UM EQUÍVOCO E TRÊS BESTEIRAS

Carlos Novaes, 11 de outubro de 2018

Nas linhas a seguir, vou tentar deixar mais claro meu ponto de vista sobre o que se passa fazendo o comentário tanto do que acaba de ser dito por quem começa a se aproximar do que venho dizendo há meses, quanto das três besteiras mais notórias que encontrei hoje na mídia convencional.

O EQUÍVOCO

Li na internet artigo do professor Marcos Nobre publicado ontem pela revista Piauí. Qualquer um que venha lendo este blog desde 2016 não pode deixar de reconhecer que Nobre está a um passo de entender que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Vejamos dois pedaços do que ele diz:

“[Precisamos de] uma frente de reconstrução institucional com uma multidão de figuras do mundo da internet, da indústria, dos novos coletivos sociais, da finança, da cultura, do agronegócio, de ONGs, da televisão e de tantos outros lugares. Onde quer que exista repulsa, ojeriza ou alguma restrição a Bolsonaro, aí tem de estar a candidatura de Haddad, pronta a acolher energia e apoios. Ou, quando não for possível, pedindo ao menos neutralidade”. (Nobre fala como se tivéssemos seis meses pela frente…).

Mais adiante, de novo:

“[Tarefa para] uma ampla frente de pessoas, organizações, instituições, partidos, grupos e movimentos preocupados com a reconstrução institucional da democracia. A impressão de que estamos de volta à década de 80, aos primórdios da redemocratização, tem algo de real. Porque estamos de fato em um momento de refundação institucional”.

Nobre está prisioneiro de uma contradição fundamental porque identifica o desafio sem encontrar-lhe a raiz, deficiência que o leva a enxergar como resposta a origem do próprio problema que aparece como desafio. Veja bem, leitor:

O desafio: “a reconstrução institucional da democracia”. Ora, o que é isso senão (re)construir instituições, ou seja, buscar um Estado compatível com a democracia? Nobre está a reconhecer que as instituições (o Estado), não são compatíveis com a democracia e precisam de reconstrução – ele não diz, mas uma situação assim é a própria crise de legitimação de que me ocupo há cerca de dois anos, em longas e detalhadas explicações.

Como esse Estado compatível com a democracia nunca foi alcançado nesses trinta anos, não se trata de (re)construção, mas de constatar que jamais houve um Estado democrático de direito. Nobre tem diante de si a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, mas como ele supõe, junto com legiões de outros cegos, que a reconquista das franquias democráticas lá nos anos 80 nos trouxe, por si só, um Estado compatível com elas, na hora da crise de legitimação desse Estado, fica a apelar para a união das mesmas forças que nos conduziram a ela, instando-as a reconstruírem o que jamais existiu!

Nobre está a reconhecer (finalmente!) que as tais “sólidas instituições democráticas” precisam ser nada menos do que “reconstruídas”, precisamente porque a maioria da sociedade não as reconhece, conjunto que escancara não uma crise institucional de um suposto Estado democrático de direito, mas a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Nobre não entende que a situação é ainda pior do que só estarmos de volta aos primórdios da redemocratização (uma ideia que já explorei aqui). Não. Estamos, sim, de volta, e a um só tempo, aos primórdios da redemocratização e aos primórdios de 64: temos uma ressaca de 1964 depois de um fracasso da redemocratização de 1988!

Nesses trinta anos, em razão do protagonismo de uma polarização fajuta entre PSDB e PT, a redemocratização da vida em sociedade recebeu por cima um Estado de Direito Autoritário contrário a ela, saído do legado da ditadura paisano-militar de 64, através do qual todos os grandes partidos (e a imensa maioria dos pequenos) se tornaram sócios do exercício faccioso dos poderes institucionais, ocupados em reunir poder para fazer dinheiro.

A crise desse arranjo levou a uma crise de legitimação do Estado, que aparece nessa revolta contra o sistema (urgência por ordem), em meio à qual se criou essa vigarice autoritária que Bolsonaro representa, uma vigarice que não poderá ser derrotada com a vigarice “democrática” dos mesmos de sempre!

Diante de um desafio desse tamanho, posto na forma de uma crise tão profunda, Nobre ainda insiste num “pacto de salvação institucional”, e pondo suas fichas no PT, a quem dirige apelos! Não há o que salvar no plano institucional, como digo faz tempo. Temos de nos concentrar em preservar o máximo das franquias democráticas propondo um outro Estado, não a salvação desse que está aí — foi por não entender isso que, por exemplo, Ciro perdeu a oportunidade de se tornar um candidato viável nesta eleição.

AS TRÊS BESTEIRAS

Diante do cinismo de Bolsonaro ante a violência crescente de seus adeptos, um articulista “sensato” fez a seguinte ponderação em artigo que denuncia a própria impotência intelectual e política:

  1. “Bolsonaro deixa de exercer papel de líder diante da intolerância”, na Folha de S.Paulo, em 11/10.

Como já expliquei aqui, Bolsonaro não foi, não é e não será líder de coisa alguma. Ele é um fenômeno novo justamente por isso: ele é a marionete das massas. Logo, reclamar que ele não se coloque contra a violência dos seus adeptos, ficar desapontado com o fato de ele dizer que o assassinato a facadas de um eleitor adversário foi um “excesso”, é simplesmente não entender a natureza da insânia que está em curso. Bolsonaro não pode se contrapor ao vetor mais profundo de onde ele próprio emergiu e do qual ele é instrumento, não líder.

Diante da irremediável polarização eleitoral desde o primeiro turno, vários doutos puseram-se de acordo em torno da seguinte “explicação”:

  1. “A causa das altas rejeições de Bolsonaro e Haddad é a polarização da sociedade”, no UOL, em 11/10.

Como é que alguém pode dizer uma besteira dessas e ainda encontrar quem publique, e numa edição caprichada?! Quem diz um troço desses não consegue entender o básico: a rejeição alta e a polarização exacerbada são modos de aparecer de um mesmo fenômeno e uma não pode explicar a outra, ambas foram sendo construídas na medida em que o fenômeno se dava. O fenômeno é a aglutinação paulatina da população em duas demandas de resposta à crise: os que enxergam a crise como uma urgência social e os que enxergam a crise como uma urgência por ordem. Uma polarização fajuta que não cabe nos simplismos de esquerdaXdireita e, por isso mesmo, não permitiu a saída manjada via um centro supostamente virtuoso, como inutilmente tentaram todos os candidatos cegados pela reunião de oportunismo político com mediocridade intelectual, de quem o eleitorado, merecidamente, fez pó.

Diante da pequena margem de manobra deixada por um primeiro turno em que já houve um início de segundo turno, há quem se saia com essa:

  1. “Haddad e Bolsonaro precisarão construir uma lógica discursiva mais ao centro para conquistar os 50% dos votos mais um”, no UOL, em 11/10.

Bolsonaro já ultrapassou os 50% sem a construção dessa “lógica discursiva mais ao centro”… O mais provável é que sua votação diminua se cair no logro dessa tal lógica, que parece tão sensata numa eleição convencional. No caso de Haddad, o absurdo dessa tal lógica não é menor, afinal, a rejeição dele não está numa proposta petista supostamente radical (ela não existe há décadas!), mas no que sua candidatura simboliza – para além do que as pessoas possam conseguir verbalizar, Haddad, no fundo, simboliza o establishment, o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação.

Por isso mesmo, nada mais contraproducente (e mais inescapável!) do que ele se empenhar para poder se apresentar com o apoio dos outros representantes do establishment nessa eleição. Haddad vai acabar apresentando, mesmo, a cara do que de fato também é: a alternativa do blocão faccioso (prova disso está na movimentação que já reúne o Centrão e o PT para reconduzir Maia à presidência da Câmara como contraponto a Bolsonaro na presidência da República – é, leitor, quem tem juízo não pode deixar de ver que estamos, mesmo, sem alternativa e, por isso, o voto em Haddad só chega a se justificar para evitar o mal maior, mas não vai resolver nada, só vai adiar o desenlace).

Para terminar, permitam-me voltar a uma sentença do professor Marcos Nobre:

“como em todo momento inaugural, as chances de dar muito errado são muito maiores do que em qualquer outro momento.”

Para além do fato de que isso é só mais uma frase, ele está a chamar de “momento inaugural” algo que ele próprio acabou de descrever como uma defensiva reação (re)construtiva… Ora, inaugural é termo que se usa para quando nasce o novo, não para quando o velho tenta permanecer (e através do PT!), por mais que essa permanência se contraponha, como é o caso, à escuridão. Há que se debruçar diligentemente sobre o velho para saber como nasce o novo, descoberta que, em geral, indicará que o novo só poderá nascer de outro modo, mesmo.

ELEIÇÃO EM PROSA E VERSO

07 de outubro de 2018

 

“O DIABO NA RUA, NO MEIO DO REDEMOINHO…”

[…]

“E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo — e a tristeza em crú — sem se saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.

[…]

Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se fôr… Existe é homem humano. Travessia.”

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No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

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  • A primeira parte do post traz três momentos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: a epígrafe do romance e, em seguida, duas orações, uma extraída bem do meio dele, num trecho de travessia na leitura; a outra é a última frase do livro (obedeci a grafia da primeira edição, de 1956).
  • Na segunda parte do post, um poema de Carlos Drummond de Andrade, que apareceu no primeiro livro publicado pelo poeta, Alguma Poesia, em 1930.

VOTAR PARA DEFENDER A DEMOCRACIA; NÃO ESTE ESTADO DE DIREITO

Carlos Novaes, 06 de outubro de 2018

 

Não obstante a vida política no Brasil transcorra sob a vigência de franquias próprias da democracia, tais como o direito de voto livre e universal e as liberdades de imprensa, opinião, religião, reunião, manifestação, organização e associação, nosso Estado de direito — embora obedeça aquelas franquias, e chegue a atuar em conexão com elas em muitos aspectos –, está orientado, no direito e/ou na prática, para conferir prerrogativas, favorecer privilégios e permitir abusos de autoridade que estão em desacordo frontal com a máxima de que “todos são iguais perante a lei”. Essa máxima resume a contrapartida propriamente estatal ao exercício da vontade popular livre para escolher como opinar, como se associar, como se manifestar e como ser governada.

Se a contrapartida estatal à vontade popular não faz uma tradução cabal do sentido das franquias democráticas para a ordem institucional, não há democracia consolidada e o Estado de direito resultante não é um Estado democrático de direito. Entendo que há no Brasil um Estado de Direito AutoritárioEDA, marcado por uma assimetria que leva, no curso do tempo, a um contraste crescente entre, de um lado, a inclinação dos hierarcas do Estado para defenderem e estenderem seus privilégios e prerrogativas, bem como perseverar nos (e, até, intensificar os) abusos de autoridade; e, de outro lado, a tendência não menos crescente da maioria da sociedade para identificar como danoso contra si o exercício desses privilégios, prerrogativas e abusos, conjunto de práticas que reuni sob o nome de exercício faccioso dos poderes institucionais. Esse “faccioso” tem aqui dois sentidos:

  • faccioso porque separa o que não deveria ser separado: os interesses de quem ocupa os postos de Estado e os interesses da maioria da sociedade;
  • faccioso porque se dá, no corpo do Estado, segundo uma dinâmica ela mesma feita de arranjos entre facções estatais, ou seja, grupos de interesse que, uns contra os outros, se fazem e desfazem ao sabor das disputas em torno do que lhes parece vantajoso.

Esse divórcio atual entre o Estado e a maioria da sociedade decorre fundamentalmente da desigualdade por duas razões principais:

  • primeiro, porque o Estado tem sido desde sempre no Brasil um instrumento dos ricos para carrear para si o máximo da riqueza produzida, deixando ao restante da sociedade só o necessário para que o país perdure (é esse o resultado de um Estado cuja origem primordial foi organizar a escravidão como negócio para outros negócios);
  • segundo, porque uma máquina estatal assim voltada à manutenção (quando não ao fomento) da desigualdade forma ou recruta os seus funcionários em troca de remuneração e distinção ofertadas sempre acima da média alcançada pelo cidadão na vida privada, o que só pode levar ao descolamento reiterado entre os interesses desses dois segmentos – no Brasil, entrar para o serviço público é, e sempre foi, uma maneira de contornar ou compensar o que há de mais agudo na desigualdade (é disso que vivem os cursinhos preparatórios para os concursos aos cobiçados empregos públicos).

Em outras palavras, na contraposição entre o Estado e a sociedade no Brasil, o Estado é instrumento tanto dos interesses dos ricos quanto do interesse dos seus funcionários estáveis ou de confiança, segundo uma escala de rendimentos, privilégios, prerrogativas e poderes que crescem segundo o lugar ocupado seja na pirâmide da riqueza, seja na hierarquia estatal. Os muito ricos no chamado Mercado se articulam com os muito poderosos no Estado seja para se assegurarem da permanência da dominação, seja para garantirem grandes negócios.

Como os muito poderosos do Estado são, em sua maior parte, escolhidos pelo voto popular, as facções estatais voltadas aos cargos cujo provimento se dá pelo voto popular têm nas eleições seu teatro de disputas; como eleições custam dinheiro, elas buscam o apoio dos ricos e, assim, a roda gira sem sair do lugar – foi por isso que Lula se gabou, com toda justiça, de que em seus governos os ricos ganharam dinheiro como nunca antes.

Num arranjo desses, os partidos são fachadas para facções de interesse e podem se aliar das maneiras mais variadas a cada eleição e, especialmente, no intervalo entre elas, pois o que importa é reunir poder para fazer dinheiro. Essas facções partidárias não se limitam aos partidos em si, mas têm conexões em toda a burocracia estatal, reunindo em seu jogo incessante gente pertencente a todos os três poderes do Estado de Direito Autoritário-EDA.

Sendo uma disputa por poder para fazer dinheiro, as desavenças são reais e podem se tornar acerbas, levando a impasses de gerenciamento. Em seu limite máximo, esses impasses têm sido “resolvidos” via impeachment, trauma institucional motivado não pelos interesses da maioria da sociedade, mas pelos interesses das facções estatais. As polarizações políticas que levaram aos dois impeachments recentes, embora reais no jogo entre facções, são totalmente fajutas no que diz respeito aos interesses da maioria da sociedade que, não obstante, tem se deixado levar e aderido a alinhamentos totalmente contraproducentes, como veio sendo o caso da disputa entre PSDB e PT.

A falência do pacto do Real, que estruturava o joguinho entre PSDB e PT, levou à ruína todo o arranjo porque já não há rota de fuga que permita combinar uma desigualdade tão grande com as franquias democráticas, pois os descontentes com o arranjo já não são apenas os muito pobres, contra os quais sempre se mobilizou o abuso de autoridade – isso ficou claro com a reação da opinião pública quando Alckmin jogou sua polícia contra os manifestantes de junho de 2013. A partir de 2013 veio ficando mais e mais claro o divórcio entre o Estado de Direito Autoritário-EDA (que define tarifas e emprega a força policial) e o uso das franquias democráticas pela sociedade.

A crise brasileira atual é a exibição plena do esgarçamento máximo da relação entre o EDA e a maioria da sociedade: o EDA foi desnudado em toda a sua podridão, se conflagrou numa guerra de facções estatais que se segmentou em todos os três poderes, e entrou numa crise de legitimação que se tornou visível ao observador atento porque a sociedade passou a expressar, via exercício das franquias democráticas, toda a sua revolta, que aparece na forma de duas urgências, uma urgência social e uma urgência por ordem.

Inteiramente integrados a esse EDA, seja porque o forjaram, seja porque nasceram dele, os partidos políticos não estão em condições de apresentar uma alternativa transformadora que integre as duas urgências que motivam a revolta da maioria da sociedade contra esse mesmo EDA. Vivendo a desorientação correspondente ao fato de ainda preferir alguma dessas forças políticas obsoletas (que, por isso mesmo, não sobreviverão à eleição), a maioria da sociedade não tem enxergado essas urgências como articuladas entre si e, muito menos, como decorrências da desigualdade. Os mais extremados entre os que têm preferência pela ordem propagam o preconceito de que a ordem deve ser posta contra o social, visto como demanda de vagabundo; em contrapartida, os mais extremados dentre os que demandam políticas sociais difundem o estigma de que quem pede ordem é fascista.

Dessa polarização fajuta se beneficiam Haddad e Bolsonaro, precisamente porque se nenhum dos dois pode integrar as duas urgências, cada um deles pode se apresentar como o campeão fajuto de uma das pernas do problema nacional: Haddad está cercado de ladrões e corporativistas, mas exibe políticas sociais compensatórias; Bolsonaro está cercado de reacionários neo-liberais, mas exibe o fervor pela ordem oferecida pelos cemitérios.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, os autointitulados defensores da temperança, os centristas, trouxeram para o meio da disputa a ideia de que a crise estaria a colocar em perigo um suposto Estado democrático de direito. Com isso, têm ajudado a separar as duas urgências, pois ora pretendem convencer os que já se revoltaram contra o sistema de que esse EDA presta, ora censuram como radicais os distributivistas que, não obstante os bons sentimentos, insistem em empurrar uma vanguarda que há muito arriou suas bandeiras.

Sem saída transformadora e a menos de 24 horas de conhecermos o resultado de uma eleição presidencial sem esperança, só nos resta tentar evitar o pior, nos termos do artigo imediatamente anterior.

UM VOTO PARA PRESERVAR MEIOS DE CONTESTAR O ELEITO

Carlos Novaes, 04 de outubro de 2018

 

Por mais incerta que seja a situação eleitoral, salvo acontecimento extraordinário, que não está no horizonte, haverá segundo turno para a escolha do próximo presidente da República, e ele será disputado entre Haddad e Bolsonaro — e isso porque essas duas candidaturas polarizaram de vez a disputa e concentraram as incertezas na contraposição das suas respectivas rejeições. Trata-se de escolher o mal menor; vai ganhar não o preferido, mas o que for menos rejeitado.

Do ponto de vista do eleitor médio, o Brasil tem duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, urgências que se materializam na revolta contra a desigualdade e na revolta contra o sistema, como tentei desenhar nos quatro artigos de série recente, iniciada aqui. Nessas revoltas, os desafios principais são, pelo lado social, emprego, saúde e educação; pelo lado da ordem, a bandidagem de Estado, especialmente a corrupção, e a bandidagem de rua, especialmente o tráfico de drogas e armas.

Como nenhuma candidatura apresentou alternativa crível para enfrentar esse conjunto de problemas, a disputa se cristalizou numa polarização contraproducente entre o social e a ordem: um lado se apresenta como o campeão do social, o outro se diz o campeão da ordem, sendo que:

  • Bolsonaro não oferece nenhuma perspectiva para a urgência social, antes pelo contrário, dá seguidas indicações de que um governo seu levará o Brasil a regredir nessa matéria, a menos que se acredite que um ultra-liberalismo que não deu certo em país nenhum do mundo vá criar no Brasil os empregos que nossa gente precisa ou sirva de garantia para a continuidade dos programas compensatórios existentes ou mesmo para direitos trabalhistas há muito conquistados, com 130 salário, adicional de férias e outros.
  • Haddad não oferece nenhuma perspectiva para a urgência por ordem, pois, pelo lado da bandidagem de Estado, embora seja pessoalmente honrado, está vinculado a governos que, de um lado, organizaram e deixaram que se organizassem sofisticados esquemas de corrupção e, por outro lado, foram governos muito afeitos à acomodação com os privilégios dos hierarcas do serviço público; já pelo lado da bandidagem de rua, os governos petistas não oferecem precedente no enfrentamento do problema.

As limitações acima explicam parte da rejeição de cada um dos dois candidatos, mas se colocarmos uma contra a outra não temos como decidir.

Passemos à avaliação da consistência e desejabilidade do que Haddad e Bolsonaro oferecem ali onde são tidos, por seus mais ferrenhos defensores, como campeões:

  • Haddad é apresentado como campeão no social, o que não é verdade, pois embora o lulopetismo tenha uma marca na geração de empregos e na aplicação de medidas compensatórias, não foram políticas nem sustentáveis nem duradouras porque, além de outros erros, deixaram de fora o essencial: a estrutura tributária, da qual depende o enfrentamento da desigualdade. Entretanto, mesmo sob essas limitações severas, não chega a ser indesejável que um eventual governo seu mantenha o que já existe, desde que não ameace as franquias democráticas que nos permitirão contestá-lo e lutar por outras alternativas, a começar pela inadiável batalha da Previdência.
  • Bolsonaro apresenta propostas para alcançar a ordem que não são consistentes porque nem há razão para supor que sua associação com o que há de pior no Congresso (bancadas BBB e Centrão) vá patrocinar o combate ao banditismo de Estado, aos privilégios dos hierarcas do serviço público e aos abusos das facções policiais violentas; nem se pode considerar que sua proposta de armar o cidadão possa resultar num efetivo combate ao banditismo de rua. Ademais, e sobretudo, o que Bolsonaro propõe como ideário de ordem, cravejado de preconceitos e desconsideração contra quem pensa, age e vive diferente, não é desejável porque só pode ser alcançado suprimindo total ou parcialmente as franquias democráticas com que a maioria da sociedade brasileira ainda conta para trocar ideias, se manifestar, se organizar e agir contra a desigualdade e a desordem, que vão estar na ordem do dia no debate sobre a inadiável reforma da Previdência.

A polarização Haddad-Bolsonaro se dá com base nas rejeições deles porque ela esconde uma outra, da qual nem todos estão conscientes, mas que ganha forma num plebiscito em que todos iremos votar: ou o representante de forças facciosas que puseram as franquias democráticas a serviço de obter poder para defender principalmente os seus próprios interesses; ou o representante de forças que pretendem diminuir ou suprimir as franquias democráticas para garantirem um exercício ainda mais faccioso dos poderes institucionais, a começar pelo voto livre, que dizem fraudado se não lhes der a vitória.

Entre Haddad e Bolsonaro, o mal menor é Haddad.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 4 DE 4

BOLSONARO VOLTA AO POSTO DE CAPITÃO, O CAPITÃO NASCIMENTO

Carlos Novaes, 03 de outubro de 2018 — 04:37h

 

Em 11 de setembro de 2010 fiz palestra em Seminário realizado para os alunos do curso de cinema da FAAP, na qual analisei o sucesso de público dos filmes Dois Filhos de Francisco e Tropa de Elite (participava da mesa comigo Mara Kotscho, roteirista de Dois Filhos, estando na platéia o roteirista do Tropa). Desenvolvi minha análise a partir do que já via como central para o sucesso de cada um dos filmes: Dois Filhos de Francisco dialoga, a contrapelo, com a figura do pai-ausente, tão comum nos extratos populares; Tropa de Elite dialoga com a ânsia por um princípio de ordem em meio à esculhambação e à balbúrdia — o sucesso dos dois filmes convergia para uma afeição autoritária, em favor do pai arbitral e rompedor de caminhos.

Os anos se passaram, vim desenvolvendo o diagnóstico da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário e chegamos às eleições de 2018, com os debates na TV entre os candidatos à presidência. Dos até aqui realizados, achei o mais recente, o da Record, perturbador. É que notei, entre os demais candidatos presentes, um desconforto generalizado diante da atuação do Cabo Daciolo; foi como se ninguém tivesse resposta para a verdade profunda que ele trazia à tona.

Os dias vieram passando e foi ficando cada vez mais difícil enquadrar aquela atuação do Cabo Daciolo sob o mero registro do folclore, ou melhor, constatei que ela só pode ser vista como folclórica num sentido muito profundo do que é o folclore: ela vai se revelando profética. O policial militar evangélico, com a Bíblia na mão, fez a síntese do momento histórico e anunciou os novos tempos: todos os outros candidatos ali presentes representam o status quo e estão aquém das tarefas exigidas pelos sofrimentos da maioria da sociedade.

A crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário finalmente veio a furo, e da pior maneira: favorecendo uma variante ainda mais autoritária, precisamente porque amputada da revolta contra a desigualdade, ainda que essa nova variante autoritária esteja a crescer precisamente porque passou a receber o apoio das emoções mais autênticas de quem mais sofre a desigualdade, como mostram os números da pesquisa DataFolha mais recente, nos quais, entre outras movimentações, se vê as mulheres pobres evangélicas sendo engolfadas pela onda Bolsonaro — mais uma vez, a desigualdade vai sendo posta a serviço da própria continuação.

Não vai faltar quem veja nessa onda uma revolta antilulista e/ou antipetista, como se uma movimentação tectônica pudesse ser explicada pelos ventos que varrem a superfície do fenômeno. Uma revolta por ordem contra uma ordem em crise sempre precisa de um fio condutor. Assim como a ascensão do nazismo não se deveu ao antissemitismo; também a ascensão do capitão Nascimento não pode ser explicada pelo antipetismo. Lula entra nessa história como o Judas indispensável a essas situações.

Em 16 de setembro de 2016, escrevi neste blog o artigo Consolidação do Autoritarismono qual, entre outras coisas, perguntava se o leitor poderia conceber coisa pior do que assistir a uma ascensão de Alckmin à testa de

um retrocesso no marco legal da vida político-social (com a correspondente gestão reacionária e fraudulenta dos recursos do Estado) e com a intensificação do arbítrio policial (com o apoio da religiosidade reacionária), tudo amarrado numa nova solda eleitoral do entulho autoritário (p-MDB + PM, com o beneplácito garantidor das Forças Armadas, cada vez mais “prestigiadas”).

Estamos a ver que nada é tão ruim que não possa se fazer pior.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 3 DE 4

UM PLEBISCITO FUNESTO

Carlos Novaes, 02 de outubro de 2018

 

Ao contrário das eleições presidenciais anteriores, o emocionalismo que marca o início de toda eleição não só não está cedendo lugar à razão, como parece ganhar terreno contra ela. Por que?

Um motivo seria a conexão que tenho explorado em posts recentes, especialmente nesta série de que este é o terceiro: a revolta contra o sistema, sem a compreensão de que ela deveria se juntar com a revolta contra a desigualdade, leva a uma polarização entre as duas e, com isso, se instala um nós contra eles típico de programas de auditório, onde vale tudo que o animador/ditador deixar. Como a disputa é justamente para escolher o animador/ditador, a emoção não cede.

Mas penduremos os dados de outro modo no varal do juízo: e se parte desse emocionalismo estiver orientado pela razão, e se parte dessa emoção for apenas a forma entusiasmada da razão?

Tenho insistido em apontar que estamos cara-a-cara com uma crise de legitimação do Estado de direito no Brasil. E o Estado de direito que está em crise é o Estado de Direito Autoritário saído das lutas contra o Estado ditatorial instalado com o golpe paisano-militar de 1964. Essa circunstância levou a imensa maioria dos autointitulados democratas, bem como a da autointitulada esquerda, a cerrarem fileiras na defesa desse Estado, pois ele é a tradução de tudo o que eles fizeram nesses 30 anos — o Estado de direito em crise de legitimação é obra deles e eles são muito afeiçoados ao resultado das suas escolhas.

Mas se esse Estado de direito está em crise de legitimação, defende-lo é um caminho para a derrota, pois não há como sustentar uma ilegitimidade se ela já tiver sido identificada por aqueles que a sofrem. E é aqui que eu começo a rever aspecto central da minha análise: há uma parte da sociedade que já identificou a ilegitimidade do Estado e, por isso, mais e mais se volta para a única candidatura presidencial que propõe a derrubada desse Estado de direito ilegítimo: Bolsonaro — a catástrofe é que ele propõe um Estado ditatorial.

Dessa perspectiva, todas as outras candidaturas estão do lado errado, pois todas elas defendem o Estado de direito em crise de legitimação:

  • Haddad não faz autocrítica; não trata do sistema político corrupto, insistindo em persuadir os revoltados contra esse Estado de direito que a solução é uma volta ao passado (“feliz”!!) que construiu a ilegitimidade!
  • Alckmin é a face siamesa de Haddad, entre outras coisas porque atualiza a polarização fajuta entre PSDB e PT, uma polarização fajuta que está no cerne da crise de legitimação do Estado de direito, como já expliquei em vários posts anteriores.
  • Ciro faz uma campanha em que através de palavões e ofensas se apresenta como o candidato da pacificação sob esse Estado de direito em crise de legitimação. Ciro é o bipolar da polarização propondo a pacificação! (como diria o macaco Simão, a atuação dele é psicodélica).
  • Marina, depois de uma campanha reacionária em 2014, de apoiar tudo que deu errado nos anos seguintes (Aécio e o golpe do impeachment), e de ficar em silêncio ante situações de gravidade variada (de desastre ambiental a falas de general), se agarrou, claro, à defesa desse Estado de direito em crise de legitimação, endossando toda decisão emanada da Lava-Jato e das “instituições democráticas”, por mais arbitrárias que fossem — sem perceber, Marina passou da irrelevância para a condição de detalhe em meio àquilo que precisa ser vencido.

Como nenhum deles ofereceu uma alternativa transformadora, ou seja, uma alternativa que recusando esse Estado de Direito Autoritário propusesse um Estado de Direito Democrático; como todos eles entendem que o racional é defender um Estado de direito que aos olhos de muitos é indefensável, Bolsonaro está a avançar sozinho na avenida que se abriu em meio à maioria enraivecida: é o único candidato que se orienta pela crise de legitimação do Estado de direito, propondo outro Estado, totalmente diferente do atual. Dessa perspectiva, seus eleitores fizeram da emoção o papel de embrulho de um pacote racional: livrar o país de um Estado de direito que não presta.

Mas como o Estado de direito do Brasil não está em crise em razão das franquias democráticas que embutiu, a saída Bolsonaro não presta — se não se quiser olhar para a trajetória democrática da sociedade nesses 30 anos, que ao menos olhe-se para a apoteose democrática dessa campanha eleitoral, onde contingentes imensos vêm ganhando as ruas ainda sem nenhum incidente grave ( a possibilidade de ocorrerem agressões está inscrita não na democracia, mas no fato de que parte dos manifestantes ganha as ruas para exigir um Estado em que ninguém mais possa sair a elas…).

O Estado de direito do Brasil está em crise em razão das injustiças, dos vícios e das arbitrariedades que trouxe da ditadura, mas isso nenhum dos candidatos que defendem a “união nacional” pode reconhecer, pois foram eles que construíram essa engenhoca.

A desgraça dos alinhamentos eleitorais que essa situação produziu é essa polarização fajuta na forma de um plebiscito. Mas não um plebiscito entre Lula e o anti-Lula (Bolsonaro), como quer o marqueteiro dos marqueteiros, mas algo muito pior: um plebiscito entre o status quo (as facções estatais em guerra pela hegemonia no Estado de Direito Autoritário) e a regressão autoritária antissistema, na forma de um Estado ditatorial ou, no mínimo, ainda mais arbitrário. Dessa perspectiva, as manifestações do EleNão podem ter reforçado Bolsonaro, pois colocaram todos os que a ele se opõem num saco só, como defensores desse Estado ilegítimo — e na defensiva, o que é péssimo para o moral em situações conflagradas.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 2 DE 4

ESSA COZINHA NOS PREPAROU UM PRATO-FEITO INDIGESTO

Carlos Novaes, 29 de setembro de 2018

[com acréscimo às 19:25h, em Fica o Registro]

No artigo anterior vimos a origem do Estado de Direito Autoritário que infelicita o Brasil, bem como mostramos que, ao não enxergar que está a viver a crise de legitimação dele, a maioria da sociedade brasileira se deixou levar para uma falsa polarização entre suas duas legítimas urgências máximas: a urgência social (revolta contra a desigualdade) e a urgência por ordem (revolta anti-sistema).

Essa polarização é falsa por duas razões fundamentais:

  1. a urgência social só é urgência porque a desigualdade não atinge desfavoravelmente apenas aos mais pobres, antes emperra toda a estrutura social em que os pobres e as camadas médias têm seu potencial criador represado numa ordem que privilegia os ricos e impede todos os demais de serem recompensados pelo que poderiam realizar;
  2. não haverá ordem se a desigualdade não for enfrentada em benefício dos pobres e das camadas médias; e não haverá solução social eficaz e duradoura se ela não for consolidada numa nova ordem, contraposta ao sistema atual.

Como a raiz da formação das preferências eleitorais da atual campanha presidencial é essa polarização falsa entre o social e a ordem, a disputa eleitoral também foi orientada para uma falsa polarização: aqueles cujas motivações estão mais orientadas para a urgência social acabaram por dar preferência à candidatura de Haddad; aqueles que se orientam preferencialmente pela urgência por ordem acabaram por dar preferência à candidatura de Bolsonaro.

Além de oriunda de uma polarização falsa, essa polarização que opõe Haddad a Bolsonaro é falsa por outras três razões subsidiárias:

  1. Bolsonaro, além de pessoalmente desqualificado para a tarefa presidencial, está em contradição intrínseca com as duas urgências: com a social porque está associado a quem acha que “social” é sinônimo de coisa para “pobre vagabundo”, sem sequer suspeitar das complexidades que associam a desigualdade aos entraves ao desenvolvimento do país; com a ordem ele está em contradição por dois motivos: (a) por achar que vai enfrentar a bandidagem de rua-violência apenas com repressão, sem equacionar a desigualdade; (b) por usar a bandidagem estatal-corrupção, que é parte da ilegitimidade do sistema, como pretexto para voltar a uma ordem ilegítima, o Estado ditatorial.
  2. Haddad, embora pessoalmente qualificado para a tarefa presidencial, não tem legitimidade para se propor a enfrentar as duas urgências: no caso da ordem porque está na condição de representante de uma das forças políticas que protagonizaram a desordem promovida pela bandidagem estatal-corrupção, quadro que piora com o fato de que ele resistiu a toda e qualquer forma de autocrítica; no caso da social ele não tem legitimidade por duas razões: (a) por pertencer à força política que, chegando ao governo, se acomodou aos interesses dos ricos, limitando os ganhos dos pobres à máxima de que “os ricos não podem perder”, levando aqueles ganhos a serem vistos como perda pelas camadas médias; (b) por pertencer à força política que, embora tenha governado o país pelo voto por um período de longevidade inédita, não fez do combate à desigualdade uma política voltada a uma nova ordem.
  3. Em razão dessas fragilidades mencionadas, nem Bolsonaro, nem Haddad podem ser uma resposta à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o que faz a polarização entre eles ser falsa outra vez: Bolsonaro não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele representa o fim de quaisquer Estado de direito, defensor que é do Estado ditatorial; Haddad não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele não se cansa de defender esse Estado de direito, essa forma estatal, na adesão à qual Lula e seu PT acabaram por se somar à luta das facções estatais que nos trouxe a essa crise de legitimação, uma crise que eles querem usar, facciosamente, para voltar a desfrutar de hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais, uma hegemonia da qual foram removidos pelo golpe do impeachment — tanto são facciosos que já estão mais uma vez aliados aos mesmos golpistas!

Como não é de surpreender, o acúmulo intercruzado dessas fajutices descritas nos itens 1, 2, 3, 4 e 5 acima vem demarcando a irracionalidade crescente do processo eleitoral, que se encaminha para dar ao primeiro turno um desfecho inédito: as motivações emocionais para o voto predominarão sobre as motivações racionais (as características de cada uma dessas motivações, bem como as diferenças entre elas foram explicadas aqui).

Toda essa insânia foi eleitoralmente bem sucedida porque a maioria da sociedade não produziu em sua dinâmica propriamente política uma alternativa eleitoral que reunisse as suas duas urgências numa perspectiva de superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, como ficou evidente na indigência política, programática e comportamental das outras candidaturas presidenciais, que não merecem que nos ocupemos delas mais do que já nos ocupamos.

Como toda insânia tem uma contrapartida racional, e como a eleição se mostrou infensa a toda forma de razão emancipatória, a racionalidade está a se apresentar pela outra ponta, e de maneira bifurcada: primeiro, na descrença quase generalizada de que a eleição vá abrir caminho para o país encontrar uma saída; segundo, na disposição antidemocrática dos que só reconhecem o resultado da eleição como bom e alvissareiro se ele trouxer como vencedor o seu candidato (claro!).

Ambas são formas perversas da razão e alimentam uma à outra: a descrença é perversa porque é inerte, não se dá ao trabalho de compreender e tirar consequências do impasse que antevê; a disposição antidemocrática é perversa porque faz uso das franquias democráticas para voltar ao Estado ditatorial cujos resquícios alimentaram toda essa insânia. Elas reforçam uma à outra porque ambas apontam para a escuridão.

Como ninguém apresentou uma alternativa transformadora para o país, não há como se ver representado nesse primeiro turno, pois no primeiro turno a gente escolhe o que nos parece o melhor — não só não há em quem votar no primeiro turno, como temos que expressar na urna todo o nosso repúdio a esse processo espúrio.

O resultado eleitoral do primeiro turno, e seus desdobramentos propriamente  político-sociais no meio da rua, nos levarão à decisão do que fazer no segundo turno, que não será outra eleição (até porque estamos a repetir, e pelas mesmas razões, só que piorado, o resultado do primeiro turno de 2014), mas outra realidade, meeeesmo.

Fica o Registro:

  • Os atos públicos convocados pelo movimento EleNão, que nesse momento se espalham por cidades brasileiras e estrangeiras, com destaque para as maravilhas que acontecem em São Paulo e no Rio, dão testemunho do que poderia ser feito se nos voltássemos não apenas contra Bolsonaro e a regressão ditatorial de que ele é marionete, mas também contra esse Estado de Direito Autoritário que há trinta anos nos sufoca — vamos ver o que vai acontecer na passagem do primeiro para o segundo turno e/ou depois que tiver ficado clara a derrota de Bolsonaro, pois ainda é possível que ele não vá ao segundo turno.
  • É interessante observar o contraste entre essa mobilização e os métodos antidemocráticos dos apoiadores de Bolsonaro, que insistem em ameaçar e agredir quem pensa diferente — eles simplesmente não se dão conta de que seus métodos alertaram milhões para os riscos a que estamos expostos.
  • Quem ainda tinha alguma dúvida acerca de o quão libertária é a transversalidade do movimento feminista…

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 1 DE 4

QUANDO O ESTADO DE DIREITO SE OPÕE À DEMOCRACIA

Carlos Novaes, 28 de setembro de 2018

[com + e + acréscimos em Fica o Registro – 29/09]

Esta série de quatro artigos será uma tentativa de apresentar de maneira clara os fundamentos que orientarão meu voto em cada um dos turnos dessa eleição presidencial.

Quando um país se livra de uma ditadura, seja através de uma derrubada abrupta ou através de uma transição, o que se deu foi uma luta democrática, isto é, uma luta que contou com o engajamento dos cidadãos animados pelo desejo de viver sob um Estado de Direito Democrático, desejo este traduzido segundo motivações e práticas propriamente democráticas, expressas na desobediência crescente ao arcabouço legal da ditadura, uma desobediência que aparece na paulatina difusão oral e escrita da opinião contrária à ditadura, acompanhada do exercício não menos crescente da vontade de reunião e manifestação contra a ditadura. A luta contra uma ditadura se dá democraticamente na sociedade, é exercida nela, contra o Estado ditatorial.

Na derrubada de uma ditadura, a democracia surge antes do Estado de direito, ela é a condição prévia para que ele seja alcançado – a nova forma estatal, o Estado de direito, herda da sociedade o impulso democrático e tem de traduzir no novo ordenamento institucional a prática democrática exercida pela sociedade em sua luta contra o Estado ditatorial. No plano do exercício das liberdades, que é o da sociedade, o antagonista da repressão ditatorial é a prática da democracia; no plano institucional, que é o do aparato estatal, o oposto da forma ditatorial é o Estado de Direito Democrático. A forma estatal final, almejada pela sociedade mobilizada contra a ditadura é, portanto, o Estado de Direito Democrático, que recebe este nome precisamente porque deve dar forma (consolidar) nas suas instituições (no direito) ao impulso e às práticas democráticas vindos da sociedade. Entretanto, a história tem mostrado que essa forma estatal final nem sempre é alcançada, ainda que o Estado ditatorial tenha dado lugar a um Estado de direito.

O intervalo entre o começo da luta democrática e a queda da ditadura pode ser curto ou longo, a depender tanto da força disponível em cada lado, quanto do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (enquanto hegemonizam) cada lado da disputa. Se a força democrática vinda da sociedade é irresistível, como nas revoltas generalizadas (revolucionárias ou não), a ditadura é derrubada em dias ou semanas. Se a força democrática vinda da sociedade existe, mas o Estado ditatorial, embora não possa esmaga-la, tem como resistir a ela, instala-se um período de transição democrática – a transição se chama democrática precisamente porque o que deve transitar é a democracia: trata-se de fazê-la transitar da sociedade, onde ela já está viva, para o Estado, infenso a ela porque ditatorial.

Além de depender da força disponível em cada lado, o ritmo e a duração dessa transição dependem também do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (qua hegemonizam) os lados da disputa, porque é também esse antagonismo que vai definir o quanto a transição será realmente democrática, e quanto ela arrastará da forma autoritária. Tudo o que é vivo busca permanecer, e as transições são uma negociação atritada entre formas vivas: por um lado, a forma ditatorial, querendo se conservar tão menos democrática quanto possa; por outro lado, a forma de direito, querendo se estabelecer tão democrática quanto possa.

Nessa negociação atritada, o que define o lugar da negociação e o grau de atrito é a combinação da magnitude das forças arregimentadas com o antagonismo de propósitos entre as vanguardas de cada lado da disputa. Se, como está dado, nenhum dos dois lados tem força para simplesmente derrotar o outro (por isso a transição, e não a derrubada da ditadura ou sua reafirmação), mas ambos contam com vanguardas irremediavelmente antagônicas em seus propósitos, o que predomina na transição é o atrito, não a negociação, e o que cada lado busca no curso do tempo da transição é aumentar sua própria capacidade de arregimentação contra o outro, para impor-lhe uma derrota final. Agora, se as vanguardas não forem irremediavelmente antagônicas, se a transição contrapõe forças plurais que reúnem em suas fileiras contingentes menos ou mais avessos à negociação dos seus propósitos, a negociação pode predominar sobre o atrito, processo que não raramente leva a mudanças na composição das vanguardas de cada lado.

O resultado de uma transição democrática marcada pela negociação e não pelo atrito será sempre um compromisso entre as partes: o Estado ganha a forma de direito, mas conserva dispositivos e práticas da forma ditatorial.

A transição democrática brasileira foi uma transição desse tipo. Primeiro, porque não havia força para simplesmente derrotar a ditadura; segundo, o grau de antagonismo entre as vanguardas dos dois lados sempre esteve longe de ser irremediável: pelo lado da ditadura, o Estado estava sob comando hegemônico de uma vanguarda que queria alguma abertura (Geisel e Golbery); pelo lado da oposição, a sociedade estava representada por uma vanguarda cuja hegemonia era exercida por quem vinha da política profissional consentida pela ditadura (p-MDB e setores da ARENA, depois PFL e DEM) e, por isso, seus profissionais não estavam dispostos a promover alterações que pusessem em risco os mecanismos que lhes haviam permitido tornarem-se o que eram: políticos profissionais eleitoralmente bem-sucedidos.

O resultado foi que ao Estado Ditatorial sobreveio não um Estado de Direito Democrático, mas um Estado de Direito Autoritário: o Estado se tornou de direito porque deu forma institucional a aspectos fundamentais da dinâmica democrática que a sociedade mobilizara na luta contra o Estado ditatorial (liberdades de imprensa, de opinião e de manifestação, amplo e livre direito de voto etc), mas não se tornou democrático porque além de ter conservado na nova forma estatal dispositivos ditatoriais paisanos (p-MDB, PFL e satélites) e militares (Polícia Militar, prerrogativas e privilégios constitucionais das FFAA), também assegurou normas legais que não obstam, e até protegem, as práticas institucionais antidemocráticas desses dispositivos (estrutura eleitoral e partidária; judiciário próprio para policiais e militares, etc). Além disso, essas normas legais garantem privilégios (remuneratórios, salariais, previdenciários, compensatórios) e dão prerrogativas (foro especial e de iniciativa) aos hierarcas do serviço público civil que são assimétricas com, e agravam, as condições de vida da imensa maioria que labuta na chamada iniciativa privada e não é rica.

Tudo o que se acaba de recuperar realimentou o exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do Estado ditatorial (faccioso porque contrário à democracia e porque se organiza, mesmo, por meio de facções estatais, que são formações não transparentes de defesa de interesses, que se montam e desmontam ao sabor das conveniências em jogo, como dá péssimo exemplo a prática diária da instituição tida como a guardiã da Constituição, o Supremo Tribunal Federal-STF, tão cindido pelas facções quanto nossos presídios). Em suma, nossa transição democrática foi truncada e resultou num Estado de Direito Autoritário: conseguiu trazer o direito, mas não consolidou a democracia.

Como já detalhei aqui, o resultado desse arranjo não poderia deixar de ser a permanente oposição entre esse Estado de Direito Autoritário e a sociedade democrática, uma oposição que se desenvolveu por trinta longos anos e, agora, apresenta toda a sua desfuncionalidade numa crise de legitimação que desgraçadamente separou sua dimensão econômico-social (desigualdade) da sua dimensão sistêmica (a ordem político-estatal facciosa).

A revolta, mais fortemente vocalizada pelas camadas médias, contra o sistema (bandidagem de Estado-corrupção; privilégios e regalias de facções estatais; e tributação injusta) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso voltado para si mesmo, para os seus. Nessa revolta a maioria da sociedade está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

A revolta, mais fortemente vocalizada pelos pobres, contra os sofrimentos da desigualdade (emprego, educação, saúde, salário, bandidagem de rua-violência e arbítrio policial-violência) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso a serviço dos ricos. Nessa revolta a maioria da sociedade também está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

Embora sejam aspectos da mesma realidade, essas duas revoltas não conversam uma com a outra. São essas cegueira e mutismo político diante de uma crise de legitimação tão flagrante e monumental que explicam a indigência dessa eleição presidencial: a maioria da sociedade não conseguiu construir um vetor de transformação que reunisse suas duas urgências e está, mais uma vez, a se dividir improdutivamente entre candidaturas amputadas, que ora simulam defender o social, ora defendem a ordem, mas sem reunir os dois hemisférios de um modo transformador em benefício da maioria e contra os interesses imediatos das minorias encasteladas no Estado e no Mercado, que armam juntas o circo eleitoral.

É por isso que Haddad pode aparecer como campeão do social e da ponderação (embora Lula e seu PT tenham aderido ao sistema, tenham traído a luta contra a desigualdade e vivam a gritar da boca para fora contra as elites). Por outro lado, não é outra a explicação para Bolsonaro poder aparecer como campeão anti-sistema (embora seja o representante da truculência antidemocrática e antissocial desse mesmo sistema); e para Alckmin poder aspirar ser o ponto de equilíbrio do sistema, como se tudo fosse uma questão de ajuste no âmbito do próprio Estado de Direito Autoritário, um arranjo estatal que simplesmente não tem conserto, é inviável, e, mais cedo ou mais tarde, acabará por ceder ou a uma outra ditadura ou a uma transformação – essa eleição é apenas um sofrido ritual de passagem para mais e maiores sofrimentos.

[29/09] – Fica o Registro:

  • A decisão de Fux, do Supremo, de proibir a realização e/ou censurar a publicação de entrevista de Lula à Folha de S.Paulo é ainda mais grave do que parece: além de ser facciosamente antidemocrática (embora dentro do Estado de direito…); além de vir embasada em uma justificativa falsa, pois a essa altura da campanha não há como supor que o eleitor letrado possa ser desinformado sobre quem é o candidato do PT se Lula for ouvido (até porque, na própria entrevista, Lula não poderá deixar de repisar que o candidato dele é Haddad); além de se opor a uma decisão, dessa vez bem fundamentada, do não menos faccioso colega Lewandowsky, que permitiu a realização da entrevista; a decisão de Fux é grave e perniciosa sobretudo porque antecipa, chancela e traz para dentro do STF o ânimo golpista que se instalará se Haddad passar ao segundo turno.
  • Bolsonaro já deu o sinal verde para a largada das hordas golpistas contra o Estado de direito (querem de volta o Estado ditatorial) ao declarar, em entrevista ao Datena (vejam a conexão: falou ao mais notório apresentador de programas de TV que enaltecem a truculência antidemocrática da polícia – truculência essa protegida pelo Estado de direito), que não aceita nada que não seja a própria vitória, ecoando fala anterior de Villas Bôas, cujo sentido comentei aqui — a situação se agrava, leitor.
  • O UOL acaba de noticiar que um juiz de Goiás, apoiador de Bolsonaro, planejou meticulosamente, e combinou facciosamente com o exército local, recolher as urnas eletrônicas, sob o argumento bolsonariano de que elas podem fraudar o voto do eleitor. Note-se que o referido juiz já agiu não apenas antidemocraticamente, mas inteiramente ao arrepio do próprio Estado de direito, pois, segundo o Conselho Nacional de Justiça, além de ele não ter poderes para tomar a decisão, ainda deixou de obedecer à norma de informar outros órgãos sobre o que pretendia fazer. Ou seja, já estamos vivendo a síndrome ditatorial do chamado “arbítrio de guarda de trânsito”…
  • Para se ter uma ideia de como Ciro está à altura do cargo que disputa… : a nove dias do primeiro turno, a imprensa nos informa que entre as dicas de campanha próprias de reta final, ainda está o conselho para Ciro evitar palavrões quando se dirigir “às mulheres”!!…. (vejam a “sutileza”: quem deu o conselho, sabendo que o candidato não tem conserto, concedeu que seja apenas quando se dirigir a mulheres, como se fosse possível, numa campanha eleitoral, selecionar a difusão dos palavrões do candidato segundo o gênero de quem os ouve). Agora é tarde!

DUAS FARSAS NOS PUSERAM ENTRE A TRAGÉDIA E O DRAMA

Carlos Novaes, 23 de setembro de 2018

[com acréscimos em 25/09, em Fica o Registro]

 

Em 1988, depois de uma intensa luta, de cujos enganos já tratei em texto e vídeo, foi promulgada essa Constituição que muitos supunham nos garantir um Estado democrático de direito.

No rastro dessa esperança, em 1989 a maioria da sociedade viveu a alegria de votar para escolher o presidente da República, imaginando que estava a tornar coisa do passado a ditadura paisano-militar — começava ali a produção de uma farsa parcialmente lastreada nas expressões mais visíveis do que havíamos alcançado de melhor na nova dinâmica política: o PSDB e o PT. Em movimentação que parecia paralela, mas que iria se mostrar convergente, já no ano seguinte, na eleição de 1990 para o Congresso, os votos de uma minoria ressentida elegeram Jair Bolsonaro deputado federal — começava ali a produção de uma farsa inteiramente gerada nas dobras mais profundas do que havíamos conservado de pior da velha cultura política: os dispositivos militar e paisano da ditadura.

Entre 1988 e 2018 temos os trinta anos em que criamos as condições para que essas farsas — contorcendo-se como duas serpentes entre oportunidades oferecidas pela rotina eleitoral a que a imensa maioria de nós se abandonou — ganhassem força, se entrelaçassem e acabassem por se colocar cara a cara, prestes a nos engolfar num espetáculo inédito: a dança macabra entre duas farsas vai produzir ou um drama, ou uma tragédia.

A primeira farsa consistiu numa polarização fajuta, PSDBxPT, que arregimentou e nutriu forças que deveriam ter sido vencidas (p-MDB e ARENA/PDS/PFL/DEM), trazendo o país a uma situação pior do que a existente nos dias do golpe de 1964 contra a democracia; a segunda farsa vem costurando a mortalha da democracia que parecia recuperada retorcendo os fios da história deixados pelos primeiros farsantes, que renunciaram ao trabalho de levar a luta contra o legado de 1964 até o fim; o drama será o aprofundamento da crise de legitimação desse Estado de Direito Autoritário em que a primeira farsa fez seu ninho manipulando a palha frágil da democracia eleitoral; a tragédia será o retorno do país, via democracia eleitoral, à situação brutal em que a desigualdade é incrementada com o arbítrio, que sufoca até a liberdade de nos dizermos contra ela.

Onde está o nó de amarração dessa disjuntiva amarga?

A DESORIENTADORA CENTRALIDADE DA DESIGUALDADE

A desigualdade é a chave para entendermos esses trinta anos, pois foi em torno dela que mobilizaram o engano, o erro e a mentira contra o potencial transformador da verdade. A verdade é que o Brasil tem uma desigualdade cruel, sem paralelo no mundo, que condena ao sofrimento a maioria da sociedade; o engano está em supor que o fundamental nessa desigualdade seja o fato (indiscutível) de os interesses dos muito ricos provocarem o sofrimento extremo dos muito pobres; o erro, saído desse engano, foi rebaixar a luta contra a “desigualdade” à busca da compaixão daqueles que foram levados a supor que não sofrem com a desigualdade; a mentira está em difundir que essa “desigualdade” tem sido combatida com esses programas sociais que agradam aos pobres, são tolerados pelos ricos e vividos como perda pelas camadas médias.

Os sabichões da nossa autointitulada esquerda contribuíram decisivamente para esse estado de coisas. Vejamos como eles têm interpretado os números e desenhado os gráficos com que pretendem ilustrar a nossa desigualdade. É sempre a mesma ladainha, com três invocações básicas:

  1. Mostram os grandes contrastes de renda e riqueza entre, de um lado, os muito ricos (variando entre os 1%, os 5% e os 10% mais ricos) e, de outro lado, a imensa maioria mais pobre (geralmente os 50% mais pobres);
  2. Comparam a situação com outros países, falando da injustiça de uma situação assim única no mundo;
  3. Pretendem levar a platéia a achar que a solução é tirar dos ricos para distribuir aos pobres, não sem ressaltar que não se trata de caridade, embora toda a argumentação tenha por base despertar a adesão inerte dos pobres e a compaixão/solidariedade das camadas médias.

Toda essa arenga deixa de fora o essencial: os 49%, 45% ou 40% que não estão em nenhum dos dois blocos polarizados acima: as camadas médias. Por que isso é essencial?

  1. Desde logo porque se trata de quase metade da população;
  2. Como a desigualdade é brutal, ela distribui sofrimentos palpáveis por todas as camadas da pirâmide social que estão abaixo dos ricos. As camadas médias sofrem a desigualdade na má qualidade da vida que levam, um sofrimento desnecessário quando se considera o que o país poderia oferecer: vias de transporte precárias, saúde e educação ruins (quando públicas) ou caras (quando privadas), transportes coletivos caros e sucateados (trens e ônibus) ou caros e aquém da demanda (metrô), violência crescente, segurança cara e inconfiável (quando privada) ou ruim e arbitrária (quando pública);
  3. Não há como sair disso pela reparação aos mais pobres, porque reparação não move as estruturas pesadas que têm de ser transformadas. Focar nos mais pobres excluindo as camadas médias permite proteger os ricos, pois o que tem sido distribuído aos mais pobres é pouco, embora os contente, e pesa muito, por via direta e indireta, nas costas das camadas médias.

Foi uma arranjo bom para cativar eleitores, mas péssimo para o país: cativou eleitores porque os pobres ficaram gratos e parte das camadas médias não protestou porque aderiu ao chamado à compaixão e/ou preservou seus privilégios corporativos no serviço público; foi péssimo para o país porque armou esse desastre que é a ressaca decorrente da união da frustração dos pobres com a raiva aberta dos segmentos de classe média que nunca aderiram à compaixão e estavam contidos em sua contrariedade.

Veja bem, leitor: a raiva que hoje vemos nessa classe média contrariada foi nutrida por dois pratos indigestos: primeiro, ela foi levada ao caminho mais fácil de acreditar que seus sofrimentos devem-se ao que foi dado aos pobres; segundo, e mais importante, depois de ser confrontada por anos com o discurso hegemônico da compaixão, um discurso que a incomodava também por explicitar o conflito entre a sua mesquinhez real e os seus alegados valores cristãos, deixando-a em desconforto moral consigo mesma, essa classe média recebeu como um bálsamo legitimador do pior de si a descoberta de que os pregadores da compaixão pelos pobres, que tanto a espezinhavam, tinham feito da corrupção um meio de enriquecimento pessoal, pelo qual traíam a boa fé dos pobres a quem cativavam às custas dela!

Essa é, em última instância, a explicação para o fato de nesta eleição a sociedade estar improdutivamente polarizada entre as suas duas urgências fundamentais: a urgência social e a urgência por ordem.

RESÍDUOS NEFASTOS DESSE MALOGRO HISTÓRICO

O que resta da primeira farsa, protagonizada por PT e PSDB, são, enquanto candidaturas que importam, Haddad e Alckmin. A segunda farsa emerge com a força de Bolsonaro, que se fez vetor dessa ampla revolta cujas bases tentei apresentar acima. Haddad e Alckmin resistem porque a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não encontrou saída transformadora; Bolsonaro emerge precisamente porque, não havendo alternativa transformadora, a volta ao passado, para antes dos 30 anos da farsa, aparece para os mais conservadores como a saída mais viável — daí a mistificação sobre a ditadura ter sido uma época de progresso e segurança.

Ambas as farsas compartilham o fundamental, ainda que divirjam no método:

  • Compartilham o empenho em mostrar credenciais de governança aos ricos (simbolizados no tal Mercado), deixando claro que continuarão a servi-los, sem mexer na desigualdade;
  • Divergem na forma de fazer o exercício faccioso dos poderes institucionais:  os primeiros pretendem, sem saber bem como, estender a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, isto é, insistem em manter uma equação que não fecha: desigualdade extrema com democracia eleitoral; o segundo propõe o fim da crise de legitimação pela pura e simples entronização da ilegitimidade, com o fim da democracia.

Alckmin está em situação difícil porque, embora tenha a confiança do Mercado e seja seu preferido, quando se passa às massas eleitorais, incontornáveis numa democracia eleitoral, sua candidatura está espremida entre as duas urgências: perdeu o social para a Haddad e perdeu a ordem para Bolsonaro.

Alckmin perdeu o social para Haddad em razão do fator Lula, sobre o qual já falei bastante nesse blog — em resumo: entre os pobres, Lula se beneficia de ressentimentos e esperanças cativas, obtidos com o logro do assistencialismo e a manipulação de um inegável laço simbólico, que ele traiu; nas camadas médias, quando não é visto como o caminho para se dar bem, Lula oferece apoio ao escapismo ideológico de quem não quer encarar a própria derrota, que está patente, entre outras coisas, nesse êxito de Lula entre os pobres.

Alckmin perdeu a ordem para Bolsonaro precisamente porque o divórcio entre o social e a ordem, que o PSDB ajudou a promover junto com o PT, abriu a brecha para que o ex-capitão explicitasse, tornasse motivação de massa, aquilo que Alckmin já fazia, farsescamente, na encolha: o uso arbitrário da força contra os pobres, feito espetáculo diário em programas de televisão — Alckmin providenciou os pregos e o martelo com que estão a pregar a tampa do seu caixão. Tanto é assim que Bolsonaro está muito na frente de Alckmin no Estado de São Paulo. Boa parte disso se explica pela transformação em força eleitoral do que havia de simpatia entre os paulistas pelos métodos do dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM.

Além de estar em lugar de destaque nas principais campanhas para governador e ter vários candidatos fortes para o Legislativo, a PM paulista aderiu, em peso, à candidatura de Bolsonaro, numa ação concatenada que mostra a existência de um projeto de militarização da política que sempre esteve além de um Alckmin — viram no ex-capitão uma oportunidade de deixar para trás o “legalismo” dosado dos tucanos, que vinham tendo que tolerar.

Os ricos pensam que Bolsonaro poderá organizar a Casa Grande e pôr ordem na senzala (a essa altura, vão ter de matar bem mais de 30 mil…); as camadas médias em que a raiva tomou o lugar dos dilemas da compaixão, e os pobres nos quais o ressentimento é maior do que a esperança, têm em Bolsonaro o portador de uma vingança (cada um supõe saber de quem está a se vingar e rói lá no íntimo o pão sovado da vingança) — esse processo, que é irracional, acaba por fazer a convergência eleitoral entre segmentos de perdedores que, não obstante partilhem a condição de perdedor, se odeiam, ódio recíproco que, por sua vez, é um equívoco, pois ambos são vítimas dos ricos aos quais se uniram em busca de uma ordem que acabará por garantir a permanência do pior do status quo que os infelicita!

A ALTERNATIVA

A desigualdade brasileira é de tal magnitude, ela amarra o país de tal forma ao atraso, que ela é sim um jogo de soma zero: o país só pode ganhar se os ricos perderem, ainda que o que iremos ganhar não se resuma ao que os ricos perderão, pois a perda deles é apenas parte do esforço para desatar forças produtoras de riqueza social.

Temos que tirar dos ricos, deixá-los menos ricos, não exatamente para distribuir aos pobres, mas principalmente para alterar estruturas e incrementar as condições que permitam tirar o país do atraso e, assim, mais adiante, alavancar milhões do fundo da pobreza.

Não há bala de prata distributiva contra a desigualdade. São mudanças tributárias, previdenciárias, salariais e em serviços sociais. Por um lado, temos de redistribuir o ônus da obtenção da receita pública, cobrando mais de quem tem mais, mas cobrando, sim, de quem tem menos; por outro, melhorar a qualidade do gasto público, redefinindo prioridades de modo a que os 40% que não são ricos sem serem pobres também constatem que haverá melhora para si.

O ônus da obtenção da receita se redistribui via reforma tributária, menos para aliviar os pobres ou as camadas médias, e mais para agravar os ricos. Do lado do gasto, fazer uma reforma da previdência partindo de que todos os diretamente implicados perderão alguma coisa, sendo que alguns perderão mais do que outros, sempre em benefício do bem comum no futuro. Esse bem comum deveria aparecer na forma de projetos claros de incremento do gasto público em Educação, Saúde, Segurança e Infraestrutura. Seria necessário propor um projeto que abarcasse com detalhes todas essas variáveis ao mesmo tempo, de modo a que os números das perdas e dos ganhos ficassem claros para todos os interessados, mostrando, na linha do tempo, para onde irão as receitas saídas da tributação dos mais ricos e economizadas com as concessões inescapáveis que todos teremos de fazer na Previdência.

Só que não. Os políticos profissionais preferiram o atalho do engano, do erro e da mentira. Separaram as urgências, quando a saída exige juntá-las. Se as tivéssemos juntado, os ricos teriam ficado isolados, e as camadas médias, ainda que com defecções importantes, claro, poderiam se unir aos pobres para fazer maioria social pela transformação, uma transformação cujos rumos seriam (e serão, um dia) disputados entre idas e vindas de maiorias eleitorais que a ninguém é dado prever.

No momento, a sociedade brasileira vê o Brasil em crise sem enxergar que ele está como uma caravela montada dentro de uma garrafa: o gargalo oferecido por esta eleição é estreito demais para que a caravela possa enfunar velas e ganhar alto-mar — há que quebrar a garrafa, mas sem arrebentar o barco.

[em 25/09] – Fica o Registro:

  • A Polícia Federal anunciou que irá abrir outro inquérito sobre o agressor de Bolsonaro, agora para “devassar” os dois anos mais recentes da vida de Adelio Bispo. O inquérito atual, já concluído, indica que Adelio vagava pelo país “ostentando” quatro celulares e um laptop — os restos de uma “inclusão” vicária, realizada via aquisição de bens de consumo já inservíveis, pois quebrados há tempos. Esse novo inquérito será uma oportunidade única para conhecermos em detalhes dois anos inteiros da vida de um brasileiro pobre em meio à crise e à violência, bem como as conexões dessas circunstâncias com o desenvolvimento dos problemas mentais do agressor. Essa recuperação sociológica sobre o legado da primeira farsa será valiosa para compreendermos os fundamentos sociais da atração perversa que a segunda farsa, o cabo de alta-tensão da violência (Bolsonaro), exerceu sobre o fio desencapado da loucura (Bispo) até o desenlace no curto-circuito da facada.
  • O lugar da mentira nessa campanha eleitoral é proporcional à verdade (desigualdade) que ela busca soterrar. A campanha de Bolsonaro é a campeã da mentira, apropriando-se até de imagens que não são suas para simular manifestações favoráveis ao candidato. O próprio candidato se atrapalha em sua ânsia por confundir os outros: na primeira entrevista depois da facada, sustenta que Bispo não agiu sozinho, que só se arriscou porque contaria com ajuda para não ser linchado e, ao mesmo tempo, diz que Bispo forjou um álibi para si, como se o agressor, ao mesmo tempo em que tinha como certo que seria apanhado, tivesse julgado ser possível escapar incógnito da cena do crime. E o candidato da mentira diz pretender trazer de volta o ensino de moral e cívica (bem, faz sentido…).

LENDA ELEITOREIRA RENTÁVEL: $ E VOTO

Carlos Novaes, 14 de setembro de 2018

[com acréscimo às 21:38h – em Fica o Registro]

A ideia de que Haddad poderia contrariar os interesses do chamado Mercado é uma lenda requintadamente fraudulenta. Haddad sequer inquieta o tal Mercado, quando se entende por Mercado o que de fato ele é no Brasil: o punhado de donos do dinheiro grosso, que têm no Estado de Direito Autoritário um sistema para operar normas e instituições a serviço dos seus interesses, a começar pela manutenção da desigualdade.

Por que, então, estão a divulgar que Haddad ainda precisaria passar pelo crivo do Mercado, como se ele não fosse uma das alternativas de que o Mercado já dispõe?

Por três razões principais (não coordenadas entre si, evidentemente):

  1. Porque a ignorância predomina. Já na altura das desavenças congressuais acerca do impeachment de Dilma, a maioria dos tais “formadores de opinião” não percebeu que o Mercado não queria a saída de Dilma. Quem tocou adiante o impeachment foram os políticos profissionais que viram na situação uma maneira de tirar o PT da jogada e poderem se locupletar sozinhos — o impeachment foi uma desavença entre facções que disputam a hegemonia para o “exercício faccioso dos poderes institucionais”, exercício este que, independentemente de qual facção predomina, lá na ponta sempre favorece o Mercado. Nenhuma das facções estatais enfrenta a desigualdade. Antes pelo contrário: a existência delas depende da manutenção da desigualdade. No impeachment, o Mercado só se rendeu à “rebeldia” do braço político mais antigo do establishment quando a situação, de tão institucionalmente insustentável, passou a ameaçar os negócios, como discuti detalhadamente, já naquela época, aqui. O lulopetismo é galinha de casa desde pelo menos a Carta aos Brasileiros, e Haddad é o seu garboso frango obediente, que não disputou com o galo velho, antes foi ungido por ele.
  2. Porque os espertos dos interesses graúdos sempre arrumam um jeito de ganhar dinheiro nas costas dos otários: fingir que Haddad é uma ameaça permite ganhar em cima dos temores dos aplicadores menos informados, tanto no dólar como no mercado de ações. Mais adiante, se Haddad vencer, voltarão a ganhar em cima dos mesmos otários, pois Haddad fará o governo “responsável” que eles já sabem que fará. Esses espertos têm seus homólogos no hemisfério propriamente político-eleitoral: são as facções adversárias do lulopetismo, que vêem como rentável difundir o suposto “socialismo” dele — que sabem ser falso, mas mostra-se um espantalho útil — e, com isso, dialoga com os interesses do próprio lulopetismo, que precisa de reagimentação ideológica para passar ao segundo turno (tudo é uma questão de ênfases/matizes).
  3. Porque os espertos dos interesses miúdos, os hierarcas do lulopetismo, têm fingido acreditar na lenda de que Dilma foi derrubada pelo Mercado, e a difundem, pois dizer que o Mercado não tolerou o reformismo (qual?!?) do PT é a mentira mais rentável para coesionar em suas fileiras legiões de otários bem intencionados, que ainda acreditam quando a máquina do PT empunha bandeiras há muito deixadas às traças, totalmente esquecidas ou contrariadas em seus 13 anos de presidência (tributação sobre rendimentos financeiros, revisão da tabela do IR, cobrança de dívidas tributárias, fim das desonerações leoninas, imposto sobre grandes fortunas e herança etc).

Essa lenda, cheia de tons, dá a Haddad uma boa margem de manobra, pois diante dela ele pode exibir toda a sua pomposa “ponderação”, que é lida pelo Mercado como a reiteração daquilo que ele já sabe; é vista pelo eleitor mediano como “preparo”; é vivida pelo jornalismo adversário como tergiversação exasperante e é desculpada pelo petista médio como uma concessão eleitoralmente necessária.

Mas o jogo real é outro. Para enxergá-lo, basta prestar atenção na face política dele. Ao confraternizar com o p-MDB, ou defender Alckmin quando o tucano se vê às voltas com a emergência do iceberg de corrupção dos governos do PSDB em SP, Haddad não está apenas querendo diminuir a chuva de pedras sobre o telhado de vidro do seu PT. Não. O sentido é mais amplo e profundo. Tanto que Jacques Wagner também está a dizer que votaria em Alckmin contra Bolsonaro. Ambos estão sinalizando para o Mercado e para seus adversários na luta de facções que estão dentro do esforço comum para restaurar a “normalidade” institucional do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação — mas dentro dos marcos da chamada Nova República, evitando a regressão militar.

Nessa eleição, como a maioria da sociedade brasileira não produziu alternativa transformadora, a democracia eleitoral está a serviço ou do Estado de Direito Autoritário em busca de uma recauchutagem, ou da regressão a uma formação ainda mais autoritária, como os generais Mourão e Villas Bôas não se cansam de explicitar: o primeiro defende uma Constituição sem Constituinte; o segundo coroou uma sequência de intervenções antidemocráticas com o blefe de que só a vitória de Bolsonaro legitima a eleição.

Nunca é demais insistir que não estou atribuindo esses arranjos e rearranjos a um desenho de prancheta, como se houvesse um “alguém” a tudo organizando, ou como se os protagonistas estivessem seguindo acordos sacramentados em conspirações. Não. Essas formações vão resultando do andar da carruagem, como também dá exemplo a candidatura de Bolsonaro.

No início, ele não era levado a sério nem pelos militares. Aos poucos, com a experiência das intervenções no Rio e a crescente audiência conquistada pelo ex-capitão, os maiorais do Exército começaram a enxergar nele uma oportunidade e, agora, já pretendem atrelar a própria legitimidade da eleição à vitória do seu candidato, pondo a regressão autoritária no coração da democracia eleitoral saída do fim da ditadura paisano-militar. Vão perder a eleição, mas sairão dela em situação melhor do que antes, o que não deixa de ser um sinal de que a crise de legitimação do Estado vai se aprofundando.

[21:38h] – Fica o Registro:

  • A entrevista de Haddad no Jornal Nacional foi um debate, onde um Bonner exasperado pretendeu ser, ao mesmo tempo, apresentador e debatedor (não cronometrei, mas, talvez, ele tenha, sozinho, falado tanto ou mais do que o entrevistado). Como não poderia deixar de ser, Haddad foi muito mal quando questionado sobre a corrupção nos governos do PT, afinal, não há como falar de “erros individuais” diante de tantos hierarcas do PT, que ocuparam altos postos do Estado nos governos, indiciados, processados e presos. Quando enfrentou as acusações de corrupção contra si, se saiu bem, pois os indiciamentos e delações são claramente facciosos, não merecendo credibilidade. Nos demais assuntos, o debate acalorado foi pouco esclarecedor, mas permitiu enxergar que Haddad se escora na velha polarização PTXPSDB, sem encarar a crise de legitimação do Estado a que essa polarização fajuta nos levou.

O TEMPO E O VOTO

Carlos Novaes, 12 de setembro de 2018

[com acréscimos em Fica o Registro às 20:03h e em 14/09]

O tempo talvez seja a variável mais desafiadora para quem pretenda conquistar o voto. Há a conexão do tempo do eleitor com o tempo do país, que a tudo preside, e, depois, o tempo de pré-campanha; o tempo de agenda do candidato; o tempo de campanha; o tempo cronometrado dos debates; o tempo da propaganda na TV; o tempo disponível na TV e, até, o tempo para a transferência de votos. Nada fácil.

Saber ler o tempo do eleitor é o desafio fundamental. Ele exige tanto o diagnóstico do tempo vivido pelo país quanto o conhecimento da posição mais geral da maioria do eleitorado em relação a esse tempo, uma posição que varia segundo dois outros tempos: o tempo da motivação fraca (emocional) e o tempo da motivação forte (racional) para o voto, como detalhei aqui. Na pré-campanha, é preciso ouvir as preliminares do desenvolvimento dessas motivações do eleitor para o voto, pegar no início e dialogar com o modo como ele vai ajustando sua motivação para o voto ao tempo do país e às suas posições diante dele.

PRÉ-CAMPANHAS

O tempo da pré-campanha já inclui o tempo de agenda do candidato: ele busca ouvir se tornando o mais visível possível. Nessa eleição presidencial, duas pré-campanhas se destacaram, e são elas que vou explorar para ilustrar o papel desse tempo na disputa: a de Bolsonaro e a de Ciro. A de Bolsonaro por ter feito tudo certo; a de Ciro por ter feito tudo errado.

No âmbito de suas limitações, Bolsonaro soube ler o tempo do país, um tempo de raiva, sem ser de revolta, porque é uma raiva passiva, e, dada essa passividade, ainda um tempo em que o eleitor espera de alguém uma solução, não está ele próprio engajado na construção de uma alternativa. Uma solução é como café solúvel, já vem pronta; uma alternativa requer que a gente se dê ao trabalho de construir.

Bolsonaro se apresentou como o candidato da raiva, como alguém que resolve na base de uma intolerância dupla: contra o sistema, responsável por “tudo que está aí”, e contra a diferença, fonte de ameaça a um modo de vida sonhado em padrões conservadores. Depois dessa pré-campanha, na qual explorou favoravelmente as motivações emocionais do eleitor, Bolsonaro tem de fazer uma campanha que dê lastro racional às emoções que recebeu em si.

Seria difícil desenhar uma pré-campanha pior do que a de Ciro: numa fase em que a maioria do eleitorado ainda está desligada da eleição, e só sabe dela pelo acúmulo de disparos ocasionais ou por ouvir dizer, ao invés de apresentar uma narrativa consistente sobre o tempo do país, da qual o eleitor fosse absorvendo, por qualquer de seus disparos, o mesmo núcleo duro de mensagem, que seria retomado na campanha numa perspectiva de amarração, Ciro disparou disparates e acumulou incertezas: em meio a atitudes agressivas, impaciência, ameaças e bravatas contra Bolsonaro, dando-se ares de importância (“se não for como quero, desisto”: o eterno garotão precoce não reconhecido, aos 61 anos!) e distribuindo palavrões, ele saiu de uma tentativa de aliança com o PT para o empenho pelo apoio do Centrão, depois de ter declarado uma rejeição vaga pelo p-MDB e enquanto tentava se unir ao PSB.

Ou seja, Ciro tentou arranjos que não dialogavam com o tempo do país, pois não só reabilitavam forças contra as quais o eleitor dirige sua raiva, como não faziam diferença entre facções que o eleitor foi levado a colocar em lados opostos. Ficou sem apoio nenhum e com a merecida imagem de quem gera intranquilidade (que realimenta e parece explicar o fato de ter ficado sozinho). Depois dessa pré-campanha, em que nutriu com emoções contraproducentes as motivações emocionais do eleitor, em que fez promessas de embates com Bolsonaro que não se cumpriram, Ciro tem de fazer uma campanha que não só não herda nada de bom da pré-campanha, como ainda tem que transpor os problemas que ele próprio criou para si.

CAMPANHAS

O tempo da campanha é também o tempo dos debates e o tempo da propaganda eleitoral na TV. Ao contrário do que se difunde, não é que os debates e a propaganda eleitoral assumam o comando do tempo do eleitor, levando-o a prestar atenção na eleição. Não. Os debates e a propaganda eleitoral começam nessa fase da campanha porque é nela que o eleitor começa a pensar sobre o voto. E pensar, aqui, significa partilhar opinião, conversar. Em suma, é o tempo do eleitor que comanda a campanha, é o momento em que ele aloca atenção à política eleitoral que define a hora e o emprego dos tempos mais importantes: o dos debates e o da TV.

Bolsonaro terá problemas para manter na campanha o apoio obtido na pré-campanha não apenas porque não dispõe de tempo de TV, mas principalmente em razão da sua condição de marionete das emoções alheias. Bolsonaro não dispõe de elementos para dirigir emoções, ele apenas as recebe em si. Seu pelotão de recrutas dispersos em rede age individualmente e apenas segundo a emoção, não distingue fases na disputa eleitoral. Bolsonaro esteve desde sempre prisioneiro da condição passiva da sua “liderança”.

A situação desfavorável se agravou com o atentato por  quatro razões: primeiro, o golpe de faca exacerbou os ânimos e levou os recrutas a elevarem contraproducentemente o tom emocional num tempo que é da razão (a nota forte é a insistência para forjar uma suposta conspiração contra seu candidato — uma conspiração na qual eles próprios precisam emocionalmente acreditar); segundo, sem a TV, que permitiria uma reorientação de discurso (se é que pretenderia uma reorientação), Bolsonaro não pode tentar unificar sequer o discurso emocional; terceiro, a ausência dele da cena eleitoral intensifica a disposição para o “deixa que eu resolvo”, própria de seus recrutas, atitude contrária a qualquer ação coordenada; quarto, na mão contrária ao emocionalismo em suas hostes, Bolsonaro vê a alastrar-se o juízo ponderado de que ele “colheu o que plantou”.

Por tudo que conheço de eleição, salvo alguma grande mudança no comportamento do eleitor, ou uma soma de erros nas campanhas adversárias, Bolsonaro terá dificuldades para passar ao segundo turno.

Ciro tenta uma campanha de recuperação, na qual gasta um tempo que se encurta para consertar o mau uso do tempo anterior. No debate mais recente, na Gazeta, ele se saiu bem justamente porque retomou a posição que assumira lá no início da pré-campanha e, no curso dela, estranhamente abandonara: sem deixar de demarcar distância com o lulopetismo, apresentou-se solidário com Lula, dizendo-o vítima de uma condenação sem provas, e serenamente insistiu em suas propostas autônomas para enfrentar a crise, enquanto repudiava tanto o ataque a Bolsonaro quanto o que o ex-capitão representa, ajudando o eleitor nessa hora em que ele é levado a trocar a motivação para o voto — faltou apenas dizer, por outras palavras, claro, que Bolsonaro “colheu o que plantou”.

Ainda que o pouco tempo de TV seja um obstáculo importante, especialmente para quem usou tão mal a pré-campanha, contrariamente ao que recentemente supus, talvez Ciro ainda possa ir ao segundo turno, ainda que isso já não dependa fundamentalmente dele, mas sim do eleitor motivado a votar em Lula.

Haddad é refém de um outro tempo: o tempo da transferência de votos. Ao contrário do que dizem 11 de cada 10 analistas com espaço na mídia convencional — e em situação oposta à de Ciro — o tempo de campanha que Haddad tem pela frente é um problema para ele não por ser curto, mas por ser longo demais. Aliás, não entendo como é que esses analistas classificam como genial a estratégia de Lula (que procurou justamente encurtar ao máximo a exposição de Haddad como candidato) e, ao mesmo tempo, apontam como problema o fato de o lançamento tardio de Haddad deixa-lo com pouco tempo de campanha pela frente (quem tiver a solução desse enigma, por favor, escreva para este blog). Voltemos.

A estratégia de Lula só terá sido genial se a jornada emocional proposta por essa telenovela durar até o dia da eleição. Em outras palavras, ao abrir mão de construir a transferência junto com o eleitor, promovendo o engajamento racional dele na opção por Haddad desde lá de trás, Lula apostou tudo em si mesmo, na sua condição de vítima. É por isso que a campanha é longa demais para Haddad, pois dá tempo para que — numa hora em que tudo o que resta é a imagem de Lula na prisão — se quebre a solda emocional do eleitor com Lula, expondo Haddad aos verdadeiros desafios de uma disputa eleitoral: se desvencilhar das críticas represadas contra Lula, Dilma e o PT e, ao mesmo tempo, se apresentar de maneira crível, vale dizer, racional, como alguém que pode conduzir o país a dias melhores, indo muito além da condição de portador passivo de uma reparação.

O que falta a Haddad não é tempo para ficar conhecido, ou para que o eleitor de Lula descubra que “agora é Haddad”. Isso se resolve rápido, se é que já não foi resolvido. O que sobra como problema é o tempo que Haddad tem pela frente para se esconder do escrutínio do eleitor a respeito do que ele representa, a começar pela sua condição de marionete, que Lula fez questão de enfatizar até na carta que escreveu para fazer a transferência do bastão, falando em “representante” e em “governar junto”. Na verdade, Lula passou o bastão mas continua agarrado na outra ponta, a essa altura mais atrapalhando do que ajudando o subsequente companheiro de corrida (o ex-presidente continua a achar que ele é o máximo a que a autointitulada esquerda pode aspirar, e não está tão senhor assim das suas emoções…).

A condição de marionete com base emocional conecta Haddad a Bolsonaro, e as dificuldades de ambos para passarem ao segundo turno não são menos conexas. Os obstáculos enfrentados por Bolsonaro para reter eleitores são os mesmos que Haddad enfrenta para ganhar eleitores. De modo que o destino eleitoral de Haddad depende, em parte, do destino de Bolsonaro, ambos atolados no pântano das emoções. E Bolsonaro tem um adversário poderoso.

Alckmin definiu um rumo desde o tempo da pré-campanha e, acertadamente, persevera nele nessa nova fase. Para o tucano, o tempo de campanha é suficiente, e o tempo de TV muito favorável. O problema é que o rumo definido não apenas é desprovido de emoção, como contraria frontalmente as emoções afloradas na pré-campanha, nas quais Lula e Bolsonaro surfaram. Alckmin é a cara do sistema e expressa o que há de elitismo anti-social na política, como acabo de explicar detalhadamente aqui.

Mas Alckmin dispõe de muito tempo na TV para dialogar com o tempo do eleitor, que tem raiva, mas também pensa e tem medo. Alckmin é quem mais pode tirar proveito do atentado contra Bolsonaro, e tem buscado isso, mas sem a ênfase e a criatividade que a situação “colheu o que plantou” enseja e, até, exige.

Se, tal como em todas as eleições presidenciais anteriores, os eleitores, nessa reta final, forem trocando a emoção pela razão, além de tirar eleitores de Bolsonaro, o tucano também poderá desviar alguns de outros candidatos, desde que o perfil deles não se choque frontalmente com o seu. Afinal, para uma e outra dessas outras candidaturas nunca houve tempo bom: elas jamais tiveram clareza de propósitos ao pôr a cara no vento que o tempo pode levar na direção do voto — se tudo o que é sólido acaba por se desmanchar ao vento, o que não dizer de tudo o que sempre foi vago?

[às 20:03h] Fica o Registro:

  • A situação abominável vivida pela advogada Valéria Lúcia dos Santos, do Rio, precisa ser conhecida por todos. Quem quiser mais informações sobre essa mulher notável, leia aqui. Faço uma sugestão: quem é capaz de tomar as providências técnicas, organize uma vaquinha para que ela possa ir ver os filhos nos EUA, afinal, não seria nenhuma fortuna.
  • [14/09] – Ciro não tem conserto: suas declarações sobre a entrevista de Villas Bôas são um desastre, e não porque atrapalhem as relações dele com os militares — é que, embora na direção correta, a manifestação de Ciro veio no linguajar de boteco que repõe os problemas criados na pré-campanha e o descredenciam como candidato para setores com os quais teria de dialogar para tentar ir ao segundo turno cavando um caminho entre Haddad e Bolsonaro. É um imaturo irremediável: ao invés de fazer política, está sempre egocentricamente se medindo com todo mundo.

LOUCURA E VIOLÊNCIA SÃO CONSTRUÇÕES SOCIAIS

Carlos Novaes, 08 de setembro de 2018

[com acréscimo em 09/09, em Fica o Registro]

A essa altura, toda pessoa sensata já terá descartado qualquer dimensão conspiratória ao ataque contra Bolsonaro — a facada foi o golpe de um indivíduo maluco emocionalmente motivado.

Não se deve, porém, supor que a motivação individual de um maluco seja resultado apenas de um distúrbio orgânico no cérebro do indivíduo perturbado, um cérebro com dificuldades para, entre outras limitações, dar conta da tarefa complexa de harmonizar memórias usinadas em áreas e dispositivos dedicados às emoções com as memórias usinadas em áreas e dispositivos voltados à produção de ideias e à comunicação.

Sendo o homem um animal político, emoções e comunicação ordenada são feixes de relações sociais. O distúrbio, quando ocorre, é individual e tem na base uma dimensão orgânica, por assim dizer cerebral, mas sua origem, a matéria que o alimenta e a produção que resulta dela são sociais.

Não devemos tratar a ação do agressor como um caso isolado, ou limitar sua natureza coletiva aos desdobramentos eleitorais do gesto, como se o problema tivesse florescido do nada na cabeça dele, ou como se o seu desdobramento mais importante fosse o de trazer vantagens/prejuízos políticos a essa ou àquela candidatura.

Violência e loucura são fenômenos sociais, latentes como a eletricidade, que está por toda parte, mas só ganha sentido e direção quando encontra um fio condutor. Se a política motiva violência e loucura, sempre haverá violentos e loucos interessados nela. A violência latente de que Bolsonaro se fez um cabo de alta tensão atraiu a loucura latente de que Bispo se tornou um fio desencapado — o curto-circuito foi a facada.

Enquanto houver quem prega a eliminação de quem pensa diferente, sejam “30 mil” ou um, haverá a possibilidade real de que lobos solitários ou linchadores acabem por se motivar para a realização da tarefa. Por isso, o fato de Bolsonaro estar convalescendo de um ferimento a faca não o torna merecedor de nenhuma trégua no combate ao que ele prega e representa; antes pelo contrário: é hora de mostrar para onde nos levam o belicismo e a intolerância dele.

Desconsiderando os mais ferrenhos adeptos de Bolsonaro, a compreensão de que ele, infelizmente, colheu o que plantou está ao alcance de qualquer um que venha prestando alguma atenção, se não à vida política, pelo menos à campanha eleitoral do candidato — desde que não tenha sucumbido ao bom-mocismo dos que confundem empatia humana com ética política, como fazem certos blogueiros.

Se os adversários recuarem do combate à violência de Bolsonaro nesse resto de campanha será uma capitulação muito reveladora: primeiro, porque já não restará dúvidas de que eles não entendem o que está em jogo; segundo, porque se explicitará a natureza oportunista dessas candidaturas, sempre prontas a se moldarem ao que julgam eleitoralmente mais rentável (fazendo, no caso, um cálculo errado); terceiro, e mais importante, porque terão deixado passar uma oportunidade de ouro para fazer aflorar às consciências o que a realidade está a ulular: a saída da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não está na volta à predação autoritária, mas em buscar partilhadamente o caminho que nos leve para cada vez mais longe do autoritarismo — ele sim o grande dano à democracia que pode sair da lâmina de Bispo.

[em 09/09] Fica o Registro:

O general Villas-Boas voltou a falar. A entrevista, intrinsecamente autoritária, explicita o seguinte:

  1. Os militares vinham acreditando em, e torcendo por, uma vitória de Bolsonaro.
  2. Agora, como não são bobos, ao invés de acreditarem no jogo do bom-mocismo, temem que o atentado tenha explicitado a inadequação de Bolsonaro para a tarefa que a maioria da sociedade brasileira imagina para o próximo presidente — e isso porque está a se alastrar a percepção de que ele “colheu o que plantou”.
  3. Villas-Boas buscou estabelecer um marco de questionamento para essa derrota que se anuncia, dando sustentação a um possível argumento de Bolsonaro contra a legitimidade de uma derrota sua: “prejudicaram a campanha” — como se campanhas não fossem processos em que precisamente “se prejudica” tanto quanto “se promove” a campanha dos candidatos. Além do que, se a loucura de Bispo é social, a ação de Bispo não pode ser generalizada para quem é contra Bolsonaro se não for, também, generalizada para quem defende, junto com Bolsonaro, as ideias dele — curto-circuito é curto-circuito.
  4. Bem espremida, a entrevista repete a forma do blefe feito contra o STF no caso de Lula, de que tratei aqui: “não aceitamos nada menos do que a vitória de Bolsonaro”.

Ao contrário do STF, a maioria de nós vai ter de pagar para ver.

EMOÇÃO DUPLICADA: AGORA LULA E BOLSONARO SÃO VÍTIMAS

Carlos Novaes, 07 de setembro de 2018

 

Venho publicando artigos que trazem reflexões sobre a miséria dessa campanha eleitoral, que obriga a uma concentração incomum nos aspectos novelescos e emocionais que podem ser observados na cena política, marcada pela contraposição entre Lula e Bolsonaro, na qual Haddad seria o herdeiro presumido de Lula, arranjo eleitoral que poderia fazer do segundo turno uma disputa Bolsonaro X Haddad.

Num outro registro, explorei também uma contraposição de outra ordem entre o mesmo Bolsonaro e Alckmin, agora para definir qual dos dois irá ao segundo turno, para enfrentar, quem sabe, o próprio Haddad ou, mais provavelmente, um outro nome. Se Alckmin prevalecer no campo reacionário, será sinal de que o eixo da campanha passou de emocional para racional, e, nesse rearranjo, aí mesmo é que seria difícil Haddad se tornar o maior beneficiário da frustração dos eleitores de Lula, pois a liga emocional da campanha terá sido quebrada.

Nos dois casos, me ocupei de Bolsonaro na dimensão emocional porque é assim que enxergo a adesão do eleitorado a ele. Quem se ocupar do material publicado pelos adeptos de Bolsonaro nas redes sociais, não poderá deixar de constatar o exacerbado emocionalismo, que aparece, entre outras coisas, mas principalmente, na irrevogável disposição à mentira desse pessoal. Bem sei que a mentira é um recurso baseado no cálculo, mas a mentira em favor de Bolsonaro é emocional porque não é que os bolsonaristas façam tentativas sofisticadas ou grosseiras de manipular calculadamente a realidade; não — o caso deles é o de quem simplesmente desconsidera a realidade, sem qualquer preocupação com a verossimilhança, numa mistura de falta de caráter, ignorância e delírio que só pode se mostrar assim influente numa sociedade que empilha eras de deseducação.

Os lulopetistas insistem em fazer da inaceitável arbitrariedade contra Lula uma lona para cobrir suas próprias responsabilidades na crise — e o professor Haddad joga nisso um papel vergonhosamente harmônico; os bolsonaristas pretendem fazer da inaceitável agressão contra Bolsonaro mais um falso argumento em favor de uma saída autoritária para a crise — e o general Mourão não poderia estar mais à vontade.

Postos para fora do jogo pela ação de terceiros que violaram as regras do jogo (Moro e o esfaqueador), tanto Lula como Bolsonaro terão de fazer o resto da campanha na pessoa de seus vices, dois “intelectuais” que se merecem. Terão êxito?

Se depender da reação das campanhas, que nada mais fazem do que seguir o bom-mocismo predominante nas redações convencionais, haverá uma avenida larga para Bolsonaro, tão larga que poderá permitir até a passagem de Haddad.

Nada poderia ser mais danoso nessa hora do que tentar esconder o óbvio como essa gente está fazendo: Bolsonaro, infelizmente, colheu, sim, de uma forma especialmente bárbara, o fruto amargo da barbárie que vem semeando há mais de vinte anos.

A forma foi especialmente bárbara porque Bolsonaro teve sua integridade física inaceitavelmente violada quando estava desprotegido, no meio da rua, de braços abertos, confraternizando entre os seus; e ele colheu o que plantou porque no curso de nada menos do que 27 anos Bolsonaro não perdeu nenhuma oportunidade de apresentar, na mídia ou em reuniões públicas, sejam suas “soluções” violentas contra quem pensa diferente, em formas que vão do insulto ao tiro; seja sua repugnante defesa da tortura, um suplício físico e mental que sempre é aplicado contra quem, desprotegido, de braços e pernas amarrados, já se encontra subjugado em meio hostil.

O ânimo belicoso de Bolsonaro é tão arraigado que, mesmo esfaqueado, já no hospital e tendo perdido muito sangue, ele alocou energia para se medir com o agressor, se autoafirmando contra um desconhecido, dizendo-o imperito, como se a tentativa do próprio assassinato tivesse sido um duelo!

Assim como no caso de Lula, as escolhas de Bolsonaro fizeram dele um alvo e, dessa perspectiva, ambos foram vítimas de si mesmos — o que poderá funcionar como mais um reforço perverso à polarização fajuta entre ambos se os oponentes continuarem a se recusar a esclarecer a opinião pública acerca do que realmente se passa e está em jogo.

O RELIGIOSO FARDADO EM TRAJE CIVIL

Carlos Novaes, 06 de setembro de 2018

[com acréscimo às 17:55h, em Fica o Registro]

Geraldo Alckmin é o mais consistente dos candidatos, e o mais daninho, quando se tem em mente o combate à desigualdade na perspectiva de alcançarmos um Estado de Direito Democrático no Brasil.

Desses últimos trinta anos em que a forma política paisana que nos foi legada pela ditadura promoveu essa longa jornada da democracia para dentro da noite, Alckmin emerge como o candidato mais consistente porque concatena os elementos conservadores da cena política num projeto de governo antidemocrático que, sem precisar recorrer aos disparates e vulgaridades eleitoreiras de um Bolsonaro, dá sobrevida ao Estado de Direito Autoritário — fiz aqui a conexão entre o perigo de Alckmin assumir a presidência da República (gestão) e a perniciosa reeleição infinita para o Legislativo (representação).

E é o mais daninho porque deu às facções estatais mais reacionárias, saídas dos dispositivos paisano e militar da ditadura, uma perspectiva de poder desde antes da eleição, sendo que o apoio antecipado do chamado Centrão faz de Alckmin o Cunha que pode dar certo. Alckmin é de saída um projeto presidencial para o exercício faccioso dos poderes institucionais acoplado ao Congresso (privilégios, abusos e mais repressão), e com o objetivo de sempre: manter a desigualdade para benefício dos negócios dos muito ricos e daqueles que os servem via manejo da coisa pública.

O fato de ter sido com a plumagem de tucano que Alckmin chegou aonde está não é desprovido de sentido profundo: como ala dissidente do paisano dispositivo oposicionista da ditadura (o p-MDB), o PSDB não deixou de trazer, misturado à carga de bons tijolos que reuniu para participar da construção da democracia reclamada pela maioria da sociedade, um tanto do barro de que fora feito. O tenaz e paulatino êxito de Alckmin na luta entre os tucanos paulistas e, depois, com a desgraça de Aécio, sua ascensão à presidência do PSDB, dão a medida e permitem ver a trajetória do velho que se revitaliza por dentro do que em dia longínquo pôde parecer ser o novo.

No manejo dos imensos recursos de poder disponíveis ao governador do mais rico estado da federação por longos 15 anos, Alckmin reuniu uma experiência perniciosa no favorecimento dos grandes negócios pelo trato combinado dos dispositivos paisano e militar que a ditadura nos legou: pelo lado paisano, manteve sob restrito controle a Assembléia Legislativa de São Paulo e a politicagem interiorana municipal, de onde ele provem; pelo lado militar, concedeu à PM uma lealdade de mafioso: só dança quem for flagrado de maneira inacobertável, do contrário, pé na tábua que serve de porta e bala para frente, pois São Paulo não pode parar.

Mais recentemente, com a emergência da guerra entre facções estatais, Alckmin vem tendo oportunidade de mostrar suas habilidades no trato com facções e vem singrando o mar revolto mobilizando aliados no Judiciário e recolhendo o que pode da carga de políticos processada pela Lava Jato que ainda boia (segundo ele, os melhores) e assegurando resoluta lealdade aos subordinados caídos, como fez na entrevista que deu ao Jornal Nacional (dias depois, Gilmar Mendes agraciou o subordinado mencionado na entrevista com mais um dos seus habeas corpus a jato).

A devoção ao conservadorismo religioso arruma o perfil de um modo especialmente consistente com os tempos de treva que se anunciam e que os bolsonaristas tanto anseiam, junção que pode ser resumida numa frase de Alckmin, — “quem não reagiu, tá vivo” — proferida para revestir com a legitimação precária do mandatário mais uma ação em que a truculência da PM poderia ter sido evitada se os policiais não viessem sendo treinados para a morte (do outro e deles próprios, vítimas inscientes que também são — exemplo dessa conexão macabra são as simetrias entre o assassinato bárbaro da PM Juliane dos Santos Duarte, em SP, e a execução não menos bárbara da líder Marielle Franco, no Rio).

Aquela frase de Alckmin repisa o que sabemos desde Abraão, o patriarca primordial dos implacáveis: os inocentes são sacrificados exatamente para que os algozes possam se exibir como implacáveis. O ex-governador de SP faz da religião lastro para uma implacabilidade que, justamente por ser religiosa, nada tem de republicana e, por isso mesmo, só pode se exibir assim serena porque, facciosamente, é exercida apenas contra os mais fracos — no manejo com os fortes, só mesuras de interiorano devoto.

Não fossem essas práticas tão visíveis, e mesmo que não se soubesse de seu apoio às mais “impopulares” reformas de Temer, a truculência por traz da presumida  serenidade de Alckmin seria traída até pelo seu modo de falar: sua mania de expor uma ideia batendo o indicador nos dedos trai a convicção religiosa de quem tem como certo o que é melhor para o interlocutor; um interlocutor a quem ele se dirige não para convencer, muito menos para persuadir, mas para submeter — Alckmin fala como se mastigasse os próprios dentes, como se quisesse triturar o interlocutor.

A junção de religião, truculência policial e grandes negócios faz de Alckmin o presidente dos sonhos da bancada BBB (bíblia+bala+boi), cujos interesses requerem da maioria da sociedade uma submissão bovina aos preceitos reificados da tradição e da ordem — Alckmin propõe um lograr sereno do que Bolsonaro quer arrancar no berro. Uma vitória de Alckmin seria o triunfo da abertura lenta (durou 40 anos), gradual (sempre simulou dar dois passos à frente para dar um atrás) e segura (assegurou que os ricos e seus serviçais não perderiam).

Para azar de Alckmin e, talvez, sorte da maioria de nós, os tempos são de emoção, não de razão — a maioria das pessoas quer expor afetos, não argumentos. Não falo de uma possível “sorte” porque prefira a contraposição afetiva (a motivação fraca) ao racionalismo enganador de Alckmin, que é Bolsonaro. Não. A sorte pode estar em que ao ter de jogar seu imenso tempo de TV  num apelo à razão contra seu adversário siamês, pois no segundo turno não há lugar para os dois, Alckmin pode acabar por ajudar a criar condições de conversa que levem a maioria do eleitorado a ponderar motivos para jogar fora a ambos.

Fica o Registro:

  • Diante dos salamaleques de Haddad ao p-MDB, Boulos declarou ao UOL que “parece que a relação PT e MDB virou caso de divã, caso de masoquismo. Não é possível, depois de ser golpeado, depois de tudo isso, recompor com essa turma e estar no mesmo palanque”. Diante de uma evidência tão escancarada da vigência profunda do facciosismo que articula o PT com o sistema político velho, a única coisa que resta a Boulos é improvisar uma psicanálise de botequim. É que se ele, para fazer a crítica dessa cena velha, invocasse mesmo que só o marxismo vulgar que costuma manejar, não poderia deixar de escancarar o oportunismo que o levou a alisar o lulopetismo até poucos dias atrás. O eleitorado que mais cresce na campanha do PSOL é o dos que têm saudades da Luciana Genro.
  • Embora todos os partidos falem em mudança, o que prevalece mesmo é a repetição do que já está aí, como fica claro quando se observa o uso que os velhos políticos fazem do novo fundo eleitoral, desde o PSOL até o p-MDB, passando pelo Centrão e adjacências: o grosso do nosso dinheiro está sendo distribuído aos que já têm mandato e querem se reeleger. Tudo ao contrário da indispensável renovação do Congresso, como já tratei aqui, aqui, aqui e em outros posts deste blog.
  • [17:55h] O esfaqueamento de Bolsonaro no meio da rua, em meio a multidão de apoiadores, é uma barbaridade que de imediato intensifica o emocionalismo da campanha, mas, com o passar dos dias, a depender também das consequências do ferimento e de uma criteriosa apuração dos fatos, pode fazer pensar, até mesmo ao próprio Bolsonaro, que no passado defendeu “matar uns 30 mil”  e outro dia atualizava esse ânimo belicoso falando em “metralhar petralhas”, além de defender a prática da tortura, que atinge a integridade física e psíquica de pessoas já despojadas de meios de se defender.

TRANSFERÊNCIA DE VOTOS

Carlos Novaes, 02 de setembro de 2018

[Com acréscimos em Fica o Registro, em 03/09]

A situação de Lula põe o tema da “transferência de votos” no centro da eleição presidencial de 2018. O tema é interessante porque, além dos contornos circunstanciais do caso, se trata de uma situação, em si mesma, banal: quando alguém, A, pretende transferir uma intensão de voto em si para determinada outra pessoa, B, o que A pretende é influir decididamente no percurso do eleitor que vai desde um desejo seu (votar em A), passa pela frustração desse desejo (não poder votar em A) e, dela, chega a um novo desejo (votar em B). Grosso modo, trata-se de uma situação social que todos, mesmo uma criança ao tentar levar outra a trocar de brinquedo, já vivemos.

Para entender os parâmetros que regem esse mecanismo complexo no ato de trocar o candidato em quem votar, é necessário explorar, antes da “transferência” do voto para B, a motivação para o voto em A.

Há muitos anos desenvolvi um metodologia de pesquisa para explorar a motivação para o voto. Para abreviar a exposição, vou explicar essa metodologia  tão esquematicamente quanto possível, deixando de lado certos refinamentos.

COMO É FEITA E PROCESSADA A PESQUISA ELEITORAL

  1. Logo depois da pergunta estimulada sobre em quem o pesquisado votaria se eleição fosse hoje, vem a pergunta aberta: “por que você dá seu voto a fulano?” (pergunta aberta é aquela em que o entrevistador deve anotar exatamente as palavras do entrevistado, inclusive com eventuais erros de português e incoerências manifestas).
  2. Depois, todas as respostas à pergunta aberta são transcritas num programa de computador.
  3. Em seguida, tendo em mãos todas as respostas, o especialista passa a buscar agrupa-las em tipos, de modo a obter uma classificação nova que permita reduzir o leque de motivações para o voto o mais possível e de um modo analiticamente profícuo.

Com base na repetição desses três passos acima sobre o resultado de muitas pesquisas eleitorais, desenvolvi uma grade de motivações que está dividida em quatro hemisférios, cada um deles subdividido em rubricas, como a seguir.

COMO É FEITA A CLASSIFICAÇÃO DAS RESPOSTAS À PERGUNTA ABERTA

Hemisfério_1: Emocional/moral/afetivo

Aqui são reunidas todas as respostas em que os entrevistados disserem votar no seu candidato segundo emoções, valores e/ou afetos que não vierem acompanhados de qualquer cálculo custo-benefício imediato ou distante; por exemplo:

1.1. Menções à honestidade, coragem, autenticidade do candidato.

1.2. Menções à relação do candidato com aspectos afetivos, tais como: “é da minha terra”, “é da minha raça/cor”, “é do meu gênero”

1.3. Outras menções emocionais partilháveis.

Hemisfério_2: Racional/instrumental

Aqui são agrupadas todas as respostas que indicam um cálculo custo-benefício, imediato ou distante; por exemplo:

2.1. Menções ao programa e/ou a propostas do candidato

2.2. Menções ao preparo técnico do candidato

2.3. Menções a benefício recebido do candidato em troca do voto (um saco de cimento, uma consulta médica)

2.4. Menções às realizações passadas do candidato (foi um bom prefeito/deputado; fez uma ponte no meu bairro,  etc)

Hemisfério_3: A inserção política do candidato

Aqui são agregadas todas as referências feitas ao partido do candidato (ou a partido ao qual ele se contraponha), a seus aliados/desafetos e/ou à sua história política em geral; por exemplo:

3.1. “É do partido tal, que eu apoio” — ou “é contra o partido tal, que eu detesto”

3.2. “É aliado/parente/adversário do político tal, a quem admiro/rejeito”

3.3. “Troca sempre de partido, não tem rabo preso” ou “é fiel, nunca trocou de partido”

Hemisfério_4: Motivações Idiossincráticas

Aqui são reunidas respostas tão pessoais que o eleitor não teria como, dentro do razoável, pretender convencer outra pessoa a acompanhar seu voto com base no mesmo motivo; por exemplo:

4.1. “Voto nele porque sou chegada num coroa”; “porque se parece com a minha mãe”, “porque soube que ele mora numa casa amarela como a minha” e por aí vai…

Note-se, de antemão, duas coisas: primeiro, que não se perca de vista que essa separação razão-emoção não pretende que haja uma razão pura, sem emoção, ou vice-versa (uma complexidade que não é o caso enfrentar aqui); segundo, nessa variada classificação acima eu não faço diferença entre quem escolheu o candidato dizendo que “gosto muito da proposta dele para enfrentar o problema do déficit fiscal”, e quem o fez dizendo que “voto porque ele me deu 300 tijolos”. Muito pelo contrário, para mim essas duas respostas têm o mesmo valor, ou seja, ambos os eleitores tem uma motivação muito clara, fundamentada num cálculo custo-benefício inequívoco. Ambas as respostas são classificadas por mim como “racional/instrumental”.

Na mesma linha, são classificadas como “moral/afetiva” tanto aquela resposta que deu como motivação para o voto a “honestidade” de um candidato, quanto a que partiu da consideração de que ambos têm a “mesma cor da pele”. Procedimento que se repete quando num outro hemisfério alguém diz que vota porque o candidato é do partido tal, ou, pelo contrário, porque ele combate o partido tal: o importante, aqui, é o fator partido.

A VARIAÇÃO DAS MOTIVAÇÕES NO CURSO DA CAMPANHA

Minha experiência com pesquisas mostra que as motivações acima variam no curso de uma eleição: no princípio, quando ainda não há propriamente campanha na rua, as motivações são mais epidérmicas e, com isso, prevalecem as respostas dos hemisférios 1 e 4, especialmente o 1. Mais adiante, quando passa a haver campanha e o eleitor passa a se interessar e, principalmente, a falar da eleição, há um movimento que chamo de “troca de motivação”, e os eleitores motivados pelos hemisférios 2 e 3 passam a predominar nas pesquisas, especialmente o 2.

Por isso, as motivações do primeiro e do quarto hemisférios são chamadas de fracas; e as do segundo e do terceiro são chamadas de fortes. Isso quer dizer que quando motivado por 2 e/ou 3 o eleitor tem uma preferência mais sólida, mais difícil de mudar — já quando motivado por 1 e/ou 4 o eleitor pode mais facilmente ser levado a trocar de motivação e, no embalo dessa troca, pode também ser levado a trocar de candidato, descartando a preferência a que fora levado pela motivação (fraca) anterior.

O CASO DE LULA NO PRIMEIRO TURNO DE 2018

Embora não disponha de nenhuma pesquisa atual com dados sobre motivação para o voto, vou tentar, com base na experiência pregressa, oferecer elementos para que você, leitor, possa fazer um juízo melhor acerca das chances da manobra de Lula.

Em 2010 Lula não fez propriamente uma “transferência de votos” para Dilma, pelo menos não como tenta agora, pois naquela eleição Lula não poderia mesmo ser candidato. Ou seja, o eleitor não foi levado a uma motivação para votar em Lula e, depois, a teve frustrada. Dilma não foi beneficiada por uma transferência de votos, mas por uma transferência de prestígio.

Em 2018 é bem diferente, pois há dois tipos básicos de eleitores com motivação para votar em Lula: primeiro, aquele eleitor que prefere mesmo Lula, e tendo desenvolvido uma motivação de votar nele descobre, agora, que não poderá fazê-lo; segundo, aquele eleitor que desenvolveu a motivação para declarar voto em Lula exatamente porque antecipou que o ex-presidente teria sua candidatura barrada. Embora o primeiro contingente deva ser significativamente superior ao segundo, este não deve ser desprezível, como o crescimento recente nas pesquisas parece mostrar.

PROBLEMAS PARA TRANSFERIR O VOTO DO ELEITOR QUE PREFERE LULA

Dos que desenvolveram a vontade original de votar em Lula, certamente há motivações em todos os hemisférios apresentados acima. Por exemplo: seus governos o credenciam no grupo 2; sua trajetória e seu partido o credenciam no 3; sua condição de ex-operário e nordestino o credencia no 1 e sua figura controversa e amplamente conhecida deve suscitar apoios pela motivação 4.

Em razão dessa sólida distribuição das motivações tanto pelo grupo das fortes (2 e 3), quanto pelo das fracas (1 e 4), Lula deveria ter construído um processo de transferência negociada com o seu eleitor, uma negociação que respeitaria o fato de que o que predomina no final são as escolhas racionais, não as emocionais.

Mas Lula fez a opção oposta: ele pretende que tudo isso seja dirigido para Haddad de última hora, sob um registro quase puramente emocional, como reparação pelo impedimento da sua candidatura; o que põe problemas sérios.

Primeiro, Lula já não desfruta do prestígio que transferiu para Dilma em 2010 e para o próprio Haddad em 2012. Pelo contrário, Lula está sob o juízo desfavorável da corrupção havida em seus governos, sendo poucos, muito poucos, os que acreditam que ele “não sabia”. Como a pecha de corrupto é típica do hemisfério emocional (1), Lula candidato poderia suplanta-la com as suas realizações governamentais (2), tal como Maluf já fez. Entretanto, não é ele o candidato e a tarefa de vincular Haddad ao prestígio dos seus governos a ponto de neutralizar os danos da Lava Jato no hemisfério 1 não é simples, porque depende de que se acredite que Lula é inocente e de que seus governos justificam o voto em quem ele apontar.

Segundo, Lula não pode simplesmente pretender que o fracasso do governo Dilma (2) não lhe diga respeito. Por isso mesmo, para Lula o melhor é que a discussão propriamente racional não se faça, mas da qual Haddad não poderá escapar, por mais tarde que comece sua participação na campanha.

Terceiro, o próprio Haddad tem um passivo sério no hemisfério 2, pois seu controverso governo na cidade de SP, junto com os desdobramentos da Lava Jato, levou-o a uma derrota em primeiro turno na sua tentativa de reeleição, quando contou com o engajamento de Lula, que agora aparece tentando repetir a manobra… É bem verdade que agora há uma diferença: naquela altura Lula não estava como vítima. Mas, de novo, se trata de um movimento contrário à experiência comprovada: o emocional favorável (Lula) pretendendo suplantar o racional desfavorável (Haddad). E mais: o emocional favorável, mais fraco, vem daquele que transfere, e o racional desfavorável, mais forte, está com aquele que recebe a transferência.

Quarto, o PT, embora conserve 24% das preferências partidárias, não conta com outros 76% de indiferentes, indecisos ou distraídos diante da questão partidária. Não. A Lava Jato motivou na maioria uma rejeição pelo PT, na qual estão eleitores que poderiam votar em Lula, dado o lugar único ocupado por ele na opinião pública. Não há razão para supor, entretanto, que boa parte desses eleitores vá simplesmente transferir para o petista Haddad um voto que estiveram dispostos a dar ao Lula. (Por isso, lá atrás (bem entendido), me parecia mais racional para ele apoiar Ciro. Lula sente a dificuldade e está tentando transpô-la fazendo um arremedo de diálogo racional, dizendo que Haddad foi seu melhor ministro etc).

 A INJUSTIÇA CONTRA LULA COMO ATMOSFERA DA ELEIÇÃO

Já explorei em textos recentes a condição de vítima em que Lula está eleitoralmente envelopado. Além do que já foi dito em uns e outros desses textos, parece oportuno analisar a contribuição que essa circunstância dá ao prolongamento da fase propriamente emocional da campanha, um prolongamento que ao adiar o ajuizamento racional, pelo eleitor, do que está em jogo, veio beneficiando a polarização fajuta entre Lula e Bolsonaro.

Se Lula não tivesse sido preso com base num julgamento sem provas, há muito ele seria um candidato sob severo escrutínio. A prisão arbitrária dele e o impedimento da sua candidatura levaram a que se instalasse e perdurasse um ambiente predominantemente emocional, que recebe a ajuda da, e se coaduna muito bem com a, desorientação mais geral que caracteriza a maioria da sociedade brasileira diante da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: a desorientação é um desvio da razão e favorece o emocionalismo. Há como que uma trava emocional a impedir que a campanha passe da fase emocional (hemisfério_1, fraca), para a fase racional (hemisfério_2, forte), situação para a qual o despreparo dos outros candidatos contribui muito.

Essa atmosfera emocional engoliu até os que se julgam “formadores de opinião” e tem beneficiado não apenas Lula, mas, eu diria, sobretudo, Bolsonaro que, apoiado em Lula, tem sido o grande campeão das motivações emocionais para o voto. A dificuldade para o limitado ex-capitão deveria ser conservar esse eleitor ao ser confrontado com os desafios da governança. Entretanto, diante do despreparo dos jornalistas (vide, por exemplo, o Roda Viva e o Jornal Nacional), que têm se concentrado em discutir com o candidato temas que lhes parecem espinhosos, mas nos quais Bolsonaro não poderia deixar de se sentir à vontade, ele tem não só confirmado e motivado seus eleitores, mas também conseguido parecer melhor do que os outros — se bem que dada a fragilidade deles… Bolsonaro está conseguindo levar adiante uma candidatura presidencial que só tem perna emocional, o que é um caso único na história da redemocratização eleitoral brasileira.

De modo que Lula e Bolsonaro têm alimentado um ao outro com emoções contrapostas, sendo a maior evidência de desrazão o fato de nessa polarização a urgência social estar do lado oposto ao da urgência por ordem, quando as duas deveriam estar juntas, pois os recursos para financiar o social só poderão vir de uma nova ordem, que golpeie essa ordem desordeira que tão bem faz aos ricos e na qual as facções estatais envolvidas na corrupção; na manutenção do arbítrio e dos abusos funcionais, salariais e previdenciários do setor público; e na bandidagem penitenciária não cessam de favorecer o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Por tudo isso, só haverá uma segundo turno entre Haddad e Bolsonaro, as duas marionetes, se a maioria da sociedade persistir no engajamento emocional para o voto, fazendo um primeiro turno inédito, no qual, pela primeira vez, não terá havido a passagem da fase das motivações chamadas fracas para as motivações chamadas fortes. Se for assim, o segundo turno será dramático, pois quando chegarmos lá a ficha cairá — ou não?

[em 03/09] Fica o Registro:

  • A insistência do PT na suposta candidatura de Lula, com anuência de Haddad, mostra que eles não querem, mesmo, fazer qualquer gesto que quebre o elo emocional que parte do eleitorado mantém com Lula até aqui. O problema é que a hora H vai chegar,  e a possibilidade de não haver a troca das motivações fracas pelas motivações fortes nada tem de garantida.
  • Aliás, a imprensa traz hoje pesquisas que mostram a campanha de Alckmin na TV já conseguindo abalar o emocionalismo em torno de Bolsonaro. Alckmin reúne as motivações fortes (racionais) do mesmo repertório de apelos conservadores do qual Bolsonaro é o campeão das motivações fracas (emocionais). Se, como a experiência mostra, o tucano corroer o limitado ex-capitão, não há razão para supor que Haddad vá simplesmente surfar na onda emotiva gerada por Lula; afinal, Lula e Bolsonaro estão polarizados com base na mesma fragilidade: o elo entre o emocionalismo e a desorientação da maioria da sociedade diante da crise de legitimação. O tempo é curto, mas, ainda assim, não vou ter motivos para surpresa se nem Haddad, nem Bolsonaro estiverem no segundo turno.
  • O desafio analítico dessa reta final de campanha é entender como a maioria da sociedade vai preferir iniciar a construção de uma saída para uma crise de legitimação que ela não enxerga (não obstante sofra tremendamente por causa dela) em circunstâncias em que ela própria, por não enxergar a crise, não construiu alternativas transformadoras e, assim, dispõe de um leque de candidaturas presidenciais muito frágeis, muito aquém da encrenca em que estamos metidos (o incêndio do Museu Nacional é mais do que uma metáfora precisa).

 

 

ENTRE A FARSA E O DRAMA

Carlos Novaes, 01 de setembro de 2018

Desde a sua fundação o PT abrigou um contraste entre as preferências do carisma de Lula e as ambições da burocracia partidária, constatação que fundamentei há 25 anos, explorando suas contradições em análise que pode ser lida aqui.

O mundo girou, a Luzitana rodou, e esse contraste ganha contorno novo quando a decisão do TSE tira Lula da disputa presidencial e faz de Haddad o candidato do PT.

Tal como na escolha de Dilma para sucedê-lo quando a lei o impedia de concorrer a um terceiro mandato, também agora, quando novamente a lei o impede de concorrer a um terceiro mandato, Lula transpôs qualquer dinâmica propriamente partidária e empregou a força do carisma para impor ao PT um nome da sua preferência — com a repetição de um detalhe que mostra a orientação anti-máquina de Lula: na vez de Dilma, a escolha recaiu sobre alguém que só entrara no PT em 1992; na vez de Haddad, a escolha recaiu sobre alguém que fez toda a sua trajetória como minoria interna que se contrapunha à hegemonia da máquina.

Em 2009, Lula exerceu contra a máquina petista a desenvoltura que ganhara depois do mensalão; em 2018, Lula exerce contra o que restou do partido a desenvoltura que ganhou com os descaminhos facciosos do petrolão.

Em 2009, Lula ganhou desenvoltura porque o mensalão permitira que ele afastasse a sombra ambiciosa de José Dirceu, afirmação que para se entendida requer que se leia a análise que fiz aqui. Desde o mensalão o PT se tornou um mero instrumento dos desígnios políticos de Lula.

Em 2018, Lula manteve intacta sua desenvoltura contra a máquina porque enquanto o PT foi levado a um beco sem saída pela Lava Jato; Lula, titular do carisma e tendo recebido uma condenação sem provas (na qual o próprio juiz reconhece que não se estabeleceu relação jurídica do triplex com o petrolão), foi transformado em vítima pela mesma Lava Jato.

A vítima Lula é tudo o que a máquina petista tem e, para contrariedade dela, Lula ungiu Haddad, dando seguimento, numa antecipação de plano seu que começara a ficar claro quando impôs ao PT seu ex-ministro da Educação como candidato à prefeitura da capital paulista. Em suma, a prisão não levou Lula a mudar de método, nem o afastou de seu roteiro, apenas o obrigou a antecipar as coisas e Haddad se tornou sucessor mais cedo.

É mais que batida, eu mesmo já a empreguei, a sentença de que “a história se dá por assim dizer duas vezes, na primeira como tragédia, na segunda como farsa”. Dilma foi uma tragédia antecipada, como naquela altura sustentei aqui; mas não creio que o gênero de Haddad possa ser resolvido por antecipação: tem tudo para ser uma farsa, mas pode se revelar um drama tremendo.

Me vem à memória o filme chinês “Adeus, minha Concubina”, de Chen Kaige. Nele há uma triangulação amorosa que serve de metáfora para as assimetrias de gênero entre a farsa (o rei-Shitou_Xiaolou), a tragédia (a concubina-Douzi_Dieyi) e o drama (a prostituta-Juxian), que, por sua vez, projetam não menos metaforicamente os engajamentos e as ilusões (bem como a decorrência de ambos: os sofrimentos) do povo da China nos tempos em que o país foi submetido à guerra com o Japão, às ondas das revoluções lideradas por Mao e ao pragmatismo de Deng.

Não sendo o caso de explorar a riqueza dessas sobreposições, que o leitor mesmo já deve ter admirado nesse belíssimo filme, é bem o caso de registrar que o sentido mais alto do filme está em que, na vida real do homem comum, o drama é sempre o que se impõe depois da dança de véus entre a tragédia e a farsa.

O Brasil vive um tempo dramático, mas em lugar de revolução, é o vácuo que está à vista: nosso Estado de Direito Autoritário está em crise de legitimação, mas a maioria da sociedade não encontra meios de se fazer maioria na hora de produzir uma saída para as suas duas urgências fundamentais: a urgência social (emprego, saúde, educação) e a urgência por ordem (corrupção, banditismo convencional e abuso estatal). Não conseguimos encontrar um arranjo novo, em que a ordem esteja orientada para o combate à desigualdade e, por isso, estamos a contrapor o tema do “social” ao tema da “ordem”.

Se Haddad virar pó já no primeiro turno, terá prevalecido tudo o que há de farsa na candidatura dele. Se passar ao segundo, a farsa terá sido transposta, via carpintaria de telenovela, para dentro de um drama tremendo, que jogará o país num vórtice imprevisível.

Fica o Registro:

  • O ministro Facchin deu o voto favorável à candidatura de Lula que eu aventei fosse o voto do relator, o ministro Barroso que, mais uma vez, deu parecer formal contra Lula, mas ressalvando, de novo, que não estava a apreciar a sentença proferida por Moro e agravada pelo TRF-4 (como a indicar que discorda dela…).
  • Não há muito o que dizer, mas, atendendo a pedidos: nas entrevistas dos candidatos à Globo, a dupla do Jornal Nacional conseguiu a proeza de se mostrar mais despreparada do que os entrevistados — sequer tiveram competência para desempenhar o papel de algozes que equivocadamente escolheram. Bonner, sem agilidade para enfrentar o cinismo dos candidatos, tentou escapar ao próprio despreparo com uma postura particularmente impertinente: buscou sempre dar a última palavra para a conclusão de cada tema, como se os candidatos à presidência da República fossem jornalistas subordinados seus, como se alguém lhe tivesse dado o posto inexistente de “editor-chefe” da campanha presidencial — e nenhum dos candidatos o colocou no devido lugar; e isso por uma razão verdadeira: todos vivem no íntimo a evidência de que não estão à altura do desafio.

HADDAD JÁ ESTÁ NO SEGUNDO TURNO?

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2018

Vai se alastrando pelas redações e pelas campanhas a ideia precipitada de que Haddad já estaria no segundo turno, sendo a outra vaga disputada entre Bolsonaro e os demais. Essa precipitação decorre, sobretudo, de análises erradas sobre o crescimento de Lula nas pesquisas – o que se diz por aí pode ser resumido assim: “mesmo preso, Lula tem conseguido crescer nas pesquisas e já tem percentuais equivalentes aos de eleições que venceu”. Chega a dar preguiça.

Ao acharem que a força de Lula está tolhida pela cadeia, esses analistas ficam a fantasiar sobre o que o ex-metalúrgico não faria se estivesse solto… e, por isso, imaginam que essa força irá desaguar como um jorro de cântaro sobre Haddad. A premissa é falsa, e a conclusão, incerta.

Antes de enfrentarmos a pergunta do título, há que responder uma outra: por que Lula cresceu?

Lula cresceu não apesar de estar preso; Lula cresceu porque está preso. Isso faz toda diferença, especialmente quando se pensa em “transferência de votos”.

Lula cresceu porque vão se alastrando tanto o entendimento de que ele foi vítima de uma injustiça, quanto, sobretudo, o sentimento de que ele é a vítima solitária de uma ilegitimidade.

Primeiro, mais e mais pessoas vieram se convencendo do óbvio: o processo que pôs Lula na cadeia é uma fraude — eis a injustiça.

Porém, mais significativo é o fato de que o arbítrio seletivo, faccioso, sobre Lula o tornou a vítima solitária e, por isso, mais visível, do facciosismo que ele próprio praticou no Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação — eis a ilegitimidade.

Nesse desenho, Lula figura como vítima da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, não como um personagem que aderiu a esse Estado e cujas escolhas e práticas foram decisivas para precipitá-lo na crise atual. Na verdade, Lula e o PT foram derrotados numa das batalhas da guerra de facções estatais em curso, e lutam para dar o troco. Isso nada tem que ver com compromisso com os pobres, que entram na história como exército eleitoral de reserva.

Nada de suas escolhas e práticas nefastas tem aparecido na campanha, ou nos debates. Lula se beneficia triplamente da própria ausência: só aparece como vítima; não tem como ser questionado pelos adversários e, por isso mesmo, vem sendo poupado pela covardia oportunista desses mesmos adversários, todos querendo ficar bem com o eleitorado que lhe é fiel enquanto robustecem a narrativa esperta do ex-presidente, fazendo dele o beneficiário de uma bolha de intenções de voto. Uma pantomima digna dessa crise de legitimação sem vetor promissor.

Essas circunstâncias tiraram do foco de parte da opinião pública o que houve de criminoso nos governos de Lula, e vêm permitindo que ele e seu PT alardeiem um suposto compromisso contra a desigualdade e, de maneira ainda mais fraudulenta, uma disposição de enfrentar elites a quem, até recentemente, Lula se gabava de ter levado a ganhar dinheiro como nunca antes neste país.

Como não há debate esclarecedor, como a crise não dá trégua, como Lula é vítima e como não se produziu alternativa crível, declarar voto num Lula que não será candidato virou, para muitos (num paradoxo aparente), uma forma de protesto contra uma eleição em que não se apresentam saídas para as duas urgências do Brasil atual: a urgência social e a urgência por ordem. Troquemos isso em miúdos.

Embora não identifiquem analiticamente a crise de legitimação em que está mergulhado o Estado que os infelicita, aqueles que sofrem na pele o exercício faccioso dos poderes institucionais se vêem, todo o tempo, impelidos a dar o troco: se não para superar a crise de legitimação (uma crise que não enxergam), ao menos contra aqueles a quem dirigem sua revolta surda, uma revolta que tem tons de ressentimento.

Daí Lula e Bolsonaro estarem desde o início liderando as pesquisas: numa eleição em que a sofrida maioria da sociedade está desorientada pela extensão da ruína social e institucional em que se vê e, em razão dessa desorientação, não conseguiu forjar/encontrar uma saída, Lula, o “campeão” do social, se beneficia do sentimento anti-elite (embora ele tenha abandonado a luta contra a desigualdade e se associado às elites); e Bolsonaro, o “campeão” da ordem, se beneficia do sentimento anti-sistema (embora ele seja parte do que há de mais primitivo no sistema, sua truculência).

Como, por razões óbvias, Lula e seu PT não podem se engajar na luta anti-corrupção, estão impedidos de se apresentarem contra o sistema; já Bolsonaro, como um “anticomunista” e “liberal” recém-convertido, não pode se apresentar como anti-elite, não pode ter discurso social, e fica confinado ao discurso da ordem.

A prova maior de que a maioria da sociedade sucumbiu à desorientação provocada pela crise é o fato de os dois candidatos mais bem posicionados na disputa para a presidência da República serem aqueles que não podem reunir programaticamente as duas qualidades subjacentes à preferência da maioria: pró-social e anti-sistema. Mais uma vez, nossa desorientação desembocou na preferência nacional: uma polarização fajuta!!

Sendo assim, as possibilidades de Haddad ser beneficiado por uma enxurrada desses “votos” da bolha de Lula diminuem bastante, afinal, o eleitor terá de passar a um nível adicional de desorientação: escolher um preposto que, na figura do relativamente desconhecido Haddad, receberá, com toda justiça, toda a crítica represada contra Lula.

É também por isso que Lula arrasta sua pseudo-candidatura e Haddad não parece muito empenhado em ir aos debates — sabem que suas chances estão todas no risco de disputar o primeiro turno de supetão, com o mínimo de esclarecimento e confronto com a realidade.

Se houvesse um segundo turno Haddad X Bolsonaro teríamos a fajutice das fajutices: uma polarização entre duas marionetes*. Logo saberemos.

* Desenvolvi aqui a ideia de que Bolsonaro é um caso único de político que, ao invés de fazer das massas marionete, se fez ele próprio a marionete delas — daí ficar indo e vindo nos posicionamentos. O caso de Haddad não requer explicação, ainda que hajam detalhes aqui e aqui.

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… – 9 — Entrevista de brasilianista na Folha de hoje

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2018

A Folha de S.Paulo publica hoje uma entrevista com Bryan McCann, professor da Universidade Georgetown. Quando não erra, o historiador faz o tipo de análise convencional que agrada àquele segmento da intelectualidade brasileira que acredita “nas conquistas dos últimos trinta anos” porque enxerga nessas “conquistas” uma não menos ilusória obra sua: uma democracia consolidada num Estado democrático de direito.

Folha – A eleição presidencial está sendo chamada de a mais imprevisível da história recente no país. Concorda ou acha que as coisas estão começando a se desenhar de forma mais clara?

MacCann — Sim, concordo. Não só imprevisível, como acho angustiante. E devemos fazer uma reflexão sobre os últimos 30 anos. Sim, é verdade que ao longo dos últimos três anos o Brasil está em crise, mas ao longo de três décadas o Brasil alcançou avanços enormes por causa da consolidação e da construção de uma democracia plural. A eleição é um momento angustiante para a democracia brasileira.

Novaes — Os termos em que esta eleição se dá não são uma decorrência dos últimos três anos. Tanto a eleição como os últimos três anos são uma decorrência das últimas três décadas. As incertezas da eleição são o modo de apresentação de uma incerteza que foi construída nos últimos 30 anos, enquanto brincávamos de democracia por cima e deixávamos a desigualdade fazer seus estragos por baixo. A conta chegou e não há o que comemorar.

Em que sentido? 

MacCann — Uma democracia plural tem que ter representação de várias tendências no governo, mas o momento atual é angustiante porque surgiu um setor da população brasileira que não respeita essa democracia plural, que não valoriza as conquistas dos últimos 30 anos e pensa apenas na crise mais recente. A candidatura de Jair Bolsonaro é fruto desse pensamento.

Novaes — Os últimos 30 anos foram a tentativa de consolidar uma equação que não fecha: combinar a manutenção pétrea da desigualdade com democracia eleitoral. Os políticos profissionais fizeram das eleições democráticas rituais vazios, uma encenação para distraídos no intervalo de mandatos consagrados à manutenção de privilégios via corrupção (prática que igualou a todos, salvo exceções que de nada adiantam) e uso da força contra os pobres.

Isso é ruim para a democracia?

MacCann — Ele é um risco para a democracia brasileira. Como não sou cidadão brasileiro, não tenho um candidato para apoiar na eleição, mas eu votaria em qualquer um contra Bolsonaro. Ele não respeita essa democracia e fala abertamente que respeita mais o tipo de regime que o Brasil tinha durante a ditadura.

Novaes — O que ameaça a democracia eleitoral não é esse “setor que não respeita essa democracia”, de cujos anseios Bolsonaro é a marionete. A ameaça está em não enxergar que a crise é uma crise de legitimação do próprio Estado de Direito Autoritário. Nessa crise, as alternativas são mais autoritarismo ou mais democracia. Bolsonaro e Alckmin são os representantes mais vistosos dos que querem mais autoritarismo; Lula e seu PT abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao exercício faccioso dos poderes institucionais, com destaque para a corrupção, e querem nos convencer de que ainda podem empunhar as bandeiras que traíram; Ciro e Marina não sabem o que estão fazendo. A sociedade, aturdida, espera um milagre. Não vai dar em boa coisa.

A revista The Economist diz que Bolsonaro é um perigo para a democracia. Qual a percepção internacional a respeito da candidatura dele?

MacCann — Mais recentemente ele tem recebido uma maior atenção, sendo comparado a Donald Trump e ao [presidente das Filipinas] Rodrigo Duterte, alguém que tem possibilidade de fazer muito estrago. A cobertura jornalística nos EUA tem sido muito crítica a Bolsonaro, mostrando ele como alguém que concorre em uma eleição democrática, mas com saudade da ditadura.

Novaes — A força de Bolsonaro decorre da naturalização de um tipo de “exercício faccioso dos poderes institucionais”, a violência policial, que é antidemocrática na raiz e não cessou sob governos tucanos ou petistas. Os dispositivos militares legados pela ditadura paisano-militar estiveram ativos nesse 30 anos de Estado de Direito Autoritário. Há poucos dias, em mais uma de suas inócuas operações, agora apoiados pelo Exército, policiais militares do Rio mais uma vez seguiram a sua rotina invadindo casas sem mandato judicial, fazendo prisões arbitrárias de gente claramente inocente, provocando tiroteios sem preocupação com danos “colaterais”. Essas práticas sempre foram antagônicas a qualquer democracia — a novidade é que a crise de legitimação do Estado que tem essas práticas pôs a nu esse antagonismo e, agora, temos de escolher entre mais autoritarismo e mais democracia.

Considerando o quadro atual de coligações entre partidos, em que Bolsonaro vai receber pouca verba e vai ter pouco tempo de TV, acha que ele tem chances reais de vencer a eleição?

MacCann — Acho que sim. Depois da vitória do ‘brexit’ e da eleição de Trump, o que temos visto nos últimos anos é um mundo político em que um movimento populista que simplesmente quer acabar com a situação atual e quebrar a casa pode vencer, sim.

Novaes — Acho que não. É que a desigualdade extrema põe para o Brasil duas urgências: a urgência social (fundamentalmente, emprego, saúde, educação, moradia e fome), e a urgência da ordem (fundamentalmente corrupção, banditismo convencional e arbítrio estatal). Bolsonaro aparece como alguém que só tem “resposta” para a urgência da ordem, e, mesmo aí, tem como principal bandeira transferir o problema para o próprio cidadão, a quem quer ver reagindo a tiros contra a bandidagem de rua…

O ex-presidente Lula está preso e foi anunciado oficialmente como candidato a presidente. Como isso se encaixa na história política dele no Brasil?

MacCann — Lula tem uma importância histórica imensa para o Brasil. A questão principal agora é tentar entender como essa importância dele vai ter influência na eleição. Acho que a candidatura dele vai ser barrada, mas acredito que ele tenha grande poder de transferência de votos. E mesmo se o candidato dele não conseguir passar ao segundo turno, Lula ainda terá capacidade de transferir votos no segundo turno, para o candidato que tiver mais proximidade.

Novaes — Ao contrário de Bolsonaro, Lula é o candidato que se apresenta como tendo “resposta” para a urgência social, mas, por razões óbvias, não pode oferecer resposta para a urgência por ordem. O fato de os dois liderarem as pesquisas mostra o impasse brasileiro, pois não há candidato capaz de, primeiro, articular as duas urgências e, depois, apresentar uma alternativa clara de enfrentamento delas. O caso de Lula é grave porque seu alardeado compromisso social é para brasilianista ver, pois, como sabemos, ele e seu PT se acomodaram à desigualdade e jamais sequer cogitaram uma política de Estado para mudar a PM, por exemplo.

O momento atual tem paralelo na história do país?

MacCann — Para os historiadores, lembra a eleição de 1945, quando Getúlio Vargas teve poder de transferência de votos que acabou com o resultado da eleição do Dutra. Foi Getúlio que levou à eleição de Dutra. Lula vai ter este tipo de poder em 2018, e falta saber para quem vão acabar indo esses votos.

Novaes — O professor MacCann está muito atrasado. Lula já teve seu Dutra, e deu no que deu, como expliquei aqui e aqui. As condições para a transferência de votos são agora muito menos propícias, a começar pelo fato de que o apoio a Lula tem crescido quanto mais claro fica que ele não será candidato, contraste intrigante, a ser desenvolvido em outro post.

Há quem compare o momento atual à eleição de 1989. O que acha?

MacCann — Há semelhanças com 1989, sim. Na época, [Leonel] Brizola e Lula acabaram dividindo o voto da esquerda. Hoje em dia é até mais difícil, pois não tem um candidato claro da esquerda.

Novaes — Comparar 2018 a 1989 é besteira da grossa, como já expliquei aqui, a começar pelo fato de que naquela altura saíamos de um regime autoritário e, agora, estamos em vias de entrar em um…

A manobra do PT que isolou Ciro Gomes [PDT] pode ser vista como uma lição para evitar a divisão de 89?

MacCann — A esquerda brasileira aparentemente não aprendeu a lição. Não vemos agora uma união de forças contra o Bolsonaro, por exemplo. Vemos Ciro e Lula disputarem, e mesmo dentro do PT tem tendências disputando espaço.

Novaes — O que une a autointitulada esquerda brasileira é o empenho em continuar agarrada ao Estado de Direito Autoritário como um marisco. Por isso, ela se divide e se une como qualquer outra facção desse Estado.

Como tem sido vista fora do Brasil a candidatura de Lula, que está preso?

MacCann — Isso gera um pouco de dúvidas e incertezas. Não existe uma percepção geral de que Lula foi injustiçado, entretanto. Mesmo entre as pessoas bem informadas sobre política global. O que há é uma incerteza sobre o que está acontecendo, como ele pode ser candidato, e uma ideia de que no fim ele não vai poder concorrer, então o partido dele vai ter que apoiar outro nome.

Novaes — Lula está na prisão por uma condenação sem provas, vítima da guerra de facções em que ele próprio se empenha na tentativa de voltar a ter poder, o que faz dele um político inconfiável quando se almeja um Estado de Direito Democrático, cujo rumo requer um combate sem trégua à desigualdade.

ONU AUMENTA PRESSÃO SOBRE BARROSO

Carlos Novaes, 17 de agosto de 2018

Há poucos dias fiquei surpreso e intrigado com o voto do ministro Luis Roberto Barroso acompanhando parecer do relator Alexandre de Moraes, que favorecia a prescrição para crimes de improbidade administrativa. Fiquei surpreso porque o voto dele contrariava tudo o que me parece republicano; e fiquei intrigado porque não conseguia encontrar nexo faccioso nesse alinhamento com Moraes, cuja facção em matérias de fundo é, sempre, outra – e oposta à de Barroso.

Mas não tive de elucubrar por muito tempo: para o bem da causa pública, dias depois, na retomada do julgamento da matéria, Barroso, tal como já fizera o ministro Fux, reviu o seu voto e o entendimento de Moraes foi derrotado – sobre o que se passou de um dia para o outro não tenho elementos para especular, mas no segundo voto reconheci o Barroso que imagino ter identificado.

Mais lá atrás, por ocasião da decisão de um habeas corpus para o Lula, apresentei aqui meu entendimento de que Barroso votaria favoravelmente ao ex-presidente, voto que acabou não se verificando. Então como hoje, fui e sou levado a supor que Barroso votou contra o líder petista naquela altura porque não houve a separação entre o caso de Lula e a matéria de fundo misturada na questão, que é a benéfica possibilidade de prisão após condenação em segunda instância (desde que a condenação tenha sido justa, evidentemente).

Pois bem. Barroso agora é o relator tanto do registro da candidatura de Lula à presidência da República, como das ações que pedem ao TSE que barre essa mesma candidatura.

Estou entre os que consideram que a prisão de Lula se deu com base em uma condenação sem provas. Entendo, portanto, que nada deveria obstar a candidatura dele à presidência, deixando a cada eleitor fazer, como eu, seu próprio juízo sobre a culpa ou a inocência políticas de Lula nesse pântano da Petrobrás – sem prejuízo no prosseguimento das investigações policiais e dos processos em curso contra ele.

A resolução de hoje do Comitê  de Direitos Humanos da ONU é um elemento novo de grande importância. Resta saber se Barroso vai continuar a se ater ao rito formal, sem levar em conta a precariedade jurídica da decisão de Moro contra Lula, ou se ele vai fazer valer o sentido republicano do seu facciosismo e — aproveitando a deixa da ONU, que não pode deixar de mexer com suas veleidades de jurisconsulto com audiência internacional — permitir a candidatura do ex-metalúrgico.

MONTADOS NA (SUA) GRANA PARA A REELEIÇÃO

Carlos Novaes, 11 de agosto de 2018

A Folha de S.Paulo publicou nesse final de tarde uma matéria muito reveladora sobre o uso do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral pelos partidos políticos. Quem acompanha este blog sabe que defendo o fim dos dois fundos, pois garantir dinheiro do contribuinte para as traficâncias dos políticos profissionais é um verdadeiro nó contra a mudança: eles usam o nosso dinheiro para continuarem a manter partidos tão fortes quanto fajutos e para alcançarem mandatos contra nós.

Mas passemos adiante. O que há de mais interessante na matéria é a poupança do Fundo Partidário que os partidos do Centrão fizeram para gastar na eleição. Como eles não têm projeto ou atividade mais importante do que as próprias reeleições, guardaram o dinheiro para o que lhes interessa. Vão somar ao Fundo Eleitoral mais de 80 milhões de reais.

Note bem, leitor: esse apego à reeleição vem desde os tempos da ditadura paisano-militar, pois a ditadura não impediu a continuação da escolha dos deputados pelo voto. Pelo contrário, a manutenção da rotina eleitoral profissional para a Câmara no curso de toda a ditadura foi o fundamento principal para a transição lenta, gradual e segura: a Arena (depois PDS/PFL, DEM) e o p-MDB — com suas respectivas sublegendas (facções internas que disputavam eleições para prefeito umas contra as outras) — tudo fizeram para projetar Nova República adentro as práticas eleitorais, os interesses e as prerrogativas de mando que os caracterizavam desde sempre: eles vieram para a democracia com a boca tão torta quanto era na ditadura (sobre esse legado paisano nefasto, além de já ter escrito aqui em mais de um texto, também dei um depoimento detalhado, que está no YouTube).

Logo, não é, como diz um cientista político na matéria, que o Centrão poupou recursos e está de olho na reeleição para a Câmara porque

“é a vaga na Câmara que vai definir a distribuição futura dos recursos. O fundo partidário é decidido lá, o fundo eleitoral, também, e o tempo de TV é distribuído lá [conforme o número de deputados]. Não querem saber de governar, de ganhar Executivo.”

Não. Pensar assim é típico de quem analisa a política tentando entrar na cabeça dos políticos e, pior, levando a sério o que os políticos dizem! O fato de o fundo partidário, o fundo eleitoral e o tempo de TV serem decididos na Câmara; bem como o fato de esses partidos não fazerem questão nenhuma de ganhar diretamente o Executivo, são decorrência de eles terem mantido a estrutura e as práticas (a forma de atuar) que já tinham na ditadura: não podiam disputar o Executivo e, por isso, se especializaram em se reelegerem para, na miúda, fazerem as traficâncias graúdas. Foi assim que a ditadura selecionou sempre os piores: se acomodavam ao arbítrio, abriam mão de pensar o país, de propor saídas para os sofrimentos do povo, e cuidavam só do próprio vidão, que os mandatos na Câmara já proporcionavam – trouxeram tudo isso para a Nova República.

Peço a sua licença para ser didático no limiar da deselegância: o recentíssimo Fundo Eleitoral, que é de 2017, é um privilégio que eles somaram a uma outra novidade menos recente, o Fundo Partidário. Essas novidades não poderiam explicar um comportamento que vem desde a ditadura! É o contrário: essas novidades apareceram do jeito que apareceram, foram aprovadas do modo como o foram, precisamente porque o jogo na Câmara é velho como o diabo! São apenas decorrências de um apego à Câmara que vem de longe, pois foi ali que eles aprenderam a ser como são. Em suma: não fazer questão de disputar o Executivo, de governar diretamente, é uma preferência muito anterior, e não pode ser vista como consequência do apego que os profissionais de carreira têm por privilégios que mais recentemente garantiram a si mesmos na Câmara.

Por que é tão importante entender isso e não inverter algo tão básico em ciência como a relação causa-efeito, como fez o desorientado “cientista” político da USP?

Porque sem entender esse esquema a gente deixa escapar o fundamental e, aí, acaba comprando outras bobagens desses cientistas políticos que pensam a governabilidade como um jogo de mercado entre um presidente imperial e uma Câmara com partidos fracos. É justo o contrário, leitor: a presidência é fraca e os partidos são fortíssimos, arrancando do presidente tudo o que dele precisam. Não é que os partidos sejam programatica ou ideologicamente fortes, claro que não. Eles são fortes enquanto máquinas facciosas apegadas aos próprios interesses. O presidente só é “forte” enquanto existem duas condições:

  1. O que o presidente consegue “dar” é suficiente para receber maiorias na Câmara
  2. A sociedade se mantém dócil apesar dos sofrimentos que essa ordem malsã impõe à maioria de nós.

Temer já está sozinho porque já não consegue “dar” e os profissionais da reeleição já estão de olho no próximo. Se deixarmos de lado as diferenças entre os dois, Dilma e Collor caíram porque o que podiam “dar” não compensava o prejuízo de mantê-los diante de uma opinião pública convulsionada.

Então, voltando: o Centrão economizou porque desde a ditadura obedece à mesma forma de fazer política: ter mandatos na Câmara não apenas pelos mundos e fundos dela, mas sobretudo para arrancar o que puder de um Executivo que está lá para “dar”. Na época da ditadura, eles não tinham poder para ameaçar o mandato do presidente-ditador; na transição fizeram o aprendizado de usar em proveito próprio a pressão da sociedade para constranger o presidente-ditador e, em seguida, tornar marionete o presidente-tampão; com a volta da escolha eleitoral direta, continuaram a não ter projeto para o país e a exercer a sua especialidade: pressionar o presidente eleito, vendendo caro o seu “apoio” ao projeto vitorioso nas urnas, sempre inviabilizando mudanças que atinjam seus interesses e os dos muito ricos, a quem defendem.

A democracia eleitoral foi vivida por eles como uma oportunidade, pois continuaram a agir como antes, só que agora diante de um presidente muito mais fraco – por isso já conseguiram derrubar dois, pois iludem a sociedade de que os problemas estão na presidência. Usam presidentes inadequados (por incompetência, roubo e/ou traição) como biombos para encobrir a si mesmos (sua incompetência, seus roubos, suas traições), ou como espantalhos, tangendo contra o Executivo a ira da sociedade (provocada por essas mazelas), quando, na verdade, nossos problemas fundamentais estão principalmente no Congresso, que é o coração da forma política herdada da ditadura e que moldou nosso Estado de Direito Autoritário, cuja atual crise de legitimação é uma decorrência dessas práticas.

Tendo sofrido com presidentes ditatoriais inamovíveis, a maioria da sociedade vem sendo manipulada, por políticos profissionais saídos dos mesmos esquemas que serviram aos ditadores, para se entregar, agora, à catarse de poder afastar um presidente de que não goste — e há quem nisso comemore a “robustez das nossas instituições democráticas”.

E há, ainda, quem diga que nossos problemas resultam de uma Constituição “parlamentarista” que, contraditoriamente, manteve o presidencialismo. Não. Nossos problemas são anteriores: eles decorrem de termos passado a escolher o presidente da República pelo voto direto, mas mantendo os dispositivos paisanos da ditadura no comando do Congresso — resultado: por mais mudancista que seja o presidente eleito pela maioria via democracia eleitoral, ele sempre fica à mercê da maioria congressual anti-mudança que nos foi legada pela ditadura, eleita e reeleita pelas rotinas a que nos abandonamos.

A verdadeira importância de mais essa eleição não está na escolha de mais um presidente (até porque a oferta de candidatos…), mas na oportunidade de não reeleger essa corja que está aboletada no Congresso. Há quem mostre números “provando” que temos tido renovação congressual. Isso é falso. Esses números mostram reposição de estoque, não renovação: é mais do mesmo, com a mesma validade, pois saídos das mesmas facções.

Fica o Registro:

– Fiquei estarrecido com o que vi no debate. Alckmin repetindo o figurino de todas as outras eleições, como se nada tivesse acontecido de 2013 para cá; Ciro até que tentou se apresentar à altura da situação, mas essa oferta Spam de “tiro seu nome do SPC” foi, como disse uma amiga minha, “uma saída a Silvio Santos” (e não por ser inexequível, mas pelo absurdo de fazer disso uma proposta presidencial); e Marina, sempre em apuros para gastar o tempo, respondia toda pergunta com uma descrição tão geral quanto óbvia do problema que lhe foi apresentado, sem qualquer indicação de como resolve-lo. Quanto aos demais…

– Com a ausência do PT no debate, a novela do Lula (uma engenhosa tentativa que depende de a maioria se abandonar à fantasia) começou a ser triturada pela realidade. Vai ficando claro que Lula foi longe demais na sua certeza da transferência de votos, e o PT passou a exibir ao público a sua tragédia: não tem para onde correr e, como é comum nessas situações, aferra-se na negação da única chance que ainda poderia existir porque a alternativa Haddad escancara que a máquina não é capaz de enfrentar a situação com base em si mesma.

O METALÚRGICO DE MONTE CRISTO

Carlos Novaes, 07 de agosto de 2018

[com acréscimo em 17/08, em Fica o Registro]

No Brasil, poder e TV andam de mãos dadas porque ambos são formas requintadas de mistificação, como já explorei detalhadamente em série de artigos iniciada aqui e, tempos depois, continuada aqui. Pois bem, para obter êxito em sua estratégia eleitoral, Lula,  apoiado em verossimilhanças que todo narrador deve saber explorar, está a depender que a maioria do eleitorado se abandone à fantasia — só assim ele alcançará uma solda final entre sua ficção e a realidade terrível que ela tenta encobrir.

Uma condenação sem provas impediu Lula de continuar a apresentar o programa de auditório em que ele – como já dito aqui — se sentiria à vontade e no qual, como todo apresentador despótico, sempre distribuiu prêmios e microfone a quem se comportava segundo a sua vontade, a começar pela obediência à regra de que a atração principal é sempre o apresentador, regime do qual Fernando Haddad se fez o recruta mais caxias.

Dotado de talento e determinação incomuns, mesmo posto arbitrariamente atrás das grades o ex-metalúrgico não desanimou e voltou ao seu torno: e eis que, lá do fundo do calabouço, arrancado da vista de seus seguidores, tirado do palco em que mesmo os distraídos não lhe negavam alguma atenção, banido da liça direta pelos inimigos que o temem, Lula trocou o lugar de animador de auditório pela oficina de dramaturgia e se fez alvo da atenção de todo o público ao leva-lo a divisar em seu infortúnio um drama inédito, pois não há como deixar de fundir na figura encarcerada de Lula o autor, o personagem central e o principal ator dessa autêntica novela que faz a saga dele ganhar audiência à medida que se aproxima do desfecho.

Essa mimetização do gênero televisivo de maior sucesso no país chega ao requinte de imitar a “arte” no seu aspecto fundamental: tal como a telenovela, a obra de Lula é uma obra aberta, na qual o autor aceita que não pode determinar o percurso sozinho, pois o sucesso também depende da prudência de dividir a autoria com a audiência. Como a audiência brasileira é treinada e exigente, há que oferecer elementos que conduzam às duas amarrações básicas para o sucesso: o engajamento emocional, que leva à torcida para que o mal seja derrotado pelo bem, e o engajamento cognitivo, que leva à fidelização oriunda de uma história bem encadeada.

O êxito requer que o enredo entremeie a moral e o cálculo, com a primeira precedendo o segundo, pois o engajamento emocional é o vestíbulo do engajamento cognitivo. Ajudado pelas circunstâncias, Lula, como todo bom dramaturgo, partiu da vida real para a ficção, fazendo do arbítrio contra si, que é real, o chamariz moral para um enredo novelesco ao qual não falta nenhum dos ingredientes que fazem uma história bem contada: depois da injustiça contra o herói, se sucedem encontros e desencontros, reviravoltas implausíveis, traições, cartas secretas, revelações bombásticas, conflito de paternidade e, claro, um tão manjado quanto magistralmente bem construído triângulo amoroso, a ser resolvido só no final.

Todo bom enredo para “drama de superação” deve ter o cuidado de apresentar o injustiçado personagem principal como vítima transparente, deixando aos seus inimigos a pecha de conspiradores, pois a conspiração sempre é a artimanha do mal para interromper o livre curso do bem. Impedido de falar e de se movimentar com a desenvoltura que lhe é própria, vigiado em sua cela, submetido a um regime que controla com rigor suas visitas, desprovido de meios de comunicação remota, Lula aparece sob o registro da transparência: todos estão seguros de saber onde ele está, o que ele faz e com quem ele conversa. Seus adversários diretos estão na mão contrária, pois a frenética atividade conspiratória deles tem desenho novelesco, no qual o público pode divisar até a conspiração entre os facciosos de tribunal, como recentemente tratei aqui.

Como a telenovela é um gênero de dramaturgia que vem há tempos formatando a percepção da realidade pela maioria da sociedade brasileira, a carpintaria dramática necessária ao êxito da novela de Lula não é, portanto, o resultado de um desenho de prancheta – ela é decorrência de um processo fragmentado, que se beneficia do próprio interesse que vai despertando, no qual os capítulos vão construindo uma verossimilhança que não pode deixar de embutir contradições, contradições que até mesmo parte do público, indo no embalo, ajuda a encobrir, pois não pode abrir mão do sonho, por mais implausível que ele se revele.

É nessas contradições, que parte do público se recusa a ver, que Lula e os seus podem esconder o principal: que Lula traiu a confiança nele depositada ao fazer governos aderidos ao Estado de Direito Autoritário, acomodados à desigualdade (na qual, frise-se, ele não mexeu), e cuja governabilidade para o pouco que fez em compensações acomodatícias foi alcançada graças a uma corrupção tão abrangente que, aliada a outros erros, solapou até as condições políticas, jurídico-constitucionais e econômicas em que essa acomodação vinha se dando.

Como o desfecho de uma história, ao fim e ao cabo, só é bom se agrada ao público, e como o agrado do público não vem apenas do final em si, mas, sobretudo, da sensação criada nele de que tudo foi escolha sua, pois não há sensação mais sólida de que se fez justiça do que quando o desfecho tido como justo contempla os desejos do observador, por tudo isso, o desafio para o autor é esconder as contradições e plantar antes o que quer colher depois.

Ao escolher Haddad para comandar a elaboração do seu programa de governo, Lula já antecipava o, dava a dica do, desfecho pretendido. Por isso mesmo, no programa de governo coordenado por Haddad há de tudo, menos uma autocrítica por terem, como teorizou o mesmo Haddad, se acomodado às cadeiras em que, desde sempre no Brasil, o poder político e o poder econômico sentam-se a uma mesa redonda. Não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios.”

Por que deveria o eleitor esclarecido comprar essa história ou confiar nesse programa de governo? Só cego!

Pensando bem, nem cego. Mesmo o pior cego tem que ter é estômago de avestruz para engolir todo esse embuste.

[17/08 — Fica o Registro:

  • Atendendo a pedidos, esclareço o que me parece evidente: nas linhas acima não estou a atribuir a Lula a construção consciente de uma situação na forma de telenovela (assim como o Chacrinha, suas chacretes e seu júri não estavam deliberadamente empenhados em mimetizar, pela ordem, o general Médici, suas tropas e seu parlamento); antes pelo contrário, estou a identificar uma forma que se impõe independentemente do que se passa na cabeça do protagonista, à qual, por óbvio, não se pode ter acesso.]

NÃO HÁ CANDIDATURA TRANSFORMADORA

Carlos Novaes, 05 de agosto de 2018

Definidas as chapas para a disputa presidencial, a maioria da sociedade brasileira não tem na eleição nenhuma alternativa que abra uma perspectiva de superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário; pelo contrário, o que está à vista é, no máximo, uma reacomodação das forças políticas tradicionais empenhadas na luta de facções. No Brasil, a consulta à vontade da sociedade através do voto popular direto continua sendo um método democrático sequestrado à democracia para arbitrar o lugar de cada uma das facções na apropriação dos poderes de Estado.

De toda a movimentação havida desde o impeachment resultou apenas o seguinte: os três protagonistas políticos dos embates havidos entre as facções foram impedidos de exercer o protagonismo natural que a crise original lhes teria reservado: Lula, Aécio e Temer. Em condições normais, Lula, por ser quem é, seria o candidato natural do PT; Aécio, pela votação obtida em 2014, seria o candidato natural do PSDB e Temer, via golpe, seria candidato natural à reeleição. Mas os três acabaram sucumbindo à Lava Jato, embora apenas Lula esteja a sofrer uma interdição propriamente judicial (claramente arbitrária). Os outros dois foram interditados pela maioria da sociedade via Lava Jato, ainda que não tenham sofrido nenhuma condenação judicial, e isso apesar das muitas provas materiais e testemunhais existentes contra ambos. O preço para poder condenar Lula sem provas e tirá-lo da eleição acabou sendo interditar pela via propriamente política Aécio e Temer, cujo papel na eleição tornou-se marginal.

O prestígio de Lula é pessoal, não havendo no lulopetismo nenhuma liderança intermediária em condições de protagonizar o projeto – todos ali dependem exclusivamente dos votos que Lula for capaz de transferir. Ainda que, como suponho, Lula venha a transferir muito menos do que muitos apostam que conseguirá, o percentual de partida do seu candidato deverá ser suficiente para empatar com a candidatura tucana, hoje por volta dos 7%. Como no curso de todo o processo a maioria da sociedade permaneceu fiel à inércia de esperar do sistema político a solução, esse empate poderá ser suficiente para levar a campanha ao leito de rotina: uma polarização fajuta entre PT e PSDB, agora mais fajuta do que nunca.

Quem mais contribuiu para esse estado de coisas foi Ciro Gomes, que começou dando a entender que viria por fora do sistema político, mas logo tentou a mágica de ser, ao mesmo tempo, tanto o candidato da recusa da sociedade ao sistema político quanto a saída de emergência desse mesmo sistema político em busca de se safar da ira da sociedade. Primeiro, Ciro alardeou um veto ao p-MDB; depois, fez um primeiro recuo e restringiu o veto “aos ladrões do p-MDB” (interpondo um filtro incerto para definir quem é, e quem não é, ladrão ali) e, finalmente, atirou-se no valão da disputa pelo apoio do chamado Centrão, que usou as ofertas de Ciro para melhor negociar com Alckmin, seu candidato natural, herdeiro direto dos dispositivos paisanos e militares que nos foram legados pela ditadura.

Ao se obstinar em sua pseudocandidatura e não compor com Ciro, Lula precisava que o pedetista se rendesse, pois um Ciro viável dificultaria a transferência de votos que Lula pretende fazer de última hora, pois muitos desses eleitores iriam espontaneamente para Ciro, num movimento parecido ao ocorrido em 1989, quando os eleitores de Brizola migraram para Lula antes do comando do líder. A errática movimentação de Ciro gerou incerteza na opinião pública e o impediu de crescer nas pesquisas, o que facilitou o trabalho de Lula para reter seus próprios eleitores e afastar de Ciro o apoio do PSB.

Ao final da caminhada para se viabilizar por dentro do sistema político faccioso, Ciro viu as facções se fecharam contra ele. Isolado, inconfiável e estagnado nas pesquisas, restou a ele a condição de vice. Ao não aceitar esse resultado imposto por suas próprias escolhas, Ciro entra em campanha no limiar da inviabilidade, uma situação muito mais difícil do que de início seria de supor.

Nesse aspecto Marina Silva fez movimento oposto ao de Ciro: evitou qualquer negociação com as facções, persistindo na defesa de uma suposta “nova política”, não obstante o pouco que vem expondo de propostas esteja repleto de tergiversações e velharias (vamos ver o que será o seu programa de governo). A aposta de Marina está num alinhamento cego ao que entende por Lava Jato, como se a operação ainda pudesse ser tomada como o dínamo de orientação republicana que de início se apresentou, como se a Lava Jato não tivesse sido transformada num campo de batalha entre facções.

Depois de ter apoiado o golpe de Temer, Marina finge não ver, não dá tratamento público, às contradições facciosas das decisões legais das diferentes instâncias do Judiciário implicadas na Lava Jato e, só por isso, imagina poder ficar a repetir o mantra de que “a lei é para todos”, como se a aplicação da lei não estivesse claramente conturbada, não apresentasse contradições flagrantes e não estivesse enviesada contra Lula — o que faz dele uma vítima, não uma alternativa.

Fica o Registro:

  • A chapa Bolsonaro-Mourão não deixa de ser emblemática: um suposto intelectual de alta patente submetido a um subalterno hierárquico sabidamente despreparado. Sinal dos tempos.

ÚNICA SAÍDA PARA CIRO É SER VICE – DO PT OU DE MARINA

Carlos Novaes, 02 de agosto de 2018

Ao levar essa ensaboada final no banho de profissionalismo que lhe foi dado por Lula, Ciro vem falar em “desonestidade” e apontar que “eles não querem que eu seja o candidato que vai representar a renovação do campo progressista”. Como assim?! Ao aceitar as negociações com o Centrão, Ciro mergulhou de cabeça na luta bruta das facções, valorizou o que há de pior na política brasileira e escancarou o convencionalismo da sua própria candidatura, tudo isso como arremate de uma trajetória de declarações complexadas e estapafúrdias, nas quais o que não faltou foram palavrões (sobre o uso de palavrões em público e em privado já discorri aqui).

Renovar o campo progressista requer uma ação de fora para dentro, não de dentro para fora, muito menos se misturando ao que há de pior no campo anti-progressista! Quando falo “de fora para dentro” não me refiro apenas a de fora do autointitulado campo progressista, mas especialmente de fora do Estado, de fora da luta de facções, ou seja, uma nova alternativa progressista terá de sair da sociedade contra o Estado, da vida política real contra as facções políticas. O chamado campo progressista que atua na sustentação do Estado de Direito Autoritário é tão faccioso quanto os outros “campos” que ali com ele se digladiam em busca de poder para fazer dinheiro. Uma renovação dele terá de sair da experiência democrática que a maioria da sociedade brasileira tem contraposto a esse Estado, não de um remanejamento das alianças entre as facções estatais que dependem da chancela eleitoral para continuarem o seu joguinho.

De início, Ciro pode ter dado a impressão de que havia compreendido a situação e de que estava a apostar na sociedade. A pouco e pouco foi se enrolando em seus próprios complexos e limitações, passou a desprezar a opinião pública média, exercendo contra ela uma necessidade de autoafirmação que, se mesmo aos 60 anos de idade não conseguiu superar, deveria ter dirigido contra o sistema político. Mas não, ficou a fazer declarações inconvenientes, estapafúrdias e grosseiras, que nada somavam, ao mesmo tempo em que se abismava no jogo político convencional do toma lá da cá, no qual rejeitou de boca os “ladrões do p-MDB”, para buscar de fato o apoio dos “ladrões do Centrão”, a quem ajudou a vender mais caro o apoio a Alckmin.

Se ainda lhe sobrou um mínimo de racionalidade deveria estar claro que, ao optar pela adesão à luta das facções, a saída é ser vice do PT, o que tornaria a chapa apoiada por Lula ainda mais competitiva. Se suas idiossincrasias emocionais lhe turvarem a mente e o levarem a recusar a oferta de Lula, ou se seu alegado pendor progressista finalmente predominar, talvez reste clareza suficiente para entender que se Marina o aceitasse como vice haveria uma chance de se formar uma terceira via, programaticamente frágil, politicamente fraquíssima, mas com apelo eleitoral efetivo e não faccioso para a disputa da presidência da República, solução que poderia levar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a um patamar tão periclitante quanto auspicioso.

Fica o Registro:

  • Em comentário no UOL, o professor Romano Romano classifica a operação Lula-PSB que isolou Ciro como “desastrada”, pois enfraqueceria o próprio campo da “centro-esquerda”, ou progressista, e reforçaria a estrutura oligárquica dos partidos. Ora, esse raciocínio desconsidera que mais do que oligárquicos, esses partidos estão empenhados em uma luta de facções. Uma luta assim já não leva em conta esquerda, centro ou direita, está muito além disso, como mostra, entre outras evidências, a disposição de Lula de se aliar não só a notórios corruptos como a facções que participaram do golpe.
  • A disputa entre partidos é fachada para a luta de facções, pois o que os líderes facciosos almejam é reconfigurar as facções continuamente, sempre na busca de mais poder de Estado para fazer dinheiro — nesse processo, os partidos oligárquicos são arrastados a alterarem suas alianças, que nada têm de programáticas. As minorias do PT pagam mais uma vez ( e merecidamente!!) o preço por se manterem fiéis a essa máquina tão formidável quanto infernal que é o lulopetismo. Bem feito!

RESUMO DA ÓPERA

AVISO: no dia 21 de julho publiquei aqui no blog um artigo com o título RESUMO DA ÓPERA. Horas depois, houve um incidente no DataCenter que hospeda o provedor deste blog e ele saiu do ar. A situação ainda não foi inteiramente normalizada, mas já é possível algum acesso. Não consegui, porém, recuperar aquele post publicado no dia da pane. Abaixo, publico uma outra versão do texto, feita com base num rascunho que fora salvo. 24/07/2018.

Carlos Novaes, 21 de julho de 2018

Estamos em vésperas de eleição, o país não produziu uma alternativa crível para a transformação política de que precisa, mas as candidaturas manjadas que estão aí dão a impressão de que tudo pode acontecer. Como é possível que o marasmo possa carregar tanta incerteza?

É simples: dado o abismo entre a maioria da sociedade e o Estado ocupado e disputado pelas facções estatais, abismo esse que é a própria crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o jogo político está a ser feito apenas dentro do Estado conflagrado, enquanto a sociedade assiste para ver no que vai dar.

Tudo pode acontecer precisamente porque as facções não têm compromisso, sequer laços minimamente consistentes, com a maioria da sociedade. Se houvessem compromissos ou laços, o jogo seria mais previsível porque a organicidade da política, seu caráter programático ou ideológico, vem das relações que a política constrói na sociedade para orientar a disputa pelo poder de Estado.

Como não há essas relações, como os políticos profissionais sequestraram a política, como os partidos são meras fachadas para as facções conflagradas entre si em busca de reunir poder para fazer dinheiro, não há diferenças programáticas ou ideológicas para valer, que servissem de baliza para as disputas entre eles – a disputa por poder pelo dinheiro iguala a todos.

O resultado mais visível é esse aparente paradoxo: numa eleição presidencial e congressual que deveria ser decisiva, pois a crise é imensa, a sociedade está à margem do processo político e o jogo dos políticos profissionais se fez totalmente imprevisível, pois dos arranjos entre eles pode sair qualquer tipo de variação – e isso não porque eles sejam diferentes, mas porque eles são parecidíssimos: qualquer combinação é possível. A eleição só é previsível num aspecto: ela não vai produzir uma saída para o país.

Uma evidência de que a eleição não produzirá uma saída para o país, uma evidência de que, pelo contrário, ela produzirá no máximo uma saída para as facções conflagradas, está no papel central que o chamado Centrão vem tendo no processo. O Centrão é um amontoado incerto de partidos que faz um movimento pendular faccioso entre os dois dispositivos que a Nova República herdou da ditadura paisano-militar, o DEM (ex-ARENA/PDS/PFL) e o p-MDB. Por isso, ele tanto pôde ser “liderado” por Cunha, como agora pode ser “liderado” por Maia.

Na época da ditadura, só eram permitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, que para acomodar suas disputas internas tinham sublegendas, isto é, facções internas, que podiam disputar as eleições umas contra as outras. Com a chamada redemocratização, essas sublegendas foram se reconfigurando e dando origem a vários partidos, que trouxeram os mesmos comportamentos que já tinham sob a ditadura. Na mesma redemocratização, a maioria da sociedade produziu duas alternativas que a levassem para longe da ditadura, o PSDB e o PT, a foi a esses partidos que ela favoreceu, pois confiava neles.

Como a transição foi lenta, gradual e segura, os antigos dispositivos paisanos da ditadura (PDS/PFL/DEM e p-MDB) continuaram funcionando, senhores supremos da política miúda para negócios graúdos. É por isso que o Centrão oscila entre ser liderado pelo DEM e pelo p-MDB, a depender das vantagens oferecidas, todos se revezando como o marisco da vez no casco do Estado de Direito Autoritário em cujo topo vieram se revezando, por sua vez, os dois partidos aos quais a maioria da sociedade imprudente e comodamente delegara o seu destino: o PSDB e o PT.

Ou seja, esses trinta anos da chamada redemocratização foi o tempo necessário para que as velhas forças cooptassem, corroessem e, por fim, descartassem os dois partidos que a sociedade havia favorecido na busca pela consolidação democrática num Estado de Direito Democrático.

Ficamos atolados num Estado de Direito Autoritário porque os partidos saídos dos dispositivos paisanos da ditadura jamais deixaram de manejar o processo político, negociando a chamada governabilidade na base de vantagens arrancadas do Executivo federal e do manejo de postos de mando nos entes federados. Essas vantagens dependem da ocupação dos cargos de confiança e dos benefícios que conseguem do orçamento federal.

É esse arranjo que está na base do nosso presidencialismo de coalizão, uma coalizão que oscila conforme os cálculos que esses partidos fazem acerca do que podem receber – essa é a base do nosso sistema, celebrado pela nossa ciência política acadêmica como um modelo de bom funcionamento do nosso multipartidarismo.

Para essa gente, o fato de dos quatro últimos presidentes eleitos, dois terem sofrido impeachment pela ação desses fisiológicos insurgidos (Collor e Dilma) e os outros dois (FHC e Lula) terem traído completamente seus programas de mudança e/ou transformação para se acomodarem a esse mesmo fisiologismo regado a corrupção, que condena o país ao atraso e o povo ao sofrimento, são prova inquestionável de que o sistema político brasileiro é sólido!

Eles celebram como um caso de sucesso democrático o fato de a eleição não fazer diferença, pois o resultado é sempre o mesmo: um acerto entre os políticos que lhes permite desfrutar do poder para fazer dinheiro. Acredite, leitor: tem muita gente que fez e faz carreira acadêmica no Brasil sustentando essa tese esdrúxula.

Sabe como eles provam isso? Eles pegam os números saídos das votações congressuais (fora as dos impeachments, claro) e mostram como os parlamentares são obedientes ao que o presidente da República enviou ao Congresso. Como os números se mostram semelhantes aos de outros países, eles imaginam ter provado que nosso sistema funciona.

Ou seja, para esses cientistas políticos, não importa como a linguiça é feita, seus custos ou se ela provoca ou não indigestão em quem a consome, o que importa é que o jeitão dela se parece muito com a linguiça estrangeira – é mais ou menos como o LamborgUNO, o Lamborghini feito por um brasileiro através da transformação habilidosa de um Fiat Uno…ficou igualzinho…

Para essa ciência política, pouco importa se o voto do congressista favorável ao presidente tem as seguintes origens:

– o presidente consultou antes, e envia o que sabe que agrada ao parlamentar (como a maioria dos parlamentares é eleita através de esquemas eleitorais e de interesse que vêm desde a ditadura, imagine o que agrada a eles…);

– o presidente ofereceu ao parlamentar cargos, obras ou verbas, e recebe o voto em troca — isso se não estiver pedindo demais (e pedir demais é pedir qualquer coisa que, por exemplo, enfrente a desigualdade ou provoque alterações políticas que dificultem a reeleição do parlamentar…);

– o presidente deu ao parlamentar, direta ou indiretamente, dinheiro saído da corrupção e recebe de volta a governabilidade (uma governabilidade que dura enquanto não surja uma crise maior do que o arranjo pode digerir, o que sinaliza que é hora da manobra do impeachment…).

Num sistema assim, só não obtém governabilidade quem for inepto, certo? Por isso, Collor e Dilma caíram. A diferença é que na queda de Collor ainda haviam esperanças em PSDB e PT; já a queda de Dilma arrastou para a vala comum PSDB e PT. No pós-Collor a maioria da sociedade se acomodou à expectativa de consolidar a democracia num Estado de Direito Democrático pelo protagonismo de PSDB e PT; no pós-Dilma a maioria da sociedade vive a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a que PSDB e PT se acomodaram para poderem brincar de protagonismo.

Com isso, chegamos em frangalhos a uma eleição presidencial em que o protagonista é o Centrão – o cachorro alcançou o próprio rabo.

Veja bem, leitor: o Centrão era uma arregimentação confinada ao jogo intra-muros, longe do eleitorado. O Centrão nunca foi uma força propriamente eleitoral, foi sempre uma fenômeno do jogo pós-eleitoral, do jogo que se faz no Congresso depois das eleições, um jogo destinado a submeter aos interesses congressuais atrasados o que quer que tenha saído da escolha da maioria da sociedade na eleição presidencial.

A crise é de tal ordem, a desorientação da maioria da sociedade é tamanha, que o Centrão está a acreditar que pode fazer a encomenda desde já! Ou seja, para que esperar a trabalheira congressual se podem obter desde já o presidente que lhes vai atender? Com a ruína de PSDB e PT o facciosismo deixou o Estado e busca colonizar a própria dinâmica pela mudança que, mal ou bem, as eleições presidenciais vieram significando no curso desses trinta últimos anos.

Já não contentes em roer a carga, os ratos subiram do porão para o convés e querem assumir diretamente o comando do navio, numa consagração do “parlamentarismo de ocasião” enjambrado por Temer, cuja “exitosa” governabilidade exibe números de fazer inveja a Obamas e Trumps.

Pelo andar da carruagem, nossos cientistas políticos de carreira vão obter números consagradores para suas teorias novidadeiras — pelo menos até que a crise recrudesça.

Fica o Registro:

  • Ciro e Alckmin se mostraram faces da mesma moeda, ambos saídos do que outrora foi o PSDB e, por isso mesmo, ambos disputando o apoio do Centrão “liderado” pelo DEM, inteiramente imersos na luta de facções, que pouco caso faz da maioria da sociedade.
  • Lula, que também queria o apoio do Centrão, alardeia compromisso com bandeiras há muito esquecidas para obter coesão de incautos à esquerda. Ao mesmo tempo, fica enviando recados aos de cima, como se ainda fosse necessário sublinhar que não é bem assim…

FACCIOSISMO FEZ DE LULA UM PRESO POLÍTICO

Carlos Novaes, 08 de julho de 2018

[Com acréscimos em 09/07 e em 10/07, em Fica o Registro]

Como já dito, detalhado e explicado: embora não tenha nenhuma simpatia política por Lula, entendo que a condenação que o levou à prisão foi exarada sem provas. A prisão dele foi uma decorrência não do funcionamento da Justiça, mas do fato de que Lula chefia uma facção estatal que foi desalojada da condição de protagonista no exercício faccioso dos poderes institucionais pela ação convergente das facções concorrentes no âmbito desse teatro de operações em que a Lava Jato se transformou faz tempo. Por isso mesmo, todo o esforço de Lula e dos lulopetistas que sabem o que estão fazendo está voltado não para transformar o Brasil, mas para voltarem à condição de protagonistas no exercício do mando em nosso Estado de Direito Autoritário, como ficou claro nas circunstâncias em que se deu a prisão do petista, discutidas aqui e aqui.

Diante desse esforço do lulopetismo, as facções adversárias têm reações diferentes, conforme tenham mais ou menos razões para temer que Lula tenha êxito. As facções mais orientadas pelos interesses eleitorais tucanos atuam de modo a manter Lula na prisão, temendo mais os prejuízos eleitorais de uma volta dele ao cenário do que os prejuízos evidentes infligidos ao país por uma prisão assim arbitrária. As facções que sabem poder compor eleitoralmente com Lula, nas quais o p-MDB tem papel articulador, têm dado sinais crescentes, embora não unânimes, de que aceitariam um rearranjo em torno do petista.

Girando para além do eixo propriamente eleitoral, braços mais ajuizados das facções estatais estão cientes não apenas de que a eleição programada, tenha o resultado que tenha, não resolverá a crise de legitimação do Estado, mas também de que a situação de Lula fragiliza ainda mais o exercício faccioso dos poderes institucionais. E isso por duas razões: primeiro, Lula preso mantém na ordem do dia a exigência de que outros implicados também sejam presos, o que impede a reestabilização do arranjo mais geral; segundo, a força do prestígio de Lula, revigorada pela prisão sem provas, torna impossível simular para a sociedade, sem a participação do petista, que a crise de legitimação do Estado foi superada.

Em outras palavras, para os facciosos que querem manter o status quo e têm juízo o impeachment deu tão errado que o ideal, agora, seria poder voltar à situação pré-eleitoral de 2014: tentar a sorte optando por se alinhar contra ou ao lado de Lula, buscando os arranjos de poder que a escolha implicar (tal como teria sido possível se Lula tivesse assumido a Casa Civil sob Dilma). São essas circunstâncias complexas e os cálculos não menos complexos delas decorrentes que explicam sejam as decisões em série da maioria facciosa da segunda turma do STF, determinada a tamponar as vias transformadoras que foram abertas contra o autoritarismo do Estado de direito brasileiro; sejam as movimentações dos militares, que não estão dispostos a “matar os 30 mil” do Bolsonaro para manter vantagens que podem conservar se repavimentarem as pontes com Lula; seja a concatenação facciosa escancarada entre Fachin, TRF-4 e Moro, que insistem em manter um programa máximo unilateral que torna uma piada de mau gosto o que quer que se possa entender com uma causa republicana.

A movimentação ocorrida neste domingo em torno do habeas corpus de Lula deve ser examinada à luz do entendimento exposto acima. A frenética concatenação entre Moro e o TRF-4 escancara uma articulação facciosa que já fora possível perceber quando Fachin recebeu celeremente do mesmo TRF-4, como que por encomenda, a decisão que lhe permitiu evitar a votação de um pedido de soltura de Lula na mesma segunda Turma. Como a decisão de soltar Lula também foi facciosa, a conflagração das facções estatais atingiu um ponto que torna ridículo que alguém ainda fale em Estado democrático de direito, como fazem as facções em disputa, cada uma reivindicando sua própria causa como um resgate ou afirmação dessa quimera.

Como quer que você se alinhe, leitor, o fato é que hoje Lula obteve um triunfo inegável: viu explicitar-se para o observador recalcitrante a sua condição de preso político. A crise de legitimação só faz crescer, o que apequena a eleição e deixa cada vez mais clara a fraqueza dos candidatos à presidência.

Em 09/07 — Fica o Registro:

  • O tom predominante do que hoje aparece na mídia sobre esse episódio do habeas corpus do Lula é o de que houve falha jurídica, trapalhada, palhaçada, atropelo de hierarquia, bizarrice, partidarismo jurídico e por aí vai:  puro escapismo de quem não vê ou finge não ver a gravidade do que se passa no Estado brasileiro. Todas essas “análises” tem em comum o fato de se concentrarem improdutivamente na conduta particular dos personagens envolvidos (e, até, no caráter deles!), como se a enormidade do que se passa pudesse ser explicada pelas escolhas desses indivíduos, como se fosse possível não estabelecer conexão direta entre esse episódio e todas as outras decisões mais recentes no STF pró e contra Lula e outros réus e suspeitos da Lava Jato, ou mesmo as mais recentes decisões pestilentas do Congresso sobre agrotóxicos, ou ainda a manutenção de vantagens estatais para facções estatais, como o auxílio-moradia aos juízes — a crise também é crise de legitimação ali onde as facções enxergam oportunidades, leitor. Enfim, olhados em seu conjunto, esses embates nada têm de personalizados e deixam claro que está a ficar a cada dia mais aguda a guerra de facções no curso da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário — como já foi dito há tempos, só na rua o Brasil tomará o rumo de um Estado de Direito Democrático.
  • 10/07 — Mais claro, nem por encomenda: a imprensa traz hoje relato detalhado de como deputados do PT, inclusive à revelia da defesa técnica de Lula, agiram para exibir deliberadamente a guerra de facções estatais em que se movem os lulopetistas e seus adversários, justificando inteiramente o texto publicado aqui quando Lula se entregou sem se fazer prender: Lula dobrou sua aposta na guerra de facções. Tal como as outras facções, os lulopetistas tentam manejar a opinião pública que já é, e que pode vir a ser, favorável à causa deles não para tirá-la da inércia, mas apenas para aumentar-lhes o cacife tanto na guerra faccional em si quanto nessa eleição ridícula, voltada a simular a superação da crise de legitimação que engolfou a todas as facções. Como é próprio de situações assim agônicas, em que a marca dos protagonistas é a cegueira para o abismo em cuja borda estão a dançar, essas facções estatais não param de ver oportunidades ali onde abrem portas para o caos: as facções no Judiciário (judicação) querem incorporar o auxílio-moradia aos salários; as facções nos presídios (violação) se mostram mais sangrentas do que nunca em sua própria luta por hegemonia; as facções no Executivo (gestão) prevaricam na selva e na cidade em troca de vantagens imediatas, pouco se lixando para o futuro (em que já estarão mortos); e as facções no Congresso (representação) têm aprovado toda sorte de legislação retrógrada e nociva, ao mesmo tempo em que se redistribuem entre as candidaturas presidenciais, garantindo interlocutores seguros por toda parte para, naturalmente, voltarem a se acertar depois das eleições no intuito de mostrar quem manda ao novo presidente da “República”, que docemente constrangido aceitará a canga — a menos que a maioria da sociedade se mexa.

SOCIEDADE DEMOCRÁTICA CONTRA ESTADO DE DIREITO AUTORITÁRIO

Carlos Novaes, 09 de junho de 2018 – 21:59H

[com acréscimos em Fica o Registro, em 13/06]

 

Em junho de 2013 o estopim para que a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário ganhasse as ruas foi o aumento de R$ 0,20 no transporte de gente; em junho de 2018 estamos às voltas com uma redução de R$ 0,46 para o transporte de cargas: assim como os 0,20 não resolveram, os 0,46 também não resolverão — é que o veículo que transporta a equação que há trinta anos não fecha precisa de uma troca de eixos, leitor, e em movimento.

Em 1989, em pleno impulso democrático para deixar a ditadura para trás, realizamos eleições presidenciais solteiras com ampla representação das motivações e interesses presentes na sociedade brasileira de então; em 2018, em plena crise de legitimação do Estado de direito enjambrado em 1989, realizaremos, além de eleições presidenciais, eleições para todos os outros cargos eletivos estaduais e nacionais. Não obstante essa profusão de cargos em disputa, não há em 2018 nada que se compare ao intenso engajamento eleitoral havido para a disputa de um único cargo em 1989 – é que os políticos profissionais que em 1989 arremedavam representar as preferências e interesses saídos do pendor democrático da maioria da sociedade estão hoje entrincheirados em facções na defesa de preferências e interesses autoritariamente contrários ao pendor democrático da maioria da sociedade (eles levaram 30 anos se unindo e agora atuam afinados, ainda que disputando uns contra os outros os postos de mando, estejam em palácio ou em presídio).

Produziu-se assim uma situação a que os louvadores de um suposto “Estado democrático de direito” a ser preservado estão a chamar de paradoxo: uma sociedade que vive a crise da sua democracia e precisa de mudança para ir adiante se mostra desinteressada de uma eleição geral a se realizar daqui a menos de seis meses. Mas não há paradoxo algum, pois não só a crise não é da democracia (que vai muito bem, obrigado), mas do Estado de Direito Autoritário, como também a maioria da sociedade está a se dar conta de que o buraco real é muito mais embaixo do que a boca virtual da urna: mais uma eleição no formato da política tradicional não nos serve, pois nesse formato a política vai continuar a ser essa engenhoca com o eixo das facções estatais a girar na vertical (feito moenda), e o nosso, o da sociedade, a rodar na horizontal (empurrado sem proveito comum), nos condenando a continuar a marchar em círculos cada vez mais torturantes – sendo “de legitimação”, a crise é muito maior do que uma eleição no Estado ilegítimo pode dar conta! Nem sobre os trilhos da bitola militar esse veículo esdrúxulo poderá ir adiante.

A equação que não fecha (dimensão social, política e econômica da crise) e o facciosismo político conflagrado (dimensão estatal da crise) foram sendo armados no curso desses trinta anos em que, de um lado, a maioria da sociedade brasileira tirou consequências do seu pendor democrático e, de outro lado, a minoria que se adonou do Estado de direito tirou proveito do exercício faccioso dos poderes institucionais. Correndo por baixo desses dois movimentos opostos (um vindo de baixo, da sociedade; outro vindo de cima, do Estado), mas dando solda contraditória a eles, a desigualdade deu fundamento ao que só poderia desembocar nessa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: à vivacidade de luta democrática da maioria da sociedade contra os sofrimentos impostos pela desigualdade correspondeu o apego crescente das facções estatais às regalias oferecidas pela mesma desigualdade – embaixo se lutava por direitos democráticos (todo o rol conhecido: educação, saúde, moradia, reconhecimento, emprego, terra, expressão de si etc.); de cima, com a força, se negavam à maioria os seus direitos, e, com a caneta, se defendiam privilégios e roubo (salários acima do teto, auxílios, bonificações, corrupção, previdência própria etc.).

Enquanto a desigualdade corria (e corroía) por baixo, adejava por cima a fantasia vampira do “Estado democrático de direito”, pela qual se tentou precisamente esconder esse abismo entre a sofrida disposição de luta dos de baixo e a regalada locupletação bruta dos de cima. É a esse Estado imaginário que querem que a gente defenda nessa hora tão pouco propensa à fantasia — como disse Riobaldo, “quem mói no aspro não fantaseia”.

Ilusão chama fantasia. Uma fantasia nociva do momento se parece muito com uma outra, de há não muito tempo: em junho de 2013, se disse fantasiosamente que o movimento contra o aumento das tarifas do transporte de gente se desdobrou daquele modo em razão da fraqueza do governo Dilma; em junho de 2018 estão a dizer que o movimento em favor do aumento das tarifas do transporte de carga está a se desdobrar desse jeito em razão da fraqueza do governo Temer. Não. Ambos os movimentos são expressão de algo que não apenas está além, mas explica a fraqueza desses governos: a crise de legitimação de um Estado de Direito Autoritário em profunda incongruência com a dinâmica democrática da maioria da sociedade que ele oprime para manter a desigualdade que a infelicita. Veja bem, leitor, essa incongruência está muito clara: num país de população ainda moça, com mais de 150 milhões de eleitores, tentaram manter uma desigualdade de burro de carga junto com liberdades de opinião, imprensa, manifestação, organização e voto!!

Fica claro, portanto, que houve nesses 30 anos dois movimentos contrapostos saídos da luta contra a ditadura paisano-militar: um dinâmico, rico e maravilhoso empuxe por direitos vindo da sociedade (que vai da parada gay aos sem-terra, sem-teto, sem-nada, passando por toda sorte de demandas econômicas, comportamentais, sociais, ambientais, étnicas e culturais); e uma reação resiliente, engenhosa, corrupta e brutal vinda do Estado (que vai do atrelamento da economia ao Mercado à matança dos pobres nas favelas, passando por toda sorte de arbitrariedades saídas do exercício faccioso dos poderes institucionais, exercício este que também serviu para cooptar e degenerar as duas forças políticas em que a sociedade havia confiado justamente para se contrapor a esse estado de coisas: PSDB e PT).

Como é que alguém pode dizer que é a democracia que está em crise, que um quimérico Estado democrático de direito está ameaçado?! Não. Encarar a crise desse modo é desviar as energias para um combate errado e implausível, é pretender que as pessoas se mobilizem para salvar esse Estado, que elas, finalmente, estão em vias de enxergar que é o problema, não a solução, pois até a Constituição já foi rasgada. Dizer a democracia em crise é jogar fora todo o esforço de luta feito pela sociedade no curso desses trinta anos.

Querer salvar o Estado de Direito Autoritário vai ajudar a que nossos adversários encontrem uma saída, e essa saída só poderá ser pela, aí sim, diminuição das franquias democráticas que nutrimos até aqui, pois se permitirem a continuidade do nosso dinamismo democrático eles não conseguirão a re-estabilização que pretendem com essa eleição ridícula, com esses candidatos ridículos, que há menos de seis meses para a eleição, numa hora grave dessas, comparecem a entrevistas e sabatinas para dizerem que ainda estão pensando no que propor para problemas com os quais o país está a lidar faz décadas. Tem gente que está na segunda ou terceira tentativa de chegar à presidência e ainda não deu conta de fazer um diagnóstico claro, com propostas claras, tudo está “aberto ao debate” – por que diabos deveria o eleitor incauto acreditar que farão nos próximos três meses o que não deram conta de preparar nos últimos dez anos?!

Em suma, na Nova República saída da luta contra a ditadura paisano-militar, a democracia deu certo, pois ela dependia do povo; e o Estado de direito deu errado, porque ele foi deixado nas mãos dos políticos profissionais e hierarcas. Esse Estado de direito já não dá conta de viver com essa democracia, está sem legitimidade, e as pessoas estão a se dar conta disso. Essas instituições não nos servem e os políticos e hierarcas que gravitam nelas também não, precisamos transitar para uma nova ordem institucional.

Que essa crise tenha ganho as ruas em 2013, e volte a elas em 2018 pela mesma razão não é casual. Esses movimentos tarifários remetem, ambos, diretamente, à fonte energética básica da economia e, com ela, da sociedade: o petróleo – uma riqueza mineral que é de todos e sem a qual o país não anda. Como a economia está centrada na manutenção e reiteração da desigualdade, sua fonte básica de energia não poderia deixar de, um dia, refletir as contradições acumuladas, e nos dois módulos do ir e vir: o das gentes, tão sofridas na luta por bens; e o dos bens, tão desigualmente distribuídos entre a gente. Esse dia chegou e resolver o problema está além de improvisos na boca do caixa ou na estrutura tributária. Precisamos de outra ordem econômica, com outra arrumação para o petróleo.

Assim como apoiou o movimento dos transportadores até o limite em que entre eles apareceu a demanda ditatorial, a maioria da sociedade brasileira pode ser levada a entender que chegou a hora de uma desobediência civil que exija eleições gerais constituintes sem limitações de ordem partidária, com igual oportunidade para todos, muito além da bitola estreita dessa eleição acanhada que estão a nos impor. Do contrário, a crise ressurgirá com força total depois da eleição, se não for antes…

[13/06] Fica o Registro:

  • Em artigo na Folha de hoje, Vinicius Torres Freire traduz de modo muito instrutivo a média do desespero que corre pelas redações com a situação do país, especialmente quando se leva em conta o que venho dizendo aqui sobre a crise de legitimação do Estado e o divórcio respectivo entre a guerra das facções estatais entre si e contra a maioria da sociedade. Freire aponta o que chama de “vale tudo” (sem notar que não é bem “vale tudo”: para eles, não vale dar força ao que há de republicano nas facções — contra isso eles se unem); diz que “nosso buraco é muito mais embaixo”; afirma dos políticos que a “atitude preponderante é saquear”; nos diz em “um ambiente de desagregação partidária e sociedade desorientada”… Entretanto, a despeito de todas essas constatações, nas quais o leitor deste blog pode ver aspectos da guerra de facções que caracteriza a face propriamente estatal da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, Freire fica a oscilar entre a fantasia e a desistência: ou sonha com um entendimento entre o Congresso atual e o próximo presidente, no que seria uma antecipação da governabilidade… ou entrega os pontos, se rendendo aos “defensores das trincheiras econômicas”… A desorientação de Freire é a mesma de todos os que não enxergam a crise de legitimação do Estado — não querem ver que não há a quem recorrer olhando para o alto, simples assim. Essa “antecipação da governabilidade” seria o sinal de que o  próximo presidente já estaria engolido pela lógica das facções antes mesmo da posse, arranjo que só poderia dar certo com um aprofundamento do exercício faccioso dos poderes institucionais, na linha de transpor a crise de legitimação com mais autoritarismo, não mais democracia. Uma “antecipação” dessas seria, aliás, a solução dos sonhos para os tais “defensores das trincheiras econômicas”. Quanta cegueira!
  • Em um outro artigo, também na Folha de hoje, Paula Martins, Camila Barroso e Mariana Rielli apontam minuciosamente o recrudescimento, desde junho de 2013, das ações do Estado contra o direito democrático de manifestação da sociedade. Elas demonstram que “a articulação entre Executivo, Legislativo e Judiciário se tornou mais orgânica” e constatam que “a repressão a protestos urbanos de massa – que, vale dizer, reproduz a prática corriqueira da violência estatal em espaços periféricos do país – nunca cessou”. Não obstante, as autoras não articulam esse estado de coisas tão bem descrito com o fato de que essa “coesão orgânica” se dá em meio a uma luta de facções no âmbito do mesmo Estado que vêem mais coeso. E não o fazem porque não enxergam que essa “articulação mais orgânica” do Estado contra a sociedade é uma resposta regressiva e precária, dele, à sua própria fragilidade estrutural, à sua crise de legitimação. Ou seja, a tal “coesão orgânica” é só do guichê para fora, pois para dentro é pau puro, pelo menos até que se resolva uma nova hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais. Um dia se dirá que o cavalo passou encilhado e só Carolina não viu.

A INÉRCIA TEM SENTIDOS…

Carlos Novaes, 31 de maio de 2018 – 17:38h

[com acréscimos em 01 de junho, em 02 de junho — e em 03 de junho]

Ao final do artigo de ontem acrescentei uma interpretação rápida dos números da pesquisa telefônica do DataFolha sobre a paralisação dos transportadores rodoviários de cargas – infelizmente, não disponho do banco de dados da pesquisa e, assim, estou impedido de explorar os números em sua efetiva riqueza. Não obstante, nas linhas a seguir, vou tentar desenvolver aquelas observações sumárias, ajustando-as com mais precisão (suponho) ao que venho escrevendo sobre a situação brasileira. Sigamos a passo.

Faz tempo, muito tempo, que venho apontando o curso por assim dizer paralelo entre a progressão da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais desse mesmo Estado, facciosismo este que, como já expliquei aqui e em muitos outros artigos, se estende dos presídios até o palácio do Planalto, engolfando todas as instituições de Estado do país, inclusive o STF – de Marcola a Temer, de Beira-Mar a Gilmar, passando pelos bem intencionados, mas não menos facciosos, Janot, Facchin, Barroso & Cia. A conflagração é geral porque já não há solo institucional comum e o Estado democrático de direito não existe nem jamais existiu, foi uma ilusão cujo véu se rompeu quando a crueza do facciosismo, apoiada nos dispositivos paisanos e militares herdados da ditadura paisano-militar, se espraiou das favelas para os palácios e seus jardins.

Uma crise assim prolongada e escancarada pode, como estamos a ver, deixar de ser enfrentada, mas não pode deixar de ser sentida. É o que mostra a pesquisa DataFolha: 87% dos entrevistados disseram apoiar a paralisação e nada menos do que 56% entenderam que o movimento devia continuar, mesmo diante da cobertura contrária da mídia (que foi mudando de sentido segundo crescia a virulência do movimento – nunca se sabe…). Não obstante essa expressiva “adesão” de opinião, não houve engajamento, ou seja, a inércia permaneceu. Num primeiro momento, ontem, me deixei levar pela inércia das minhas próprias reflexões e tomei essa inércia da maioria da sociedade como mais um sinal da sua inconsequência: vê, mas não quer enxergar; ou, quando enxerga, não quer se dar ao trabalho de lutar. Talvez não seja bem assim, ou melhor, talvez não seja só isso.

Uma “adesão” de opinião tão maciça não decorre de uma mera solidariedade com as dificuldades dos transportadores, afinal, eles não vivem nenhuma tragédia, seus sofrimentos nada têm de inauditos, que justificassem uma solidariedade propriamente de massas, como houve. Antes pelo contrário, a adesão resultou justamente do caráter comum, generalizável, dos sofrimentos vividos por mais esse segmento da atividade laboral no país. Ou seja, ao adotarem opinião favorável ao movimento as pessoas estavam falando de si, estavam expressando o modo como sentem em suas vidas a erosão do pacto do Real, que pretendeu levar adiante um país de 200 milhões de habitantes mantendo uma desigualdade de harém sob um Estado de Direito Autoritário ao qual aderiram as duas forças traidoras saídas da luta contra essa mesma desigualdade, PT e PSDB. Como a equação não fecha, 87% apoiaram o movimento.

Temer, esse golpista mafioso, do p-MDB, claro, está na presidência, mas não governa, pois já não há governo faz tempo (e, atenção, isso não é força de expressão): a crise de legitimação do Estado chegou a um ponto em que a conflagração das facções já não permite gestão (Executivo), nem representação (Legislativo), sendo que a judicação (Judiciário) que persiste é facciosismo escancarado, como dão exemplo, entre outros, a desfaçatez deletéria de Gilmar e o voluntarismo benéfico de Barroso. Pois bem, numa situação assim, qualquer reação (esse é o termo) estatal a reivindicações da sociedade será sempre recebida como insuficiente, pois a suficiência só seria atingida com a capitulação definitiva da ordem malsã, isto é, com a superação da crise de legitimação do Estado que já não tem como acertar. É por isso que a resposta às enormes concessões de Temer aos transportadores foi de recusa – nada que ele fizesse seria bem recebido, porque não se trata da resposta, mas do que ela simboliza (a permanência da (des)ordem).

Nada mais errado, portanto, do que interpretar os 77% e os 96% de desaprovação à reação do golpista como reflexo do desprestígio do seu governo, como dizem equivocadamente hoje os próprios analistas do DataFolha. Não. A crise já está um passo adiante: já não é o governo Temer que está em questão, mas o Estado de Direito Autoritário, ainda que as pessoas não tenham clareza disso, é óbvio. Afinal, de que outra forma interpretar os 96% que entenderam que Temer demorou a responder, se a maioria absoluta (56%) acha que o movimento deve continuar, e se 87% o apoiam?! Não se pode querer maciçamente resposta rápida para dissipar movimento benéfico que se quer ver continuar! Ou seja, os números não são contraditórios se entendermos que é como se a maioria das pessoas dissesse “apoio e quero que continue porque o que interessa no movimento não é exatamente o que pedem os transportadores, mas a contestação enquanto tal”.

Primeira conclusão: 87% apoiaram o movimento porque sentem a encruzilhada do fim do pacto do Real e 56%, 77% e 96% queriam, respectivamente, a continuidade do movimento e criticaram a resposta de Temer porque estão a se dar conta, com maior ou menor clareza, de que estão imersos numa crise de Estado, numa crise de legitimação, para a qual intuem, mas não encaram, que só há saída se a sociedade se puser em movimento.

Ao não encarar a exigência de agir, ao aferrar-se à inércia, a maioria se limitou a “apoiar” o movimento, mas recusando pagar-lhe a conta (outros 87%). Coerentemente, a maioria absoluta não deixou de registrar que os mais prejudicados são “os brasileiros em geral” (56%). Considerando que a ninguém pode escapar a evidência de que resolver um movimento desse porte não pode deixar de ter custos, a recusa em “pagar a conta” não é mera irracionalidade: as pessoas estão, por via indireta, indicando que solução para o transporte de cargas no país não virá de subsídios ao diesel ou de ajustes tributários precários, ou seja, elas intuem que será necessário um rearranjo mais geral, algo que não está ao alcance deste Estado, fundado nesse pacto falido, aferrado à manutenção da desigualdade. Mais uma vez, a crise de legitimação está no limiar de vir a furo e a recusa em “pagar a conta” pode não ser só inércia.

A virulência danosa do movimento emparedou as facções estatais e a facção palaciana não obteve das facções policiais e, sobretudo, militares, a obediência que teria recebido se o Estado de Direito Autoritário estivesse em condições de fazer um uso legítimo da força. Em outras palavras, o fato de a PRF e o Exército terem pipocado, a ponto de terem assistido, ao vivo e em cores, a pura e simples manutenção de bloqueios e até a destruição de caminhões, não fala propriamente da fraqueza do governo Temer, mas da crise de legitimação do Estado: cada facção está fazendo seus próprios cálculos, pois não sabe o dia de amanhã. E é aqui que entramos no que de mais difícil apreensão houve nesse episódio.

Mesmo depois de dias de turbulência — com a imprensa (vide o Jornal Nacional) tendo deixado de flertar com o movimento pelo que viu nele de anti-Temer, e passado a combatê-lo pelo que havia nele de além-Temer – e de o governo ter feito generosas concessões, os entrevistados não hesitaram em dar preferência à negociação se o movimento continuasse: 88% disseram preferir a negociação e apenas 9% declaram preferir o uso das FFAA e da polícia.

Uma recusa tão abrangente ao uso da força não deixa de intrigar quando pensamos na deriva autoritária de parte do movimento, que foi crescentemente expondo a demanda por “intervenção militar já”. Ora, se o apoio não-ativo da maioria fosse apenas inércia, seria natural que houvesse uma adesão mais expressiva à ideia de uma ação militar, ou seja, seria de esperar que mais gente inerte aderisse aos apelos para que “alguém”, no caso, as FFAA, fizesse alguma coisa. Mas não foi assim. Como já explorado no artigo de ontem, as expectativas de sentido democrático com a eleição de outubro jogaram aqui o seu papel, mas talvez não tenha sido só isso. Talvez a maioria das pessoas não tenha apoiado mais ativamente o movimento precisamente por ter sentido seu viés autoritário – nessa leitura, o distanciamento das pessoas se deu exatamente porque elas sentiram que reforçar o movimento seria incrementar a demanda por “intervenção militar já”.

Segunda quase-conclusão: o apoio da maioria da sociedade aos transportadores de carga teria parado ali onde o movimento deles indicou a abertura de uma via autoritária para a superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário; situação que, a contrapelo, indica que a crise brasileira está desfalcada de liderança democrática resoluta e transformadora, que possa dirigir auspiciosamente a opinião pública, o que dá ocasião a todo tipo de oportunismo “democrático”.

Dessa perspectiva, as declarações de Bolsonaro, cujo sentido busquei agarrar já no artigo de ontem, merecem tratamento mais detido.

Ao fazer profissão de fé pela democracia, mas indicando a meta de trazer os militares de volta pelo voto, o ex-capitão explicitou um movimento estratégico que está em curso pelo menos desde que os arroubos golpistas do general Mourão foram suavemente contidos (hoje ele é candidato a deputado – vão vendo…): tal como apontado aqui e aqui, os militares descobriram, na prática, que podem voltar à situação pré-redemocratização eleitoral sem precisarem reinstaurar uma ditadura (ainda que facções minoritárias entre eles venham atuando por um golpe puro e simples).

Na verdade, eles estão sonhando com uma situação em que além de ampliarem no Congresso (representação) os contingentes paisanos com que já contam (bancada BBB, bala+boi+bíblia), poderão também alcançar a presidência da República (gestão orçamentária) através de uma marionete, o que lhes proporcionaria cada vez mais desenvoltura para atuar na cena cotidiana. Daí terem pipocado na repressão ao movimento dos transportadores e não terem embarcado na insânia da “intervenção militar já”, não obstante aproveitem o alarido boçal como banho-maria para o “prestígio dos militares” medido pelas pesquisas, “prestígio” esse que se deve antes ao conservadorismo de quem responde às pesquisas de avaliação institucional sentindo que não tem para onde correr do que a uma presumida confiança neles.

Num cenário desses, o lulopetismo não tem como escapar de ficar brincando de autoafirmação, pois não pode ver como oportunidade emancipatória a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que ele próprio ajudou a conservar segundo a mais baixa das formas de adesão ao establishment: a corrupção. De braços dados com isso, numa prova de indigência intelectual e covardia política, o restante da autointitulada esquerda fica a paparicar o líder decaído dessa traição histórica e a se pavonear como defensora de uma Constituição que já foi rasgada, revestindo essa capitulação de toda uma parafernália conceitual que já de nada serve, enquanto se descredencia como agente transformador, ficando à margem do afloramento raro de contradições que gerações de militantes jamais viveram, embora ele tenha povoado os seus melhores sonhos.

É quase desesperador, pois enquanto não há no horizonte movimento capaz de indicar uma saída não-autoritária para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, as forças reacionárias e conservadoras contam com vários candidatos para levar a cabo um simulacro de legitimação nas eleições de outubro.

[01/06] Fica o Registro:

  • Os soldados de baixa patente que tentaram impedir o acesso de três mulheres à confeitaria Colombo que fica na área do forte de Copacabana dão um pequeno exemplo do que será a rotina do cidadão comum em caso de vitória de Bolsonaro, Alckmin ou assemelhados na eleição de outubro — qualquer um que envergue uma farda vai ser arvorar em intérprete e executor de normas estúpidas.
  • Artigo de Vladimir Safatle publicado na Folha de hoje pode parecer convergente com o que venho dizendo, e, de certa forma, é, mas há uma diferença fundamental: para Safatle, há que fomentar o sentido anti-institucional da inércia (como se fosse possível fomentar uma revolução); para mim esse seria o caminho certo da derrota e, assim, entendo que o fundamental é explorar na inércia seu sentido de criar novas instituições. Em outras palavras: Safatle raciocina de um modo que embrulha no mesmo pacote de inservíveis tanto o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação quanto as franquias democráticas de que a sociedade brasileira ainda faz uso; para mim, separar essas duas instâncias é fundamental: quero explorar o sentido democrático da inércia no âmbito das franquias igualmente democráticas ainda existentes para superar a crise de legitimação do Estado numa perspectiva emancipatória. Dizendo o mesmo de ainda outro modo: Safatle supõe ser possível zerar a memória do que há e está disposto a correr os riscos autoritários de mais uma tentativa desse tipo; eu entendo que não há como ir adiante sem alguma memória do que há, e prefiro correr o risco de mudar menos do que gostaria, mas evitando dar o flanco ao inimigo.
  • [02/06] – O artigo de André Singer na Folha de hoje é uma pérola do besteirol covarde a que foram condenados os “teóricos” da autointitulada esquerda lulopetista depois que abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao Estado de Direito Autoritário: tal como Haddad, Singer não vê senão ameaças a um quimérico “Estado democrático de direito” em toda e qualquer movimentação social que não esteja sob o domínio das burocracias oligárquicas com as quais conviveu acriticamente no curso dos últimos 30 anos. Como se recusa a encarar que o lulopetismo é parte do entulho a ser deixado para trás, é para ele impossível enxergar alguma virtualidade emancipatória em movimentações contraditórias, cujo sentido poderia estar mais claramente em disputa (mas está) se a autointitulada esquerda brasileira não tivesse se deixado arrastar no roldão de desmoralização que atingiu o lulopetismo. Como um verdadeiro conservador, Singer viu nas incertezas do movimento “o mais perigoso vazio”, a tudo viu como conspiração e, junto com Temer, deu “graças a Deus” que tenha terminado como terminou.
  • Na mesma edição da Folha, Demétrio Magnoli, fazendo par conservador com Singer, mais uma vez mobiliza contra manifestações públicas a bobajada de sempre sobre a agressão delas ao “direito de ir e vir”. Como sabe qualquer liberal ilustrado, se esse direito estivesse em questão em obstruções circunstanciais do tráfego os engarrafamentos de nossas grandes cidades teriam de, há muito, ter se tornado matéria de nossa Corte constitucional. Enfrentando um aspecto que espertamente Singer evitou, Magnoli não vê no apoio da maioria da sociedade ao movimento senão uma forma de pensamento mágico em que uma suposta “dissociação absoluta entre causa e efeito faz parte do raciocínio”. Triste figura faz quem subestima aquele cujo desígnios não alcança, pois se é o caso de não desprezar as forças fascistas que atuaram no movimento (e é!), também não se deve classificar como irracionais as complexas escolhas que nosso povo está obrigado a fazer sozinho — por isso mesmo, quando tudo tiver dado errado, não terá sido por termos deixado de defender um presumido Estado democrático de direito, quimera que só tem servido para esconder o cotidiano exercício faccioso dos poderes institucionais contra esse mesmo povo.
  • [03/06] Francisco Bosco, em artigo publicado na Ilustríssima de hoje, dá uma prolixa volta para nos advertir de que a greve dos transportadores rodoviários de carga pode ter sentido oposto às manifestações de 2013. Chega a dar preguiça. Depois de ter feito o esforço de compadrio para comprar como boas todas as análises “amigas” da situação brasileira contemporânea (esforço no qual mistura o equivocado “pemedebismo” de Marcos Nobre e o risível “lulismo” de André Singer), Bosco vai concluir que ainda é muito cedo para avaliar junho de 2013, como se conhecer o sentido de junho de 2013 fosse um resultado intelectual definitivo, não uma tarefa prática aberta que nunca termina, pois a memória refaz o passado. Ora, o sentido de junho de 2013 sairá da capacidade que tivermos, ou não, de dar sentido emancipatório para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que vem em curso, da qual junho de 2013 foi sintoma tanto quanto a manifestação dos transportadores acaba de sê-lo. Nessa disputa pelo sentido da crise, tem pouca valia se contrapor diretamente ao afeto antipetista, pois não só o lulopetismo deu motivo de sobra (a traição, a corrupção e seus conexos) para essa insânia como ela é uma resposta proporcional ao desfazimento da fantasia coletiva da decolagem nacional que o mesmo lulopetismo tinha encenado (também daí o ódio). Não dá para ser emancipatório e, ao mesmo tempo, se empenhar em salvar Lula e o PT — eles se tornaram definitivamente parte do problema, não da solução. Olhada com atenção, essa floreada abordagem de Bosco, assim como outras que ficam se refugiando na interpretação de junho de 2013, reflete o cagaço diante da radicalização da crise que naquela altura estava a dar apenas os seus primeiros sinais de rua — vamos perder essa parada porque nossa vanguarda bem pensante ficou defendendo o ilusório Estado democrático de direito a que se acomodou ao invés de contribuir para a generalização da compreensão de que estamos diante de uma benfazeja clássica crise de legitimação do Estado que, na outra ponta, gente como Sheherazade, Kataguri e Villas Boas quer manter em sua forma de Estado de Direito Autoritário (daí compartilharem o cagaço).

CRISE DE LEGITIMAÇÃO, INÉRCIA E ELEIÇÕES

No contexto da paralisação do transporte de cargas

Carlos Novaes, 30 de maio de 2018 — 01:13h

[com acréscimos às 13:00h]

Quem acompanha este blog está familiarizado com a articulação que vejo entre o caráter prolongado da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade brasileira diante das tarefas que essa crise impõe. Quero crer que também já deixei claro que essa crise de legitimação só se resolverá se a maioria da sociedade de mexer em desobediência civil contra o Estado, ou se as facções estatais agora conflagradas lograrem resolver sua crise de hegemonia para voltar à rotina do exercício faccioso dos poderes institucionais conferidos pelo Estado de Direito Autoritário àqueles que alcançam seus postos de mando, seja por via eleitoral, seja por concurso ou nomeação. É evidente que se enveredarmos por um caminho francamente autoritário, via intervenção militar, a crise de legitimação será abolida pela entronização da própria ilegitimidade do Estado, que, então, já não será “de direito”.

De novo: a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro vem prolongada porque nem as facções estatais conflagradas têm como encontrar por si mesmas um novo arranjo de arbitragem para a própria locupletação (pois elas já não contam com laços sociais que possam invocar umas contra as outras para, então, parar a sangria); nem a maioria da sociedade tem claro que essa dificuldade vivida pelas facções estatais é a evidência mesma de que já não há o que esperar delas para sequer um arremedo de bem comum.

O fio no qual vêm precariamente se equilibrando essa conflagração (no Estado) e essa inércia (na sociedade) é o respeito ao calendário eleitoral – um respeito que embora tenha orientação democrática e venha inflado de expectativas, não deixa de carregar uma forte dose de frustração antecipada, pois fora a horda boçalnarista, são poucos os que chegam a se entusiasmar com qualquer das outras candidaturas (o que é outra maneira de exibir a crise de legitimação: as pessoas querem algo mais, mas não sabem o que é).

Assim, tudo vem sendo adiado em nome da eleição de outubro de 2018 e qualquer ação anterior à eleição que traga a furo a crise de legitimação, seja pela via da sociedade (se uma desobediência civil generalizada emparedar a malsã rotina estatal que nos infelicita), seja pela via do Estado (se alguma facção estatal reunir a força necessária para submeter as outras), qualquer ação dessas, eu dizia, ou alterará profundamente a natureza do pleito ou simplesmente o abolirá. Alterar profundamente seria, por exemplo, realizar eleições realmente democráticas, que não nos obriguem a votar segundo as regras e candidaturas atuais; abolir o pleito seria, por exemplo, acabar com a democracia, impondo ao país mais uma ditadura paisano-militar.

Nas linhas a seguir vou tentar articular o conteúdo dos parágrafos acima com a paralisação do transporte de cargas por todo o país. Vou buscar fazer a articulação mencionada discutindo a paralisação tanto à luz da crise de legitimação do Estado, que postulo estar em curso, quanto à luz da inércia prolongada que enxergo na maioria da sociedade brasileira.

Um Estado em crise de legitimação prolongada é como um animal ferido: tenta se manter, até luta, mas a perda de sangue tanto o enfraquece sem parar como atiça os adversários (sejam eles oportunistas ou guerreiros), combinação adversa que reclama solução: ou vence, ou morre.

A paralisação do transporte de cargas tensiona ainda mais o equilíbrio precário de que falei mais acima porque o contraste entre a virulência danosa do movimento e a falta de resposta econômica ou política a ele torna o conjunto um êmbolo a aumentar a pressão da crise, mesmo que se simule uma “solução”: nem as facções estatais conflagradas estão em condições de dar resposta econômica sólida às reivindicações propriamente profissionais do movimento, nem a sociedade está em condições de apoiar ou repudiar ativamente possíveis desdobramentos propriamente políticos do mesmo movimento.

Não há como dar resposta econômica às reivindicações porque ela supõe um novo pacto, pois estamos a viver os estertores do pacto do Real, cuja clausula pétrea é a manutenção da desigualdade, ou “os ricos não podem perder” – qualquer solução no quadro do Estado atual seria um arremedo do que Temer fez e vêm daí as tergiversações dos presidenciáveis sobre como resolver o problema (repetir que o Temer é um incompetente golpista idiota não chega a ser uma alternativa). Ou seja, o aspecto propriamente econômico do movimento está, por si só, a apontar a crise de legitimação do Estado, pois para enfrentar um problema central como o transporte de carga será necessário discutir muito mais do que os preços do diesel e dos pedágios (tem gente falando que o que faltou foi competência aos arapongas da Abin…).

Em razão da erosão dos fundamentos do pacto, esse aspecto econômico reúne indevidamente, pelo lado da sociedade, sofrimentos reais e espertezas conjunturais: os caminhoneiros autônomos lutam para sobreviver; os empresários do transporte de carga fazem de seus motoristas agentes para o aumento de seus lucros – ambos viram na crise de legitimação do Estado (que eles confundem com a fraqueza do “governo Temer” a sangrar) uma deixa para agir, mas as motivações são muito diferentes e o fato de essa diferença não ser levada em conta é parte da inércia mental de quem observa os acontecimentos. É de registrar que nas entrevistas dadas às redes de TV as queixas dos caminhoneiros parados eram os preços do diesel e dos pedágios, enquanto os motoristas assalariados de empresas de transporte se queixavam do frio, da falta de comida, de banho, de roupa limpa…

Não há como tirar consequências prático-políticas imediatas do movimento precisamente porque elas exigiriam discernir e escolher lado nessas diferenças – teríamos de inscrever o movimento numa visada democrática para além dessa expectativa acomodada pela eleição. Não foi por outra razão que a “solidariedade” havida se resumiu à caridade de levar comida aos manifestantes e a vociferar nas redes sociais, duas formas de covardia política que apontam para o que há de fundamental na inércia e, por isso mesmo, dialogam com a deriva autoritária de parte do próprio movimento que investiu contra a inércia: quem leva comida e vocifera dá apoio malandro a quem está a agir, assim como quem pede intervenção militar está malandramente a querer que outro haja em seu lugar – esse é o fundamento da inércia dessa crise de legitimação: estamos a esperar que “alguém” faça alguma coisa.

Até aqui, a frustração com as candidaturas presidenciais oferecidas pelo calendário eleitoral em que a sociedade aposta as suas últimas fichas democráticas é um sinal subterrâneo de que a crise exige mais do que meramente esperar pela eleição. Não conseguimos enxergar nos candidatos alguém que possa agir em nosso nome precisamente porque identificamos sem querer ver que o tamanho e a qualidade da crise requerem nos darmos ao trabalho de criar a condições para forjar lideranças sintonizadas com a luta contra a desigualdade e pela consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático.

Nos dois artigos mais recentes deste blog, e em resposta a leitor de um deles, foi dito que, embora o cenário seja marcado pela incerteza, não se via sinais de que o curso do calendário eleitoral pudesse ser alterado… Bem,  esse movimento dos transportadores deu concretude à incerteza da situação e deu indicação de que a crise de legitimação do Estado talvez não caiba no calendário eleitoral tal como se apresenta. Entretanto, não vi sinais de que a coisas pudessem ir na direção de uma crítica ao Estado de Direito Autoritário, pelo contrário (até porque, em geral, o caminhoneiro, do ponto de vista político, não é senão um taxista de grande porte…).

Por outro lado, aqueles que se manifestaram contra as reivindicações autoritárias o fizeram de um modo que fortalece a ilusão de que vivemos sob um Estado democrático de direito: ficaram, como Barroso, do STF, a defender a democracia, “o feito da sua geração”, como se não houvesse crise de legitimação do Estado. Até Bolsonaro fez profissão de fé na democracia, dizendo que “se [o poder militar] tiver de voltar um dia, que volte pelo voto”. Esse é o perigo que o ex-capitão defensor de torturadores representa: resolver a crise de legitimação do Estado com a instauração, pelo voto, de um renovado Estado de Direito Autoritário com hegemonia da facção militar, num reforço sem paralelo do exercício faccioso dos poderes institucionais, mas com democracia eleitoral.

Como já disse em outro artigo: não devemos confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade.

Tomado em seu conjunto, o estado atual da crise está a indicar que, quando muito, a inércia nos empurrará para o realismo de uma polarização eleitoral entre, de um lado, as candidaturas dos que pretendem uma reconfiguração do Estado de Direito Autoritário e, de outro, quem tem compromisso com a luta contra a desigualdade e por um Estado de Direito Democrático — essa regressão medonha terá sido o legado dos trinta anos de um presumido Estado democrático de direito em que PT e PSDB protagonizaram uma polarização fajuta enquanto soerguiam os dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM). Logo saberemos.

Fica o Registro:

  • Foi divertido ver os defensores do livre mercado, do Estado mínimo, das privatizações, atacarem a Petrobrás (por sua conduta rigorosamente empresarial, de mercado, na definição dos preços dos seus produtos) exigindo providências do Estado contra a estatal que, não obstante, querem privatizar!
  • A reivindicação de zerar impostos sobre combustíveis diz muito sobre a junção de ignorância com descompromisso com o bem comum.
  • [13:00h]  Acabo de ler no UOL resultado de pesquisa telefônica realizada pelo DataFolha. Nada de surpreendente: esmagadora maioria (87%) apóia a paralisação (sente a crise de legitimação do Estado), maioria absoluta (56%) apóia a continuidade do movimento (percebe que há na manifestação um caminho para enfrentar a crise), mas outra maioria esmagadora (87%) se recusa a pagar a conta (se mantém inerte diante das tarefas impostas pela crise), sendo que, como não poderia deixar de ser, 77% desaprovam a condução que Temer deu ao enfrentamento do problema (qualquer governo está aquém de dar resposta convincente para uma crise de legitimação do Estado que finge governar); finalmente, vale registrar que metade dos entrevistados alterou sua rotina em razão do movimento e outra metade diz sequer tê-la alterado. Em suma, o movimento foi um espasmo da crise no sentido de romper a inércia, não o fez, mas deu materialidade às incertezas e, com isso, tornou mais perceptível o contraste entre o tamanho da crise (afinal, é uma crise de legitimação do Estado) e as alternativas oferecidas pela forma e pelo cardápio da eleição de outubro (forma e cardápio típicos de uma eleição de rotina, sem crise).
  • Em entrevista à Folha de hoje, o general Heleno, ex-comandante das tropas da intervenção no Haiti, vê semelhanças entre a situação atual e a de 1964, se diz lisonjeado com as solicitações de intervenção militar, mas faz profissão de fé no respeito ao calendário eleitoral, dizendo da formação do oficialato. Bem, todos sabemos o que vale esse padrão de formação quando a tropa se inquieta na direção contrária a ele. Esse é um dos riscos que corremos: a tropa resolver agir na direção dos clamores saídos da inércia da sociedade inconsequente.

IRRACIONALIDADE POLÍTICA

Carlos Novaes, 12 de maio de 2018

[com acréscimo em 15/05]

Em artigos recentes, tratei da situação de Lula em três passos:

primeiro, explorei o que ainda havia de vivo na ambivalência da sua liderança: de um lado, o Lula que ainda simboliza para muitos uma reorientação da política no sentido dos mais fracos (razão de seus altos índices de intenções de votos, ou até do sentimento de injustiça que sua condenação traz, por exemplo); de outro, o Lula como uma das peças centrais da luta de facções que caracteriza a crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário (razão dos votos para livrá-lo da prisão no STF, com clara simpatia de Temer&Cia, por exemplo);

segundo, tratei dos sinais de que Lula já se fechara em si mesmo: jogou com a solidariedade popular para se cacifar para a aposta que realmente faz, a luta de facções estatais, de onde espera que venha uma saída para si, pois jamais apostou para valer na mobilização dos de baixo, como seus oitos anos na presidência deixaram claro para quem ainda tinha alguma dúvida;

terceiro, apontei que, diante das circunstâncias, a única saída politicamente racional para Lula é apoiar Ciro, com Haddad de vice.

Nos últimos dias, porém, Lula deu sinais de que, ao invés de buscar a composição com Ciro, vai insistir em se arrastar como pseudo-candidato. Nas próximas linhas, vou discutir a irracionalidade dessa escolha de Lula à luz tanto de situações anteriores vividas por ele quanto da complexidade da situação brasileira atual.

Apontar o quanto Lula pode ser irracional não é inédito, pois a irracionalidade dele já apareceu com força quando escolheu Dilma para sucedê-lo e, depois, quando permitiu que ela tentasse a reeleição – e não estou a dizer isso só agora. Em dois artigos escritos na passagem de 2008 para 2009, apontei as limitações e riscos que via na escolha de Dilma:

A preferência de Lula [por Dilma] decorre de duas limitações: da natureza instrumental do vínculo dele com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.

Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário [do que Putin fizera na Rússia] do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja [Dilma], Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o p-MDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

Mais adiante, em meados de 2013, quando ainda não ficara claro que Lula deixaria que Dilma concorresse à reeleição, dobrando sua aposta na irracionalidade, ponderei que:

O que impediria  Lula de ser candidato a presidente em 2014 é sua recusa pessoal a entrar na disputa, situação que, entre outras coisas, expõe a fraqueza de Dilma como eventual candidata: ela jamais teve, tem ou teria qualquer condição de impedir uma candidatura de Lula em substituição à sua própria. […]. …nada há de sólido no caminho de Lula para ser candidato a presidente em 2014, salvo ele mesmo;

se […] Lula insistir em pedir votos não para si, mas para Dilma; só numa situação assim, propícia à irracionalidade, e plena dela, com a ordem política de ponta cabeça, é que Serra poderia sonhar com uma remotíssima chance de chegar à presidência.

As coisas se passaram como sabemos e chegamos à eleição presidencial de 2018 com Lula na cadeia. Ao amarrar o que resta do PT às grades da sua cela, Lula leva ao ápice a natureza instrumental da sua relação com o partido, pois depois de tê-lo degradado a instrumento político seu (em 2009), agora está a impedir que o partido faça qualquer política, proferindo a sentença de morte: “nem comigo, nem sem mim”. Ao se recusar a liderar o lulopetismo na direção de uma candidatura viável, Lula leva até o fim a ideia esdrúxula de que ele é o máximo a que a autointitulada esquerda pode aspirar, fazendo da própria prisão a negação da política para os outros – precisamente o contrário do que deveria fazer, se estivesse preocupado com algo além da própria sorte. Lula só pode se dar ao luxo de ser irracional porque o PT se entregou faz tempo.

Depois de aceitarem sacrificar a diversificada “sociedade civil petista” comprometida com a luta contra a desigualdade para alcançarem o poder com a solda precária entre o carisma e a máquina já descompromissados com aquela luta, os maiorais do PT sucumbiram à dimensão populista do carisma do seu líder e hoje se agarram a um lulopetismo que é menos do que um peronismo. Assim, depois de mais de trinta anos, e embora tenha construído uma máquina política formidável, organizada numa burocracia de âmbito nacional num país de 150 milhões de eleitores e com a oitava economia do mundo, o PT chega a uma eleição presidencial sem poder deliberar segundo mecanismos democráticos (já indisponíveis) uma alternativa institucional para si mesmo — como resumiu a presidente (?) do partido: “se, no final, tudo der errado, Lula saberá o que fazer”.

[em 15/05 —  O problema é que no final, quando tudo tiver dado errado, Lula irá descobrir que já não há o que fazer, pois ele muito provavelmente sequer contará com um eleitorado a transferir a quem quer que seja — é que eleitores não se transferem como numa operação bancária, ao toque de um botão. Não. Para transferi-los há que engajá-los no processo político da transferência e, mesmo assim, nada é garantido. Lula está a acreditar na ilusão de que existe um “lulismo”, “sou uma ideia”, quando já ficou claro, faz tempo, que isso nunca existiu, como mostrei longamente aqui. Ou Lula se engaja desde já na construção de uma candidatura alternativa à sua própria, dividindo a construção dela com seu eleitorado, ou acabará como mais uma candidatura irrelevante bem posicionada em pesquisas].

Assim como a imensa maioria da militância lulopetista está inerte diante da irracionalidade de Lula, a imensa maioria da sociedade brasileira está inerte diante da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, situação que configura uma irracionalidade mais ampla, pois, salvo melhor juízo, não há qualquer sinal de que algo poderá quebrar essa inércia antes das eleições de 2018, quando novos simulacros de legitimação entrarão em cena.

Até as candidaturas alternativas dão testemunho dessa inércia, pois nenhuma delas nasceu de qualquer movimentação social efetiva e, por isso mesmo, malograram sozinhas em sua inconsistência e artificialismo, frustrando quem equivocadamente supõe que estamos a reviver 1989, quando a sociedade fervia por alternativas de mudança na direção da consolidação democrática. O malogro de cada uma das candidaturas externas ao mundo da política profissional, desde o narigudo SS júnior, passando pelos empresários bocós e chegando ao honrado Barbosa, ilustra não a força dos profissionais da política, nem apenas a covardia pessoal dos desistentes, mas a inércia da sociedade, que lateja por transformação, mas se recusa ao trabalho de fazê-la, prisioneira do mesmo transe bovino em que se acha o lulopetismo diante de seu líder decaído.

Com essa margem de manobra que lhes foi dada, os políticos profissionais estão fazendo suas apostas na redistribuição do poder das facções estatais ali onde ele depende da chancela eleitoral, operação que vai permitindo uma diminuição sensível no número de candidaturas presidenciais, pois a inércia da sociedade deixou o jogo no plano propriamente estatal, “calmaria” que vai possibilitando acertos prévios. Em outras palavras, o que há de trabalhoso nesse processo de rearranjo de facções e candidaturas não é uma decorrência da dificuldade de responder aos sofrimentos vividos pela maioria insatisfeita da sociedade, mas é produzido pelas dificuldades de coordenação dos apetites aflorados da luta entre facções inscientes de que protagonizam uma crise de legitimação do próprio Estado cuja hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais disputam.

Fica o registro:

  • Enquanto isso, a luta de facções no âmbito da chamada Lava Jato prossegue: Gilmar acaba de mandar soltar o canário dos governos tucanos, enquanto facções da PF, junto com a PGR e Barroso, prosseguem na investigação contra Temer, baseados na interpretação facciosa de que a Constituição proíbe processar o presidente, mas não proíbe investigá-lo… (melhor assim!).
  • Na dança acima pode haver, ao fim e ao cabo, uma variante de convergência contra nós: é que talvez a ruína de Temer (e, quem sabe, até a de Aécio) já estejam precificadas e venham a servir — ainda que contrariando muitos dos empenhados em levar as punições a cabo — de cortina de fumaça para a escapadela de quem ainda pode servir de saída para o establishiment, como Alckmin. Vamos acompanhar.

NOTAS SAÍDAS DO REALISMO A QUE A INÉRCIA NOS ARRASTA

Carlos Novaes, 25 de abril de 2018

Embora os sinais ainda sejam fracos, e não se possa antecipar quanto da burocracia petista se engajaria no acerto, parece que caminhamos para assistir à benção de Lula à candidatura de Ciro, com Haddad de vice. Dadas as circunstâncias ameaçadoras em que se encontra o país, talvez não haja como pôr de pé, no curto prazo, um arranjo menos frágil do que esse para mantermos, em meio à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, condições mínimas para continuarmos a lutar pelo Estado de Direito Democrático que almejamos desde a ditadura paisano-militar. Com realismo amargo e, portanto, sem entusiasmo, os parágrafos a seguir serão uma tentativa de explicar, pela ordem, essas observações.

É incerto, mas há sinais de que a maioria da burocracia petista pode engolir essa solução. A prisão do Lula mudou o jogo e do dia prá noite transformou a combatividade de Gleisi Hoffmann e de Lindbergh em um estorvo. Atrás das grades, o lulopetismo envelheceu décadas em poucos dias. Lida com cuidado, a entrevista em que José Dirceu usou a experiente Mônica Bergamo para mandar vários recados pode ser vista como uma prévia antecipação pública do seu aceite ao arranjo que foi insinuado, posteriormente, por esta emblemática reunião entre o mais saliente nome paisano da ditadura ainda em atividade, Delfim Neto; dois expoentes do PSDB original que não se corromperam, Bresser e Ciro; e aquele que se tornou depositário do que muitos ainda têm como crível no farisaísmo do lulopetismo, Haddad.

Do muito que Dirceu disse, isolemos três movimentos fundamentais: primeiro, na desenvoltura com que concatenou a realidade da prisão de Lula com a orientação acerca do que se passa além dela, Dirceu deixou claro que ao ser preso Lula decaiu ao mesmo patamar a que há tempos fora rebaixado este comandante da máquina petista, como que restaurando a dualidade entre carisma e burocracia que fora perdida no mensalão, ocasião em que Lula pôde deixar Dirceu para trás e adonar-se do PT, como analisei aqui (o mensalão tirou Dirceu do calendário eleitoral; o petrolão fez o mesmo com Lula). Em outras palavras, se nenhum dos dois desistir da política nem sofrer um emburrecimento súbito, este nivelamento na adversidade os fará mais unidos do que antes.

Segundo, a minuciosa descrição que Dirceu fez da dura realidade humana da prisão — da força que ela tem, por isso mesmo (isto é, pelo que há de duro e humano nela), para como que zerar as diferenças entre a criminalidade das condutas que ela pune, bem como para aproximar os contrários — é uma abordagem que além de dialogar com o que há de nobre no homem comum, mostra a convergência de duas resignações, uma na vida privada, outra na vida pública: na primeira, Dirceu aceita a perda da liberdade pessoal (mas para continuar a fazer política); na segunda, Dirceu aceita a perda do protagonismo petista (o carisma e a máquina estão agrilhoados). Terceiro: a concatenação dessas resignações com disposição para analisar a cena política com frieza, invocando uma tão anacrônica quanto coerentemente aplicada “ciência da história”, mostram a disposição de convocar os seus a dar um passo atrás, mas na perspectiva de vir a dar dois passos adiante mais lá na frente. Sob circunstâncias tão adversas, Dirceu poderá ser levado ao entendimento de que, por gordo que seja, o protagonismo subalterno de Haddad se torna o menor dos sapos que a máquina petista terá de engolir.

Ao se entregar obedientemente depois de ameaçar resistir, Lula dirigiu para o âmbito do Estado toda a potência do que a sociedade via de injusto na condenação sem provas de que ele foi vítima, neutralizando mais uma possibilidade de a crise de legitimação vir a furo, emergência que abriria para o país um período de incerteza auspiciosa: mais uma vez, Lula fez uso dos de baixo enquanto mandava recado para os de cima. Ele preferiu tanger a sociedade para se acomodar à luta de facções, que estão a se reorganizar para disputar as eleições, evento do calendário democrático que lhes permitirá reencenar o ritual da ligação entre o Estado de Direito Autoritário e a democracia, ainda que sem consagrar, por óbvio, um Estado democrático de direito (sob o qual muitos fantasiam que estamos a viver desde o fim da ditadura paisano-militar).

Até onde consigo enxergar, para poder sonhar que a prisão seja uma curta interinidade, Lula não tem saída melhor do que apoiar Ciro, pois sua aposta na luta de facções o tornou refém de um acerto propriamente estatal, que só poderá acontecer se contar com o apoio do presidente da República que sair das eleições de 2018 (pois, como se viu, eventuais indultos de Temer têm tudo para serem barrados pelo STF — cujo protagonismo irá declinar depois das eleições, assim como o do Judiciário em geral). Dentre os candidatos viáveis, Ciro é o único com que Lula poderá contar, mesmo, para conduzir esse arranjo salvador – Haddad como vice é o atrativo indispensável para fazer a solda entre, de um lado, as esperanças dos que ainda supõem que o lulopetismo seja uma vertente contra a desigualdade e, de outro, as ambições de restauração da máquina petista, animada de farisaísmo ante essa mesma desigualdade.

As circunstâncias empurram à aceitação desse arranjo porque a maioria da sociedade brasileira não encontrou outra maneira de sair da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário sem cair nas soluções medonhas de uma ditadura ou de um Estado de direito ainda mais autoritário, ameaças que estão simbolizadas nas candidaturas de Bolsonaro e Alckmin/Doria (daí eu dizer que fomos levados à situação pré-64: naquela altura, a ameaça da desordem era a deposição do presidente legítimo; agora é ou o cancelamento da eleição presidencial, ou coloca-la a serviço de mais autoritarismo, riscos tipo ruptura autoritária que não haviam em 1989, mas eram os do pré-64).

A inércia desorientada da maioria da sociedade é compreensível, pois tendo sido vítima de uma traição tremenda por parte das forças em que depositara suas esperanças (PSDB e PT) — uma traição que para se configurar precisou encenar uma polarização cuja fajutice o arranjo em curso mais uma vez desnuda (pois ele é a versão amputada de uma unidade que teria de ter sido feita há 25 anos contra o que restara da ditadura) –, ela, a maioria da sociedade, sofreu a perda simultânea dos seus líderes (arruinados pela corrupção), e do tabuleiro em que se desenvolvia o jogo (conflagrado numa luta de facções), jogo no qual ela credulamente se engajara, com as variações de intensidade e comprometimento próprias da rotina das democracias eleitorais ancoradas na perniciosa reeleição infinita para o Legislativo.

O Estado de Direito Democrático que almejamos desde as lutas contra a ditadura paisano-militar jamais poderia sair do jogo malsão em que PSDB e PT fizeram uso periódico da democracia eleitoral para simular uma polarização política que desfaziam na convergência de propósitos que reafirmavam na prática diária do exercício faccioso dos poderes institucionais típico dos Estados de direito autoritários, pelo qual promoviam a corrupção e se apoiavam nos dispositivos paisano (p-MDB e PFL) e militar (PM) legados pela ditadura, e sempre em obediência à cláusula pétrea fundamental do Estado de Direito Autoritário: os ricos não podem perder. Os abonos sociais que deram aos pobres foram um simulacro de medidas contra a desigualdade, até porque, além de não virem acompanhados de alteração tributária convergente, tampouco deixaram de ser reforçados em seu papel neutralizador pelas matanças pacificadoras que facções estatais (presidiarias e policiais: outra polarização fajuta) convenientemente insubmissas continuaram a promover contra os pobres, sem qualquer ação contrária efetiva, seja do PT, seja do PSDB.

Há entrecruzamento inconclusivo entre a conflagração das facções estatais e o aturdimento da sociedade. A fragmentação de pré-candidaturas sai dessa fratura, que a eleição em si simulará resolver. Não há projeto em disputa porque as facções estão em luta pela sobrevivência propriamente estatal e a sociedade não tem clareza do que está em disputa no terreno social, econômico e político. Dessa reorganização eleitoral das facções talvez resulte uma fragmentação bem inferior àquela que as pré-candidaturas atuais sugerem, e que chegou a levar a comparações impertinentes com 1989. Enquanto naquela altura a fragmentação resultava da disputa entre projetos alternativos mais ou menos voltados para a consolidação da democracia; agora, porém, a fragmentação resulta da crise de legitimação do Estado de direito saído da diluição daqueles projetos.

Comparada com 1989, a fragmentação de agora é o oposto: antes, ela resultava da busca por corresponder às expectativas da sociedade por uma consolidação democrática; agora ela resulta da conflagração gerada numa crise de legitimação decorrente de que não apenas não se alcançou aquela consolidação,  como os políticos profissionais perderam o solo comum em que se acertavam em práticas daninhas à consolidação democrática, para crescente contrariedade da maioria da sociedade, que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Não é para menos, afinal, seria estranho que tendo todos os principais agentes da consolidação sucumbido à manutenção da desigualdade e à corrupção correspondente, ainda assim houvesse um Estado democrático de direito – seria como ter condenado o trabalho de engenheiros, pedreiros e empreiteiros e, mesmo assim, atestar que o prédio construído está consolidado para habitação. PT e PSDB foram o Sérgio Naya da consolidação da democracia brasileira – o prédio ruiu e ainda estamos sob a nuvem de poeira que a subsequente implosão engaiolada levantou.

Talvez a dobradinha Ciro-Haddad não se configure. Mas, ainda mais improvável do que ela encarnar uma proposta de transformação é que se forme em torno do honrado Barbosa (a quem essa dobradinha também seria uma resposta) algo mais do que um ajuntamento oportunista para dar sobrevida ao que há de mais acomodatício, embora não imediatamente autoritário, no establishment. Vamos acompanhar e conversar.

Fica o Registro:

– Um artigo na Folha de S.Paulo traz ponto de vista que considero inadequado à compreensão do que se passa. Para o autor, a esquerda estaria perdendo a confiança na democracia por acreditar que foi vítima do golpe de uma elite que não tolera nem mesmo um governo reformista tímido. Crer na relevância disso exige dois erros: primeiro, supor que os líderes do lulopetismo realmente acreditam que estavam a governar segundo um reformismo contrário às elites. Ora, todo lulopetista bem informado sabe que o Mercado resistiu ao impeachment de Dilma a maior parte do tempo, e o golpe foi obra do braço político-profissional oposicionista que também servia ao Mercado, mas que se fez abertamente autônomo ao ver uma oportunidade de voltar a comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais no Executivo federal — é que os golpistas apostaram em um rápido acerto posterior, pois não enxergaram a crise de legitimação em que se abismariam. Segundo, o autor ajuda a confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade que estariam a deixar inquietos representantes de projetos opostos.

NÃO HÁ SEMELHANÇA RELEVANTE ENTRE 1989 E 2018

Carlos Novaes, 15 de abril de 2018

Diante da fragmentação de preferências trazida pela nova pesquisa DataFolha, a mídia convencional está repleta de “análises” vendo semelhanças entre as eleições presidenciais de 1989 e de 2018. Nada poderia ser mais errado.

Primeiro, em 1989 o eleitorado foi às urnas na perspectiva de consolidar uma democracia, crente que estava de ter passado a viver sob um Estado democrático de direito. Em 2018 iremos às urnas para nos defendermos da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que tentaram consolidar via corrupção justo aqueles que nos haviam prometido a democracia. O fato de estarmos cada vez mais cientes de que se trata de nos defendermos desse Estado de Direito Autoritário é uma evidência a mais da sua crise de legitimação.

Segundo, em 1989, o grande número de candidatos resultava do embate entre diferentes projetos sobre a democracia que se queria consolidar. Por consistentes ou inconsistentes que fossem (havia para todo gosto), esses projetos traduziam todo o período anterior de engajamento e, por isso, naquela altura a oposição esquerda-direita fazia todo sentido, pois traduzia uma fronteira de fundo, demarcada pela posição diante da desigualdade. Em 2018, a fragmentação resulta da ausência de projetos sobre o que quer que seja e a polarização esquerda-direita é uma anacrônica piada sem graça, até porque não há vertente relevante na luta contra a desigualdade, pelo contrário.

Terceiro, em 1989, a eleição foi solteira, isto é, só estava em disputa o cargo de presidente da República; circunstância que jogou um peso decisivo para que os finalistas fossem duas novidades: Collor e Lula. As máquinas políticas tradicionais não se engajaram, pois elas dependem do esforço interessado dos candidatos a deputado, senador e governador. O p-MDB deixou Ulisses Guimarães a ver navios, por exemplo. Naquele cenário, foram favorecidos, de um lado do espectro político, o candidato que contava com o megafone da Globo, Collor, e, do lado oposto, o candidato que contava com uma burocracia partidária e sindical que não precisava de dinheiro para mobilizar nacionalmente uma militância que, naquela época, trabalhava de graça.

Aquela polarização foi clássica, pois nela estava alojado o sentido que daríamos à nossa luta pela consolidação da democracia, o que nos leva à segunda razão para explicar que os finalistas tenham sido Collor e Lula: o eleitor os escolheu precisamente porque nenhum dos dois estava ligado às forças políticas que nos haviam sido legadas pela ditadura (PFL, PDS, p-MDB e PSDB) – sendo de notar que Brizola foi superado por Lula exatamente porque não contava com uma militância nacional entusiasmada.

Em 2018, estão em disputa todos os cargos eletivos estaduais e federais. As máquinas partidárias profissionais convencionais, agora incluindo a do PT, vão jogar toda a sua força em busca da sobrevivência. A lógica propriamente eleitoral da campanha não tem qualquer semelhança com a de 1989, portanto. Além disso, em razão das traições de PT e PSDB (que, na contramão do esforço da maioria da sociedade, nutriram a volta das forças legadas pela ditadura para sustentarem uma polarização fajuta entre si), que desembocaram nessa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que eles ajudaram a construir, o país regrediu à situação pré-golpe de 1964 e, agora, em razão da cegueira geral para a crise de legitimação do Estado, o eleitorado está sendo empurrado a escolher entre o candidato da ditadura e os do Estado de Direito Autoritário.

Por isso mesmo, temos, de um lado, Bolsonaro, o Collor da vez, sem o megafone da Globo (por enquanto…), mas contando com a rede da mentira (que trabalha de graça como a militância petista em 1989). De outro lado, ainda que com diferenças entre eles, estão todos os presumidos defensores da preservação de uma fantasia, daquilo que não existe, o Estado democrático de direito.

Todos repetem a arenga do respeito à Constituição – qual? Nenhum deles vê nas arbitrariedades e acertos facciosos da Lava Jato, na insubordinação militar, no espraiamento escancarado das milícias, nas manifestações autoritárias e intolerantes que se alastram na Web e no Funk, nas escabrosas disputas internas do Supremo, no espraiamento da corrupção como modo de operar a política até nos pequenos municípios, nas aberrações legais saídas do Congresso, no arbítrio sanguinário da polícia, na crescente insubordinação dos presídios, na gestão ruinosa da coisa pública pelo Executivo, na descrença geral do brasileiro nas instituições, nenhum dos candidatos vê nesse conjunto o sintoma cabal da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

Tendo enfiado a cabeça na areia, todos os candidatos repetem o mantra de que as instituições estão funcionando. Alguns com um misto de covardia, oportunismos e descaramento chegam a se calar diante de fatos graves como a insubordinação militar e dizem positiva e inteiramente aceitável qualquer decisão saída da Lava Jato ou do Supremo, como se essas instituições não estivessem atravessadas por preferências facciosas, como se a prática delas pudesse ser tomada por evidência de um Estado democrático de direito em funcionamento, quando é justo o contrário.

Tal como o sobrevivente que só decide enfrentar a realidade depois de procurar entre os escombros de uma catástrofe algo em que apoiar a memória, vagueando entre um braço de sofá, uma roupa ou um brinquedo, sendo levado por esses resíduos à extensão da sua perda; também o Brasil só poderá atravessar 2018 com proveito se entender inútil mariscar entre as ruínas do que imaginou que começara a construir em 1989 — quanto mais procurar semelhanças, mais se abismará no retrocesso.

LULA DOBROU SUA APOSTA NA LUTA DE FACÇÕES

Carlos Novaes, 07 de abril de 2018 — 10:37h

[com acréscimos em Fica o Registro]

A estupidez do TRF-4 e de Moro abriu uma oportunidade para que Lula deixasse de lado a luta de facções e tivesse uma atitude compatível com as contradições da hora presente. Ele ameaçou fazê-lo ao não se entregar como Moro determinara, mas acabou por recuar, tendo até mesmo desistido de se dirigir à sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que recebia as manifestações de apoio que chegaram de Temer, Sarney, Renan & Cia.

Ao se entregar, ao invés de se fazer prender, Lula diluiu em um melancólico gesto de adiamento a “resistência” que esboçara, conferindo à situação um jeitão de infecunda medição de forças entre ele e o juiz paranaense, como se essa disputa já não tivesse sido decidida há tempos. A disputa agora era outra, mas Lula abriu mão de qualquer desafio real à ordem ilegítima e acabou por emprestar legitimidade ao Estado de Direito Autoritário.

Ao abrir mão de reavivar o que resta da sua liderança, Lula mais uma vez fez uso do apoio que tem na sociedade não para ajuda-la a compreender a crise de legitimação de que ela é protagonista insciente, mas para dobrar sua aposta pessoal na luta de facções no âmbito do Estado e, por isso, ontem mesmo tentou escolher Marco Aurélio, ministro de facção “amiga” no Supremo, para julgar seu mais novo pedido de HC (como se o problema ainda fosse esse…). Coerentemente, Lula escolheu ficar no mesmo patamar de Aécio e Temer, que sequer vão poder espernear, pois nos casos deles as provas abundam.

Talvez Lula já tenha se fechado em si mesmo e a escolha dele tenha sido ditada pelo realismo de quem conhece a própria situação melhor do que ninguém, pois embora condenado sem provas no caso do triplex, ele responde a outros processos, sendo que naquele referente ao sítio de Atibaia há sinais de que as provas são consistentes. Enfim, Lula não fez nada que não poderia ter previsto um observador que pensando apenas na situação individual de Lula como líder decaído, tenha razões ou preferências que o levem a desprezar o potencial transformador que podem ter acidentes de percurso como este que nos foi oferecido pela Lava Jato.

Ontem, olhando a mesma situação, o professor Boris Fausto declarou:

“É gravíssimo e lamentável que um ex-presidente seja preso, mas, se ele foi condenado por unanimidade em segunda instância, é necessário que se cumpra [a prisão]”. […] Toda vez que tememos uma explosão social nestes tempos atrapalhados, ela não veio.”

Talvez não seja acidental que um juízo assim seguro sobre a docilidade do nosso povo venha de alguém que despreze o fato de que essa condenação do Lula foi unanimemente decidida sem provas e, por isso mesmo, não enxerga os sinais de que essa condenação espúria se deu no bojo de uma crise de legitimação do Estado.

Na mesma linha de Fausto vai o prof. Rubens Ricúpero:

“Vejo com muita preocupação o destino do sistema político brasileiro. Está cada vez mais disfuncional e nos encaminha para um impasse. […] Se a Constituição, mesmo quando interpretada literalmente, conduz à impunidade, qual é a conclusão? A conclusão é que não vai haver possibilidade de punir. […] Quer dizer, a aplicação da Constituição não torna possível punir em certos casos. É um negócio complicado, uma situação em que o sistema esteja se esgotando.”

Ou seja, mesmo diante da própria constatação de que nem a “interpretação literal da Constituição” resolve, Ricúpero se recusa a enxergar a crise de legitimação do Estado e prefere se refugiar em tornar hipótese algo que já se deu: o “esgotamento do sistema político”. Por isso mesmo, nem passa pela cabeça dele encarar que a benéfica Lava Jato esta a cometer arbitrariedades antidemocráticas. Tudo é tomado em bloco, pois para esse pessoal se trata de defender um inexistente Estado democrático de direito.

Como já deve ter ficado claro para quem acompanha este blog, entendo que o sistema político já se esgotou faz tempo e que esse esgotamento, tal como uma implosão que não deu certo, levou-o a se engaiolar numa guerra de facções que explicitou e agrava uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, Estado este que Fausto e Ricúpero, ao lado de Lula e FHC, ajudaram a construir.

Enquanto eles parecem ansiar por uma solução no âmbito do Estado, estou entre aqueles que põem suas esperanças na sociedade e, por isso mesmo, não abandonei a ideia de que a reorientação de grandes crises pode ter origem em injustiças pontuais, em eventos aparentemente infecundos. Não foi dessa vez.

Fica o Registro:

  • Começam a surgir na imprensa avaliações de especialistas de que a ministra Rosa Weber já não pode ser dada como voto certo na alteração da jurisprudência que consagrou, contra o voto dela, a possibilidade de prisão com base em condenação de segunda instância. Isso não só não me surpreende, como é bem o caso de registrar que a se confirmar essa expectativa, Weber estará indo na direção oposta de Gilmar também no que se refere ao caráter democrático da mudança, juízo que desenvolvi claramente dias atrás, aqui.
  • O UOL traz uma série de manifestações de brazilianistas sobre a situação brasileira. Nada que já não tenhamos lido na lavra dos próprios analistas brasileiros convencionais: pregam “fé nas regras do jogo”, sem levar em conta que são as regras que estão questionadas; insistem que a democracia está firme, quando o que importa é discutir a legitimidade do Estado de Direito Autoritário; e, claro, dizem tudo isso recorrendo a safa-onças como “é possível argumentar que a Justiça se concentrou sobre Lula, entretanto, e que a acusação talvez não fosse suficiente para prender um ex-presidente enquanto há outros corruptos envolvidos em desvios maiores que continuam soltos”! Passar olimpicamente sobre esse “pequeno detalhe” não é algo que destoe do que temos lido em liberais brasileiros, não?
  • 12:13 — Finalmente, depois de acertar que vai se entregar, Lula resolveu falar e, claro, faz um discurso eleitoral sem maior interesse. Em sua melancolia, parece a cerimônia fúnebre de um sonho antigo.

QUE LULA NÃO REPITA JANGO

Carlos Novaes, 06 de abril de 2018 — 11:53h

A crise brasileira atual ultrapassou aquela de 1964, pois em 1964 não havia ilegitimidade do Estado de direito, e agora, há. Naquela altura, o que houve foi a insubordinação de parte dos militares, com apoio em setores cujos interesses reforçadores da desigualdade estavam sendo contrariados pelo governo legítimo. Agora, o que há é a ilegitimidade flagrante do Estado de Direito Autoritário, que foi construído à sombra da polarização fajuta entre PT e PSDB, partidos traidores que abandonaram a luta contra a desigualdade e se acomodaram a uma gangorra eleitoral que nunca nos levaria a um Estado de Direito Democrático.

A crise do Real aliada à crise de representação arrastou o establishment congressual-partidário ao impeachment. A junção dessa manobra desastrada com a Lava Jato provocou uma guerra de facções estatais que acabou por arrastar para dentro do Estado em disputa o exercício faccioso dos poderes institucionais que desde sempre o Estado de Direito Autoritário — voltado à manutenção da desigualdade — infligiu contra a maioria da sociedade, notadamente sobre os mais pobres, mantidos em permanente regime de terror pelos dispositivos militares que nos foram legados pela ditadura, especialmente degenerados em sua guerra particular contra a ação contrária das facções não menos estatais do crime organizado nos presídios, tudo sob a inação específica de PT e PSDB.

Nessa guerra de facções estatais, o PT tem sido o maior perdedor porque, de um lado, foi contra ele que de início se unificaram as outras facções, exceto a dos presídios, que corre em faixa própria (mas não continuará a fazê-lo se a crise de legitimação vier a furo – quando digo “vir a furo” quero dizer aflorar à consciência e se tornar um motivo para a ação civil em desobediência); de outro lado, o PT tem perdido porque sua evidente condição de facção estatal que se locupletou não só afastou dele setores importantes da opinião pública democrática, como vem inibindo qualquer alinhamento mais explícito mesmo daqueles que ainda conservam uma preferência pelo partido (em suma, em razão dos malfeitos, mesmo para muitos petistas é difícil ir à rua defendê-lo).

É nesse caldeirão que se dá o processo contra Lula no caso do triplex, um processo que deixa claro que o papel benéfico da Lava Jato não se dá sem contradições, pois ela não é uma operação, mas um teatro de operações, como já expliquei, faz tempo, aqui. Nos concentremos em duas contradições centrais: primeiro, Moro condenou Lula sem provas, com base em convicções evangélicas, muito adequadas para quem tem fé, mas impertinentes para enviar alguém à cadeia; segundo, o TRF-4 e o mesmo Moro se deixam, agora, engolir por suas preferências políticas e atropelam a devido processo legal para dar andamento célere a uma prisão que já resultara daquela decisão arbitrária. Considerando que a vítima dessas escolhas antidemocráticas é o maior líder político de massas da história do país, não é de espantar que tudo possa desembocar na definitiva evidência da ilegitimidade do poder do Estado no Brasil.

Parece fundamental ressaltar que Moro não se limitou a meramente dar seguimento à escolha arbitrária que o TRF-4 fez ontem. Não. O juiz do Paraná foi além, e estupidamente acrescentou que os aspectos do trâmite legal que estavam a ser arbitrariamente atropelados são “patologias”. A palavra é muito reveladora, pois, como diz o velho ditado, a boca fala do que o coração está cheio. Note bem, leitor: há um clima de insânia no ar, como venho dizendo há tempos. Essa simples palavra empurrada à boca de Moro pela força das circunstâncias nos ajuda a entender que ao partirem para o quebra-quebra legal, o TRF-4 e Moro estão a dar vazão a sentimentos protofascistas que estão nas ruas e que, sem o saber, explicitam a crise de legitimação do Estado nessa sua reiterada reivindicação nas redes sociais pelo atropelo, contra Lula, do devido processo legal.

A palavra de Moro estendeu a primeira linha de transmissão explícita entre a energia presente na sociedade e a guerra de facções no âmbito do Estado. Como energia há por toda parte e em todos os sentidos e direções, sendo as linhas de transmissão aquilo que falta (para bem e para mal) para que as máquinas se movam, pode ter vindo da Lava Jato original o impulso que faltava para que finalmente venha a furo a crise de legitimação que a própria Lava Jato tem o mérito de ter ajudado a provocar, qualquer que tenham sido e venham sendo as intensões de seus facciosos protagonistas.

Ontem à noite, depois de refletir um pouco sobre a estúpida decisão da Lava Jato, resolvi acrescentar um parágrafo ao texto que escrevera sobre a derrota de Lula no STF, pois ao contrário do que naquele momento pude ler na mídia, não vi sentido algum em o Lula simplesmente se entregar como mandou Moro, pois seria uma obediência que emprestaria legitimidade ao Estado de Direito Autoritário que está em crise de legitimação. Felizmente, acabo de ler no UOL que Lula resolveu não repetir Jango, que em 1964 estendeu o pescoço como uma ovelha.

Bem sei, leitor, que Lula tem responsabilidade política em tudo o que de ruim está a acontecer, assim como enxergo, claro, que Temer também está alinhado com ele nesse momento. Ora, a nenhum de nós é dado escolher as condições em que luta contra a desigualdade. Essa disputa por Lula é parte da ambivalente condição simbólica dele na vida brasileira — neste momento, essa simbologia está sendo disputada pelo que tem de pior e de melhor: de um lado, o Lula do Estado faccioso, umbilicalmente ligado à guerra de facções estatais, servindo de biombo para aliados e adversários eleitorais de ontem e de hoje; de outro lado, o Lula da sociedade plural, das lutas de massa contra a desigualdade. Por isso, Lula pode se fazer imenso precisamente porque pode se tornar a resultante de forças em combate, e mesmo tendo errado muito, e exatamente por ter errado (vide o apoio de Temer & Cia), ainda pode vir a ser determinante como símbolo em torno do qual a sociedade brasileira vai fazer suas escolhas.

DESORIENTAÇÃO FAVORECE O PROTOFASCISMO

Carlos Novaes, 05 de abril de 2018

[com acréscimo às 22:56]

Em longa sessão que varou a madrugada de ontem para hoje, o Supremo Tribunal Federal-STF pôs a nu, minuto a minuto, a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Não pode haver expressão maior de crise num Estado de direito do que uma controvérsia aberta acerca de direito constitucional básico ser driblada, de forma facciosa e precária, em favor de uma interpretação da Constituição que, a um só tempo, aponta para um Estado de Direito Democrático, mas traz embutida a plausibilidade da sua reversão no futuro próximo, reforçando seus adversários.

Deixem-me tentar explicar o parágrafo acima:

O direito constitucional básico em questão é o direito à presunção de inocência. O que está a dividir o STF é, em suma, se este direito está sendo ferido quando se permite mandar à prisão réu condenado que ainda pode recorrer a instâncias superiores. No caso específico, a discussão se deu sobre o caso de Lula, condenado facciosamente no caso do triplex em primeira e em segunda instâncias.

Talvez a análise fique mais clara se eu disser de cara a minha posição sobre as duas coisas:

  1. Sobre a matéria de fundo: sou favorável à prisão com base em condenação de segunda instância, única maneira de impedir que os criminosos que têm dinheiro escapem da prisão pelo uso infindável dos recursos legais disponíveis. Reconheço que a Constituição atual parece vedar essa modalidade de prisão, mas entendo que numa crise de legitimação a própria Constituição se faz terreno de disputa.
  2. Sobre a prisão de Lula: embora tenha claro que Lula sabia e participou da corrupção em seus governos, entendo que no caso do triplex ele foi condenado sem provas, numa operação facciosa que reforça o Estado de Direito Autoritário. Apoiá-la é contraproducente para quem almeja um Estado de Direito Democrático.

Nesta madrugada e nas horas que a antecederam, esses conflitos avançaram mais um anel no vórtice da crise de legitimação e, portanto, tornaram-na ainda mais clara e aguda, pois nesse anel mais estreito se adensou o que já era ambíguo, irresolvido e incerto. Dividido na matéria em duas facções, isto é, em duas formações provisórias e circunstanciais, que se juntam por afinidade e propósitos comuns temporários, o Supremo nos ofereceu uma narrativa do que se passa no Estado de Direito Autoritário brasileiro na forma de um complexo reality show (atenção, leitor: estou a falar do que se passa no Estado, não na sociedade).

De um lado, temos a facção que reuniu os transformadores, dos quais a aliada mais incerta é a ministra Rosa Weber, sendo o aliado mais circunstancial Alexandre de Morais. Do outro lado está a facção do establishment, da qual o membro mais circunstancial é Toffoli. Weber é aliada incerta porque diz ter sobre a matéria de fundo entendimento doutrinário contrário aos outros membros de sua facção, não sendo certo o que fará na hora em que a questão voltar a voto em um futuro próximo; Morais é aliado circunstancial porque sua filiação extra-Tribunal é protofascista e nada garante para onde ele penderá num futuro mais distante e/ou se entre os ameaçados de prisão vier a estar um Alckmin; Toffoli é membro circunstancial porque na sua filiação extra-Tribunal ele é lulopetista, o que o faz adversário dos outros membros da sua facção atual no plano da disputa mais geral pela hegemonia no poder de Estado hoje sem hegemonia.

O embate acima, embora tenha se revelado central, é apenas parte da disputa mais geral que está a se dar entre as facções estatais. Se é verdade que os homens fazem a sua história sob condições que não puderam escolher, torna-se ainda mais difícil manejar os cordões quando há conflagração de interesses e não se tem uma visão do conjunto, que permitiria ajuizar direito o sentido de cada escolha nova que se está a fazer. É em razão dessa cegueira para ter uma visão de conjunto que os atores exibem desorientações várias nas escolhas que fazem a cada laçada da espiral da crise.

A cegueira principal é não enxergar a crise de legitimação do Estado de Direito. É essa cegueira que levou os transformadores (Barroso, Fachin, Cármen Lúcia e, de certo modo, Fux) a não separarem os dois aspectos da matéria. Valendo-se do poder de presidente do Supremo, Cármen Lúcia, numa manobra facciosa, arranjou as coisas de modo a evitar voltar a deliberar sobre a matéria de fundo, para a qual teme já não ter maioria afinada com a transformação que pretende para o direto constitucional brasileiro — uma vez que Gilmar mudou de lado e Rosa Weber, embora venha reiterando a nova jurisprudência na prática, não parece, mesmo, ter mudado seu entendimento doutrinário sobre a matéria.

O problema é que ao conduzir as coisas desse modo os transformadores não se deram conta de que podem ter trocado uma vitória de Pirro por um reforço das facções opostas à transformação que pretendem. A vitória pode ter sido de Pirro porque mesmo que Cármen Lúcia consiga continuar a obstar uma nova deliberação da matéria de fundo, é certo que ela voltará a ser discutida quando Toffoli assumir a presidência do Supremo. Mais lá adiante, depois da eleição, sob nova presidência na República e no Supremo, nada garante que ainda se poderá contar com o voto de Morais e, ademais, poderá ser tarde para arriscar contar com uma alteração na preferência de Weber. O reforço das facções opostas à transformação se deu porque a confirmação dessa prisão de Lula chancela o que há de anti-democrático na Lava Jato e favorece o avanço eleitoral das facções pró-establishment.

Esse avanço eleitoral, aliás, embora se dê contra o lulopetismo, não garante que Lula venha a pagar pelos malfeitos que protagonizou, afinal, a polarização entre eles é para inglês ver e numa reacomodação política entre as facções estatais que conserve o Estado de Direito Autoritário haverá esforço comum para que nenhum deles fique na cadeia, como já deixam claro as movimentações de hoje no Executivo-gestão e no Legislativo-representação. Exemplo em miniatura dessa reacomodação propriamente estatal é justamente a facção que perdeu por 6×5 nessa madrugada.

Olhada dessa perspectiva, a situação mostra todo o absurdo de defender a Constituição atual em favor de Lula, como fazem a autointitulada esquerda e uma parte dos liberais, todos travestidos de defensores de um suposto Estado democrático de direito (e isso com o comandante do Exército dando voz, impunemente, ao golpismo existente em suas fileiras!), que se recusam a enxergar a guerra de facções e a crise de legitimação respectiva. Essa autointitulada esquerda se entrincheirou contra uma transformação jurídica benéfica na luta contra a desigualdade para insistir na defesa política de um líder que traiu as bandeiras e princípios que simulou defender, a começar pelo combate à desigualdade. Ali aonde não chegou a má fé interessada, a desorientação é total.

O fato de a decisão de ontem ter contemplado a facção militar já insurgida não deve se prestar a aumentar a desorientação. O apoio desses militares não é ao ímpeto transformador da Constituição que orienta os transformadores. Não. O que eles apoiam é a prisão de Lula, um personagem que eles preferem enxergar como representante de uma esquerda só existente na cabeça deles, obnubilação que reforça a mistificação geral que preside o aturdimento, a revolta e o recalque distribuídos pela maioria da sociedade – situação que favorece o avanço do protofascismo, a vertente política que sempre se beneficia do afloramento da estupidez, pois ser estúpido não requer, mesmo, nenhum esforço.

Acréscimo às 22:56:

  • A célere deliberação da prisão de Lula pelo TRF-4, assim como o pronto atendimento de Moro, escancaram o que há de anti-democrático na atuação facciosa dessas instâncias da Lava Jato. Lula está sendo tratado de um modo que favorece sua condição de líder a ser defendido contra uma ilegalidade perpetrada por um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Uma prisão de Lula assim provocativa e traumática pode trazer a furo a falta de legitimidade do Estado e, nesse caso, não há porque descartar um abrangente movimento de alinhamento com Lula se ele resolver resistir à consumação dessa arbitrariedade, ainda que não se deva esquecer o papel que o próprio Lula desempenhou na construção desse estado de coisas.

LUTA DE FACÇÕES ENGOLE O EXÉRCITO

O recado do comandante: não aceitamos nada diferente da prisão de Lula

Carlos Novaes, 04 de abril de 2018

Tomado por uma crise de legitimação deixada a si mesma por uma sociedade inerte, o Estado de Direito Autoritário brasileiro, que vem há tempos em marcha regressiva batida na direção do seu ponto de origem, é agora devolvido (pela manifestação inaceitável, hostil à democracia, do comandante do Exército) à situação institucional imediatamente anterior à instalação da ditadura à qual sucedeu – estamos a um passo de reviver os acontecimentos de exatos 54 anos atrás, com o agravante de que dessa vez o presidente da República, ao contrário de João Goulart, é, ele próprio, um golpista, de modo que a sociedade está condenada a agir por si mesma se quiser preservar as franquias democráticas ainda subsistentes.

Dizendo o mesmo com aspectos adicionais: depois de tentarem fugir da crise trazendo de volta um arranjo governamental protagonizado pelos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) que alegavam ter deixado para trás através de um Estado democrático de direito (!), as facções que se adonaram do Estado de direito no Brasil nada mais têm feito na sua conflagração interna (interna ao Estado) do que aprofundarem a crise de legitimação do mesmo Estado cujo controle disputam. E quem disputa são facções transversais aos três poderes e às três esferas da União, incluindo as polícias a eles subordinadas (e, sobretudo, insubordinadas).

Não há que buscar intensões na manifestação do general insubordinado. Tal como já disse aqui, não se trata de ficar a tentar adivinhar o que eles conspiram, mas tirar consequências da relação entre o que eles fazem, são chamados a fazer pelos superiores e, então, passam a querer fazer. Há poucos dias, sentindo o cerco da lei se fechar à volta de si, Temer começou — como todo mandatário acossado pela infausta convergência da ilegitimidade da própria investidura com a condição de criminoso contra a coisa pública — a buscar apoio distribuindo acenos para todas as facções em luta: acenou mais uma vez para Lula, aludindo ao embargo à sua candidatura, e acenou aos militares golpistas rememorando um suposto apoio popular ao golpe de 1964, com o qual, sem dúvida, tem afinidades.

Posto na corda-bamba, Temer tem de engolir a insubordinação de seu comandante militar, a qual gerou um efeito em cascata, pois outros generais da ativa viram nela uma chancela prévia para as suas próprias insubordinações, sendo de registar os termos lamentáveis, cafajestes até, em que se deram algumas dessas insubordinações – houve um que bradou: “Aço!!”  Eis uma reação saída não de uma conspiração, ou de uma intensão, mas do encorajamento progressivo que a própria prática facciosa suscita.

O silêncio da maioria dos pré-candidatos à presidência da República diz muito sobre as “lideranças” com que a sociedade brasileira pode contar nesse momento agudo da sua história. Atenção, senhores aspirantes à presidência, o que o general quis dizer foi: não aceitamos nada diferente da prisão de Lula. E tratou de ligar à democracia essa afronta sua à própria democracia, quando não é a democracia que está em jogo no caso de Lula, mas o Estado de direito.

Fica o Registro:

  • No momento em que escrevo (15:10), Gilmar Mendes está a proferir seu voto na sessão que julga a situação de Lula. Acabo de ouvir os apartes de Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Lewandowski, nos quais fica claro que o Supremo está reunido sem ter definido se o julgamento trata em separado do HC do Lula ou embola a decisão sobre a controvérsia geral acerca da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Gilmar lidera o entendimento de que a decisão é uma só, e vale para os dois aspectos da questão. Vamos ver como isso termina.
  • Gilmar está a reclamar da imprensa “opressiva e chantagista”, o que não passa de um ataque faccioso ao que resta de franquia democrática na vida política brasileira. Imerso numa luta de facções estatais, acossado por uma crise de legitimação, Gilmar pretende fazer que a opinião pública veja na liberdade de imprensa ainda subsistente um problema!!
  • Acréscimo:
  • Agora ouço o voto do ministro Barroso (18:05) e estou em inteiro acordo com ele no mérito da matéria de fundo. Brilhante. Infelizmente, o pendor republicano dele e a forma jurídica em que a matéria está a ser discutida o levam a desconsiderar, no caso de Lula, precisamente o que importa aqui: no caso do triplex, Lula foi condenado sem provas. Barroso chegou a aludir a isso quando ressalvou que não está a discutir o mérito da decisão original da primeira instância, reiterada na segunda.
  • Novo acréscimo (18:30):
  • No mérito da matéria de fundo, ao apoiar a possibilidade de prisão com base em condenação de segunda instância se está a favorecer a democracia que queremos, pois esta é uma medida que aponta para a Justiça do Estado de Direito Democrático, sanando a brecha existente hoje para os privilegiados. Por outro lado, na discussão do HC de Lula, permitir sua prisão é uma decisão própria do Estado de Direito Autoritário, que o condenou facciosamente em primeira e segunda instâncias.
  • Novo acréscimo (19:34):
  • A ministra Rosa Weber deixou de lado a matéria de fundo, considerando-a vencida. Ou seja, ela afastou do seu voto qualquer contestação à controvertida jurisprudência atual, embora tenha voltado a declarar que discorda dela. Na prática, ela reiterou seu formalismo e declarou obediência à atual jurisprudência. Ao estender para o caso do HC de Lula essa sua obediência à “colegialidade”, a ministra votou contra o HC do ex-presidente, sem considerar o caráter faccioso da condenação dele.
  • Novo acréscimo (22:23):
  • Tendo ficado sem acesso à transmissão do UOL por excesso de demanda, não pude acompanhar os votos de Fux, Toffoli e Lawandowski. Como quer que tenham argumentado os dois últimos, seus votos em favor de Lula retratam a preferência deles na matéria de fundo: querem derrubar a jurisprudência sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Esses votos, assim como o de Gilmar e aqueles que, por certo, serão proferidos por Marco Aurélio e Celso de Mello, iluminam com alguma ironia a conexão entre a crise de legitimação do Estado e o destino de Lula: sobrou a ele apoiar-se em membros de facções voltadas à manutenção do status quo, e isso não porque reconhecem o facciosismo da condenação dele no processo do triplex, mas porque enxergam que essa prisão torna mais difícil a vida dos que já estão presos e dos que ainda poderão se-lo. Em contrapartida, a facção republicana se manteve firme no apoio à nova jurisprudência, mas em razão de circunstâncias várias acabou, ao contrário do que eu supunha, por negar ao Lula qualquer voto favorável a um HC que o protegeria da prisão por uma condenação sem provas. Agora só resta esperar por Cármen Lúcia, a quem caberá desempatar a votação. A julgar pela coesão apontada pelos outros, é improvável que ela vote em favor de Lula, como cheguei a supor, pois agora esse voto a deixaria sozinha. Dentro de pouco, saberemos.
  • Novo acréscimo (00:28):
  • Como esperado, a ministra Cármen Lúcia, defensora da jurisprudência que permite a prisão com base em decisão em segunda instância, acaba de votar contra o HC de Lula, voto que consagra a vitória dos favoráveis à prisão do ex-presidente com base na condenação sem provas, facciosa, no caso do triplex. Desse modo, a afirmação benéfica de um princípio legal fundamental para a consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático — ou seja, o princípio que estabelece como possível o início do cumprimento da pena antes de esgotados todos os recursos às instâncias superiores — , se dá numa circunstância em que esta decisão acaba por revestir da constitucionalidade precária de um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação uma decisão facciosa arranjada contra destacado líder de uma facção ora vencida, cujas responsabilidades na construção das circunstâncias que agora o atingem de forma tão dura são diretas.

SOBRE MINHA CRENÇA NO VOTO DA MINISTRA ROSA WEBER

Carlos Novaes, 02 de abril de 2018

Nos parágrafos finais de um artigo publicado há dois dias, apresentei o entendimento de que o voto da ministra Rosa Weber dará maioria à confirmação da jurisprudência do STF que estabeleceu a possibilidade de prisão contra condenado desde a segunda instância. A indagação de pessoas próximas sobre como cheguei a essa hipótese sobre o voto da ministra me leva a escrever o que se segue.

Diante das pressões para a revisão da decisão sobre prisão com base em condenação em segunda instância, a ministra Cármen Lúcia, uma formalista, foi sempre ao ponto quando insistiu sobre não haver razão para que o Supremo reveja jurisprudência tão recente. A meu ver, o caráter recente da nova jurisprudência tem, aqui, dois sentidos: primeiro, ela é recente na forma, ou seja, não há nenhuma alteração no ordenamento jurídico ou nos costumes que justifique uma reavaliação da adoção do novo entendimento pela mesma geração do STF; segundo, ela é recente na prática, pois seu caráter oportuno foi confirmado de pronto, ao provocar consistente mudança para melhor na distribuição da justiça (para contrariedade extrema da maioria dos advogados dos ricos, que vivem do dinheiro arrancado aos clientes para custear as intermináveis batalhas dos recursos).

A ministra Rosa Weber tem se mostrado ainda mais formalista do que Cármen Lúcia, especialmente nessa matéria. Afinal, depois de ter sido derrotada na votação que instituiu a nova jurisprudência, Weber passou a decidir segundo ela, confirmando-a em nada menos de 57 das 58 decisões em que foi levada a se debruçar sobre a matéria.

Quem imagina que a ministra tem seguido a jurisprudência contra sua “própria consciência” e, agora, na nova votação, irá à desforra, está a supor algo que entendo duplamente improvável: primeiro, porque para que se verificasse essa suposição teria de não haver vínculo entre prática judicante reiterada e consciência, isto é, teria de ser provável que as 58 decisões da ministra, que foram uma empenhada confirmação do novo entendimento, não tivessem nenhum papel na formação do juízo de Weber sobre a matéria de fundo, um juízo que é plástico no transcurso do tempo e, no caso, não é senão uma consciência sobre como a justiça deve ser feita. Segundo, e também em razão do que se viu primeiro, é improvável que Weber vá a essa esdrúxula desforra porque, sendo uma formalista, a ministra não deixa de ver quão danosa e arbitrária seria essa alteração em jurisprudência tão recente.

A confirmação da ideia de que o mundo real faz a consciência também pode vir das preferências de personagem situado do lado oposto de Rosa Weber — e oposto tanto no que se refere à matéria quanto no que se refere à austeridade litúrgica com que encara o próprio papel que desempenha no Supremo: não teria Gilmar Mendes mudado seu voto “jurisprudencial” precisamente porque a realidade adversa vivida pelos seus está a leva-lo a reconsiderar o voto que antes proferiu em favor da prisão em segunda instância?

Quanto aos votos em favor de um HC para Lula, imagino que ele os alcançará por razões facciosas num espectro amplo da luta de facções,  razões que vão desde a tendência do establishment ao máximo de acomodação possível; passam pelo fato notório de que a condenação no caso do triplex se deu sem provas; incluem a ameaça de que prender Lula torna mais fácil prender outros políticos implicados na Lava Jato; e chegam à aposta na hipótese de que uma prisão assim facciosa poderia gerar uma convulsão social compatível com a desinformação reinante (e aposta porque, é verdade, também é válida a hipótese de uma convulsão em razão da decisão oposta).

 

GUERRA DE FACÇÕES, TRIBUNAL E TIROS

Carlos Novaes, 31 de março de 2018

Se a democracia se consolida em uma forma estatal denominada “Estado democrático de direito”, qual é a forma estatal das democracias não consolidadas?

Sustento que as democracias não consolidadas ganham forma estatal em um Estado de Direito Autoritário. Nele, diferentemente do Estado de Direito Democrático, a forma do direito é instável enquanto norma e arbitrária enquanto prática, sendo que os graus de instabilidade e arbitrariedade variam segundo o atrito entre facções pela primazia no exercício faccioso dos poderes institucionais em busca de poder para fazer dinheiro. Ou seja, o caráter não consolidado da democracia fala mesmo é do Estado, das tensões e fissuras provocadas nele pelo atrito das ambições; não exatamente da sociedade, da vivacidade das suas diferenças de quinhão e opinião.

A um Estado de Direito Autoritário corresponde, necessariamente, algum grau de democracia na vida política. Esse caráter necessário de alguma democracia deriva da preferência da sociedade pela democracia, uma preferência queembora não tenha se mostrado informada e determinada a ponto de levar a ordem político-institucional a se consolidar numa democracia, ganhando a forma de um Estado de Direito Democráticosubsiste na maioria da sociedade como aspiração negligente. Logo, para ser de direito um Estado tem de agir de modo a levar a sociedade a acreditar que está a viver um processo de consolidação da democracia, não de negação dela. No curso do tempo, essa crença será confirmada ou fraudada, pois se trata de um jogo de forças.

Naturalmente, as forças em presença têm grau variado de percepção acerca da complexidade da situação em que estão metidas e, por isso, o resultado de suas ações por vezes não só não é o que foi buscado por elas no nível das metas miúdas como também ganha no plano mais geral sentido diferente do, e até oposto ao, que elas teriam preferido se pudessem tê-lo previsto (ou teriam escolhido, se estivessem em condições materiais e, sobretudo, subjetivas, de fazê-lo). Como é da própria natureza da situação impedir uma conspiração totalizante, a normalidade das coisas vai depender de que as contradições da ordem social não sejam de monta a impedir uma calibrada arbitragem das ambições por parte dos próprios ambiciosos (justamente o que tem faltado às facções estatais do Brasil pelo menos desde o processo do impeachment de Dilma).

É precisamente porque o Estado de Direito Autoritário vive entre a confirmação e a fraude da democracia que sua legitimidade é precária: ele é legítimo enquanto nutre, na prática, a crença da maioria da sociedade de que se caminha no rumo da democracia; ele passa a ilegítimo quando sua prática é identificada pela maioria da sociedade como oposta à democracia. Na passagem de uma situação à outra se instala a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário (que é o que entendo estar a acontecer no Brasil).

Instalada a crise de legitimação, ela, por longa que se faça, acabará por ter de se resolver por uma de três vias: (a) ou se caminha para a ilegitimidade pura e simples, obtendo à força um novo arranjo entre as facções estatais vitoriosas, agora sem Estado de direito; (b) ou as facções estatais vitoriosas se reacomodam em um relançamento do Estado de Direito Autoritário, necessariamente mais autoritário do que o anterior; (c) ou o que ainda há de democracia se firma como alternativa preferida, com a derrota total ou relativa de cada uma das facções no transcurso do tempo que se fizer necessário para se alcançar um Estado de Direito Democrático.

Tal como em ocasião anterior, me parece instrutivo traçar uma comparação entre a Rússia e o Brasil.

A Rússia é um Estado de Direito Autoritário no qual as contradições da ordem social não estão a ameaçar a normalidade do mando faccioso e, assim, o Estado russo desfruta de toda a legitimidade possível em situações assim. Com mais de 80% de aprovação na opinião pública e com maioria quase pétrea no Legislativo, Putin é, a um só tempo, representante e símbolo: de um lado, ele representa para as facções do Estado de direito da Rússia um ponto sólido de arbitragem calibrada das próprias ambições delas; de outro lado, ele simboliza para a maioria da sociedade russa o que ela entende como o ideal a que poderia realisticamente aspirar transcorridos esses quase trinta anos desde a queda do muro de Berlin: um Estado de direito que provê ordem, não embarga alguma prosperidade e mantém acesa a chama de sonhos de grandeza ancestralmente acalentados.

O Brasil é um Estado de Direito Autoritário no qual as contradições da ordem social, vetorizadas na desigualdade, levaram à conflagração das facções estatais e, assim, se explicitou o caráter antidemocrático do seu mando, o que desencadeou uma crise de legitimação do Estado brasileiro. Por isso mesmo, com seus mais de 80% de desaprovação na opinião pública, rendido às chantagens do Legislativo e dependente de parceiros facciosos no STF, Temer é o exato oposto de Putin: de um lado, Temer representa, quando muito, um ponto fugaz de apoio para as ambições de quem logrou se alojar no palácio, sendo visto como inimigo por todas as outras facções, que estão ora mais ora menos insurgidas contra ele; de outro lado, ele simboliza para a maioria da sociedade toda a derrota que lhe foi imposta no curso desses quase trinta anos decorridos desde a promulgação da Constituição de 1988: a Constituição foi rasgada pela luta de facções, a desordem estatal só faz piorar, a desigualdade mostra todo seu potencial regressivo e ninguém crê que a ordem atual aponte para um futuro longínquo compensador dos sacrifícios vividos no passado ou no presente.

Dado o caráter autoritário dos Estados de direito da Rússia e do Brasil — e a despeito da grande diferença apontada acima na situação político-institucional dos dois países na hora presente –, a sociedade russa e a sociedade brasileira vivem a mesma angústia, fazendo a pergunta típica das sociedades que não fizeram das franquias democráticas um meio de consolidar a democracia: o que virá depois? Na Rússia, o ainda organizado caráter subterrâneo da luta de facções mantém incerta a sucessão de Putin, por isso mesmo visto desesperadamente pela maioria como insubstituível; no Brasil, a desordem já aberta trazida pela conflagração das facções em guerra tornou incerta a sucessão de Temer, a quem a maioria quer desesperadamente ver pelas costas.

Portanto, alcançar uma saída para o Brasil na figura de um homem forte seria, quando muito (se tudo corresse muito bem para quem pensa assim), ficar com a mesma angústia e trocar um desespero por outro ou, como é muito mais provável, ter como resultado uma situação que não só nos afastará ainda mais da consolidação democrática como nos levaria ao risco de perder até mesmo o Estado de direito enquanto tal. Dessa perspectiva, nossa tarefa não é, ainda, identificar um nome, mas encontrar um propósito comum pelo qual lutar e o método que lhe corresponda. A precipitação por um nome vai nos levar a más escolhas.

Lula

Lula é um símbolo esgotado, uma liderança exaurida, mas apoiado na falta de lucidez generalizada, que impede a maioria da sociedade de escolher um rumo novo a tomar, ele conseguiu transformar seus problemas com a lei num problema para o país. Lula se tornou definitivamente uma rolha que impede o surgimento do novo.

Tenho claro que os problemas de Lula com a lei decorrem também da aplicação facciosa das leis: no caso do tríplex Lula foi condenado sem provas. Entretanto, não é de hoje que estou convencido de que Lula comandou, participou e foi leniente com a roubalheira que se deu no curso de seus governos. Convicções não são suficientes para que se mande alguém para a cadeia; mas são suficientes para que se dê politicamente as costas a alguém – esta é, em última instância, a diferença entre a decisão judicial (que só  pode ser tomada no âmbito do Estado) e a opinião pública (que se exerce no âmbito da sociedade).

Ao se deixar amarrar politicamente à situação legal de Lula, a autointitulada esquerda brasileira que não é petista, e mesmo aquela parte do petismo não comprometida com os malfeitos, perdeu qualquer possibilidade de fazer um diagnóstico independente da crise e, com base nele, apontar um rumo alternativo para o país. Ao dar a si mesma um papel subalterno no curso da crise, essa autointitulada esquerda deixou aberto o campo em que o protofascismo vem se alastrando.

É próprio de uma crise de legitimação do Estado que cada um se sinta fraudado a cada vez que o Estado se inclina numa direção diferente da que o observador preferiria. Para quem foi contrariado, toda decisão pública é recebida como uma ofensa pessoal. Mas se não há nenhuma força política suficientemente independente para esclarecer que a decisão foi tomada não exatamente pelo Estado, mas por uma das suas facções, à desordem no Estado se soma a confusão desorientadora na sociedade, terreno ideal para soluções de força.

Numa situação assim, reunir espírito aberto com a busca do bem comum requer uma obstinada recusa ao cinismo, combinada com a disposição inquebrantável de buscar formas políticas novas, pois se alinhar com qualquer das forças que nos levaram a essa crise é uma forma de cinismo.

Bolsonaro

Quem repudia a liderança de Lula e escolhe Bolsonaro não está optando por uma liderança contra outra. Quem escolhe Bolsonaro está a repudiar também a ideia de liderança.

Bolsonaro é sintoma de um fenômeno perverso gerado pela crise de legitimação: ao invés de as massas servirem de marionete para um candidato, elas estão a produzir sua própria marionete na forma de um candidato – eis um fenômeno tão novo quanto ameaçador. Não à toa, portanto, Bolsonaro é o campeão das redes sociais: desde a solidão de seus cubículos com câmera e conexão à internet, lá no mais privado dos mundos privados, longe da esfera pública, mas em rede, cada um de seus adeptos sente que tem o boneco nas mãos. Daí se alastra, na forma de fenômeno de massas, a identificação visceral com ele, uma identificação que não vem propriamente do que ele representa ou, muito menos, do que ele propõe: a mediação e a troca são irrelevantes no caso de Bolsonaro.

A identificação individual (massa feita EU) se fundamenta primordialmente na ilusão de cada um acerca do poder que detém por estar a manejar os cordões do boneco – daí ser muito difícil convencer os adeptos de Bolsonaro mediante argumentação. Eles só serão demovidos por uma iluminação imprevista; do contrário, terão de ser derrotados ou por uma das forças oponentes, ou pela realidade adversa desencadeada pela sua própria vitória.

O fato de nessa altura da crise de legitimação a adesão a Bolsonaro estar a crescer não resulta da força dele em se contrapor à crise. Essa adesão resulta da inépcia dele diante da crise, uma inépcia que a massa compartilha, impotente que se sente. Bolsonaro é a marionete estridente dos que se sentem impotentes. Ele não oferece resistência alguma aos sentimentos mais bestiais, que são justamente os mais simples, os mais fáceis de a massa-EU mobilizar em si mesma, sem precisar fazer o engajamento cognitivo que uma escolha pensada para sair da crise requer – toda elaboração, toda mediação, toda ponderação são vividas como adversárias, coisa de “comunista”. Daí a enorme e mentirosa reação deles à execução da Marielle, um crime que abriu uma janela que eles correram para fechar porque a luz iluminou a cena.

É um erro enxergar qualquer familiaridade simbólica entre os tiros que executaram Marielle e os disparos que atingiram a caravana de Lula. Marielle foi vítima de uma guerra entre facções estatais que estão dispostas a impor à sociedade todo sacrifício que se fizer necessário à restauração de um  equilíbrio de mando no âmbito do Estado. Morta, Marielle simboliza a potência ainda adormecida da sociedade brasileira diante da crise de legitimação do Estado. Os tiros contra os ônibus da caravana, embora inaceitáveis, não passam de provocações marginais que se esgotam na polarização fajuta que pretendem favorecer. Quando essa polarização se dissolver começará a batalha decisiva.

Fica o Registro:

  • Fernando Haddad apontou em entrevista o caráter seletivo da indignação que certos setores da sociedade têm exibido contra a corrupção. Ele tem toda razão e entendo como fundamental apontar que essa hipocrisia é parte do que há de fraudulento no jogo de poder em curso. Entretanto, entendo como igualmente fundamental registrar que a escolha de Haddad não é melhor: ele não mostra nenhuma indignação com a corrupção… A outra face dessa fleuma conveniente é a esperteza contida nessa forma de tergiversar sobre o caso de Lula: “Eu tenho a convicção de quem leu o processo”… – como se convicções políticas se formassem da mesma maneira como se fazem as convicções jurídicas… Por isso mesmo, Haddad abre mão de toda luta política contra Alckmin nesse assunto, como se apontar a convergência entre Paulo Preto e os governos tucanos fosse algo a ser feito apenas no plano jurídico! Não à toa, Haddad declara preferir a palavra de Alckmin à palavra “de quem quer que seja que esteja aí, enrolado com a justiça”, como se enrolados com a justiça não estivessem todos, inclusive Lula. Haddad escolheu esconder-se da crise acocorado sob um telhado de vidro, mas de microfone na mão.
  • Na mesma entrevista, Haddad anacronicamente salientou convergências que vê entre PT e PSDB, como se fosse possível saltarmos os últimos trinta anos (no curso dos quais eles montaram uma polarização fajuta) e covardemente esquecermos que as convergências se deram sobretudo na acomodação à desigualdade, na revitalização dos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) e na adesão à corrupção como método de reunir poder para fazer dinheiro. Perdidos no tempo, o PT e o PSDB que ele tem na cabeça são personagens de fábula.
  • É que, tal como naquele cinema pobrinho dos faroestes fajutos dos anos sessenta, onde as cenas perigosas recusadas pelos dois protagonistas “adversários” eram encenadas pelo mesmo dublê, nessa pantomima anacrônica para reavivar a união FHC+Lula Haddad tem a pretensão de ser “descoberto” como o dublê ideal, o que nos leva ao risco de assisti-lo a pregar a união nacional contra o “patrimonialismo moderno” vestindo um macacão emporcalhado de petróleo e montado num jegue – ficcionista nenhum anteciparia que a realidade pudesse descaracterizar D. Quixote e Hamlet a ponto de ser possível desfigurá-los numa fusão tão impertinente.
  • Metido no pântano até a linha dos olhos, o prof. André Singer sucumbiu, em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, ao que há de pior: a ideia de que a sociedade brasileira é vítima de uma conspiração, pela qual “tentam nos impingir” alguma coisa (só faltaram as “forças ocultas”). Depois de começar o artigo misturando indevidamente os tiros profissionais que executaram Marielle aos inaceitáveis disparos provocadores feitos contra a caravana de Lula, nosso autor faz um artigo em que tenta apresentar como pardos todos os gatos dessa noite que nos aterra: desconfia de Dodge, indigita Gilmar, ataca Barroso e faz alerde acerca de um suposto “extenso planejamento”.
  • Em mais uma tentativa de sustentar o insustentável, ou seja, que vivemos sob um Estado democrático de direito, Oscar Vilhena Vieira ataca mais uma vez e, claro, como nem pode reconhecer a guerra entre as facções estatais, nem pôde deixar de aprender alguma coisa, improvisou o que chamou de “guerra dos estamentos”. Depois de algumas cambalhotas históricas e alguma contradição, conclui com essa pérola: “não seria uma surpresa, no entanto, a concessão do HC de Lula, sem que se alterasse a regra da execução provisória (menos ainda da Lei da Ficha Limpa). Uma contradição jurídica, sem sombra de dúvida. Mas uma tentativa de distensionar o conflito entre direito e política”. Dá até preguiça, mas em nome da clareza, comentemos essa douta “conclusão”: para fantasiar que há um “conflito entre o direito e a política” é necessário cometer dois erros: do lado do direito, considerar que existe hoje no Brasil um, e somente um, lado do direito, ignorando que o Judiciário-judicação está escancarada e grosseiramente dividido em facções, divisão que já os levou a rasgarem a Constituição e ameaça leva-los a rasgar as togas; do lado da política, o erro requerido está em considerar que ela é, literalmente, uma reserva de mercado dos profissionais da política aboletados no Legislativo-representação e no Executivo-gestão, como se a tarefa que nos desafia não fosse, justamente, fazer outra política contra a desses aí que estão em conflito não com um direito imaginário, mas com a própria sociedade. Vilhena Vieira, como de costume, tropeça a cada parágrafo: num adverte Tófolli de que há mais de uma política; no outro funde a política numa coisa só e a opõe a um direito cerúleo – enfim, mais um liberal que está perdidinho. Se eles aceitassem que o Estado democrático de direito, orgulho da sua geração, não existe, doeria mais, mas parariam de dar vexame.
  • Faz tempo que apontei aqui que a dobradinha Lula-Temer, mais o que eles representam, iniciada desde antes que o golpista fosse vice de Dilma, não se esgotara (embora tenha sofrido o soluço do impeachment). É que a crise de legitimação do Estado que sobreveio ao impeachment (sem ter nele propriamente uma causa) alterou completamente o jogo, que teve três fases: na primeira, antes da crise, os dois eram adversários “históricos” momentaneamente aliados; na segunda, em meio ao golpe, eles trouxeram de volta a fajuta desavença “histórica”; na terceira, consumado e golpe e aberta a crise de legitimação, eles começaram o tango da proteção mútua, cujos lances mais notórios vêm sendo: Dilma teve os direitos políticos preservados; o PT votou em Maia para a presidência da Câmara; Temer visitou Lula quando da internação de dona Marisa; Lula elogiou Temer por superar uma “tentativa de golpe”; Temer fala em “barragem de candidaturas” e, agora, o PT está pronto a ver problemas graves numa queda de Temer. Nessa guerra entre facções que se fazem e refazem, Lula, Temer e o que eles representam podem estar tão separados quanto unidos, ao sabor da luta pela sobrevivência. Essa união facciosa entre Lula e Temer tem sua correspondência fidelíssima no Supremo, numa já antiga concatenação facciosa entre Gilmar, que é Temer, e Tóffoli, que é Lula. A explicação para tudo isso me parece simples: dado que a crise desaguou numa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário construído pela política profissional deles, a fragilidade de ambos, de Lula e de Temer, não permite que a derrota de um seja a vitória do outro – estão num abraço de afogados.

Sobre as decisões do Supremo que afetarão Lula

A mim parece evidente que qualquer decisão será facciosa, tal como têm sido todas as decisões tomadas pelo Supremo em relação aos políticos profissionais e seus aliados pelo menos desde a prisão de Delcídio e a posterior proteção a Aécio, passando pela prisão de Cunha, as devoluções de Maluf e Picciani aos respectivos domicílios, os habeas corpus ao Barata e a suspensão da inelegibilidade de Demóstenes Torres – chegou a vez do Lula, bem na hora de mais uma rodada de apertos contra Temer.

No momento, sou levado a imaginar os seguintes desdobramentos:

A facção mais pró-establishment, que foi levada a concluir como transtorno indesejado tudo o que acabou por ser desencadeado pela Lava Jato, reúne os dois aparentes extremos da crise, Lula e Temer, representados no Supremo respectivamente por Tófolli e Gilmar, ao lado dos quais, em alinhamento fluído, figuram Lewandowski e Marco Aurélio. Logo, estão reunidos na mesma facção parte do governo e parte da oposição (daí o PT renovar seu desinteresse em derrubar Temer), assim como pedaços do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Nessa ordem de ideias, Gilmar e Tófolli vão votar pela proibição da prisão com condenação em segunda instância, pois estão empenhados em livrar da prisão outros além de Lula. Se perderem essa votação, vão votar, coerentemente, pela concessão de habeas corpus ao Lula. Lewandowski deverá acompanha-los, enquanto Marco Aurélio deve negar o HC ao Lula se perder a primeira votação.

Entre os transformadores há, nessa matéria, facciosos de tipo variado: há um tipo como Barroso, de longe o mais voluntarista de todos; secundado por Fachin, o relator da Lava Jato no STF, que vem jogando com orientação facciosa republicana deste a parceria com Janot, na qual contornaram a Constituição algumas vezes . Ambos devem votar pela manutenção da prisão em segunda instância, mas devem se dividir na decisão sobre Lula: Barroso deve votar pelo HC e Fachin, contra. Cármen Lúcia já deu seguidas declarações contra a revisão da matéria principal, mas deve votar pelo HC a Lula, no que será seguida pela ministra Rosa Weber. Em conexão frouxa com esses quatro ministros transformadores vem Fux, que tem servido como ninguém aos interesses facciosos do próprio Judiciário na crise atual, sendo dele as seguidas decisões em prol desse escandalosamente injusto “auxílio-moradia”. Esse alinhamento propriamente corporativo deve jogar seu papel no voto do ministro, pois há forte movimento intra muros em prol da possibilidade de prisão em segunda instância – mantida a prisão, ele deve votar em prol do HC a Lula.

Em sintonia propriamente facciosa com esses cinco ministros vem Alexandre de Moraes que, ligado a Alckmin, tem uma adesão ao establishment especialmente interessada e, assim, está determinado a tirar Lula do páreo de vez. Tenho como certo que ele votará contra Lula nas duas matérias.

O ministro Celso de Mello deve fechar o placar perdedor contra a prisão em segunda instância e, nesse caso, deverá ser um voto a mais para a vitória de Lula na obtenção do HC.

Claro está que não verei contradição alguma se o STF fizer o combinado faccioso que estou a supor que fará: manterá a possibilidade da prisão após condenação em segunda instância e dará um HC ao Lula.

MARIELLE COMO MEMÓRIA E ESPERANÇA

Carlos Novaes, 20 de março de 2018

Sendo ela um dispositivo do cérebro, a memória, como sabemos, é plástica como ele: ela assume formas e contornos variados no transcurso do tempo de nossas vidas, essa vida que cada um de nós luta para preservar, enriquecer, atribuir sentido. Essa plasticidade da forma não se dá apenas no espaço, portanto, ela se dá sobretudo no tempo. Resumindo muito: nossa memória retroage e dá significados novos ao passado — recorrer à memória já é, por assim dizer, alterar o passado. E nós o alteramos para ter esperança, que é o vestíbulo para um futuro que nasça da escolha, não da inércia.

A leitura quase ininterrupta de tudo o que tem saído sobre a execução de Marielle e o assassinato de Anderson tem tido sobre mim o efeito de reavivar esperanças que estavam quase mortas. E veja bem, leitor: embora as matérias e o os artigos de opinião venham sendo fundamentais, não é exatamente sobre o conteúdo deles que se erguem minhas esperanças novas, ainda que seja maravilhoso ver tanta gente, com preferências tão diferentes, se ocupar do que é valioso para o bem comum – minhas esperanças estão a ser nutridas graças às reações indecentes, na forma de comentários raivosos e da mentira pura e simples, que os fatos em si e aquele volumoso material decente vem suscitando em certos segmentos. E isso por quatro razões principais:

Em primeiro lugar, o contraste entre as mentiras atiradas às redes sociais e a diligente ação da mídia convencional no sentido de preservar um solo mínimo para a construção de uma memória não facciosa acerca da execução de Marielle e do assassinato de Anderson abre uma oportunidade valiosa para que se entenda a diferença que há entre se informar pelas redes sociais e pela chamada grande imprensa, em favor desta última. Assim, todos estão tendo a oportunidade de aprender que se a mídia convencional nunca é, de fato, neutra ou mesmo imparcial como pretende nos fazer acreditar, ela certamente sobrevive da verossimilhança do que publica, e isso é meio caminho andando na direção da verdade, embora não a garanta (quem acha possível alcançar essa garantia acaba propondo o controle da mídia…). Por outro lado, está a ficar claro para qualquer um que não seja um completo idiota que as redes sociais estão infestadas de raiva e de mentira elaborada. Os raivosos estão a tentar abafar para si mesmos a tremenda complexidade da realidade em que supunham ter aninhado suas limitadíssimas expectativas de acomodação; os mentirosos estão a reagir ao fato de que o que se move sob seus pés não é a prancha com que sonhavam surfar a onda reacionária que parecia estar ao seu dispor.

O material publicado na mídia convencional, provida de mediações, é totalmente diferente do material publicado numa mídia sem mediações como as redes sociais. Na mídia com mediações temos o Sujeito que tem de informar; na mídia sem mediações temos o EU que pode inventar. Na primeira, o indivíduo está contido pelas mediações e não pode simplesmente mentir; na segunda, o indivíduo está livre de mediações e pode mentir à vontade. E mais: a natureza do comportamento daqueles que mentem na mídia sem mediação diz muito da natureza do apego deles pelo homem de Estado que também despreza as mediações, que, como eles, faça e aconteça sozinho, sem freios.

Veja bem o que quero agarrar, leitor: na mídia convencional, uma informação só é transmitida depois de passar por mediações, pois há o repórter, o redator, o editor, o chefe dos editores, o chefe geral da redação e, no limite, o dono do veículo, os quais, juntos, formam o Sujeito da informação; já nas redes sociais, pelo contrário, pode haver apenas o EU superlativo do perdedor isolado, que só presta contas à sua própria raiva. Essas duas formas têm tudo a ver com as formas de exercício do poder político que lhes correspondem: à mídia convencional, cujas informações são submetidas a mediações, corresponde um poder de Estado sujeito ele também a mediações; já ao abutre solitário que faz das redes sociais plataforma para simplesmente mentir como bem entender, só pode corresponder a preferência simplista por um poder de Estado igualmente arbitrário, liberto de qualquer mediação. Eles preferem o Bolsonaro pela mesma razão que os faz preferir mentir: a ilusão de que a sociedade pode ser submetida ao que EU quero.

Em segundo lugar, a marca da invencionice nessas calúnias contra Marielle é tão evidente, seu caráter forjado é tão óbvio, que fica estampada a sua infantilidade conspiratória, ridículo que, a contrapelo, permite que nos libertemos da memória de que o que está em marcha contra a maioria de nós seja uma grande conspiração (chamo a ideia de conspiração de memória porque essa ideia está tão arraigada que funciona como um verdadeiro pano de fundo para o que pensamos). Não há conspiração totalizante alguma. O que há é a reunião de facções no âmbito do Estado, que se fazem e refazem em meio a conspirações, é certo, mas conspirações rivais umas às outras; e também por serem rivais não têm o poder de ditar o resultado final do processo – ainda bem. O “também” grifado antes se explica assim: o final do processo não pode ser antecipado por conspiração alguma porque além da rivalidade entre as facções do Estado em crise de legitimação, há, do outro lado, ainda de forma insipiente, é verdade, a movimentação imprevisível da sociedade, especialmente daqueles segmentos que atuam de forma totalmente independente das facções conflagradas nessa luta pelo controle do Estado de Direito Autoritário ilegítimo (embora seja legal – ele está cheio de leis e conta com o Judiciário respectivo!). Quem teria previsto uma movimentação como a que está havendo em nome de Marielle e de Anderson?

Por incipiente que ainda seja, a movimentação da sociedade vai ajudando a dificultar acordos entre as facções (ainda não conseguiram abafar a Lava Jato, por exemplo), pois até mesmo os acertos muito bem escondidos entre governadores de Estado e líderes de facções nas penitenciárias vão ficando claros para a opinião pública. E note bem, leitor: esses acertos, e sua divulgação, também são expressão da crise de legitimação do Estado, pois desafiados pelas cada vez mais desagregadoras consequências sociais e políticas da desigualdade, os governadores, que devem suas eleições (em última instância…) ao compromisso com a manutenção da mesma desigualdade, precisam se acertar com as facções penitenciárias para tentar neutralizar o potencial explosivo do conjunto ilegítimo, com o que formam um cipoal cada vez mais difícil de esconder e pelo qual todas as facções estatais (penitenciárias, policiais, institucionais e representacionais) tiram proveito relativo do sofrimento absoluto que impõem à maioria da sociedade através do poder de Estado, isto é, segundo o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Em terceiro lugar, as ações e reações à execução de Marielle e ao assassinato de Anderson nos permitem abandonar a memória de uma polarização fajuta que aprisiona nosso potencial para a criação política do novo. Esse crime medonho, nas circunstâncias dessa crise de legitimação do Estado, suscitou realinhamentos políticos que podem nos levar a procurar algo mais rico do que a polarização esquerdaXdireita, providência que daria uma chance para a reconfiguração das noções de “nós” e “eles” – veja bem, leitor: estou a sustentar que a polarização esquerdaXdireita é tão sem sentido quanto uma outra que até muito pouco tempo apaixonou multidões e, agora, vai sendo convenientemente esquecida, pois ficou nua em toda a sua fajutice, e sua vacuidade já não se presta às ilusões de ninguém que tenha juízo: PTxPSDB (aliás, não é à toa que como resultado da crise Dória tenha se tornado o verdadeiro líder do PSDB e o PT não tenha para onde correr sem o Lula — e com a horda boçalnara correndo por fora a vituperar que esses dois outros são iguais por serem ambos “comunistas”!! kkkkkk).

Em quarto lugar, a insistência dos mentirosos em vincular Marielle às facções do crime comum trouxe à tona o debate sobre a quem interessaria a execução dela. E o resultado é que resta como plausível que Marielle tenha sido executada a mando do tráfico, da milícia, da banda podre da PM ou de alguma facção paisana da política carioca ou federal. E é exatamente por ser plausível para qualquer um de nós (esteja você de que “lado” esteja) que a responsabilidade do ato possa ser de quaisquer das facções mencionadas, é exatamente por isso que já não se pode ter dúvidas acerca da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro: a luta pelo poder igualou a todos e se faz contra a, e às custas da, maioria da sociedade. Essa evidência exige reconfigurar a memória que viemos reunindo sobre a crise em que o país se encontra, pois nos permite dar sentido novo aos acontecimentos e sofrimentos até aqui experimentados, e compreender de outra maneira as atitudes dos diferentes agentes implicados.

Marielle vem sendo o que sempre foi: um ponto articulador para a usinagem mediada de memórias diferentes e, até, conflitantes, mas sempre excluindo a mentira, pois uma memória é, por definição, o oposto da mentira — a mentira é urdida naquilo que não foi, a mentira é o nada da memória.

O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 2 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Mas o trágico assassinato de Marielle e Anderson também tem se prestado a mistificações do chamado “outro lado” – tem gente que vai acordando para a enormidade da encrenca em que estamos metidos, mas resiste a enxergar que se trata de uma crise de legitimação do Estado de direito. E resiste porque tendo vaidosamente se convencido de que o resultado da luta contra a ditadura paisano-militar (para estes vaidosos, apenas militar) foi a conquista de um Estado democrático de direito, acha que dizer ilegítimo esse Estado de direito seria dizer ilegítima a democracia em que, a duras penas, temos sobrevivido.

Ora, se fizermos a distinção que proponho entre Estado de Direito Autoritário e Estado de Direito Democrático, e entendermos, pelas razões expostas numa série de posts iniciada aqui, que, na verdade, o que construímos depois da ditadura paisano-militar foi um Estado de Direito Autoritário, então já não teremos porque recusar enxergar na crise uma crise de legitimação do Estado de direito que nos infelicita. Naturalmente, para esse reconhecimento teremos de, como já desenvolvi aqui, encarar toda a extensão da nossa derrota, que no curso de trinta anos se fez lenta, gradual e segura e na qual PT e PSDB têm papel central, como também argumentei longamente aqui.

Como não poderia deixar de ser, nesse acordar precipitado alguns passam de um polo ao outro, e, então, sem sequer se ocuparem do caráter do Estado brasileiro, vão logo entregando os pontos no que diz respeito à democracia. De fato, já há quem veja no assassinato de Marielle o fim da democracia que imaginava consolidada num Estado democrático de direito. É provável que a nota patética insuperável dessa chorumela venha a ser o artigo do professor André Singer publicado na Folha de S.Paulo de hoje, no qual ele, depois de pomposamente intitular seu mimimi de “O fracasso da democracia”, vai, sem aviso, discorrer sobre “o fracasso da minha geração” – mas justo ele, que, não faz muito tempo, depois de deixar a condição de porta-voz da presidência da República, e em busca de justificação para as próprias escolhas coniventes, “teorizou” sobre a era Lula como governos na marcha de um claudicante “reformismo fraco” no rumo do socialismo?!?!

O professor vai ter de rever muita coisa, não é não? Afinal, depois de buscar salvação individual para os próprios erros num socialismo fantástico, agora se vê aloprado a invocar uma presumida derrota geracional para revestir de teoria política confusões individuais não menos fantásticas (fale por você!). Que os mortos enterrem seus mortos, pois o professor André Singer precisa entender que o seu PT é vítima interna recentíssima do Estado de Direito Autoritário que reforçou com sua adesão e que, agora, em crise de legitimação, se apresenta conflagrado numa luta de facções de que Marielle e Anderson são vítimas externas antiguíssimas.

Numa linha bem diferente de Singer, mas também equivocadamente, o respeitável prof. Vladimir Safatli escreveu ontem, na mesma Folha de S.Paulo, que:

“Não é difícil imaginar o que deve acontecer depois desse crime: nada, absolutamente nada. Pois ele não é uma exceção. Ele é o modo normal de funcionamento do governo brasileiro. […] O que vemos agora é apenas a consolidação de uma estrutura de fato. Um país comandado por uma casta de indiciados e criminosos que se apoia em poder militar anabolizado e em poder policial descontrolado que há muito se degradou à condição de setor organizado do banditismo nacional. […] esse não é um crime isolado, nem será o último. […] Pois esse país é, antes de qualquer coisa, uma forma de violência.”

Na fusão que fiz acima de trechos do artigo de Safatli se pode ver, creio, o que pode ser chamado propriamente de essencial: para o autor, governo e país estão fundidos na mesma forma, a forma da violência. Não creio que se possa ir muito longe com esse tipo de abordagem, pois ela passa por cima do que realmente importa: o caráter autoritário do nosso Estado de direito, que abriga um governo golpista e submete uma sociedade inerte, mas não se confunde com nenhum dos dois nem, principalmente, reúne os dois.

Por isso mesmo, ao contrário do que diz Safatli, não estamos diante da “consolidação de uma estrutura de fato”; é justo o contrário: os assassinatos (que se deram no bojo de uma luta de facções estatais) e a reação a eles (que se dá em meio a um processo de alarme e, oxalá, de esclarecimento na sociedade), são evidências de que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, que é o oposto da consolidação do que quer que seja! Naturalmente, como já salientei aqui e em muitos outros posts deste blog, podemos assistir, como desdobramento dessa crise de legitimação, a uma regressão a formas ainda mais autoritárias, mas não há evidência de que essa situação já se tenha configurado.

Ainda na linha das elaborações pouco esclarecedoras, embora motivadas por uma justa e louvável indignação com os assassinatos de Marielle e Anderson, oportuno comentar artigo de Vinicius Torres Freire, também publicado na Folha de ontem. Segundo ele,

“Até por haver indícios, é difícil de acreditar que representantes do crime institucional não tenham chegado a postos mais altos nos três Poderes. Depois de dominarem territórios e corromperem ou cooptarem parte das polícias, começam a ocupar partes do comando do Estado; contam com tropas e terroristas.”

De novo, o defeito está em não enxergar o Estado conflagrado numa luta de facções. Tudo se passa como se houvessem instituições hígidas, num Estado legítimo, no qual agentes do mal “começam a ocupar partes do comando”… Ora, a gravidade da situação já escancarou que estamos muito além desse ponto de “começo” – estamos em plena crise de legitimação, e as facções estão a medir forças, sabedoras de que não há hegemonia estatal que as possa conter. Estão em busca de uma nova hegemonia.

Nessa linha de ideias, não vejo diferença estrutural  (veja bem, leitor, estrutural) nenhuma entre a busca pelo controle da distribuição de gás numa favela pelas milícias policiais e a busca pelo controle da boca de fumo que paga propina à polícia civil para funcionar na mesma favela; ou entre a expropriação de apartamentos do Minha Casa Minha Vida por milícias e/ou traficantes e a briga facciosa do Judiciário pela manutenção, contra nós, desse imoral auxílio-moradia; ou entre o indulto natalino de Temer ao arrepio do bom direito (pelo qual ele mandou recado aos parceiros já apanhados na Lava Jato, inclusive a Lula) e a reformulação inconstitucional desse mesmo indulto pelo ministro Barroso do STF (pela qual ele mandou recado populista à opinião pública revoltada).

Finalmente, parece útil comentar o informado artigo de Bruno Carazza, também na Folha de ontem, também escrito em reação aos assassinatos de Marielle e Anderson. Depois de nos apresentar como epígrafe do seu artigo essa fala do capitão Nascimento, personagem do filme Tropa de Elite-2:

“O sistema é muito maior do que eu pensava.
Não é à toa que os traficantes, os policiais e os milicianos
matam tanta gente nas favelas.
Não é à toa que existem favelas.
Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília.
E que entra governo, sai governo, a corrupção continua.
Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo.
O sistema é foda.
Ainda vai morrer muito inocente.”

Depois da epígrafe acima, Carazza traz um arrazoado tão bem informado quanto moralmente bem posicionado sobre Marielle, mas tudo para concluir que o brutal assassinato dela:

“É como se fosse um recado para o cidadão de bem que aos poucos volta a se interessar pela política: tome cuidado, o sistema aqui é bruto.”

Ou seja, mais uma vez se apresenta uma leitura que supõe um Sistema operando inteiriço sobre tudo e todos, capaz de mandar recado unificado. Infelizmente, trata-se da mesma perspectiva ficcional limitadíssima, e conspiratória, do pobre capitão Nascimento, um agente, por definição, desprovido de uma visão de conjunto. Ignora-se, assim, a luta de facções que, precisamente, impede a vigência de qualquer Sistema, pois ela se dá nas entranhas mesmas do Estado de Direito Autoritário em disputa.

A nossa desgraça, leitor, é precisamente a ausência de qualquer princípio ordenador, uma situação que está a exigir de cada um de nós um engajamento lúcido na busca de uma solução, que terá de ser inovadora. Não haverá novidade se não pensarmos diferente, se não buscarmos saídas diferentes, para além dessa polarização fajuta em torno de estéreis ideologias inatuais, que sequer são realmente defendidas por seus arautos: uma direita liberal que diz defender o livre mercado, mas chafurda na corrupção de modo a obter lucros enquanto hipocritamente instrumentaliza o Estado contra a concorrência que seria a consagração do livre mercado “idealizado” por ela; e uma burocracia autointitulada de esquerda que reforçou as estruturas corruptas do Estado e nada fez contra a desigualdade, mas fica a se pavonear como herdeira de uma controvertida tradição socialista.

Nessa busca pela novidade, aquilo de que não podemos abrir mão é justamente das franquias democráticas já conquistadas, estando as eleições de 2018 no centro articulador delas, cuja campanha será uma oportunidade para fazermos a conversa sobre a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, na perspectiva de, a partir das eleições, iniciarmos a construção institucional de um Estado de Direito Democrático, que permitirá consolidarmos a democracia.

Num ânimo desses, quase desnecessário dizer que na disputa para os Executivos-gestão (presidente da República e governadores) deveremos não apenas repudiar a direita Boçalnara, mas negar o voto a qualquer candidato do PT, do PSDB ou dos dispositivos paisanos da ditadura de que eles se valeram em sua polarização fajuta (p-MDB e DEM). No tocante aos Legislativos-representação (Congresso e Assembleias), trata-se não apenas de seguir a orientação anterior, mas sobretudo de promover uma profunda e abrangente renovação, sem a recondução nem mesmo de quem quer que seja reputado como bom, como já argumentei aqui.

O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 1 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Depois de escrever o artigo anterior no calor da hora, saído da tristeza, da raiva e da impotência que caracterizam a constatação de uma injustiça que sabemos não poder reparar, passei a tentar acompanhar tudo o que vem sendo dito na mídia sobre essa verdadeira tragédia, que reúne como vítimas diretas um homem branco comum (tão confusamente questionado em nossos dias) e uma mulher negra incomum (tão merecidamente valorizada em nossos dias).

Desde logo há que reconhecer o inextrincável vínculo material e simbólico entre os dois assassinatos. Vínculo este que vem sendo reconhecido por praticamente todos os segmentos de interessados que se debruçam sobre a tragédia, menos um. Não obstante a grande mídia, acordada pelos tiros para a gravidade da hora, venha dando extensa cobertura à personalidade das duas vítimas, há um segmento que, a pretexto de denunciar uma inexistente indiferença diante da morte de Anderson, não se cansa de negar a importância simbólica do assassinato de Marielle, esforço no qual já se empenharam o comandante da Polícia Militar do Paraná, uma desembargadora do Rio e todo gênero de desclassificados que empesteiam as redes sociais.

A desonestidade dessa gente é tão evidente quanto instrutiva: ela é evidente porque está a repetir uma mentira; ela é instrutiva porque mostra o medo deles diante do potencial do episódio para virar a maré em que eles julgam estar a surfar. O ponto de articulação dessa mentira instrutiva está na insistência deles em combinar a defesa jactanciosa da necessidade de tratar a todas as vítimas como iguais com a descaracterização de Marielle como alvo almejado. Essa manobra é insustentável, uma vez que, se de um lado, parecem valorizar, na figura de Anderson, todas as vítimas de assassinatos que desaparecem sem destaque e sem investigação; de outro lado, e ao mesmo tempo, porém, para desvalorizar Marielle, desdenham todas as mortes que fingiam valorizar classificando a jovem líder como “cadáver comum”, até a ser lamentado, mas, ainda assim, “comum”.

Ora, o que há de comum em Anderson em nada o desvaloriza. Pelo contrário, o assassinato dele, um dano material não almejado pelos assassinos, faz desse jovem pai de família o verdadeiro representante de todas as vítimas produzidas pelas chamadas “balas perdidas” nessa rotina da banalização do assassinato entre nós – diante da (des)ordem estabelecida, ele não passa de “mais um”, como amarga e sagazmente constatou sua jovem viúva.

O que há de incomum em Mariella em tudo a distingui. Ela era o alvo direto e simbólico dos assassinos, condição que faz dela a legítima representante de todos aqueles que, mesmo não seguindo a sua liderança, tem a aspiração de uma sociedade menos desigual, menos preconceituosa e menos violenta – uma sociedade na qual a vida humana tenha valor por si só, como um verdadeiro direito do homem.

É de notar que ao contrário desse segmento repelente que busca diminuir Marielle enquanto finge solidariedade para com outras vítimas, a moça da Maré se notabilizou, se tornou líder, se fez símbolo justamente porque denunciava a morte das ditas pessoas comuns, que são as principais vítimas da desigualdade, eliminadas não ao acaso, mas segundo uma lógica que agencia perversidades pessoais (elas próprias também fruto da desigualdade) em ações paramilitares para manter o povo pobre sob terror, num circuito interminável de misérias conexas que se engalfinham — sem atinar que o fazem em benefício da desordem que favorece os privilegiados no comando.

Denunciemos a execução de Marielle para manter viva a luta por ideias que, institucionalizadas, impedirão a rotina de assassinatos como o de Anderson.