cunha, pois a morte política do ogre do Rio (cuja obstinação obtusa acabou por se revelar conveniente) dará pegada à narrativa de que o jogo se concluiu com êxito, o que por certo contentará a grande maioria da nossa sociedade inconsequente, que não vai realizar tudo isso como mais uma derrota sua. Em outras palavras, a investidura de Temer foi uma derrota de Lula, pois o afastou do protagonismo nessa fase do jogo, mas os passos seguintes seguem a mesma lógica política que Lula teria dado ao sistema se tivesse chegado a assumir a Casa Civil – como apontei aqui, a diferença está em que na variante concluída prevaleceu o cálculo dos que jogaram para unilateralizar a Lava Jato contra o lulopetismo e em favor de seu próprio projeto de poder (p-MDB, PSDB e satélites).

Finalmente, corresponde a uma lógica profunda, nada tendo de casual, que a neutralização do potencial emancipatório da Lava Jato seja sacramentada através da eleição de um novo presidente para a Câmara dos Deputados, e que este presidente seja do antigo PFL. Afinal, se o presidente deposto da Câmara foi justamente aquele que buscou tirar da balbúrdia instalada pela Lava Jato todo o seu potencial desestabilizador contra o mandato de Dilma, que era hostil aos seus interesses miúdos; ao novo presidente dela cabe precisamente o contrário, dar estabilidade parlamentar ao arranjo político alcançado com a entronização golpista de Temer na presidência, um aliado seu. Que Rodrigo Maia seja do antigo PFL não é casual porque estamos em plena onda de interinidades pela falência dos dois protagonistas do pacto do Real, o PT e o PSDB, circunstância que traz para o proscênio justamente as forças auxiliares da ditadura (p-MDB e PFL) que ambos mantiveram vivas para poderem se engalfinhar improdutivamente um contra o outro, engalfinhamento que os levou à condição periférica em que estão, e condenou o país ao malogro das esperanças falsas que eles haviam suscitado na consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático. A sociedade brasileira está de volta à situação política de luta contra a desigualdade do final da ditadura paisano-militar, tendo que se contentar com essa nova partição de poder entre p-MDB e ARENA, só que agora sem contar com uma força emancipatória como a que o PT significou naquela altura. O país regrediu e a luta será duríssima para quem perseverar em combate contra a desigualdade.

A LAVA JATO E A “GOVERNABILIDADE” — 2 DE 2

Carlos Novaes, 18 de junho de 2016 – 21:00h

Embora haja não pequena confusão nos usos dados ao termo, há tempos ficou estabelecido entre nós que “governabilidade” é o nome de algo que o Executivo tem ou não tem no exercício do governo, a depender da relação que mantenha com o Legislativo respectivo. No caso da gestão federal, essa lógica supõe que a governabilidade depende das relações do governo com a representação assentada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Em uma série de seis artigos recentes, iniciada aqui, discuti aspectos estruturais das relações Executivo e Legislativo, apontando que herdamos da ditadura paisano-militar uma fratura estrutural entre estes dois poderes da República. Nesses termos, uma vez obedecidos os parâmetros estruturais da nossa democracia eleitoral engatada a um Estado de Direito Autoritário, a chamada governabilidade seria, no limite, inalcançável, uma vez que esses parâmetros dão, por sua vez, forma a um modelo político insustentável, condenado ao improviso e à incerteza, porque centrado na manutenção de uma desigualdade que inviabiliza o país.

Ter essas ponderações em mente, especialmente no contexto da Lava Jato, é fundamental para que observemos com discernimento as dificuldades de Temer para governar. Essas dificuldades tem uma dimensão estrutural e uma outra, conjuntural. A dimensão estrutural das dificuldades que Temer enfrenta é a mesma que desafiou todos os presidentes do período pós ditadura: um Legislativo depositário de rotinas antigas, e majoritariamente comprometido com a manutenção da desigualdade, se choca com um Executivo não menos comprometido com a manutenção da desigualdade, mas acossado pela vontade de mudança da sociedade, via democracia eleitoral. Enquanto não há marola, a governabilidade lastreada na desigualdade não enfrenta desafio maior do que dar alguma coisa aos de baixo e satisfazer o apetite dos envolvidos no exercício faccioso dos poderes institucionais e, com isso, nossa democracia parece funcionar segundo um jogo institucional maduro entre poderes (foi assim, com senões, sob FHC e Lula).

Mas quando as trincas do modelo afloram, o Legislativo, aferrado a suas rotinas, transfere para o Executivo, na forma da não-governabilidade, os problemas advindos do desencanto popular com os desmandos e erros de que ele também é responsável (casos de Sarney e, logo-logo, Temer) — o desenlace mais extremo dessa engenhoca é o impeachment (foi assim com Collor e com Dilma). Enquanto o Legislativo não for arrancado por nós do seu apego à rotina de representar a si mesmo em obediência aos interesses dos de cima não haverá Executivo capaz de governar sem ter de prestar vassalagem a essa rotina, comprometendo com isso suas promessas de mudanças favoráveis à maioria, por mais limitadas que elas sejam. Nessa rotina está alojada a corrupção, que é o azeite da engrenagem.

A essa dimensão estrutural Temer vê somar-se uma dimensão conjuntural especialmente desfavorável à chamada “governabilidade” porque, embora sua investidura no cargo, através da derrubada de Dilma por uma contundente maioria do Legislativo, aparente ter posto fim à polarização Legislativo X Executivo, ela, na verdade, pôs fim (e a nu) apenas ao que havia de fajuto nessa polarização, pois, em suas roupas conjunturais,  essa polarização era apenas uma pantomima pela qual os agentes, ao culparem Dilma, pretenderam salvar a si mesmos de abismarem-se na fratura política do modelo que vinham compartilhando com ela: a crise de representação que atinge o Legislativo e que veio à tona com a Lava Jato e seus desdobramentos.

Temer é herdeiro da diferença conjuntural entre Collor e Dilma: no caso Collor o lulopetismo e o PSDB ainda estavam fora do bloco de poder que ruiu com o malogro do plano Collor, ao passo que o caso Dilma se dá numa conjuntura em que ruiu o bloco de poder instituído pelo Real, ao qual o lulopetismo aderiu em 2002, como já analisei aqui e aqui. Assim, se, em tempos idos, a queda do presidente Collor abriu terreno para a polarização entre os então “mudancistas” e os então “transformadores” (PSDBxPT), dando sobrevida vicária ao modelo da transição “lenta, gradual e segura”, como detalhei aqui; hoje, a queda da presidente Dilma se abre para o abismo, uma vez que o modelo se esgotou sem que a sociedade tenha engendrado uma alternativa.

Para incautos ou espertalhões a investidura de Temer pode ser defendida como tendo posto fim tanto à fratura estrutural quanto à conjuntural entre Executivo e Legislativo, afinal, diriam eles, Temer está a conduzir um governo de braços dados com a representação congressual… Entretanto, o que solda essa harmonia precária não é uma convergência pela mudança, que teria levado ambos os poderes a abandonarem a velha rotina; pelo contrário, o governo golpista de Temer promove a fusão dos dois poderes através do calor da velhacaria empenhada em escapar das consequências republicanas da Lava Jato e a enjambrar um modo novo de operar os mesmos interesses e segundo a mesma rotina. Foi a isso que o tarimbado Delfim Netto celebrou na Folha como um “hábil parlamentarismo de ocasião”, monstrengo institucional voltado a obter, através de uma maioria facciosa, o “ajuste fiscal” necessário a mais uma volta no parafuso da desigualdade, agora contando com a “lei Dilma” contra o terrorismo. Tem tudo para dar errado, mas, como sempre, infelizmente pode, mesmo, dar certo.

A manobra deles tem tudo para dar errado porque, em meio a uma crise econômica, o que chamamos de Lava Jato vem tornando cada vez mais difícil aos profissionais da política escamotear a crise  de representação, que é a expressão terminal do aspecto político da crise do modelo “seguro” que reuniu desigualdade extrema com democracia eleitoral, sob um Estado de Direito autoritário. Essa crise de representação é antiga, mas veio sendo encoberta com as esperanças suscitadas pelas saídas econômicas com que o modelo veio se reinventando: planos Cruzado, Collor e Real, mais o “desenvolvimentismo” do lulopetismo. Cada uma dessas “saídas” foi protagonizada pela vanguarda da vez, tendo como voz dissonante um ou mais dos opositores da ocasião, conjunto que dava a ideia de que se marchava adiante. Com Dilma passamos a marchar no pátio e com a queda dela ficou claro que não há, mesmo, para onde marchar: querendo se separar, p-MDB e PT se reencontraram na ruína, o p-MDB como a vanguarda da ruína e o PT como a ruína da vanguarda.

Conclusão 2: se já não há para onde marchar, temos de dispersar (a eles e a nós), ganhar a rua, para encontrar outro(s) ponto(s) de convergência. Como já defendi aqui, temos de arrancar novas eleições federais (presidente, senadores e deputados),  nas quais não mais reelegeríamos ninguém para o Legislativo. Essas eleições seriam realizadas junto com a eleição municipal deste ano, instituindo-se um novo calendário eleitoral para o país. Continuaríamos com este formato ótimo de mandatos de quatro anos com eleições a cada dois anos, o que nos permite manter a representação sob vara curta, mas com as eleições estaduais, já em 2018, separadas das eleições federais e municipais, que passariam a se dar juntas a partir de 2016.

Mas a manobra deles pode dar certo porque, infelizmente, mesmo com a maioria da sociedade muito descontente, não é tão fácil assim quebrar o arco de interesses que reúne os grandes do mercado, os agentes públicos afeitos ao exercício faccioso dos poderes institucionais e os conglomerados de mídia voltados à veiculação de temas e valores que servem à manutenção da ordem que nos infelicita. Especialista na arte de tergiversar, esse pessoal não deve ser subestimado, como o comprova a enorme volta que foi capaz de dar até cooptar, usar, submeter e descartar o lulopetismo, perda de que a sociedade brasileira levará muito tempo para se recuperar, pois ela se dá num contexto que obriga a quem se opõe ao status quo a jogar a criança fora junto com a água do banho e a assistir o adversário avançar em meio a zombaria merecida, e merecida porque a credulidade é um defeito, mesmo que se concorde com Marx, que a julgava o defeito mais tolerável do ser humano.

Conclusão 3: a “Lava Jato” nos abriu a oportunidade rara de nos fazermos menos crédulos na ordem política dos profissionais e tomarmos para nós mesmos a tarefa de construir um novo sistema político, mas para isso precisamos nos engajar num movimento de desobediência civil, negando-lhes a nossa governabilidade.

 

 

A LAVA JATO E A “GOVERNABILIDADE” — 1 DE 2

Carlos Novaes, 18 de junho de 2016

Se ainda havia alguma dúvida sobre o fato de que a vida institucional brasileira é hoje uma luta de facções, os últimos desdobramentos do que se convencionou chamar de “Lava Jato” escancaram toda a ilegitimidade de nossas instituições na forma desse Estado de Direito Autoritário: todos os eventos relevantes têm se dado a partir dos chamados vazamentos, tão benéficos quanto facciosos — benéficos porque atingem os ladrões que nos representam e governam; facciosos porque contornam as vias da forma legal, pois elas estão obstruídas pelo exercício não menos faccioso dos poderes institucionais, determinado a impedir a progressão dos danos contra os poderosos. Tem sido assim na queda de ministros, tem sido assim na revelação de que investigações contra políticos estão paradas há meses no STF, sem que se saiba o porquê.

Não obstante esta lentidão do STF, não obstante a necessidade dos vazamentos para que alguma coisa caminhe, a Lava Jato vem sendo dita irrefreável. Para quem a vê desse modo, o governo Temer parece definitivamente refém dela, ora condenado a seguir aos solavancos, de escândalo em escândalo, ora claudicando para uma queda inexorável — em suma, sob Temer a chamada “governabilidade” jamais seria alcançada.

Embora eu entenda que a Lava Jato tem uma dinâmica própria, embora eu entenda que Temer não tem como transpor todos os obstáculos à chamada governabilidade, e embora eu esteja entre aqueles que torcem e até vêem como provável a queda do golpista interino, não vejo razão para aceitar a lógica exposta no parágrafo imediatamente anterior.

Desde logo, devemos dissolver a ideia de que a Lava Jato ainda é aquele dínamo inesperado e irrefreável  que foi no início de seus trabalhos lá no Paraná. Pelo muito que fez naquela altura, pelos medos que provocou e pela natureza institucional de suas atividades, a Lava Jato foi se reformulando no curso do tempo: pelo que fez, ela teve de se reformular porque pôs a nu o sistema político do país, mexendo num vespeiro que voltou contra si os mais poderosos agentes do “mercado” e do Estado, tais como empreiteiras, bancos, e as presidências da República, da Câmara e do Senado; pelos medos que provocou, a Lava Jato teve de se reformular porque passou a receber delações não só não antecipadas por ela como, e principalmente, delações premeditadas, com materiais defensivos de alta combustão produzidos diretamente para ela, como nos casos de Cerveró e Sergio Machado que, na ânsia de atenuar penas tidas como certas, forçaram as próprias delações (preste atenção, leitor: essas delações centrais foram forçadas); pela sua natureza institucional, ela teve de se reformular porque, além da Polícia Federal (repleta de facções) não pôde deixar de envolver em seus desdobramentos outras instituições, tais como a PGR e o STF, indispensáveis na hora de tratar de suspeitos com status privilegiado, incluindo-as no que agora ainda chamamos de Lava Jato.

De modo que, diferentemente do seu início, a expressão “Lava Jato”, hoje, designa não mais, nem sequer principalmente, as ações dos servidores do Paraná, mas uma miríade de instituições e arranjos facciosos que disputam o sentido a dar ao exercício dos poderes institucionais mobilizados. A Lava Jato é, hoje, menos uma operação e mais um teatro de operações, no qual servidores públicos diligentes e sérios disputam com as mais diferentes facções políticas, jurídicas e policiais o desenlace final dessa crise de que a operação foi o gatilho. Toda a imaturidade institucional e constitucional do país está a mostra nessas combinações facciosas, sendo a mais rematada tolice pretender que a Lava Jato não possa ser contida, quer em razão de uma suposta solidez institucional do país, quer por causa do ímpeto incorruptível dos servidores do Paraná, pois nem eles, nem ninguém, controla o desenrolar do novelo, ainda que, a essa altura, o jogo dependa, sobretudo, do STF.

No salve-se quem puder que se instalou, a Lava Jato tem sido, e continuará sendo, irrefreável enquanto houver facções que, detendo força institucional, forem capazes de explorar inventivamente o ordenamento legal do país para mobilizar o material dela em proveito de seus interesses, sejam eles republicanos ou não. Não foi senão desse modo que Lula e Cunha foram abatidos; que Delcídio e Jucá tiveram destinos até aqui diferentes. Não foi por outra razão que, ao sentir a crescente fuga do chão sob seus pés, o procurador Deltan Dellagnol veio a público para nos alertar de que “é possível e até provável” que consigam parar a Lava Jato, pois, segundo ele, ela “só sobreviveu até hoje porque a sociedade é seu escudo”, diagnóstico com o qual eu pareceria dever concordar, mas não posso: é que Dellagnol não realiza que a opinião pública que foi às ruas apoiar a Lava Jato estava sobretudo animada por sentimentos hostis ao lulopetismo e, assim, o ímpeto do apoio arrefeceu tão logo se sentiram contemplados com o impeachment de Dilma — havia muito pouco ânimo republicano ou democrático naquele bater de panelas.

Por outro lado, nem o lulopetismo, nem quem vai às ruas alinhado com ele, dá força à Lava Jato quando ela atinge o p-MDB e Temer, pois embora queira desbancá-los para voltar ao planalto, não pode deixar de vê-la como uma ameaça aos seus próprios interesses. Ou seja, diferentemente do que pensa Dellagnol, a Lava Jato “só sobreviveu até hoje” porque, de início, encontrou facções poderosas interessadas nos seus serviços contra o lulopetismo, mas, em seguida, acabaram sendo colhidas no vórtice que não puderam controlar em razão do caráter agudo da nossa crise de representação, que resulta da desigualdade e expõe toda a ilegitimidade de nosso Estado de Direito Autoritário, não obstante a escolha para os cargos políticos desse Estado se dê numa democracia eleitoral.

Conclusão 1: as incertezas desse jogo de forças facciosas só serão transpostas de modo favorável à consolidação da democracia se o povo, na rua, imprimir ao conjunto um rumo claramente hostil aos políticos profissionais. Mas quem precisa se mobilizar em favor da Lava Jato enquanto vetor orientado contra o modo de operar do sistema político corrupto do Brasil são aqueles que até agora não foram para a rua — do contrário, os políticos profissionais vão acabar por conseguir se rearranjar em campo, ainda que deixando gente sua pelo caminho, e transporão as incertezas atuais de modo favorável para si, mantendo a desigualdade a um custo cada vez maior para a grande maioria de nós.

Além do que ela diz por si mesma, esta conclusão quer dizer ainda que seria um erro apostar todas as fichas na inexorabilidade da queda de Temer. Esta queda é até provável, mas não devemos subestimar nem a determinação dos setores dominantes do mercado e do Estado por uma reestabilização do sistema, nem a ânsia de parte da sociedade pelo fim da atmosfera de incerteza que nos absorve. O que nos leva ao tema da chamada “governabilidade” e à sua conexão com a “Lava Jato”.

CRISE, CUSTO BRASIL E TRANSFORMAÇÃO — 3 DE 3

A QUE HERANÇA RENUNCIAMOS E COMO AVANÇAR?

Carlos Novaes, 09 de junho de 2016

Embora tenham levado trinta longos anos, nossas persistentes e fornidas elites empresariais, o chamado “Mercado”, ao tirarem proveito dos dispositivos paisano e militar que nos foram legados pela ditadura na forma desse Estado de Direito Autoritário, acabaram por conseguir conter, cooptar, usar em seu favor e, então, descartar as duas principais ferramentas políticas construídas pela maioria da sociedade brasileira em busca de uma ordem político-social menos autoritária e menos desigual, o PT e o PSDB. Naturalmente, não estou a sugerir que o resultado complexo que estamos a viver corresponda a um desenho de prancheta, nem mesmo que ele seja a realização de desejos. De fato, ante a balbúrdia a que foi arrastado nosso Estado de Direito Autoritário, segmentado em nacos de poder que transitam entre facções segundo a formação de maiorias legislativas e/ou vetores de força institucional (principalmente no judiciário e nas polícias) cada vez mais ocasionais e oportunistas, qualquer um entende que nossa crise não pode ser resultado de nenhuma conspiração.

Sobre as ruínas do “mudancismo”,  e ainda apoiando-se nos escombros dos protagonistas decaídos (PSDB e PT), os espertalhões que julgam ter sobrevivido ao sistema político que desmoronou  propõem ao país “zerar o jogo”, encenando uma “limpeza”, como se fosse possível lavar, ou mesmo varrer, a casa que caiu. Propõem essa ou aquela “reforma política”, mas nenhuma delas nos serve, como já discuti em vários textos aqui. Não é de surpreender que tenham voltado à formação do governo Sarney de logo antes do Plano Cruzado, isto é, a um governo do p-MDB, ao qual, já naquela altura, apenas os mais crédulos hipotecaram esperanças. Tudo se passa como se não houvéssemos vivido os fracassos, os delírios ou os êxitos dos planos Cruzado, Collor e Real; como se o engajamento em sete eleições diretas e cinco disputas de segundo turno para a presidência da República nada houvesse nos ensinado; como se o desmanche do lulopetismo fosse apenas um caso isolado de corrupção e mentira, estranho ao sistema político em que ele foi docemente cooptado e usado, para então ver-se descartado como mera companhia repelente.

Ora, se, em tese, tomarmos aquela época da criação do PT e do PSDB como um marco para o início da convergência em favor de uma consolidação democrática no Brasil, e se, sempre em tese, admitirmos que essas duas forças, naquela altura, significavam o que de melhor o país pôde produzir em favor da consolidação democrática, então não podemos escapar de enxergar que esse governo Temer, saído da derrota do melhor daquelas forças, é o oposto da consolidação pretendida num Estado de Direito Democrático e o máximo da crise de legitimidade a que poderia chegar nosso Estado de Direito Autoritário. Não é à toa, e nem por causa de Temer, portanto, que seu governo não pare de pé e de que sua queda ou permanência em nada dependam dos defeitos ou qualidades do interino — pior do que isso só se Temer cair depois do fim de 2016, nos levando à escolha indireta de um presidente da República, quando então regrediríamos ao Colégio Eleitoral do período da ditadura paisano-militar, dessa vez com os mesmos paisanos, mas tendo como braço militar não as Forças Armadas, mas a PM (é melhor não duvidar).

E ainda há quem fale numa suposta robustez das nossas “instituições democráticas”, como se o nosso Estado de Direito não estivesse atravessado pelo choque cotidiano entre o exercício faccioso dos poderes institucionais  e o pendor democrático da maioria da sociedade brasileira. Para além das idas e vindas da Lava Jato, deixem-me dar três outros exemplos recentes deste choque:

— Embora a sociedade condene inequívoca e majoritariamente a violência contra a mulher, a polícia civil do Rio encontrou dificuldades para que profissionais seus encarassem como estupro as relações sexuais não consentidas a que mais de trinta homens submeteram uma mulher.

— A mesma sociedade que quer mais democracia, é obrigada a conviver com uma polícia militar-PM cuja conduta torna plausível, para as pessoas de bem, que os próprios policiais tenham plantado na mão de um menino-delinquente de dez anos não só a arma, mas vestígios de pólvora, de modo a fazer parecer que o tiro que o matou fora o revide inevitável aos disparos efetuados pela vítima contra profissionais do nosso Estado de Direito Autoritário.

— Nesses dias de perda salarial e desemprego, Marcelo Jucá (quando já estava afastado do ministério de Temer), negociou com a facção de plantão no Congresso, pouco antes do pedido de sua prisão pela PGR, em nome do presidente golpista, a aceitação pela presidência de um aumento para servidores públicos em troca da aprovação da DRU que vai abrir as portas para que o ajuste fiscal penalize os segmentos mais pobres da população.

Sobre esse aumento, que beneficia juízes, disse  na Folha de S.Paulo o ex-ministro Delfim Netto (que além de grilo falante do legado paisano da ditadura, vem a ser, talvez, o mais acatado teórico do “custo Brasil” e o mais abalizado especialista nessas lutas entre facções do nosso Estado de Direito): “talvez a relação custo/benefício não tenha sido bem calculada, mas sua troca política pela aprovação da DRU era essencial. Foi um passo custoso, mas decisivo para a execução do programa geral [o ajuste fiscal]”. Ainda segundo o ex-ministro, essa proposta de ajuste fiscal de Temer “parece ter boa probabilidade de ser aprovada pelo Congresso Nacional, graças a um hábil parlamentarismo de ocasião”.

Como sair disso?

Antes de mais nada, encarando que vivemos o esgotamento do modelo saído da transição “lenta, gradual e segura”: ou vamos adiante, nos livrando do que resta da ditadura, exigindo o que nos foi prometido, mas não foi entregue, desdobrando nossa democracia eleitoral num Estado de Direito Democrático; ou retrocedemos, deixando que façam da crise o pretexto para um recuo a formas ainda mais autoritárias, permitindo que aumentem o controle sobre nossa democracia eleitoral pelo recrudescimento desse Estado de Direito Autoritário que nos infelicita — essa é a encruzilhada.

Precisamos encarar também que não dispomos de uma força política, muito menos de um partido, capaz de nos liderar. Aliás, como já dito, foi essa falta de alternativa que deu sentido de crise à situação intolerável em que vivemos. Como também já vimos, em 1974 e em 1994 o intolerável desaguou em realinhamentos eleitorais que nos impulsionaram na direção de mais democracia: o realinhamento de 1974 levou ao início da transição cujo modelo agora vemos esgotado, e o realinhamento de 1994 permitiu que as forças da mudança derrotassem as forças da transformação, dando sobrevida ao modelo, que já então apresentava sinais de fadiga. Passados outros 20 anos, chegamos às eleições de 2014 com o modelo saído da ditadura em frangalhos.

O empate eleitoral entre PT e PSDB na disputa para a presidência da República mostrou muitas coisas, das quais isolo duas para tentar deixar mais claro o que penso: primeiro, ao chegar a este empate no âmbito da democracia eleitoral, a sociedade brasileira mostrou que extraíra dessa democracia incompleta o melhor que ela poderia dar — para ir adiante será necessário democratizar o Estado de Direito; segundo, este empate só se deu porque nenhuma outra candidatura ofereceu um projeto claro e, sobretudo, confiável na direção da consolidação da democracia, que para nós tem de ser um compromisso de enfrentamento democrático da desigualdade.

Conclusão 5: essa falta de alternativa é, em boa parte, responsabilidade da própria sociedade, que indevidamente delegou aos políticos profissionais a tarefa de democratizar nosso Estado de Direito.

PSDB e PT receberam essa delegação, mas deixaram de ser alternativa precisamente porque se acomodaram ao aspecto “seguro” da transição, acomodação que se traduziu na economia e na política: o pacto do Real continuou a garantir que os ricos nada percam; a adesão do lulopetismo a esse pacto foi coroada com a sanção de Dilma a uma lei anti-democrática que, disfarçada de lei contra o terrorismo, aperfeiçoa nosso Estado de Direito Autoritário, permitindo que ele se antecipe aos tempos de convulsão social e política que estão a se abrir para a sociedade brasileira. Portanto, mesmo que já contássemos com um partido transformador, seria de pouca valia nos dirigirmos a ele com o ânimo delegativo que nos fez vítimas do PSDB e do PT. Para que a crise nos leve a dar um passo adiante no rumo de um Estado de Direito Democrático, que é uma ordem mais propícia à luta contra a desigualdade extrema, precisamos aprender com os êxitos e com os erros do passado.

Olhadas com grandeza, as duas operações mais notáveis das últimas décadas foram justamente a construção do PT e a implementação do plano Real. Entretanto, a mais genuína força política emancipatória construída pela sociedade brasileira, o PT, se posicionou contra o projeto governamental de maior potencial emancipatório já implementado entre nós, o plano Real. O PT foi emancipatório porque, para dar certo, reuniu contra a desigualdade, de forma inteligente, espontânea e democrática, o maior arco político de forças populares e médias já construído organicamente no Brasil; o plano Real abrigou enorme potencial emancipatório porque, para ter êxito, previu e contou com a adesão inteligente, espontânea e democrática da população, no maior esforço popular já realizado em prol de uma tarefa governamental no Brasil. No PT cada um falava três minutos; no Real cada um conferia a tablita da URV.

Tudo isso acabou em quase nada porque delegamos aos profissionais a consolidação dessas iniciativas. A burocracia profissionalizada e oligarquizada do PT, sempre a mesma, conduziu o partido à capitulação pela corrupção, assim como o plano Real fora rebaixado pelos tucanos a um plano de estabilização monetária de profissionais da economia chancelados pelo “mercado” — nos dois casos se deixou para trás a variável que fora decisiva para o sucesso: a energia do engajamento popular. Como esse engajamento punha dificuldades para o controle social que PT e PSDB rivalizavam em protagonizar, a energia popular foi devolvida ao calendário eleitoral, no qual predominavam as rotinas das eleições Legislativas, que vinham desde os tempos da ditadura paisano-militar, e nas quais o p-MDB se especializara, como discuti detalhadamente aqui.

Como também já discuti aqui, essas rotinas travam até hoje nosso processo político e estão na raiz dessa nossa crise de representação: o problema é a reeleição para o Legislativo e suas mazelas conexas, a política como carreira e como profissão. Acabar com a reeleição para o Legislativo é a bandeira que proponho para unificar a luta em prol de um Estado de Direito Democrático no Brasil. Assim como a hiperinflação não pôde acabar por decreto, também a reeleição para o Legislativo não irá acabar por decreto algum  — são problemas que requerem engajamento popular, pois trata-se de quebrar inércias que nos foram legadas pela ditadura paisano-militar: na economia, a inércia da inflação; na política, a inércia da reeleição para o Legislativo. Logo, assim como para acabar com a hiperinflação foi necessário quebrar o que havia de inercial nela, para acabar com a reeleição legislativa será necessário interromper a dinâmica inercial que beneficia os profissionais da política e permite armar esse circo da polarização Legislativo contra Executivo.

Conclusão 6: diante dessa ressaca que pretende nos arrastar de volta às limitações do fim da ditadura (o p-MDB do Sarney, agora com Temer), os que queremos mais democracia estamos de volta à necessidade de nos concentrarmos numa bandeira de ordem geral — o problema está na inércia da política como profissão.

Essa transformação precede todas as outras e não requer um partido para ser levada adiante, ainda que, não sendo um horizontalista, eu entenda que partidos são importantes. Tampouco precisa ser prevista em lei, pois cada um pode se engajar até solitariamente nela e, se preferir, limitando sua participação a um gesto simples: jamais votar para o Legislativo em quem já tenha ocupado um cargo Legislativo, a começar pela escolha dos vereadores em 2016: chega dos mesmos! O fim da reeleição para o Legislativo permitirá que aflorem da sociedade brasileira as alternativas que nos levem à construção de um Estado de Direito em conexão com o ânimo democrático dela, acabando com a incongruência atual entre Estado de Direito e sociedade, e colocando nossa ordem política num plano superior.

 

 

 

CRISE, CUSTO BRASIL E TRANSFORMAÇÃO — 2 DE 3

PARA ESTARMOS AQUI, DE ONDE VIEMOS? 

Carlos Novaes, 08 de junho de 2016

 

O fosso crescente entre as esperanças suscitadas pela democracia eleitoral (na qual a maioria da sociedade se engaja e acredita) e os danos contra ela saídos do exercício faccioso dos poderes institucionais (pelo qual uma minoria tira proveito da energia social democraticamente produzida) escancara a falta de legitimidade do Estado de Direito Autoritário, que, para disfarçá-la, vem transferindo para a sociedade uma crise que é, antes de tudo, dele próprio. Essa transferência aparece nas crises econômicas e nas crises políticas, que vêm sendo “resolvidas” com manobras procrastinadoras mais ou menos engenhosas e de êxito menor a cada volta do parafuso, o que veio gerando a crise em que agora estamos.

Eis o ápice da crise de legitimidade do autoritarismo do nosso Estado de Direito: na política, uma crise de representação que se buscou disfarçar em uma crise de governabilidade (que, assim, se fez “real”); na economia, uma crise de modelo que se busca reduzir a uma crise fiscal (que, não obstante, é real); na gestão administrativa, um governo faccioso (do p-MDB!), a que se tenta dar status de governo de salvação nacional (de que não precisamos); e, na sociedade, idas à rua que, em sua cegueira, levam multidões a se dividirem em facções, numa imitação contraproducente da disputa de poder dentro do Estado de Direito Autoritário (daí a presença tão marcante de comportamentos boçais: se tropeça em bolsonarinhos em toda via).

Conclusão 3: para transpor as dificuldades impostas por essa crise de legitimidade só há dois caminhos: ou aprofundar o autoritarismo, reduzindo a liberdade de ação democrática, encarada como desordem; ou expandir a democracia, levando seus métodos para dentro do Estado de Direito, passando-o de autoritário a democrático.

Qual desses dois caminhos a maioria da sociedade brasileira prefere? Conseguirá ela fazer valer sua preferência? Da resposta a essas perguntas poderemos sair do impasse em que estamos, que muita gente supõe se dever ao despreparo ou à fraqueza de Temer… Quem é Temer, diante de uma crise assim monumental?!

Nossa preferência vem sendo declarada há mais de quarenta anos: nas eleições de 1974, ainda sob a ditadura paisano-militar, a maioria de nós mostrou preferir a democracia quando, dentro dos limites impostos, em resposta ao intolerável, deu esmagadora vitória ao MDB, única alternativa de “oposição” à ordem autoritária de então. Desde ali, não houve recuo: nossa marcha veio sendo por mais democracia. Aquele realinhamento eleitoral de 74, que recentemente discuti aqui (nesse contexto, julgo proveitosa a leitura desse texto), foi tão duradouro quanto manipulado e, não por acaso, se esgotou no malogro do plano cruzado, quando o p-MDB de Sarney colheu os resultados do seu estelionato eleitoral na magra votação de Ulisses na disputa presidencial de 1989. Era a época dos tormentos da inflação, a forma que então se dava à manutenção da desigualdade extrema, numa espoliação sem paralelo da maioria pela minoria.

Naquela altura a situação também era intolerável, mas, assim como em 1974, não se instalou uma crise como a de hoje porque a sociedade ainda reconhecia alternativas dentro da ordem política: PSDB e PT (mudança X transformação) davam norte e esperança para o ânimo democrático da maioria da sociedade — ela não podia adivinhar que eles a atraiçoariam tal como fizera o p-MDB. Se hoje não vemos alternativa é porque essas duas forças foram engolfadas pela crise, depois de terem desperdiçado todas as oportunidades que tiveram para levar nossa democracia a um estágio superior: depois de obter o realinhamento eleitoral de 1994, em nova resposta da maioria da sociedade ao intolerável, o PSDB preferiu abandonar o Real a arriscar-se em perseverar no mudancismo que, a partir dali, teria de se aprofundar (Serra, mais establishiment do que FHC, escondeu o plano bem sucedido na campanha presidencial de 2002); o PT preferiu um caminho rápido para o poder e aderiu à mudança, ao invés de perseverar na transformação.

O pior é que, com essa adesão, o PT avacalhou o próprio mudancismo, enfraquecendo o que já era fraco, e de duas maneiras: primeiro, como aderiu sem enxergar as virtualidades emancipatórias do plano Real, deu seguimento inercial às políticas sociais dele, apenas intensificando-as; segundo, como essa adesão foi eleitoreira, teve de empurrar o PSDB para longe da própria cria, dando corda a uma polarização falsa que obrigou ambos a se valerem, um contra o outro, das forças políticas que encarnavam o legado paisano da ditadura (p-MDB, PDS, PFL, PP, PTB…), que, assim, foram preservadas da extinção a que seriam levadas se tivesse havido uma autêntica seleção natural dos mais aptos para a vida em ambiente democrático.

O empate havido nas eleições de 2014 já apontava o esgotamento do modelo e, por isso mesmo, exibiu-se tão encenadamente radical a polarização havida naquela disputa: sem saber para onde correr, pois não haviam elementos para um novo realinhamento eleitoral, o país, enraivecido, empatou, hipertrofiando a ilusão em torno de diferenças inexistentes entre PT e PSDB. Mas, ilusório que tenha sido, o empate se deu por mais democracia, não por menos, como mesmo o que há de enganoso no engajamento em favor da Lava Jato está a mostrar.

Conclusão 4: a maioria da sociedade brasileira quer mais democracia, não menos.

Como fazer valer essa preferência?

 

 

CRISE, CUSTO BRASIL E TRANSFORMAÇÃO — 1 DE 3

ONDE ESTAMOS?

Carlos Novaes, 07 de junho de 2016

Uma sociedade está em crise quando vive sua situação como intolerável e não encontra nas instituições disponíveis os meios de transpor de modo auspicioso o que lhe parece intolerável. Em uma sociedade em crise, a atividade política, seja ela profissional ou não, torna-se uma disputa pela narrativa da crise, e isso porque “definir” a crise já é uma maneira de principiar a escolher uma saída dela – sair de uma crise sempre exige arbitrar perdas, e ninguém quer perder. Por isso mesmo, ou seja, como desenhar a crise é uma disputa, nem sempre as sociedades alcançam os fundamentos da crise em que vivem e, então, os sofrimentos ganham intensidade e/ou se prolongam na medida em que aqueles que vinham tirando vantagem do arranjo que desembocou na crise conservam poder para defini-la e dar-lhe “solução”.

A sociedade brasileira está em crise porque a insistência em manter uma desigualdade tão extrema — que premia assim regiamente os brasileiros ricos, enquanto desfavorece os brasileiros remediados e pune os brasileiros pobres — engendrou uma situação social e uma ordem político-institucional que são vividas como intoleráveis pela maioria da população. A situação social é vivida como intolerável porque já ninguém escapa das consequências de suas flagrantes inutilidade, injustiça e desperdício. Ela é flagrantemente inútil porque a expansão da riqueza dos ricos em nada aproveita ao desenvolvimento do país; ela é flagrantemente injusta porque se dá numa escala na qual o que se contrapõe à reiterada miséria de muitos e à escalonada penúria de tantos é o luxo em expansão de muito poucos; e ela é um desperdício porque há um abismo não menos flagrante entre as potencialidades do país e de seu povo e as condições de vida a que o modelo vigente condena esse mesmo povo. A ordem político-institucional é, por sua vez, vivida como intolerável porque já somos maioria os que nos vemos maltratados pelo exercício faccioso dos poderes institucionais, marcados por violência, arbitrariedade e ineficácia. Ela é violenta na ação e inação seletivas de seus efetivos policiais; ela é arbitrária nas decisões assimétricas de suas burocracias interessadas; e ela é ineficaz também porque tem na corrupção um motivo de planejamento, empregando-a ainda para premiar adesões e obter obediência.

Conclusão 1: o custo Brasil é a desigualdade, não a legislação e os programas que, sem enfrenta-la, mitigam defeituosamente seus efeitos danosos sobre os mais pobres, como o SUS, o Minha Casa Minha Vida, a Escola Pública e Universal, o Bolsa Família e a Previdência Social. Instituições assim abrigam distorções precisamente porque vivemos sob um Estado de Direito Autoritário, que combina democracia eleitoral e exercício faccioso dos poderes institucionais: facções lutam pelo manejo (fechado) do orçamento e pela chancela eleitoral (aberta) dessas instituições, o que faz delas ambiente para a combinação de corrupção com encenação populista, o que só pode gerar ineficácia, que é a mãe do desperdício.

Não obstante, desde que a crise eclodiu, a minoria numerosa e poderosa que tem ganho com esse arranjo condenado, e controla instituições e meios de comunicação de prestígio, vem conseguindo tanger a opinião pública, fazendo-a acreditar nas três seguintes fantasias: primeiro, que há (ou havia) uma crise política entre Executivo e Legislativo; como se a crise de representação decorrente da autonomia que a desigualdade extrema proporcionou aos políticos profissionais não engolfasse todo o sistema político e pudesse ser resolvida com essa encenação que sazonalmente contrapõe o Congresso à presidência da República — resultado: as ruas se dividiram improdutivamente em torno do impeachment de Dilma, quando o problema é o sistema político enquanto tal.

Segundo, a fantasia de que vivemos uma crise econômica decorrente principalmente da má gestão da presidente afastada no curso da encenação anterior; como se o malabarismo necessário à manutenção da desigualdade extrema não nos condenasse a crises econômicas uma atrás da outra, mesmo que por vezes o malabarismo se mostre engenhoso, dê certo e adie problemas, como o foi no caso do Real ou, em grau menor, no caso das receitas do Lula contra a “marolinha” — resultado: as ruas se dividiram improdutivamente entre os defensores da via tucana e os defensores da via lulopetista, quando nenhuma dessas duas vias leva ao enfrentamento da desigualdade precisamente porque se deixaram fazer instrumento da sua conservação.

Terceiro, a fantasia de que vivemos uma crise moral; como se a corrupção generalizada fosse um mero desvio de conduta e não o próprio modo de operar de todo o sistema institucional voltado a manter a desigualdade extrema através do exercício faccioso dos poderes institucionaisresultado: as ruas se dividiram hipocrita e improdutivamente em grupos que se acusam uns aos outros de “desvio”, cada um fingindo não ver seus próprios corruptos e todos contribuindo para o disparate de que a corrupção generalizada no sistema político “representaria” uma suposta cultura brasileira de corrupção, como se a corrupção não fosse exatamente o dispositivo que, aliado à reeleição legislativa, permitiu que nossos “representantes” nos dessem as costas, ganhando a autonomia que lhes permite fazerem-se ferramentas de quem lhes paga para representarem interesses contrários aos nossos.

Conclusão 2: embora com dificuldades crescentes para legitimar o Estado de Direito Autoritário que os beneficia, os titulares do exercício faccioso dos poderes institucionais lograram, até aqui, esconder a extensão e a profundidade da crise, e a luta social mais estridente tornou-se uma caricatura das disputas entre eles: os grupos que vão à rua comportam-se como facções que anulam uma à outra e, assim, o ânimo democrático da sociedade não converge para um projeto de transformação e a energia social voltada à mudança é dissipada em hostilidades vis.

CRISE EM PONTO MORTO, MAS VAI REENGATAR

Carlos Novaes, 05 de junho de 2016

Há quase um ano, quando já estava claro que a Lava Jato, se prosseguisse sem freios, reuniria material para “pegar” todo mundo, escrevi aqui:

“Tal como em programas de auditório, também na política é pela baixaria que surge a verdade, como comprovam as declarações de Geddel que, em alto e bom som, disse o que pode ser resumido assim: ‘a esculhambação em que vínhamos nos locupletando até aqui entrou em falência e precisamos encontrar um outro modo de operar’. Desafio qualquer um a encontrar resumo mais apurado do que esse para a “crise” política brasileira que, como venho insistindo, é uma “crise” do modo de operar dos profissionais, por sua vez sobreposta ao desmanche do pacto do Real. Se não houver freio algum na Lava Jato, figurões do p-MDB, aliados de Geddel, se não o próprio (impossível não é) irão logo-logo aparecer entre os indiciados.”

Como todos estamos a ver, embora a Lava Jato venha recebendo freios, ainda não foi possível estancar o processo nos limites da destruição do lulopetismo e, assim, embora com tardança, figurões do p-MDB vem caindo, menos pela ação resoluta do Judiciário e das instituições conexas e mais pelas dificuldades de coordenação que todo o processo vem apresentando, ele próprio abrigando uma luta de facções entre policiais, procuradores e juízes, onde a moeda principal parece ser o chamado “vazamento” de evidências que, como toda moeda, é distribuída seletivamente e tem seu valor alterado no decorrer do tempo. Prova disso é o tratamento dado a Marcelo Jucá: os áudios comprometedores vazaram, mas ele não foi submetido a nada parecido com o que aconteceu com Delcídio, apanhado em situação igualmente comprometedora. Delcídio virou réu e teve o senado contra si, enquanto Jucá, até aqui, perdeu apenas o cargo de ministro de Temer, junto ao qual continua a operar, fazendo dobradinha com ninguém menos que o mesmo Geddel Vieira Lima da citação acima, que não faz outro uso do poderoso cargo de Ministro da Secretaria de Governo da presidência da República, que faz a articulação política com o Congresso, senão para “encontrar um novo modo de operar”.

Por mais que tenham tentado transpor a crise de representação com o sacrifício do sócio mais recente (o lulopetismo) através da manipulação da Lava Jato e da crise econômica numa “crise” política fajuta entre Legislativo e Executivo, “crise” esta que se esgotou com o golpe congressual do impeachment, os políticos profissionais enfrentam a cada dia novas dificuldades para reestabilizar o sistema corrupto em que operam a manutenção da desigualdade. Ao que parece, a autonomia que os operadores da política ganharam graças à desigualdade, da qual dependem, entrou em desordem porque praticamente todos os agentes políticos profissionais, cada vez mais selecionados entre os piores, aderiram ao modus operandi pelo qual o “Mercado” havia proveitosa e confortavelmente engatado no Estado (o poder) a dinâmica dos seus interesses (o dinheiro). Disfarçado de campanha eleitoral, o fluxo de dinheiro para enriquecimento ilícito de empresários e políticos sempre foi a base desse engate; entretanto, o êxito dessa cooptação remunerada dos políticos profissionais e de seus partidos foi de tal ordem que a corrupção se generalizou e saiu de controle, tornando-se ela própria a inspiração e a razão de ser das principais facções que se digladiam no ambiente institucional assim deteriorado. Mesmo nos menores municípios brasileiros, a luta eleitoral deste ano será uma luta não pelas prefeituras como instâncias de gestão pública, mas sim pelo controle de unidades de negócios: por exemplo, não há cidade brasileira em que vereadores (Legislativo) não tenham laranjas à testa de pequenas empresas operadoras de máquinas e equipamentos alugados a preços corruptos pela prefeitura (Executivo) – os raros prefeitos que resistem aos esquemas enfrentam processos de afastamento do cargo.

Como tudo isso está a acontecer na décima economia do mundo, que possui um mercado de 200 milhões de consumidores, longe de mim pretender que a crise seja apenas nossa, brasileira. E não estou a falar de atenuantes para erros internos, estou a dizer que a encrenca política em que se meteu o sistema mantenedor da desigualdade no Brasil está a indicar uma dificuldade mais geral para manter a desigualdade que, não obstante, não para de se expandir pelo mundo, salvo em países que são exceção e, como tal, tem tanta serventia nesse debate quanto as exceções honestas do Congresso brasileiro. De outra perspectiva, nossa desigualdade está para a desigualdade mundial assim como o desmantelamento do lulopetismo está para o desmantelamento do sistema político brasileiro: assim como a nossa crise de representação não irá se resolver pelo sacrifício do PT e de Lula no altar das imposturas moralizantes, também nossa desigualdade não poderá ser enfrentada sem colocar problemas para a manutenção da desigualdade mundial. Daí também o interesse do mundo pela crise no Brasil e a impertinência de alguém se declarar envergonhado de ser brasileiro, afinal, onde viver sem sentir vergonha?!

DIAGNÓSTICO RUIM LEVA A SOLUÇÕES ENGANOSAS — 2 DE 2

Carlos Novaes, 23 de maio de 2016

Ainda no intuito de perseguir o que é fundamental,  retomemos a entrevista de FHC que já comecei a discutir no artigo de ontem. Fernando Henrique mencionou o trio PSDB, PT e p-MDB nos seguintes termos:

“PSDB e PT foram os dois partidos que até aqui conseguiram liderar o processo político sem ter maioria, com apoio do PMDB. A maioria sempre foi formada por uma massa useira e vezeira em utilizar o aparelho do Estado, como esse novo centrão de que estão falando agora. […] O PMDB não é isso. É um partido que tem capacidade para fazer o Estado funcionar.” […] O [PSDB] está comprometido, mas não é o núcleo do poder [no governo Temer]. O poder é do PMDB, que legitimamente vai buscar protagonismo. Vai querer ser o motor do próximo passo. Por enquanto, tínhamos PT e PSDB. Agora, talvez o PMDB queira. Vai depender de quem tiverem na eleição [presidencial de 2018]. Tudo passa pelo personagem, quem é o candidato, como é que fala. Quem vai ter capacidade de falar e de ser ouvido. Vamos ver quem vai ser expressivo no novo quadro que está se formando. Os outros já passamos: Lula, eu próprio. Há uma faixa intermediária, Serra, Geraldo, Aécio, e outra [faixa] que não apareceu ainda. Marina está nessa faixa [intermediária]. O PT, ou algum PT, vai ter de existir no Brasil. O PT tem ligação com o meio sindical, é inegável isso.”

Discutamos a passo:

“PSDB e PT foram os dois partidos que até aqui conseguiram liderar o processo político sem ter maioria, com apoio do PMDB. A maioria sempre foi formada por uma massa useira e vezeira em utilizar o aparelho do Estado, como esse novo centrão de que estão falando agora.”

Ora, PT e PSDB nunca alcançaram maioria porque abriram mão de contarem com a maioria que sairia da união entre eles, preferindo pescar maiorias facciosas com a vara do poder e a isca do dinheiro. Esses partidos desperdiçaram todas as oportunidades que tiveram de operarem juntos para colocarem nossa democracia num patamar superior, preferindo uma ação mutuamente adversária duplamente nefasta: primeiro, porque, ao se dividirem não obstante tivessem os mesmos objetivos, precisaram simular diferenças que não existiam, o que é contraproducente quando se pensa na consolidação da nossa democracia, pois essa porfia vã entre as duas metades de uma força muito importante arrastou a sociedade a gastar energia boa em batalhas ruins — como essa do impeachment, que foi apenas um desdobramento da falsa polarização havida na eleição presidencial de 2014.

Segundo, porque essa divisão artificial acabou por exigir que ambos se apoiassem em forças menores, incapazes de fazer maioria precisamente em razão de serem useiras e vezeiras de práticas trazidas da ditadura paisano-militar, e que deveriam ter sido definitivamente derrotadas no curso da luta democrática. Na verdade, FHC não enxerga que a disputa PTxPSDB é ela própria um resultado da nossa transição “lenta, gradual e segura”: um padrão de transmissão do velho para dentro do novo numa ordem política que se tornou autônoma da base real e acabou por tornar encenação a governança contra a desigualdade. O PT fingiu ser socialista, o PSDB fingiu ser social-democrata, enquanto ambos serviam ao mercado obedecendo a lei de que os ricos não podem perder.

[…] O PMDB não é isso. É um partido que tem capacidade para fazer o Estado funcionar.”

Ora, já discuti em mais de um artigo deste blog o papel do p-MDB como dobradiça no jogo de faz de conta entre PSDB e PT. Para assumir esse lugar que lhe acabou destinado pelo pacto do Real, o p-MDB nada mais fez do que dar curso às práticas miúdas em que se tornou mestre já no período da ditadura. Ou seja, o p-MDB não é outra coisa senão isso: uma força do entulho autoritário “useira e vezeira em utilizar o aparelho do Estado, como esse novo centrão de que estão falando agora”! O papel do p-MDB é, hoje como ontem, o de coadjuvante e, por isso mesmo, como todo coadjuvante, sempre que pode tenta roubar a cena, fazendo o Estado funcionar segundo os seus interesses. As oportunidades de roubar a cena surgem exatamente da fratura contraproducente que se abriu no sistema político pela ausência de uma maioria formada pela reunião de PT e PSDB, cuja última oportunidade desperdiçada foi, como propus lá atrás, a de juntos barrarem a ascensão de Eduardo Cunha à presidência da Câmara, cujo êxito abriu espaço para esse enorme retrocesso que estamos a viver.

[…] O [PSDB] está comprometido, mas não é o núcleo do poder [no governo Temer]. O poder é do PMDB, que legitimamente vai buscar protagonismo. Vai querer ser o motor do próximo passo. Por enquanto, tínhamos PT e PSDB. Agora, talvez o PMDB queira. Vai depender de quem tiverem na eleição [presidencial de 2018]. Tudo passa pelo personagem, quem é o candidato, como é que fala. Quem vai ter capacidade de falar e de ser ouvido. Vamos ver quem vai ser expressivo no novo quadro que está se formando.”

Ora, foi precisamente esse argumento, o de não ser “o núcleo do poder”, que a ala fernandista do PSDB manejou para defender a adesão ao governo Collor, numa operação que foi barrada pelo então senador Mário Covas, salvando-os todos do vexame. Ausente Covas, Serra conta com FHC para atirar-se nos braços de Temer e tentar, mais uma vez, tirar castanhas do fogo com mão de gato: quer a opção de poder ser o candidato presidencial do p-MDB em 2018, contornando a disputa interna do PSDB, que conta ainda com Aécio e Alckmin. Ou seja, FHC já está em campo em favor de Serra e, por isso, vê com igual legitimidade o golpe do impeachment e a busca do p-MDB pelo protagonismo. Não é de surpreender que, titubeando muito (como se pode ver no vídeo), conclua dizendo:

“Os outros já passamos: Lula, eu próprio. Há uma faixa intermediária, Serra, Geraldo, Aécio, e outra [faixa] que não apareceu ainda. Marina está nessa faixa [intermediária]. O PT, ou algum PT, vai ter de existir no Brasil. O PT tem ligação com o meio sindical, é inegável isso.”

Atado ao bloco de poder e de interesses do Real, prisioneiro de limitações analíticas que decorrem também do exercício direto da governança, FHC aponta que Lula e ele próprio são uma dupla fora do baralho, mas defende Temer e aposta numa liderança do p-MDB, sem enxergar que uma sucessão dessas para uma dupla que prometia tanto, em que tantos acreditaram, é a própria expressão da derrota, do malogro da consolidação democrática. Voltamos ao limiar do fim da ditadura paisano-militar, ao governo Sarney, quase como se todo o percurso até aqui não tivesse existido. Não é à toa que mencione apenas nomes tucanos, insista em “algum PT” como coadjuvante sindical-trabalhista e só lembre de Marina depois de provocado pelo entrevistador. Embora a ausência de nomes como alternativa presidencial seja um fato, se o tempo vier a lhe dar razão terá sido não porque ele enxergou o que seria desejável ou inevitável, mas por que a sociedade brasileira, mais uma vez, foi incapaz de tirar consequências transformadoras da crise em que se abisma e preferiu enveredar pelo pior caminho, acomodada em ter mais do mesmo.

DIAGNÓSTICO RUIM LEVA A SOLUÇÕES ENGANOSAS — 1 DE 2

Carlos Novaes, 22 de maio de 2016

Car@s leitor@s,

tem havido alguma queixa sobre períodos de silêncio neste blog. Se, em momentos, digamos, mais quentes, encontro motivação para engatar análises quase diárias, há períodos em que se faz necessário deixar a situação política se assentar para, então, avaliar se há algo a ser dito. Oportuno salientar ainda que, tanto quanto o consigo, escrevo cada artigo em conexão com os anteriores e, assim, julgo que as linhas a seguir ficarão melhor explicadas a quem tiver lido os últimos dez artigos deste blog, e/ou uma série mais antiga, sobre desigualdade e voto.

DIAGNÓSTICO RUIM LEVA A SOLUÇÕES ENGANOSAS

Meu assunto hoje são as conexões que vejo entre a recriação do Ministério da Cultura e duas entrevistas recentemente publicadas pela Folha de S.Paulo. É que um vai-e-vem como este não apenas mostra a presidência Temer mais frágil do que supõem os dois entrevistados, como também, e sobretudo, serve de gancho para que se deixe claro que nenhum dos dois agarrou o nervo central do que se tem de encarar como crise no Brasil contemporâneo. A duas entrevistas trazem um ótimo resumo do senso comum daninho que vai se consolidando sobre o que é central na crise em que o Brasil se arrasta, daninho porque distrai do potencial transformador dela.

Segundo o ex-presidente Fernando Henrique:

“a população é suficientemente realista para não pedir o impossível. Ela não saiu à rua gritando: ‘Viva Temer’. Saiu gritando: ‘Fora, Dilma’. Por trás disso estão dois fatores: um, a crise econômica, e o outro, a crise moral. Esse governo tem que dar sinais nesses dois lados. […] Ele nasceu no Congresso, e o Congresso hoje é mais conservador, porque a sociedade ficou mais conservadora. O Congresso, não de maneira perfeita, reflete a sociedade. Você hoje tem a bancada da bala, a do boi… Não tinha isso no meu tempo. […] A maioria sempre foi formada por uma massa useira e vezeira em utilizar o aparelho do Estado, como esse novo “centrão” de que estão falando agora. O PMDB não é isso. É um partido que tem capacidade para fazer o Estado funcionar. [Os ministros de Temer] são bons operadores políticos. Na economia, montaram uma equipe consistente” (grifos meus).

Para David Rothkopf, editor-chefe da”Foreign Policy”:

a recuperação econômica sozinha não trará a estabilidade que Temer ou o Brasil precisam. Até a corrupção ser debelada do sistema político, o Brasil correrá riscos de mais retrocessos por culpa de novos escândalos. […]. Ninguém pode ter alguma fé na força das instituições brasileiras quando tanta gente em posições de controle nessas instituições está sob suspeita de crimes e de abuso da confiança pública. O problema é mais profundo que as instituições. É a cultura que permite que bilhões sejam roubados e corrupção generalizada nos mais altos escalões do governo se mantenha por anos intocada. Veja quantos membros da elite política brasileira estão sob suspeita ou algo pior. É um fracasso do sistema inteiro. Quem se preocupa com o Brasil vai demandar que juízes e promotores independentes apurem e que novos mecanismos e leis anticorrupção sejam estabelecidos. É um momento crucial na história brasileira. É uma encruzilhada.” (grifos meus).

Embora mais crítico e cético diante deste governo do p-MDB do que FHC, Rothkopf partilha com o ex-presidente o mesmo diagnóstico: nossa crise está centrada na economia e na corrupção, estando nelas a encruzilhada das escolhas cruciais que temos de fazer. Nada mais errado. Nossa crise é antes de tudo política, é uma crise de representação derivada da desigualdade, desigualdade esta que, para ser mantida, engendra, entre outros, mecanismos políticos favorecedores da corrupção. Não há “crise moral” como quer FHC, pois nossa corrupção está muito além da moral, ela se tornou não um defeito, mas o próprio modo de operar do sistema político. Por isso, contra ela nada resolvem nem indignação, nem prédica moralizante.

Apegado a aspectos formais, Fernando Henrique faz uma análise que recobre de legitimidade precisamente os esquemas de mando que não a têm. Ao contrário do que ele diz, nosso Congresso não é representativo sequer no que exibe de conservador — esses congressistas conservadores são corruptos, truculentos e intolerantes, e a grande maioria da sociedade, mesmo no que ela exibe de conservadorismo, não é corrupta, nem truculenta, nem intolerante; se assim não fosse, nem teria sido possível eleger FHC, Lula ou Dilma, nem haveria essa ausência de entusiasmo diante da presidência Temer, repleta de congressistas, tanto como ele próprio, “sob suspeita de crimes e de abuso da confiança pública”.

Mesmo no núcleo duro do conservadorismo brasileiro há divórcio de representação: as tais bancadas da bala, evangélica e ruralista não representam o conservadorismo médio brasileiro, basta olhar os números mais básicos: ainda que tomássemos todos os evangélicos brasileiros como intolerantes políticos (e eles não o são), eles não chegariam a 20% da população; a violência da PM, esse dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, é condenada pela maioria da população, que muito mais teme do que admira essa polícia truculenta que dá base à bancada da bala; a atividade ruralista do grande agro-negócio é economicamente expressiva, mas emprega relativamente pouca gente, especialmente se comparada à agricultura familiar, contingente imenso que não se acha representado na intolerância egoísta da bancada ruralista.

O que leva essa gente ao êxito eleitoral não é exatamente o conservadorismo da sociedade brasileira, mas o dispositivo da reeleição para o Legislativo, que propicia a junção do endinheirado ativismo sectário dessas “vanguardas” de rotina com a não menos rotineira inércia preguiçosa do eleitorado, que é mais inconsequente do que conservador. Por tudo isso, não há que falar impotentemente em “cultura” da corrupção, como o faz Rothkopf, que acaba por diluir indevidamente na sociedade uma corrupção que nasce e se nutre no sistema político que trai a sociedade que deveria representar. Pensar a corrupção brasileira como cultura torna tão impossível acabar com ela como o seria dar cabo do samba.

Para tirar o eleitorado de sua inconsequência preguiçosa precisamos esclarecê-lo sobre o que está em jogo e, para isso, não há proveito em análises como as desses entrevistados, que tratam política sócio-econômica e corrupção institucional como problemas independentes e, pior, tangem as esperanças incautas para as próprias instituições cujo exercício faccioso é elemento central de todo o circuito malsão. FHC pretende distinguir as práticas do p-MDB das dos chamados “centrões”, quando é o próprio p-MDB que lidera e provê de espinha dorsal essas maiorias facciosas que se formam em nossos parlamentos. Rothkopf espera que esse sistema político crie “novos mecanismos e leis anticorrupção” inspirados na ação apuradora de “juízes e promotores”, como se a unilateralidade em que se extinguiu a energia renovadora da mais determinada operação anticorrupção já empreendida no Brasil, a Lava Jato, não tivesse deixado claro os limites que o exercício faccioso dos poderes institucionais permite impor a essas iniciativas “independentes”: a Lava Jato acabou manipulada para garantir a saída de Dilma e o aniquilamento do lulopetismo.

Ao ter de recuar da decisão de extinguir o Ministério da Cultura Temer mostrou não a fragilidade do seu governo ilegítimo, mas a própria inviabilidade dele: um governo inteiramente saído de um Congresso faccioso e não-representativo não tem como resistir às pressões da sociedade que não se vê representada nesse mesmo Congresso. Ou seja, o que permite alguma força propriamente governamental ainda é o voto direto para presidente (que falta a Temer), precisamente porque é essa escolha que cria mecanismos de pressão da sociedade contra o Congresso, tal como explorei em série recente publicada aqui. A cada vez que Temer ceder aos congressistas, e isso será diário, estará abrindo o flanco para descontentamentos na sociedade. Considerando que ele está a serviço da manutenção da ordem que garante a desigualdade, faz sentido esperar que ele tenha legitimidade, e a força decorrente dela, para fazer a reforma da previdência, ou acabar com o incremento crescente no valor do salário mínimo? Se não conseguirem impedir que apareçam provas de corrupção contra ele, então

FORA TEMER! — MAS NÃO PELA VOLTA DE DILMA

Carlos Novaes, 12 de maio de 2016

Beneficiado por uma agressão à Constituição em que ele próprio se empenhou, Temer é o novo chefe do nosso Estado de Direito Autoritário. Qualquer um que almeje um Estado de Direito Democrático para a nossa democracia eleitoral tem o dever de se empenhar pela derrubada de Temer em favor da realização de eleições para deputado, senador e presidente ainda este ano. Seguindo um roteiro antevisto aqui em novembro de 2015, cumpriu-se o golpe que dá cabo de uma “crise” política fajuta através do rearranjo faccioso do poder e das perspectivas de ganho associadas a ele, ao mesmo tempo em que os titulares dessas práticas nefastas tentarão fugir da crise política real, a crise de representação, da qual pretendem distrair a opinião pública com a ajuda, intencional ou não, da mídia convencional. Uma vez consumado o sacrifício da “culpada”, já se apontam indícios de uma superação mágica da crise econômica, acompanhados, é claro, da defesa das ditas reformas fundamentais, na qual abundam medidas contra os direitos dos de baixo e silêncio acerca dos privilégios dos de cima, num relançamento da ciranda da desigualdade.

Mesmo considerando, como considero, que Dilma sofreu uma injustiça, entendo que dissipar energia social num engajamento pela volta dela à presidência seria contraproducente por três razões principais: primeiro, defender o “Volta Dilma” seria nutrir as três forças que precisamos deixar para trás, pois alimentaríamos a polarização fajuta que armou a “crise” política não menos fajuta, “crise” esta vencida pelos golpistas vitoriosos do Fora Dilma: Temer e seu p-MDB seriam beneficiados porque eles precisam do fantasma do lulopetismo como ameaça, até para levar ao esquecimento a longa aliança recente; já os tucanos e os petistas continuariam a contar um com o outro para manter o ritual das diferenças programáticas inexistentes.

Em segundo lugar, lutar pela volta de Dilma seria um erro porque nos levaria a desviar energia de uma luta mais importante, e que se faz também contra a presidente afastada: a cassação da chapa Dilma-Temer por corrupção eleitoral, condenação que abriria parcialmente o caminho para as eleições federais desejadas; terceiro, insistir em devolver o mandato a Dilma nos levaria à defesa de uma letra constitucional que nossa própria Côrte constitucional ajudou a rasgar com seu unilateralismo na condução da Lava Jato e nas decisões conexas, ou seja, nos transformaria em formalistas ante aquilo que já não tem forma – e que está a pedir uma outra forma precisamente para autorizar as novas eleições que almejamos, condição necessária, mas não suficiente, à consolidação da nossa democracia na forma de um Estado de Direito Democrático.

LUTA DE FACÇÕES, FICÇÃO CONSTITUCIONAL E SOCIEDADE INCONSEQUENTE

Carlos Novaes, 09 de maio de 2016

A decisão de Maranhão não é mais nem menos facciosa do que a de Teori ao afastar Cunha, e nenhuma das duas excede ou fica a dever à do mesmo Cunha quando deliberou tocar o golpe do impeachment, ou mesmo a muitas das iniciativas de Moro no curso paranaense da Lava Jato. Atingimos uma altura da crise de representação em que as facções estão em plena luta entre si, tanto no Legislativo, como no Executivo e no Judiciário. Note bem, leitor, não estou a apontar luta partidária, nem luta governo versus oposição, nem muito menos pretendo me dar ao trabalho de procurar luta de classes ali onde nem mesmo há classes em luta. O exercício faccioso dos poderes institucionais de nosso Estado de Direito Autoritário perdeu a gramática comum que permitia o faz de conta e se instalou a balbúrdia não apenas na relação entre os três poderes que a República pretende harmônicos, mas dentro da dinâmica de cada um desses poderes.

Pouco importa quão benéfica ou maléfica se possa achar cada uma das decisões recentes dessas nossas autoridades, a conclusão é uma só: a autonomia da política brasileira em relação à sociedade que deveria representar é de tal ordem que as instituições tornaram-se palco de uma luta aberta entre facções ao arrepio da norma constitucional, que vai sendo rasgada, remendada e interpretada no curso de uma luta de punhais pela sobrevivência que não leva em conta nenhum dos problemas que infelicitam a sociedade brasileira.

As próximas horas trarão uma chuva de artigos contra o pobre Maranhão, acrescidos da ladainha de que tudo se deve a Dilma, como se a essa altura não estivesse suficientemente claro que a “crise” contra ela é tão fajuta quanto as soluções imaginadas pelos políticos profissionais e seus parceiros no Judiciário para debela-la; como se não fosse óbvio que a crise de representação tornou-se uma crise do Estado de Direito Autoritário, resultado que se deve a um desarranjo duplo: ruiu o pacto do Real (que dava solda econômico-social provisória à manutenção da desigualdade); e ruiu o modo de operar do sistema político, cuja disputa por poder para fazer dinheiro simulava uma polarização em torno da desigualdade (arranjo velho, desmascarado pelo ímpeto inicial de um dínamo imprevisto, a Lava Jato). Engripou a engrenagem do exercício faccioso dos poderes institucionais e como ainda não se encontrou um meio de restaurar uma gramática comum nesse bloco de poder erodido (no qual quem ainda não caiu se apóia em bodes expiatórios), o que se vê é a mais escancarada evidência da nossa ficção constitucional, para desespero do mercado e aturdimento de uma sociedade inerme, que assiste desmancharem no curso do dia a compreensão que julgara ter alcançado na noite anterior – e tudo o que já era bambo se dissolve no ar.

QUEDA DE CUNHA É TÃO BENÉFICA QUANTO FACCIOSA

Carlos Novaes, 05 de maio de 2016

 

Tendo em mente o apanhado que fiz nos últimos seis artigos deste blog, não há nada mais emblemático do que houve de abjeto nos sofrimentos impostos à sociedade brasileira nesses últimos 18 meses do que a figura de Eduardo Cunha: um político profissional de carreira corrupta que, por isso mesmo, se fez, à partir do p-MDB, um dos principais articuladores do dispositivo paisano que nos foi legado pela ditadura via Legislativo e coroou essa trajetória sendo eleito por seus pares para a presidência da Câmara Federal, de onde comandou um ataque à Constituição na forma deste golpe em curso contra o mandato popular de uma presidente da República que se confirmou um alvo frágil.

Recebo o afastamento dele da presidência da Câmara com um misto de indiferença, alívio e pesar: indiferença porque há muito tempo ficou claro que Cunha estava perdido; alívio por duas razões: primeiro, porque desde sempre entendi como desastrosa a sua ascensão (cheguei a propor aqui um acerto PT-PSDB para evitar a vitória de Cunha), segundo, porque, por mais enojante que a Câmara continue sem ele, era por demais obsceno tê-lo na presidência dela; e pesar porque o sacrifício de Cunha destina-se a ajudar o assentamento de Temer: condenado há tempos, Cunha durou o necessário para provocar danos com direção certa e, agora, quando sua desenvoltura e cinismo antes atrapalham do que servem ao exercício faccioso dos poderes institucionais, fecha-se o circuito ritual sobre ele.

Tal como a posse de Sarney depois do malogro das diretas-Já, Temer na presidência da República é mais um coroamento coerentemente medíocre para a dinâmica facciosa do nosso Estado de Direito Autoritário, peça fundamental na manutenção da desigualdade. O mercado teria até preferido que Dilma continuasse, mas, diante da ruína do PT, braço fundamental do bloco de poder instituído pelo Real, se viu obrigado a voltar à estaca zero, ao limiar do fim da ditadura, pois vem descobrindo dificuldades crescentes para coordenar uma ordem política profissional que se tornou autônoma a ponto de lhe fugir ao controle.

Ela se tornou autônoma em razão da longevidade e da largueza do fosso da desigualdade que lhe aproveita (de um lado, a política feita nicho, onde se refugiam os que querem escapar da desigualdade; de outro lado, a sociedade, que sofre, em camadas atenuadoras, os efeitos da desigualdade); e ela, a ordem política profissional, foge ao controle do mercado pelo rebaixamento a que chegaram seus próprios representantes: de tanto recrutar os piores e leva-los ao sucesso pela corrupção (no p-MDB, no PT, no PSDB e em seus satélites), as elites estão a descobrir que, cegos pela realização dos próprios desejos de poder e dinheiro, esses representantes se fazem mais e mais incapazes para corresponder aos desígnios dela por uma dominação estável: Cunha é o símbolo máximo dessa besta que, tendo mordido o freio, obrigou todo o sistema a manobras adicionais para fazê-lo útil e, só então, abandonou-o ao mata-burro que todo desembestado acaba por encontrar.

Nunca é demais alertar para que não se veja nessa análise o desenho de uma conspiração pré-ciente, que a tudo engendrou e arranjou em seu favor. Não. No desenrolar de uma conjuntura complexa como a que estamos vivendo, no bojo da qual tem havido toda sorte de conspirações rivais e movimentação social, não há lugar para conspirações totalizantes e, por isso mesmo, o jogo ainda está aberto. A cada passo os atores redefinem suas táticas segundo o transcurso institucional dos fatos e a evolução da opinião pública – em situações assim, não é só que tudo o que cai na rede é peixe; é a rede mesma que se faz ao pescar.

Se observarmos com o devido cuidado o modo de proceder da Lava Jato veremos que há método no caos, e que esse método não foi mentado, mas resulta do jogo miúdo das forças que atuam segundo a ordem da desigualdade. O pêndulo entre celeridade e morosidade que dividia os braços local e federal da operação Lava Jato chega, agora, ao coração do próprio Judiciário Federal: antes havia celeridade contra Lula e morosidade contra Cunha e os demais; uma vez tenha Lula sido batido, agora há celeridade contra Cunha e morosidade com os demais. O beneficiário do jogo é Temer, peça em torno da qual o sistema passou a girar sua ânsia por alcançar o equilíbrio perdido. Nessa nova fase do exercício faccioso dos poderes institucionais, poupar o que resta de Lula de dissabores adicionais poderá se mostrar útil, concessão que não seria senão a outra face desse não menos faccioso descarte total de Cunha, tornado símbolo purgativo, e muito conveniente, do que não presta. Já vai tarde, mas temos que impedir, nas ruas, que da besta se faça um bode expiatório em favor seja da estabilização com Temer, seja de arranjos improvisados para dar sobrevida ao sistema cujo modo de operar ruiu.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 6 DE 6

A alternativa pede você no olho da rua, não de olho na TV

Carlos Novaes, 04 de maio de 2016

 

O domingo é um dia de encenação, suspendem-se os conflitos familiares, adia-se (para segunda-feira) a vigência dos problemas lá fora. Não deve ser por outra razão que a TV reservou para o domingo os programas de entretenimento mais caprichados, com seus homens de palco mais tarimbados, que são transmitidos ao vivo para compor melhor o quadro em que realidade e ficção aparecem na dose certa, isto é, de modo a que a segunda prevaleça sobre a primeira. As performances dominicais são feitas para escamotear o que está em jogo, ainda que elas mesmas sejam expressões da realidade, diluída na teatralização de sentimentos e motivações, não obstante, autênticos. Os deputados gritaram em defesa da família naquele domingo inesquecível porque suas intenções públicas são impublicáveis, não obstante eles tenham como autênticos para si os sentimentos privados que colocaram a serviço da ficção.

A se debater em meio às rotinas propriamente políticas do legado paisano da ditadura, a sociedade brasileira tem nos domingos televisivos rotineiros a reiteração por assim dizer cultural desse legado, não apenas na versão mais retrógrada de um Silvio Santos perturbado, com tiques de déspota senil e aparentemente inofensivo, a simular harmonia familiar enquanto arruína o negócio dela; mas também, e sobretudo, com Fausto Silva, em seu Domingão do Faustão, um programa a que as pessoas assistem não obstante estarem sempre prontas a declarar desapreço pelo apresentador. Qualquer um que venha pesquisando TV profissionalmente sabe que Fausto é visto pelo público como alguém que “não deixa os outros falarem”, sendo frequentemente classificado como “autoritário”, “grosseiro” ou “rude” pelo telespectador que, ainda assim, continua a assisti-lo: abandonado a rotinas, esse telespectador imagina encontrar no palco do “Domingão” a “vida real” do elenco ficcional da Globo; mais ou menos como o eleitor que depois de ter votado para o legislativo segundo rotinas sonhou encontrar na sessão dominical do impeachment um representante à altura dos desafios da hora presente.

Ora, se no “Domingão do Faustão” o telespectador escolhe se distrair da realidade enquanto simula para si mesmo um encontro com ela; no “Domingão do Cunha” o eleitor foi em busca da realidade e não teve como dissimular o encontro com o resultado das suas próprias escolhas distraídas*. O “se vira nos trinta” dos deputados repugnou a todos, mas, como não poderia deixar de ser, embalado que fora pela platéia tola, o show prosseguiu e, agora, estamos às vésperas de repetir a história pela terceira vez: a primeira como tragédia, com Vargas; a segunda como farsa, com Jânio; e a terceira como pornochanchada, com Temer. Vargas morreu em 1954 para evitar um golpe militar, mas só o adiou; Jânio renunciou para dar um golpe paisano, e abriu espaço para o golpe militar de 1964; Temer urdiu um golpe paisano cujo desfecho está em aberto — cabe a nós, nas ruas, pô-lo para fora e iniciar a consolidação de uma democracia que faça dos golpes coisa do passado.

Depois de termos seguido tão de perto o remanchar da conjuntura, marcada, de um lado, pela vivacidade equivocada das ruas e, de outro, pelo exercício faccioso dos recursos de palácio, não há porque apostar no jogo institucional tal como ele se apresenta. Não há lições incrementalistas a tirar desse último golpe. Assim como não iremos enfrentar a desigualdade com uma aposta incrementalista em políticas como o Bolsa Família ou o Minha Casa Minha Vida (por mais que esses programas tenham levado benefícios aos pobres, e levaram); tampouco iremos alcançar a consolidação democrática na forma de um Estado de Direito Democrático com uma aposta incrementalista nas práticas dessas instituições que nos foram legadas pela ditadura paisano-militar (por mais que elas se mostrem melhores do que no período da gestão dos militares), afinal, elas estão a nos conduzir à estaca zero do fim da ditadura: mais uma vez, um vice inconfiável e sem voto (Sarney/Temer) assumiu um governo mambembe do p-MDB voltado a fazer negócios em prol da manutenção do status quo.

Para lutar contra a desigualdade temos de ir além do incrementalismo social, impondo aos muito ricos perdas que se mostrem produtivas para o desenvolvimento da sociedade em seu conjunto; para alcançarmos um Estado de Direito Democrático temos de ir além dos marcos institucionais atuais, diminuindo seu pendor faccioso pelos interesses dos ricos. Para abrir caminho à construção de novas instituições precisamos nos lançar às incertezas da inventividade do nosso povo, chamando-o às urnas em nova eleição para os cargos federais: deputado, senador e presidente. Para realizar essa nova eleição será necessário arrancar do Congresso uma alteração constitucional que permita convoca-la e na qual, talvez, possamos nos livrar dos políticos profissionais que colonizaram a representação, dando fim à reeleição para o Legislativo, nos termos em que já tratei em vários posts neste blog, sobretudo aqui, aqui e aqui.

Um desfecho assim é improvável, mas não impossível, pois está a se abrir uma conjuntura de crise especialmente avessa a acomodações – se só com base na inventividade das ruas consolidaremos a nossa democracia, temos de abandonar nesse chamado todo desenho totalizante para a mudança e, por isso mesmo, o que quer que tenhamos nomeado de socialismo pouco tem a fazer aqui. Se um outro mundo é possível, ele só o será se for outro também em relação aos mundos anteriormente sonhados.

Nota: * – Tratei aqui dessa imbricação convergente, sem estrategista ou conspiração, entre os interesses da Globo e do p-MDB.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 5 DE 6

Saídas tão fajutas quanto a “crise” que visam debelar 

Carlos Novaes, 01 de maio de 2016

Pobre ou rico que seja, o brasileiro tem um hábito velho: falar mal de nós mesmos, de nosso arranjo político, social e econômico, e o faz de um modo tão ácido e auto-depreciativo quanto inócuo para a verdadeira crítica, aquela que resulta em assumir responsabilidades decorrentes do sentimento de tarefa diante da necessidade de superação, que sempre assoma quando realmente se ajuíza os problemas. Caprichamos no auto-deboche enquanto damos às dificuldades um jeitão de intransponíveis; nos fingimos críticos duros para ficar na moleza presumida de quem sabe das coisas, pois a conclusão última de tal sabichão é a de que nada se pode fazer diante do mundo real, como se o mundo político não fosse aquilo que fazemos dele, como se toda imaginação criadora tivesse de ser condenada como excentricidade.

Não é outro o cacoete acionado quando, diante do desfecho mais provável da crise atual, começam a aparecer na mídia expressões pseudo críticas para caracterizar o acordão em curso, tais como “República das bananas”, “democracia bananeira” e outras variedades, não sendo raro que se ornamente essa natureza morta conceitual com a famosa “jabuticaba”, invocada sempre que se quer ridicularizar qualquer movimento da inventividade brasileira para sair dos impasses gerados pela nossa mania de copiar – já é hora de deixarmos a banana e a jabuticaba para trás. Parece mais fecundo encarar que o Brasil é uma democracia com Estado de Direito Autoritário, armação em que não estamos sozinhos — basta olhar, por exemplo, a Rússia, o Peru ou a Turquia, países onde, depois de períodos de ditadura, há eleições diretas e imprensa formalmente livre, acompanhadas do exercício faccioso dos poderes institucionais (corrupção, violação de direitos, descaso social, truculência policial) que caracteriza o Estado de Direito Autoritário sempre que se combina a democracia com a preservação, em favor de minorias muito ricas, de contrastes acentuados na apropriação privada de renda e riqueza, via “livre” mercado.

Talvez a maior evidência do caráter autoritário do Estado de Direito em que transcorre a aventura da nossa democracia não-consolidada seja a crise atual desembocar numa disputa sobre a Constituição, ou seja, como todos estamos a ver, a Constituição não rege a superação da crise, pois tornamos ela mesma elemento da crise: os lados que o impeachment dividiu disputam as bênçãos dela (o debate sobre o golpe); as saídas pensadas para a situação precária de Temer requerem emendas à Constituição, ou renúncia a direito por ela conferido (eleições antecipadas, parlamentarismo, promessa de fim da reeleição presidencial); as ideias em que as opiniões se dividem sobre as ditas “reformas fundamentais” exigirão, por sua vez, em graus variados, alterações constitucionais (desvinculações orçamentárias, direitos sociais, previdência).

Trocando em miúdos, se já não é um bom sinal que uma vez em crise um país se veja levado a debates constitucionais, menos consolidada é a sua democracia quando se vai ao texto constitucional não para consultá-lo, mas para alterá-lo – ainda menos consolidada ela é se essas tentativas de alteração se mostram recorrentes. As coisas ficam mesmo desfavoráveis à consolidação democrática ali onde se fez rotina a luta entre os que pretendem alterar a Constituição e os que simplesmente arregimentam maiorias legislativas facciosas para atropela-la, como estamos a ver no Brasil — aliás, tem sido frequente encontrar na mídia convencional opiniões sobre essa luta que indevidamente tratam como equivalentes as propostas de alterar a Constituição e as iniciativas para atropela-la.

Embora seja verdade que ambas dão prova de que nossa democracia não está consolidada, é forçoso reconhecer que num Estado de Direito Autoritário alterar a Constituição é condição para consolidar a democracia, ao passo que atropelá-la é fazer arma contra ela o autoritarismo de cujo banimento a Constituição deveria ser ela mesma uma prova. Toda proposta de mudança constitucional que não vá à raiz institucional dos nossos problemas é um atropelo à Constituição. Como vimos nos quatro artigos anteriores desta série (que, julgo eu, são melhor compreendidos pelo leitor que leu também a série imediatamente anterior a esta, com dois artigos sobre o golpe), a principal raiz institucional dos nossos problemas é o legado paisano da ditadura ao funcionamento do nosso Legislativo, esse ferramental forjado da, e para a, manutenção da desigualdade. Examinemos as propostas de mudança na ordem política que vem sendo apresentadas no bulevar de ilusões da nossa mídia convencional, tratando primeiro de mudanças e preceitos constitucionais e, em seguida, do âmbito infra-constitucional.

O Parlamentarismo – qualquer proposta de parlamentarismo implica dar mais poder ao Congresso, a este Congresso que está aí. A escolha do chefe de governo passaria a ser indireta. E este chefe de governo formaria seu ministério negociando diretamente com este Congresso que o elegeu. Quem, morando no país dos “anões do orçamento”, acredita que esse arranjo contribuiria para a consolidação da democracia está a um passo de acreditar em duendes, afinal, estaríamos não só removendo o único vetor de mudança de que ainda dispomos, isto é, a eleição direta de um presidente da República para a chefia do governo, como entronizando nesta chefia o legado paisano da ditadura por nós derrubada justamente para podermos eleger o presidente da República! Em outras palavras, adotar o parlamentarismo é resolver contra a democracia a disputa entre o Legislativo e o Executivo de que já falamos nesta série. Isso é tão verdade que, em duas consultas diretas, o eleitorado brasileiro rejeitou amplamente essa forma de governo, pois reconheceu nela um ataque à democracia, não um passo na direção da sua consolidação.

O fim da possibilidade de reeleger o chefe do Executivo – não há qualquer evidência de que a possibilidade de reeleger prefeitos, governadores e presidente venha pondo problemas para a consolidação da democracia. Bem ao contrário, os anos de vigência deste dispositivo deixam claro que ele não deu a ninguém, por si mesmo, garantias de recondução. Se inconveniente há, é na possibilidade da volta intermitente do governante já reeleito, um fator que está a permitir uma ciranda combinada a simular a renovação, como dão exemplo as escolhas recentes para o governo de São Paulo – um tucano sai, mas entra outro, a ser sucedido pelo primeiro. Na verdade, querem o fim da reeleição aqueles que — tendo pressa em poder disputar o comando do orçamento governamental nesse país em que a corrupção se fez rotina, seja em âmbito municipal, estadual ou federal – preferem ter as vagas para o executivo sob exigência de renovação compulsória pelo eleitorado, e enxergam nos membros do próprio partido um obstáculo à realização das suas ambições: por exemplo, como os tucanos que aspiram à presidência já foram governadores e estão, portanto, no final da “carreira”, nenhum deles quer arriscar munir o adversário interno do direito “natural” de disputar a reeleição. Seja como for, está claro que essa mudança constitucional é um atropelo, pois cria tensões à partir de ambições miúdas e não em resposta a demandas da sociedade pela consolidação da democracia.

Nova escolha do presidente da República – a realização de novas eleições presidenciais está prevista na Constituição para o caso de presidente e vice deixarem a presidência antes de cumprida a metade do mandato. Logo, se o TSE cassar a chapa Dilma-Temer por crime eleitoral antes do final do ano teremos novas eleições diretas 90 dias depois. Em caso de a decisão do Judiciário se dar depois de cumprida a metade do mandato, caberá ao Congresso a escolha de um novo presidente. Nenhuma das soluções convém à consolidação da democracia: a primeira porque nos levaria a mais uma eleição solteira, como a de Collor, sem pôr em jogo as cadeiras do Legislativo federal, moradia dos nossos maiores problemas. A segunda porque daria a qualquer maioria facciosa no Legislativo a oportunidade de escolher um presidente conveniente para si. Olhadas segundo a dicotomia Executivo-Legislativo que marca nossa vida política desde a ditadura, essas duas soluções são tão ruins que, inclusive, apontam para resultados opostos: a primeira permite eleger um chefe do Executivo totalmente desligado do Legislativo; a segunda faz o chefe do Executivo sair diretamente de dentro do Legislativo. É como se, a depender do curso do mandato, o eleitorado quisesse mais ou menos democracia. Uma contradição dessas, prevista na própria Constituição, não chega a ser um convite à consolidação da democracia.

Adoção do voto distrital – provavelmente esta é a proposta mais carregada de mistificação quando se pensa na consolidação da democracia. Em primeiro lugar, ela mistifica porque faz acreditar que finalmente iremos enfrentar o problema principal, o Legislativo; em segundo lugar, há mistificação porque indica que o problema estaria na forma de eleger o parlamentar, não na conduta do parlamentar depois de eleito. Em terceiro lugar, ela mistifica porque espera que, eleito pelo distrito, o parlamentar, “confinado” a um território, vá ficar mais sujeito ao crivo do eleitor e, assim, mudar sua conduta (se fosse assim, as Câmaras de Vereadores de cidades pequenas seriam um primor de virtudes republicanas e não os antros de negociatas e enriquecimento que todos conhecemos). Ora, essa esperança é vã porque: (a) no interior dos estados os distritos serão enormes, reunindo vários municípios. Não haverá, portanto, a simpática figura imaginada por Delfim Netto em artigo recente (um primor de cientificismo institucional sem qualquer base material): a esposa do deputado indo ao salão de beleza do seu distrito – por mais eficaz que alguém possa achar essa singela interação social, qualquer um que já tenha feito simulações de distritos com base nos números e na dispersão geográfica do nosso eleitorado sabe que será impossível haver o salão de beleza do distrito, serão muitos. A esperança de proximidade eleitor-eleito no distrito é vã também porque (b) na maioria das capitais e nas grandes cidades, a subdivisão vai gerar distritos que, por si só, serão maiores do que os redutos, serão densamente povoados (com mais de um salão de beleza, garanto) e, por isso mesmo, tampouco permitirão ao eleitor controlar “seu” deputado, seja em razão de, nessas conurbações, não haver necessidade de despachantes em Brasília, seja porque com o voto distrital se esmagará o chamado voto de opinião, característica dessa áreas densamente povoadas – afinal, não se pode tratar como temas de vizinhança a opinião sobre o aborto, a pena de morte, o presidencialismo, o ensino de religião nas escolas, o casamento gay, etc. Em quarto lugar, há mistificação quando, até por não saber do que está falando, o defensor do voto distrital omite que sua adoção exigiria rever, para, no mínimo, tornar múltiplos entre si, o número de deputados federais e/ou estaduais do país, pois vamos ter que ter desenhos distritais compatíveis para os dois cargos em cada estado, sob pena de cidadãos pertencerem a distritos disparatados – prático e realista, não? Em suma, ao invés de contribuir para a consolidação da democracia, o voto distrital criaria novos problemas e baniria da disputa do Legislativo os representantes do voto de opinião, justamente aquele mais afeito à mudança. (Para maiores esclarecimentos sobre o voto distrital, ver aqui e aqui).

Financiamento público de campanhas eleitorais – como já foi dito detalhadamente aqui, se aprovado, esse financiamento daria o paraíso aos políticos, sem que eles precisassem morrer. Para consolidar nossa democracia precisamos aumentar o vínculo entre eleitor e eleito. Parece claro que se o político já tiver garantido o dinheiro público para a campanha, não irá precisar correr atrás do dinheiro do eleitor, ficando ainda mais independente dele. Temos de obrigar os políticos a pedirem dinheiro ao cidadão e às empresas, mas estabelecendo rigorosos tetos iguais (digamos, no máximo 100 mil reais, seja para indivíduos, seja para empresas). Ou seja, o problema não está no financiamento privado legal, mas no volumoso dinheiro ilegal que, obtido da corrupção público-privada, jorra do estado, via empresas, para as campanhas eleitorais na forma de “restos a pagar” (pois o dinheiro grosso não vai para campanhas, mas sim para o enriquecimento ilícito dos envolvidos, como já discuti aqui).

Todos esses exemplos de mudança no texto constitucional ou na norma legal infra-constitucional deixam claro duas coisas: primeiro, uma democracia que requer mudanças dessa ordem não pode estar consolidada, ou seja, vivemos sob um Estado de Direito Autoritário; segundo, e precisamente em razão dessa não-consolidação, todas as mudanças mais citadas visam fortalecer o Legislativo no que ele tem de pior: o poder de impedir a mudança e, assim, de solapar o enfrentamento da desigualdade, enfrentamento que é indispensável à consolidação da nossa democracia e ao desenvolvimento do país. Não foi à toa, portanto, que o domingo inesquecível do triunfo da reação tenha se dado no cinquentenário do p-MDB, o partido de Temer, o partido fiador da desigualdade, em torno do qual simulam polarização as duas forças políticas que, ao abrirem mão da luta contra essa mesma desigualdade, se tornaram igualmente irrelevantes para a consolidação da democracia brasileira, o PSDB e o PT — não obstante esses partidos só tenham alcançado acolhimento na opinião pública precisamente porque, lá atrás, se disseram inspirados pelas duas vertentes tradicionais daquela luta, a social-democracia e o socialismo. Ou seja, a sociedade brasileira precisa refletir sobre essa reiterada frustração/traição de suas escolhas pela mudança e tirar dessa reflexão as consequências correspondentes, que podem ser resumidas assim: chega dos mesmos!